Um Pastor Encarnado conduzindo famílias sacerdotais

O Observatório da Evangelização tem a alegria de apresentar a seus leitores uma entrevista realizada com um dos membros do “grupo das famílias sacerdotais”, que foi acompanhado por Dom José Maria Pires por cerca de vinte anos. O Professor Francisco Morales, com liberdade e ternura, dá-nos a conhecer um pouco do que é esse grupo: “Um desafio para nós é encontrarmos comunidades eclesiais que tenham práticas pastorais condizentes com aquilo que a gente pensa. Outro desafio é a presença da mulher dentro da igreja institucional”; como se deu sua relação com aquele que fora carinhosamente chamado, por Casaldáliga, de Dom Zumbi (pela identificação com a causa negra, como Zumbi dos Palmares); e o o que ficou do testemunho desse grande homem, que nos deixou no último dia 27, aos 98 anos, admirável por sua “proximidade do povo, do povo mais simples, aqueles que vivem o real de forma mais crua”; por ser “homem de profunda espiritualidade. Que se alimentava do silêncio, da oração, da leitura e do contato com o povo” e ainda, um “homem intelectualmente adequado, um pastor encarnado”.

 

OE: Professor Morales, como o senhor conheceu Dom Zumbi?

Fui padre religioso até 1996. Então, conhecia Dom Zumbi como referência nacional da Igreja em termos de uma pastoral mais engajada; uma linha teológica mais libertadora, um pastoreio realizado em cima dos problemas, principalmente do povo da Paraíba, sempre focado nos mais pobres. Isso para mim se enriqueceu quando eu morei com Dom Pedro Casaldáliga e então a relação era mais direta… Talvez este seja agora o último representante de grupo de bispos mais engajados: Dom Hélder Câmara, Dom Fragoso, Dom Paulo Evaristo, Dom Tomás Balduíno, o próprio Dom Zumbi.  E então eu tive uma relação de admiração, me alimentei muito com o pastoreio dele, com alguns escritos dele.

OE: E como se deu o início do seu convívio com ele?

Proximidade maior se deu quando deixei o ministério, me casei com Márcia e a gente veio fazer parte do grupo de padres casados, aqui em Belo Horizonte, uns quinze anos atrás. A pedido de Dom Serafim, Dom José Maria era o acompanhador desse grupo, ao qual, nos últimos tempos, ele gostava de chamar de famílias sacerdotais.

Nesse tempo de quinze anos tivemos convívio pelo menos mensal, no qual celebrávamos a eucaristia, partilhávamos depois um lanche, fazíamos algum tipo de reflexão para dar um passo em frente que seria assumir algum compromisso social, porque, Dom Zumbi sempre levou o grupo de famílias sacerdotais a pensar que a única coisa que nos manteria coerentes seria algum compromisso. Esse foi um dos grandes ganhos do grupo das famílias sacerdotais que, interessante, incorporou também algumas ex-freiras e alguns ex-padres, mas que não eram casados. Normalmente, nessas reuniões também participavam leigos, mesmo que esporadicamente. Dom Zumbi era muito aberto para esse tipo de incorporação.

OE: Que diferença ele fez e segue fazendo na vida das pessoas que participaram desse grupo?

Como ponto central: entender que a igreja hierárquica nos acolheu de novo. Alguns de nós tinham solicitado a exclaustração a Roma e tinham conseguido, outros solicitaram e não conseguiram e outros nem tínhamos solicitado. Dom José entendia isso de maneira muito tranquila. Então, essa acolhida pela igreja oficial. “Vocês são filhos queridos, vocês continuam dentro da Igreja…” eu acho que esse foi o sentimento mais forte que todos que foram se incorporando ao grupo tivemos, porque ele fazia questão de dizer: “Eu não estou aqui como um arcebispo emérito, de forma pessoal, eu que sou avançado acolho… Não. A arquidiocese de Belo Horizonte, Dom serafim… este é um mandato da Igreja de Belo Horizonte.” Esse dado para mim é fundamental.

Depois essa ligação com a realidade, que ele fazia muito bem. De nada serviria a gente refletir, se sentir dentro da Igreja, se isso não tivesse um extravasamento para a comunidade eclesial e para a sociedade. E é interessante porque Dom José insistia muito no resgate de outros padres que deixaram o ministério. Essa era uma missão que ele nos recomendava diuturnamente.

OE: A respeito disso, há vários outros que deixaram o ministério, talvez até por um problema institucional, e estão anônimos, por aí, inclusive nas comunidades eclesiais, mas fora desse grupo.

Esse era um ponto que Dom José insistia muito. Para ele esses padres que deixaram o ministério ficavam no anonimato exatamente porque a comunidade eclesial não os acolhia, enquanto instituição. Então, essa era uma missão que ele nos encomendava diuturnamente. E de fato conseguimos incorporar diversos padres, até alguns que tinham uma certa revolta com a igreja institucional e que, realmente, entrando ao grupo e com o discurso de Dom José Maria, eles conseguiram enxergar o outro lado.

Porque existem entre nós, padres que deixamos o ministério, três tendências: alguns que gostariam de voltar ao ministério como padres casados; outros que não gostariam de voltar ao ministério como padres casados, participar simplesmente como leigos;  e outros que gostariam de participar não como padres casados, mas prestar um serviço eclesial à comunidade, sem ser da forma de um serviço eclesial ordenado.

Essas três posturas são totalmente respeitáveis e poderiam ser assumidas pela igreja oficial de forma muito tranquila. Claro, cada um sabe também qual é o grau de comprometimento que tem a esposa, a companheira, a situação familiar, com filhos… Também são situações delicadas que a gente tem que estudar.  Até, inclusive, a questão financeira. Há situações socioeconômicas que, às vezes, são muito difíceis para um ex-padre.

OE: E como vocês, como grupo, lidam com essas questões?

Temos, agora, contato com um grupo de Mariana, de padres que também deixaram o ministério. Alguns sobrevivem com um salário mínimo, um salário e meio por mês.  Estamos criando uma rede para poder ajudar também como podemos…Temos em nosso grupo um fundo, com o qual ajudamos todo mês a uma família de um ex-padre casado que tem agora um problema físico e se encontra em cadeiras de rodas, para garantir ao menos um plano de saúde, algumas questões mais básicas. Enfim, essa ligação com um social começando por esses colegas que estão pontualmente mais desestruturados… Dom José insistia muito nisso. Isso tem nos mantido muito unidos; bastante vivos.

OE: Como se dá a relação de vocês, desta arquidiocese,  com os demais grupos de padres casados, Brasil afora?

O Movimento Nacional tem sede em Brasília. Mas não temos nenhum tipo de ligação. Até agora não fizemos nem contato. Sei que havia um grupo anterior, que Dom José Maria acompanhava também, de padres que deixaram o ministério, um pouco mais antigo. Esse outro grupo de padres tinha um contato qualquer com o Movimento Nacional de Padres Casados. Nós, realmente, não temos.  O que me chega é que esse é um movimento mais reivindicatório do sacerdócio dos padres casados. Coisa que dentro do nosso grupo, há muitos que, mesmo que tivessem a chance, não gostariam de voltar, não fariam questão. Mas esse é um bom ponto: buscar esse contato. Talvez poderíamos enriquecê-los e nos enriquecer também.

OE: Tem noção do número de sacerdotes que deixaram o ministério e estão na arquidiocese de Belo Horizonte?

No Brasil se falava na ordem de 70.000, há alguns anos. Hoje não saberia dizer, mas sei que é um número bem significativo. Aqui na arquidiocese, em nosso grupo frequentamos uns quarenta. Tenho a impressão que aqui talvez haja uns 300 ou mais.

OE: Em relação a este momento do grupo, com a partida de Dom Zumbi, como o grupo vai seguir se estruturando a partir de agora?

Vamos primeiro procurar Dom Walmor, agendar com ele uma representação do grupo. Primeiro para agradecer o fato de que a arquidiocese tenha apoiado sempre esse movimento que Dom Zumbi assumiu, e em segundo lugar, pedir que gostaríamos de continuar contando com o apoio oficial da arquidiocese, incorporando talvez alguma figura da arquidiocese que pudesse nos ajudar.

OE: Há ainda algum ponto relevante do grupo que gostaria de destacar?

Dois dos membros de nosso grupo são anglicanos agora, Darcimar e, me parece, Tilden Santiago também.

OE: E continuam participando do grupo?

Continuam. Esses fazem parte daquela parcela do grupo que sente falta de exercer o ministério. Então veem na Igreja Anglicana um espaço não tão diferente do nosso para seguir exercendo o ministério.

OE: E em relação aos desafios que se colocam a vocês em relação a esse momento

Veja bem: O padre que deu o passo de deixar o ministério, de uma forma coerente, em geral é uma pessoa que tem uma visão de Igreja um pouco diferenciada do que a visão tradicional de Igreja. E aí me refiro também às práticas pastorais. Então, um desafio para nós é encontrarmos comunidades eclesiais que tenham práticas pastorais condizentes com aquilo que a gente pensa. As práticas pastorais são muito tradicionais

Outro desafio é a presença da mulher dentro da igreja institucional. A Igreja está perdendo uma riqueza enorme. O papel da mulher na Igreja é subalterno. Totalmente subalterno. Sua presença em outros campos cresceu enormemente… Tenho a impressão que se a Igreja não se abrir urgentemente para um protagonismo maior da mulher… Outras igrejas, a Anglicana, por exemplo, tem bispos mulheres… Valorizam esse protagonismo.  Eu tenho a impressão que um desafio grande para nós, inclusive, como casados, é pensar o papel da mulher. E o próprio sacerdócio, como opcional para casados ou não.

OE: Papa Francisco sinaliza algo de novo em relação ao papel do padre casado, mas em relação à presença da mulher…

Isso vem junto também com todo o conceito de valor que a igreja tem em relação à sexualidade, com esse grande leque de possibilidades que se abre: com respeito ao gênero, à diversidade de gênero… A Igreja convive, de maneira mais ou menos velada, com a homosssexualidade. Sabemos de seminários que tem seminaristas homossexuais, presbíteros… e faz vista grossa. O pior dos caminhos é fazer vista grossa, alijar essas questões acerca da diversidade sexual, da contracepção,  da homossexualidade, do casamento opcional de presbíteros são questões que se a Igreja enfrentasse só traria benefícios. A autoridade eclesiástica ainda está na mão de pessoas mais arcaicas. A igreja sempre vai por caminhos “mais seguros” e esses caminhos no meio de uma sociedade mutante, rápida, envolvente, são caminhos em que se tem que avaliar até onde você tem que manter o que é essencial e o que não é essencial. O que é historicamente descartável e o que faz parte da essência.

OE: Após tantas reflexões, que palavra final teria sobre Dom José Maria Pires?

Três pontos fundamentais na vida de Dom José Maria:

Primeiro: Proximidade do povo, do povo mais simples, aqueles que vivem o real de forma mais crua.  Escolhidos por Jesus numa perspectiva evangélica como os primeiros do Reino. Isso é iluminador, para a Igreja e para qualquer cristão.

Segundo: Homem de profunda espiritualidade. Que se alimentava do silêncio, da oração, da leitura e do contato com o povo.

Terceiro ponto: Homem intelectualmente adequado. Não entendia a intelectualidade como intelectualismo; como algo que o separa do povo, como a elite. Me lembra muito a figura do teólogo José Comblin: não falava difícil, mais falava profundo.  Dom José foi um pastor encarnado.

Talvez ele tenha colaborado para a Igreja do Brasil de uma forma muito mais profunda que muitos que estavam pelas mídias… Tenho uma profunda admiração por ele. Só peço que, lá de onde estiver, olhe pela gente. Que nosso grupo consiga tocar em frente pelo menos parte do que ele nos ensinou.

 

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FRANCISCO MORALES é Diretor de Relações Institucionais e Novos Empreendimentos da SIC – Sociedade Inteligência e Coração (Mantenedora dos Colégios Santo Agostinho); Membro da Diretoria Nacional da ANEC e Coordenador da Comissão de Educação da FABRA (Federação Agostiniana Brasileira).

1 Comentário

  1. Sobre a entrevista com o Prof. Morales, não me pareceu pertinente. Provocações sempre são válidas. É desolador pensar que ex-padres e/ou seu grupo são desconhecidos e de minoria participante. Pergunto-me: que fazem? Por onde “andam” e como estão? E a igreja “mãe”?

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