Um dos costumes da antiga Igreja Romana que tem sido retomado recentemente é o cântico da Kalenda de Natal antes ou no início da Missa da Vigília na noite santa.
Este costume vem dos antigos mosteiros e catedrais que liam cada dia o Martirológio, a lista dos santos e santas mártires a serem celebrados no dia seguinte. E no dia 24 de dezembro, o Martirológio fazia o anúncio solene do Natal de Jesus, inserindo-o na história do povo de Deus e do mundo.
Infelizmente, mesmo o texto reformado que atualmente é cantado de acordo com o novo Missal Romano e que a CNBB publica em seu diretório ainda parece olhar a história em uma perspectiva exclusivista (a história da salvação é só a bíblica e Jesus nasceu só como judeu). Assume como acontecimentos centrais da história a cultura romana, a fundação da Urbe, as olimpíadas e o imperador de plantão. Acima de tudo, mistura o anúncio de Jesus, com o anúncio da paz imperial.
O texto afirma: “no quadragésimo segundo ano do Império de César Otaviano Augusto, enquanto reinava a paz sobre a terra, na sexta idade do mundo, Jesus Cristo, Deus Eterno e Filho do Eterno Pai, querendo santificar o mundo com a sua vinda, foi concebido por obra do Espírito Santo e se fez homem”.
A própria linguagem parece a tradução mecânica do Google de um texto da filosofia grega com roupa cristã. Que diferença imensa deste outro anúncio do Natal, escrito pelo pastor luterano Dietrich Bonhoeffer, em um campo de concentração nazista na Alemanha, em 1944 (ano em que nasci):
“Este é o anúncio de Natal: vocês foram assumidos/as. Deus decidiu carregar no seu corpo a carne e o sangue de vocês. Voltem o olhar para a manjedoura. No Natal, a Palavra Divina Divina se faz carne na carne de vocês”.
No ano passado, estava esperando a mensagem de Natal que o nosso querido Pedro Casaldáliga sempre mandava a cada ano. No ano passado, já muito fraco e sem poder escrever, ele simplesmente ditou: “Vejo Deus em vocês. É Natal”.
Que anúncio de Natal muito mais forte e direto do que os do Martirológio Romano. Por que é tão importante este assunto do anúncio do Natal? Gente, até agora o Natal depende do anúncio. De acordo com o evangelho, os anjos anunciam aos pastores o nascimento e o que é extraordinário é o anúncio. O nascimento de uma criança pobre, nua, colocada em um presépio não é.
Ontem à noite, durante a nossa celebração (virtual) do Natal, Márcio Souza contou que passando nesta semana em um bairro central do Recife (Afogados) viu uma criança de poucos anos deitada e dormindo em um papelão na calçada de uma rua. Isso ocorre entre nós e no mundo de forma escandalosa. Chegam a ser milhares e mesmo milhões de crianças que nascem assim.
O que é extraordinário é o anúncio de que Deus revela ao mundo que a partir de agora quem não o vê na pele de uma criança como essa não acolhe a Deus. O evangelho deste dia do Natal termina dizendo: “A Deus, ninguém nunca viu”. Isso parece afirmação de um ateu. Mas, o evangelho continua: “Ninguém nunca viu a Deus, mas o Filho único veio e nos revelou o Pai”. (Jo 1, 18). Este Filho único se revela em toda criança pobre e confirma para nós que Ele nos torna todos nós filhos e filhas únicos/as do Pai que nos ama com amor de mãe. Temos mesmo de descolonizar o anúncio do Natal.
Feliz Natal para vocês.
(Os grifos são nossos)
Sobre o autor:
Ir. Marcelo Barros é monge beneditino, escritor e teólogo biblista brasileiro. Em 1969 foi ordenado padre por Dom Helder Camara e, durante quase dez anos, de 1967 a 1976, trabalhou como secretário e assessor de Dom Hélder para assuntos ecumênicos. É membro da Comissão Teológica da Associação Ecumênica dos Teólogos do Terceiro Mundo (ASETT), que reúne teólogos da América Latina, África, Ásia e ainda minorias negras e indígenas da América do Norte. Assim, em seu blog, ele se define: “Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar”.