Como se concretiza o atual processo de despertar vocacional? E ao longo do processo de formação, além do bispo, do próprio formando, dos formadores e familiares do candidato, quem mais participa ou é responsável pelo discernimento das aptidões? A comunidade de fé é envolvida neste processo de confirmação dos carismas?
“Em uma Igreja sinodal, todo o corpo dos fiéis se engajaria no discernimento comunitário para identificar quem tem dons específicos. Os pastores (bispos), então, ratificariam e “ordenariam” essas pessoas para exercer seus carismas – os dons de Deus – para o bem comum.”
(Texto reflexivo de Robert Mickens, publicado em La Croix International, no dia 08/11/2019. Tradução feita por Moisés Sbardelotto para o IHU)
Igreja deve aprender a discernir os carismas de serviço: essa pode ser a chave para desenraizar o câncer do clericalismo
Os católicos, particularmente os da casta clerical, tendem a ser bastante ruins no discernimento de grupo – especialmente quando se trata de identificar os membros da comunidade que possuem os dons espirituais únicos, ordenados aos vários ministérios de serviço na Igreja. Há uma falta de discernimento de verdade quando se trata de carismas.
O sacerdócio ordenado (presbiterado) é um bom exemplo. Geralmente, o processo começa com a iniciativa de um homem adulto que acredita (ou sua mãe acredita) que Deus o está chamando a ser padre. O homem, então, procurará se afiliar a uma diocese ou se juntar a uma ordem religiosa. Se ele já conseguir amarrar os seus próprios cadarços e não for um criminoso condenado, ele provavelmente passará na avaliação inicial. Infelizmente, isso não é uma piada.
O mais importante para chegar ao próximo estágio é manifestar a vontade de ser celibatário e convencer as autoridades da Igreja de que ele não “pratica a homossexualidade, apresenta tendências homossexuais arraigadas ou apoia a chamada ‘cultura gay’”. Se tudo isso se confirmar, o nosso vocacionado provavelmente passará por mais entrevistas e testes psicológicos, e será submetido a outras verificações de antecedentes.
Pulando através de aros
Se não houver sinais evidentes de doença mental ou de transtornos de personalidade, ele será admitido em um programa de seminário ou noviciado. Nesse ponto, a afirmação padrão é de que o seminarista está discernindo, e a diocese ou a ordem religiosa também estão discernindo.
Assim começa uma série de “aros” pelos quais o candidato ao sacerdócio deve pular, a fim de chegar à ordenação. Ele aprenderá essa habilidade muito especial e necessária – criatividade com verdade.
Existem programas elaborados de formação sacerdotal, que são elaborados pelas Conferências Episcopais nacionais. Eles devem receber o selo de aprovação do Vaticano antes de ser implementados.
O regime diário difere um pouco de um seminário para outro. Toda casa de formação tem a sua própria variação do código de vestimenta, do horário e estilo litúrgico, dos tipos de experiência pastoral, do toque de recolher (ou não) e de várias regras e regulamentos.
Depois de três ou quatro anos de estudos teológicos, então, o candidato deve enfrentar o seu primeiro grande obstáculo. A equipe do seminário recomendará que ele seja ordenado ao diaconato de transição? Ocasionalmente, um ou dois não se mostram à altura. Mas isso é raro.
O segundo e último obstáculo é a ordenação ao presbiterado. O reitor do seminário e a sua equipe podem aconselhar o bispo a não ordenar um homem por razões que considerem graves. Mas, de novo, e por várias razões, há poucas pessoas que são impedidas. Normalmente, um candidato questionável já é eliminado nos dois primeiros anos. Se não o for, é porque ele goza do favor do seu bispo.
Onde está a voz da comunidade?
Durante o rito de ordenação, um padre apresenta os candidatos ao bispo. “Reverendíssimo Padre: pede a Santa Mãe Igreja que ordeneis estes nossos irmãos para o ministério do presbiterado”, diz ele. “Sabeis se eles são dignos?”, pergunta o bispo. E o padre responde: “Segundo o testemunho do povo cristão e o parecer dos responsáveis que os apresentam, atesto que foram considerados dignos”.
Como, exatamente, o “povo cristão” foi questionado ou envolvido no processo de constatar que esses homens são dignos? E quais pessoas – seus pais, seus amigos?
Toda diocese e casa de formação é única, é claro. Algumas envolvem os leigos na tarefa de revisar os candidatos ao seminário ou de prepará-los para o ministério. Mas as origens do caminho de um homem ao sacerdócio – ou, pelo menos, a sua exploração – são principalmente de iniciativa do próprio homem.
Obviamente, há pessoas – especialmente padres – que encorajam certos homens (geralmente jovens) a pensar no sacerdócio. Felizmente, eles veem qualidades nesses homens que os tornariam bons presbíteros. Mas, de novo, essa é a iniciativa de um indivíduo.
E se uma comunidade inteira – digamos, uma paróquia – fosse capaz de fazer algo semelhante? Em vez de esperar que alguém se apresente por iniciativa própria, que tal se a comunidade se envolvesse em um discernimento orante para identificar aqueles em seu próprio meio que têm os carismas de serviço?
Sistema de seleção e formação do seminário
A verdade é que o sistema da Igreja de seleção e preparação de presbíteros é seriamente falho. Sabemos disso há muito tempo. E, à luz da crise dos abusos sexuais clericais, que tem sido como uma caixa dos horrores de Pandora sempre transbordante, os bispos têm enfatizado que eles melhoraram a seleção dos candidatos e reforçado os padrões de formação abrangente. Mas o sistema ainda não está funcionando.
Apenas nas últimas semanas, dois padres de arquidioceses dos EUA e da Inglaterra foram acusados de abuso sexual de menores. Um deles foi ordenado há cinco anos, e o outro, há apenas quatro. O padre inglês foi condenado a quatro anos e três meses de prisão. Ambos provavelmente serão expulsos do sacerdócio.
Como eles chegaram à ordenação? Quem discerniu que eles tinham vocação ao sacerdócio? A comunidade foi envolvida nessa decisão de algum modo significativo?
A recorrência do abuso sexual – mesmo que envolva apenas uma pequena porcentagem do clero – é apenas uma prova de que o sistema de seleção e de formação continua inadequado. Existem outros indicadores também. Entre eles, há patologias que se originam de tendências arraigadas – não apenas em relação à homossexualidade, mas também e principalmente em relação ao clericalismo; mesmo quando o candidato às Sagradas Ordens tenta negá-las ou escondê-las.
Sinodalidade e discernimento comunitário dos carismas
O papa Francisco está tentando implementar a sinodalidade em todos os níveis da Igreja. E por que deveria ser diferente para identificar os melhores candidatos para servir à comunidade em vários ministérios e posições de liderança?
Mas, em vez de focar nos ministérios ou nos próprios papéis de liderança, o trabalho de uma comunidade envolvida no discernimento de grupo pode ter como objetivo algo ainda mais profundo. Ela procuraria, com a ajuda do Espírito Santo, identificar aquelas pessoas que foram agraciadas pelo mesmo Espírito com carismas próprios aos vários ministérios.
“Existem muitos dons diferentes, mas o Espírito é o mesmo”, diz São Paulo à comunidade cristã de Corinto. “Existem diferentes serviços, mas o Senhor é o mesmo (…). Cada um recebe o dom de manifestar o Espírito para o bem de todos” (cf. 1Coríntios 12).
Paulo diz aos Romanos:
“Temos dons diferentes, conforme a graça concedida a cada um de nós. Quem tem o dom da profecia, deve exercê-lo de acordo com a fé; se tem o dom do serviço, que o exerça servindo; se do ensino, que ensine; se é de aconselhar, aconselhe; se é de distribuir donativos, faça-o com simplicidade; se é de presidir à comunidade, faça-o com zelo; se é de exercer misericórdia, faça-o com alegria” (cf. Romanos 12).
Bispos confirmam o que a comunidade discerniu
Em uma Igreja sinodal, todo o corpo dos fiéis se engajaria no discernimento comunitário para identificar quem tem dons específicos. Os pastores (bispos), então, ratificariam e “ordenariam” essas pessoas para exercer seus carismas – os dons de Deus – para o bem comum.
“Para alguns, seu ‘dom’ foi estabelecê-los como apóstolos, a outros como profetas, a outros como evangelistas e a outros como pastores e mestres. Assim, ele preparou os cristãos para o trabalho do ministério que constrói o Corpo de Cristo” (cf. Efésios 4)
Do modo como é agora, espera-se que os presbíteros e os bispos realizem quase todas as tarefas. Atualmente, porém, existem pessoas não ordenadas – homens e mulheres, celibatários e casados – que claramente têm os carismas da pregação, de presidir a oração, de estar em oração, de curar e assim por diante.
Contudo, as autoridades da Igreja, os bispos, raramente permitem que essas pessoas compartilhem oficialmente esses carismas com o restante da comunidade, porque, durante séculos, eles foram reservados aos ordenados.
A constituição dogmática do Concílio Vaticano II sobre a Igreja diz que os bispos “eles próprios sabem que não foram instituídos por Cristo para se encarregarem por si sós de toda a missão salvadora da Igreja para com o mundo”.
“Mas o seu cargo sublime consiste em pastorear de tal modo os fiéis e de tal modo reconhecer os seus serviços e carismas, que todos, cada um segundo o seu modo próprio, cooperem na obra comum” (Lumen gentium, n. 30).
Mas os bispos também não podem e não devem assumir sozinhos a tarefa de reconhecer os ministérios e os carismas dos fiéis. Isso é algo para toda a Igreja.
Como o papa Francisco disse à multidão na Praça de São Pedro, logo após sua eleição: “Agora, começamos este caminho: bispo e povo”. É um caminho que deve ser feito juntos.
(Os grifos sãos nossos)
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