– Bença, mãe!
– Você nos abençoe, meu filho! Que bom que veio me ver.
– É meu aniversário. Natal! No primeiro você estava comigo, eu estava com você. Bateu saudade, mãe. Lembrei de Nazaré, dos meus amigos, ouvi até o barulho de papai trabalhando na carpintaria…
– Boas lembranças, meu filho. Fomos muito felizes naquela casinha.
– Mãe, Deus pode ter saudade?
– Jesus; não se esqueça de que você também é humano…
– Às vezes penso que é a melhor parte de mim…
– Tá tristonho, meu filho. Seu olhar…
– Às vezes me dá vontade de usar o poder divino pra voltar pra lá, viver aquele tempo de novo.
– Não será “de novo”, meu filho. Não é possível viver “de novo”. O novo sempre será diferente do já vivido. Tem um moço que passa aqui, de vez em quando, o Heráclito, gosto muito de conversar com ele, que me disse: “Ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio, pois quando nele se entra novamente, não se encontra as mesmas águas, e a própria pessoa também já se modificou”…
– Grande filósofo… mas todo Natal me bate esse banzo, mãe. Fico vendo as famílias reunidas, os amigos, as festas ao redor da mesa, me dá saudade. Aqui, no céu, às vezes é um paradeiro… Maria riu…
– Imagino, você não parava um minuto. Desde criança, correndo pela vila e depois, já adulto, andando pra todo lado com aquele bando de malucos que o seguiam.
– Bons amigos! Como nos divertimos. Que pescarias! Bons tempos aqueles antes da eternidade…
– A eternidade é um tempo que não tem tempo, meu filho. A diferença é o que a gente pode viver dentro dele. Mesmo aqui, no céu.
– E nós vivemos muita coisa boa naquele tempo, né mãe? A senhora não sente saudade?
– Claro que sim! Mas não sou saudosista.
– Como assim?
– Olha o onisciente…
– Você é humana de nascença. Eu não. Às vezes é difícil entender os humanos.
– Não devia ser. Vocês os criaram. Pergunte ao Pai, ao Espírito.
– Gosto de conversar com você. Às vezes falta sabedoria feminina na nossa Trindade…
– Filho, saudade é diferente de saudosismo. Saudade é recordar…
– Re-cordis, trazer de novo ao coração, você falava isso desde que eu era menino…
– Pois é, trazer à memória do coração lugares, pessoas, acontecimentos. Lembrar o vivido no passado que nos ensina a viver o presente.
– Presente que aqui se chama ‘sempre’. Eternidade, não se esqueça…
– Isso sempre me confunde. Quem viveu dentro do Tempo…
– Continue, mãe, tô aprendendo…
– Pois então: A saudade deve ser um farol que ajuda a alumiar o que vem pela frente. Quem vê a saudade pelo retrovisor fica preso num passado que não vai voltar.
– No saudosismo…
– Isso. Daí vem muito sofrimento. Nesses momentos de festa, muita gente se deixa prender pelo que já foi e não vive o que é. Ao invés de pegar as boas lembranças e transformá-las em alegria, gratidão, e iluminar o presente, ficam presas na névoa cinzenta de um tempo que já passou. Eu, por exemplo, tenho muita saudade do menino levado que você foi, mas isso me ajuda a apreciar e admirar ainda mais o homem em que você se tornou. Aquele menino corre, até hoje, nas minhas lembranças, mas me leva sempre a você, aqui e agora…
– Sempre, esta é a palavra… Lembro de um dia em que cheguei da rua com um joelho ralado. Nem estava doendo tanto assim, mas eu queria seu colo. Você me deu muito mais, como sempre. Cuidou do joelho, me abraçou, afagou meus cabelos, me contou uma história… E eu dormi pensando: feliz de quem tem mãe…
– Essa, meu filho, é uma das maiores saudades que um ser humano pode sentir: da mãe, do pai. Muita gente, no Natal, sente o coração apertado pela ausência dos que já se foram…
– Já vieram, estão todas e todos aqui, conosco…
– É, mas a saudade é invenção humana, filho: abstinência de sentidos, coisa que anjo não sabe o que é. O abraço que ficou vazio, no ar, o toque da pele que já não há, o desencontro do olhar. O som da voz que alegrava o coração, agora é silêncio. Os perfumes e sabores compartilhados que se perderam. Quando tudo isso se faz ausência, a saudade se faz presença.
– Mas passa…
– Sim, se a gente não alimentar a dor, transformando-a em mágoa.
– Mágoa guardada, azeda e vira rancor, você me ensinou.
– Pois é, vira um inferno.
– O verdadeiro inferno. Mas o céu é crer que toda saudade, um dia, vai virar reencontro….
– É isso, meu filho querido. Dá cá um abraço…
Jesus se aninhou no colo de Maria. Ela o beijou e delicadamente afagou seus cabelos dizendo: “Feliz aniversário, meu menino levado. Tá todo mundo comemorando”.
– Esse ano, menos, mãe, a pandemia…
– Eles inventaram uma tal de internet, filho. Se encontram de outro jeito. E estão inventando a vacina. Logo, logo isso vai passar…
– Há outros males que também precisam passar, mãe: há muita injustiça, miséria, violência; a estupidez de algumas pessoas que, ao invés de ser exemplo, espalham ódio, intolerância, ignorância, mentira, egoísmo e desunião.
– Foi pra isso que você foi lá, meu filho. Lembra? Para ensinar a eles que o único caminho é o amor. Um dia eles vão entender.
– Um dia… Bença, mãe…
– Você nos abençoe, meu filho…
Eduardo Machado
25/12/2020
Sobre o autor:
Eduardo Machado é educador e escritor apaixonado pelo ser humano. Considera-se um católico que tenta, cada dia mais, tornar-se cristão. É colaborador do Observatório da Evangelização – PUC Minas.