VIVER A FÉ NA QUARENTENA: Uma reflexão sobre a “ética da convicção” e a “ética da responsabilidade”, com a palavra jovens cristãos comprometidos

Existe uma velha narrativa de senso comum em nossa sociedade que caracteriza a juventude como uma época da vida marcada pela euforia, imaturidade e irresponsabilidade. Neste momento dramático em que vivemos uma pandemia de gripe que já matou mais de 700 mil pessoas em todo mundo, sendo destas mais de 110 mil em nosso país, as juventudes cristãs-católicas são chamadas mais uma vez a se posicionarem com serenidade, maturidade e responsabilidade.

Vivemos tempos em que as estruturas da nossa sociedade contemporânea são abaladas cotidianamente. Não é diferente no âmbito religioso, no qual a maioria das atividades pastorais estão suspensas devido à pandemia da Covid-19. Esta é a primeira vez que a nossa geração de católicos brasileiros passa por uma realidade dramática. É a primeira vem em que somos levados a indagar sobre: como mantermos a nossa fé sem ter a vida comunitária ameaçada?

A resposta de alguns jovens católicos brasileiros a essa indagação pode ser vista no vídeo “Por favor, nos devolvam a Santa Missa”. Com rosto e voz afável, os jovens dizem reconhecer a dificuldade de nosso tempo, mas pedem aos bispos do Brasil a devolução da missa para si, argumentando que: já são permitidas a abertura das pequenas lojas; que as lojas que vendem produtos básicos não foram fechadas durante a quarentena; e que o papa Francisco disse que “a igreja é concreta, não pode permanecer virtual”. Também lançam um questionamento forte: O que poderia ser mais importante e essencial para nós do que a santa missa? E por fim, prometem se colocarem a disposição de seus pastores, arrumarem máscaras, produtos de higiene e luvas, estarem nas portas das igrejas para garantirem o distanciamento de dois metro entre os fiéis, organizarem listas para se inscreverem a missa, limparem os bancos da igreja depois da missa e fazer as igrejas mais seguras do que os supermercados.

De outro lado, o jovem padre da diocese de Divinópolis-MG, Carlos Henrique A. de Resende, em seu artigo “Padre a gente sabe rezar!”, tece uma boa reflexão sobre a manutenção da fé e do espírito coletivo de Igreja em tempos de quarentena. Reconhecendo a maturidade e capacidade das leigas e leigos, o autor convida-nos a viver a força do mistério celebrado a partir da Igreja doméstica, tal como outrora, quando a fé se sustentava no seio da família pela prática da catequese familiar e da partilha da vivência diária.

No que tange a resposta dos jovens católicos que pedem a devolução da santa missa aos bispos do Brasil, é possível constatar que a argumentação geral não se baseia em uma reflexão de inspiração teológica cristã, mas antes, segue, de forma implícita, a retórica ideológica do movimento negacionista. Este movimento se caracteriza pela negação do conhecimento científico em detrimento de achismos e senso comum. Seus adeptos, em todo o mundo, exigem o fim ou o relaxamento da quarentena a partir da desqualificação da pandemia do novo coranavírus como uma “gripezinha”. Também, contrapõem de forma hierárquica, a importância de se salvar primeiro a economia e depois as vidas.

No caso, por exemplo, do negacionismo implícito nos discursos atualmente proferidos pelo empresariado brasileiro, pela classe média nacional e pelo presidente da república Jair Bolsonaro, é afirmado que os pobres não podem ficar em quarentena porque faltará comida em sua mesa caso não forem trabalhar. Há por trás desse discurso, aparentemente louvável, um interesse de classe, de salvar a economia, ou seus lucros, a qualquer custo, ainda que gastando quantas vidas forem preciso. A pergunta que fica é: porque antes da pandemia não havia essa preocupação com a mesa dos pobres?

Já no caso dos jovens católicos o negacionismo implícito se encontra sobretudo na indagação: O que poderia ser mais importante e essencial para nós do que a santa missa? Há por trás dessa pergunta, também aparentemente louvável, interesses individualistas, fundamentalistas e anticristãos, que buscam a garantia do alimento (eucaristia) para as pobres almas, a qualquer custo, ainda que gastando quantas vidas forem preciso para isso.

Ao pedirem a devolução da santa missa aos bispos do Brasil, esses jovens católicos assumem serem o reflexo da velha narrativa de senso comum que considera a juventude como eufórica, imatura e irresponsável. Eufórica porque pedem para estar em comunidade em um momento em que o isolamento social é afirmado pela Organização Mundial da Saúde, pela Santa Sé e pela Congregação Nacional dos Bispos do Brasil, como a forma mais eficaz de contenção da pandemia da Covid-19. Imatura porque não compreendem que o simplismo das ações que prometeram fazer, para o retorno das missas, não corresponde com a complexidade da logística de se realizar aglomeração de pessoas em tempos de pandemia. Irresponsável porque incentivam o afrouxamento do isolamento social e assim colocam em risco a capacidade de atendimento do Sistema Único de Saúde brasileiro, podendo levá-lo ao colapso.

Podemos dizer que o que guia a ação destes jovens católicos não é a reflexão teológica cristã e nem a teoria científica epidemiológica, mas antes, a “ética da convicção”, que segundo o sociólogo alemão Max Weber (1864 – 1920), é uma ação social orientada por valores morais e que não leva em consideração os suas possíveis consequências.

Por outro lado, a resposta do jovem padre Carlos Henrique se sustenta em uma reflexão teológica cristã e em uma ação social que avalia previamente as consequências dos seus possíveis resultados, a “ética da responsabilidade”. Em seu artigo, o padre nos leva a refletir que mesmo sem a possibilidade de comungar o corpo e sangue de Cristo nas missas, podemos viver concretamente o sentido de ser Igreja em comunhão com a família no dia a dia. Esse contraponto entre a “ética da convicção” e a “ética da responsabilidade” refletida na ação dos jovens católicos e na ação do padre de Divinópolis-MG, serve-nos como uma reflexão cristã e uma oportunidade de repensarmos como estávamos vivendo a nossa fé.

 “Será que não estamos nos esquecendo que os fiéis são a Igreja? O que entendemos por celebrar? O que entendemos por Eucaristia? Um rito a ser executado? Uma cerimônia a ser vista? Um alimento a ser digerido? Uma experiência mágica? Ou uma experiência ritual que se confunde com uma realidade existencial?

(RESENDE, 2020)

É importante que nós jovens e demais cristãos católicos compreendamos que toda a prática quando se torna rotineira, mesmo a ida à igreja, perde totalmente o seu sentido. O paradigma desse momento é: como mantermos a nossa fé sem as mesmas estruturas em que fomos doutrinados durante toda vida? É fundamental que consigamos amadurecer a nossa fé tendo a consciência de que Deus está em mim e em você quando tentamos ser pessoas melhores e quando pensamos, em primeiro lugar, naqueles que sofrem.

Repensar a nossa forma de ser Igreja é, também, parar de reproduzir tantas práticas individualistas e egoístas da sociedade capitalista em que vivemos. É pensar no outro, se preocupar e cuidar da comunidade com amor e misericórdia. É ser comunidade e ser Igreja estando todos em quarentena. Não obstante, o padre de Divinópolis nos ensina, a partir do artigo 95 das Diretrizes da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil, que “pela oração cotidiana, os membros da comunidade se sentem consolados, redescobrem sua dignidade de filhos e filhas de Deus, tomam consciência de que são colaboradores de Deus na missão e são impelidos a saírem ao encontro das pessoas e à prática da misericórdia” (RESENDE,2020).

Assim como o padre, defendemos que “não podemos perder a sensibilidade de perceber que nosso povo sabe rezar. Não precisamos fazer para eles simplesmente verem. Talvez seja mais eficaz ajudá-los, com pistas, com provocações, para que eles celebrem e vivam a força do mistério” (RESENDE,2020). Também, não devemos temer o abalo da fé dos cristãos católicos com o distanciamento social, pois todos aqueles que confiam e fazem parte do corpo de Cristo voltarão à vida comunitária e as atividades pastorais em breve.

Enquanto jovens católicos brasileiros responsáveis, reafirmamos que é preciso que não nos deixemos guiar pela “ética da convicção”, que não busquemos apenas matar a nossa fome comendo hóstia no templo. Neste momento é vital que nos orientemos pela “ética da responsabilidade”, que busquemos, portanto, fortalecer a nossa “Igreja doméstica” e preservar a vida de todas as pessoas seguindo os cuidados recomendados pelos profissionais da saúde e cientistas epidemiológicos. A ciência não é inimiga da religião, mas sim um dos instrumentos de Deus para a manutenção da vida em nossa casa comum.

Douglas Dias e Glaucon Durães, ao fundo, a igreja velha de São Joaquim da Grama, os dois participaram da Jornada Mundial da Juventude do Rio de Janeiro (2013)

Sobre os autores:

Douglas Augusto Dias, jovem católico, coordenador da comunidade de São Joaquim da Grama, Rio Claro-RJ.

Glaucon Durães da Silva Santos, jovem católico, mestrando em Ciências Sociais pela PUC Minas.

3 Comentários

  1. Excelente reflexão! Temos que reavaliar nossas atitudes diárias, colocando o compromisso cristão de amor ao próximo como prioridade nesse grande desafio de preservação a vida humana.

  2. Eu estava necessitado de uma reflexão que comparasse mesmo esses dois discursos, essas duas “éticas”. Essa perspectiva foi esclarecedora!

  3. Como é bom a gente ver jovens católicos dando uma resposta madura a uma situação emergente através de um texto bem construído, bem fundamentado em suas citações e que, de maneira serena, nos faz refletir sobre essa realidade da pandemia e do isolamento social. Parabéns Douglas e Glaucon, Deus os abençoe.
    Diác. Eugênio Lima de Souza
    Arquidiocese de Natal.

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