Um olhar sobre “Desiderio desideravi” a carta apostólica de Francisco sobre a formação litúrgica do povo de Deus

 No dia de são Pedro e são Paulo, o papa Francisco presenteou a Igreja com uma carta apostólica em que, como de costume, demonstra seu grande tato pastoral no cuidado de um dos temas mais sensíveis entre grupos católicos desde o Concílio Vaticano II: a Liturgia.

Na verdade, a carta Desiderio desideravi (desejei ardentemente, em tradução livre), para além de uma verdadeira ode ao sentido pleno da liturgia cristã, é também mais um movimento claro do magistério de Francisco em vista do resgate e da confirmação das percepções e definições dos padres conciliares em 1963, quando aprovada a primeira constituição do Vaticano II, a  Sacrosanctum Concilium.

O centro da mensagem do papa é a necessária e contínua formação de todos os fiéis, incluindo os ministros ordenados, no que ele chama de sentido teológico da liturgia e sua importância na vida da Igreja, redescobertos pelo Concílio. Francisco afirma que “com esta carta gostaria simplesmente de convidar a toda a Igreja a redescobrir, cuidar e viver a verdade e a força da celebração cristã. Gostaria que a beleza da celebração cristã e de suas necessárias consequências na vida da Igreja não pareçam desfiguradas por uma compreensão superficial e redutiva de seu valor, ou pior ainda, por sua instrumentalização a serviço de alguma visão ideológica, seja qual for.” (DD 16)

Neste sentido, a carta apostólica está em continuidade com o motu próprio Traditionis custodes através do qual Francisco estabeleceu que “os livros litúrgicos promulgados pelos santos Pontífices Paulo VI e João Paulo II, em conformidade com os decretos do Concílio Vaticano II, são a única expressão da lex orandi do Rito Romano” (TC Art. 1). O próprio papa assinala essa continuidade já no início de sua carta. Não é para menos: o documento, que completará um ano em julho próximo, foi provavelmente um dos mais enfáticos sinais de desacordo do Papa Francisco com grupos eclesiais que, sob a permissão do uso da liturgia romana anterior à reforma de 1970, muitas vezes, favoreciam discursos e práticas abertamente anticonciliares. Às querelas levantadas por grupos neoconservadores em torno do motu próprio, o papa Francisco oferece agora, em sua carta apostólica, um pedido direto: “abandonemos as polêmicas para escutar juntos o que o Espírito diz à Igreja, mantenhamos a comunhão, sigamos fascinando-nos pela beleza da liturgia.” (DD 65)

Mas Desiderio desideravi não se presta a ser apenas uma chamada aos desconfiados ou claramente dissidentes do Vaticano II. Sobretudo, trata-se de um reconhecimento e incentivo do magistério à teologia da liturgia contemporânea, abandonando definitivamente tensões que se mantiveram presentes ao longo dos pontificados anteriores. Nesse sentido, seu ponto alto talvez seja o convite ao resgate da linguagem simbólica. Francisco, aqui, serve-se da obra do teólogo Romano Guardini (aliás, único teólogo referenciado pelo papa em toda carta em meio a documentos pontifícios e padres da Igreja) na afirmação de que a primeira tarefa do trabalho de formação litúrgica é fazer o homem voltar a ser capaz de símbolos. (DD 44)

Francisco atribui a duas realidades já mencionadas em seu programa de governo, a Evangelii gaudium, a perda da capacidade simbólica do homem contemporâneo: o gnosticismo e o neopelagianismo. O primeiro, subjetivismo reducionista que encerra o indivíduo em sua razão ou sentimento e o segundo uma concepção que anula o valor da graça, atribuindo o crescimento espiritual a um esforço meramente pessoal, que redunda em narcisismo e elitismo. (EG 94) Além disso, o papa critica o “espiritualismo abstrato” que, segundo ele, contraria a própria natureza humana que é espírito encarnado. (DD 28)

Como processo, portanto, para uma plena vivência litúrgica, Francisco sugere recuperar o “caminho da Encarnação”, que rejeita qualquer dicotomia entre matéria e espírito e que enxerga nas coisas da criação a semente da graça santificante dos sacramentos. Além disso, há que se educar para uma atitude interior que assimile a força dos gestos e palavras que compõe a vida sacramental, assim como a criança aprende de seu pai a traçar o sinal da cruz e, a partir deste momento, se apropria da força vital deste sinal. (DD 47)

Em outras palavras, o papa nos indica em sua carta apostólica um caminho da experiência litúrgica que exige sim o cuidado com as rubricas e todos os demais elementos da celebração, mas que não se encerra em uma postura funcional, mas reconhece que a celebração é uma forma de arte e, como todo trabalho artístico, exige técnica, mas sobretudo inspiração. Esta inspiração dá-se, no entanto, não por afetações de excessiva criatividade, mas uma profunda comunhão com a ação do Espírito através do seu dinamismo atuante de modo especial na eficácia simbólica da celebração. (DD 48-49)

Embora se dirija a todo o povo de Deus, Francisco não deixa de fazer um aparte aos ministros ordenados, indicando-lhes que seu serviço à comunidade exige uma viva consciência de ser uma presença do Ressuscitado e que, por isso, cumpre que não roubem da celebração a centralidade do altar, cuidando com as tendências de exagerado personalismo que expressam uma “mal dissimulada mania de protagonismo”. (DD 54)

Do ponto de vista dos processos de evangelização, Desiderio desideravi nos aponta um caminho fundamental seja para a catequese de iniciação cristã, seja para a ação pastoral: um maior cuidado da vida litúrgica em nossas comunidades. Este cuidado, ao contrário do que reina em muitos espaços, não é um esteticismo cosmético, um ensaio teatral ou uma ânsia por dar contornos de inovação e atratividade à celebração litúrgica. É preciso confiar no Concílio e, sobretudo, na vida que pulsa dos próprios elementos sacramentais: o pão, o vinho, o fogo, a água, o óleo, etc… Relacionar-se com o gesto, com o corpo, com a luz e o espaço. Relembrar o caminho da Encarnação/Ressurreição que não é o das manifestações apoteóticas, mas do andar junto, do partir do pão.

Francisco, como sempre, recorda-nos que precisamos ser gente e que celebrar em comunidade é encontrarmo-nos, não para uma bela apresentação ou um jantar de gala, mas para a refeição cotidiana: simples, porém vital. Dessa nossa capacidade, de celebrar, depende toda nossa vida cristã, nosso olhar ao próximo, ao mundo e a nós mesmos. Um olhar verdadeiramente sacramental, capaz de enxergar Deus em todas as coisas e todas as coisas em Deus.

A carta ainda não tem tradução oficial para o português, mas pode ser acessada em outras línguas clicando aqui.     

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Matheus Cedric Godinho
É  integrante da equipe executiva do Observatório da Evangelização da PUC Minas. Além disso, é professor de Filosofia e Ensino Religioso e autor de material didático para Educação Básica nas mesmas áreas. Leigo católico, é cofundador da Oficina de Nazaré e membro do Conselho Editorial da Revista de Pastoral da ANEC.