“Em tempos de pandemia, as máscaras vão caindo e, logo, percebemos quem são os que cuidam e os que passam adiante”
Por dom Vicente de Paula Ferreira, C.Ss.R
Ao publicar sua mais recente Encíclica, Fratelli Tutti, Papa Francisco comenta: “entrego esta encíclica social” (FT, n. 6). O texto nasce em plena pandemia e em diálogo com o líder muçulmano Imã Ahmad Al-Tayyeb. Nele encontramos balizas para a cultura universal da amizade e da fraternidade. Destacamos, então, as linhas gerais do documento, considerando que, se a Evangelii Gaudium nos convida a uma conversão eclesial e a Laudato Si’ a uma conversão ecológica, Fratelli Tutti lança perspectivas para uma conversão cultural.
As primeiras páginas do documento apresentam as sombras de um mundo fechado, marcado por sonhos desfeitos em pedaços, no qual “reacendem-se conflitos anacrónicos que se consideravam superados, ressurgem nacionalismos fechados, exacerbados, ressentidos e agressivos” (FT, n. 11). Globaliza-se o domínio dos mais fortes, com discursos neocolonialistas, que protegem as grandes organizações financeiras, dissolvendo as identidades das culturas regionais mais frágeis. Desta forma, a política se enfraquece diante de poderes financeiros transnacionais. A perda da consciência histórica, com negações de eventos dolorosos como as guerras e ditaduras, obstrui a capacidade de construir a história a partir de aprendizados adquiridos. Soma-se a isso a falta de projetos coletivos, o que resulta numa cultura do descarte mundial, tanto humano quanto ambiental. Os direitos humanos, não suficientemente universais, agrava questões como a desigualdade social, o direito das mulheres, a escravidão.
No bojo desses desafios, é preciso pensar outra globalização. As conquistas científicas e tecnológicas trouxeram muitos ganhos para a sociedade. No entanto, temos que nos envergonhar porque, enquanto poucos acumulam riquezas, milhões de crianças morrem de fome. Os avanços de nossa sociedade global não significa maior inclusão social, o que faz Francisco exclamar: “como seria bom se, enquanto descobrimos novos planetas longínquos, também descobríssemos as necessidades do irmão e da irmã que orbitam ao nosso redor!»” (FT, n. 31). A Pandemia do coronavírus desmascarou, ainda mais, as seguranças falsas de nossa cultura e estampou entre nós que não nos salvamos sozinhos. “A tribulação, a incerteza, o medo e a consciência dos próprios limites, que a pandemia despertou, fazem ressoar o apelo a repensar os nossos estilos de vida, as nossas relações, a organização das nossas sociedades e sobretudo o sentido da nossa existência” (FT, n. 33). Não podemos, por exemplo, continuar tratando os migrantes como pessoas menos importantes. É um contratestemunho quando cristãos também partilham dessa mentalidade ao invés de defenderem a dignidade inalienável de toda pessoa humana.
Outro perigo muito comum é a fragilidade da comunicação virtual que muitas vezes dispensa gestos, expressões, silêncios, linguagem corpórea, fundamentais no encontro entre pessoas. Isso pode até ter aparência de solidez, mas não consegue construir um «nós». A conexão digital não é suficiente para unir a humanidade. É dramático notar, por exemplo, que “aquilo que ainda há pouco tempo uma pessoa não podia dizer sem correr o risco de perder o respeito de todos, hoje pode ser pronunciado com toda a grosseria, até por algumas autoridades políticas, e ficar impune.” (FT, n. 45).
Já sabemos que não atravessamos uma época de pequenas mudanças, mas que o próprio conceito de época é que está mudando, no meio de uma crise poliédrica. Para enfrentar esses desafios, Papa Francisco nos apresenta a parábola do bom samaritano (Lc 10, 25-37), que faz abrir o diálogo diante do real, num tempo imprevisto. Na perspectiva do Antigo Testamento, colhemos o seguinte: «quando vindimares a tua vinha, não rebusques o que ficou; deixa-o para o estrangeiro, o órfão e a viúva. Lembra-te que foste escravo na terra do Egito» (Dt 24, 21-22).” (FT, n. 61). E, assim, o Novo Testamento resume os mandamentos: «Aquele que não ama o seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê» (1 Jo 4, 20).
O sofrimento do outro deve alterar as rotas de nossa viagem. Em tempos de pandemia, as máscaras vão caindo e, logo, percebemos quem são aqueles que cuidam e aqueles que passam adiante. Na parábola, os salteadores são a realidade imposta, diante da qual não adianta uma atitude de lamentação apenas. A violência já fez o seu estrago e diante dela o sacerdote e o levita são indiferentes. Não são capazes de compreender o que São João Crisóstomo tão bem disse: «Queres honrar o Corpo de Cristo? Não permitas que seja desprezado nos seus membros, isto é, nos pobres que não têm que vestir, nem O honres aqui no templo com vestes de seda, enquanto lá fora O abandonas ao frio e à nudez».
Na sociedade de Jesus, próximo era o vizinho, pertencente ao mesmo grupo. Na parábola, essa visão é rompida porque os samaritanos eram considerados pelos judeus como impuros, perigosos por habitarem uma região contagiada por rituais pagãos. Diante das provocações da parábola, Papa Francisco lamenta: “às vezes deixa-me triste o facto de, apesar de estar dotada de tais motivações, a Igreja ter demorado tanto tempo a condenar energicamente a escravatura e várias formas de violência”. (FT, n. 86). É um contratestemunho que, depois de tantas atrocidades, ainda haja pessoas cristãs se autorizando, em nome da fé, a deferem nacionalismos fechados, atitudes xenófobas.
A vivencia autêntica da fé cristã é geradora de um mundo novo. “O amor ao outro por ser quem é, impele-nos a procurar o melhor para a sua vida. Só cultivando esta forma de nos relacionarmos é que tornaremos possível aquela amizade social que não exclui ninguém e a fraternidade aberta a todos” (FT, n. 94). É preciso abrir-se aos que estão nas periferias geográficas e existenciais e corrigir as noções equivocadas de um amor universal que a globalização atual tenta impor. Pretender uniformizar o todo não dá conta das diferenças e acaba por construir uma fantasiosa igualdade. O outro não é uma ideia abstrata, mas alguém que nos interpela a sair de uma pauta mínima das esmolas, para buscarmos programas que possibilitem que a vida desabroche integralmente, em abundância. Nesse ponto, Papa Francisco repropõe algo fundamental, a função social da propriedade, lembrando que o direito universal dos bens da terra vem antes do direito à propriedade privada. “O princípio da subordinação da propriedade privada ao destino universal dos bens e, consequentemente, o direito universal ao seu uso é uma «regra de ouro» do comportamento social e o «primeiro princípio de toda a ordem ético-social». (LS, n. 93). Ou seja, sem terra, teto e trabalho para todos não haverá cultura da fraternidade e da amizade.
A fraternidade universal, portanto, não é uma abstração, é caminho a ser percorrido com atitudes concretas de um coração aberto ao mundo inteiro. Quanto aos migrantes, acolher, proteger, promover e integrar são verbos fundamentais. Quando bem integrados, são uma bênção, um dom para a cultura local. “Se nos preocupa o desaparecimento dalgumas espécies, deveria afligir-nos o pensamento de que em qualquer lugar possam existir pessoas e povos que não desenvolvem o seu potencial e a sua beleza por causa da pobreza ou doutros limites estruturais.” (FT, n. 137). Por ser a cultura o conjunto que sustenta a vida das pessoas, olhá-la em sua amplitude não significa descartar as tradições locais. É necessário promover o intercâmbio entre local e universal. Se não pode existir uma globalização que elimina a diferença, também não pode existir a diferença que, por ser fechada, elimina os valores universais.
A melhor política deve empenhar-se em vencer a erva daninha do populismo. Quando alguém usa o poder para manipular projetos em favor de grupos fechados e egoístas, perde-se o sentido de povo aberto, em construção. Assim, as estratégias do liberalismo vigente troca a vida das pessoas pelo mercado. E é um problema grave porque ele, ao criar exclusões, ainda persegue os Movimentos Populares, a poesia social, segundo Papa Francisco. Exemplo disso é que no século XXI temos uma perda dos Estados Nacionais para estruturas econômico-financeiras transnacionais que dominam a própria política. Sabendo que “a sociedade mundial tem graves carências estruturais que não se resolvem com remendos ou soluções rápidas meramente ocasionais” (FT, n. 179), é urgente o empenho em desenvolver parâmetros de boa política.
Sendo a síntese da fé cristã, a caridade não se restringe a um saudável cultivo de boas amizades ou a gestos concretos de ajuda aos mais próximos. Ela é um movimento maior que se destina a transformar a realidade a partir de compromissos estruturais de defesa da vida de todos e do meio ambiente. O ápice da caridade é a construção de uma sociedade justa e fraterna. Portanto, não é uma boa política transformar os pobres em massa domesticada e inofensiva, o que muita forma de caridade acaba fazendo. O combate a fome e ao tráfico de pessoas é urgência que não pode mais ser procrastinada e isso não se faz apenas com boa vontade, mas com esforço político qualificado.
A boa política tem como escopo o diálogo e a amizade social. O diálogo paciente, silencioso ajuda o mundo a viver melhor. As guerras fazem barulho com suas destruições; o diálogo constrói a paz. O diálogo é a ponte de uma nova cultura. O diálogo busca, em comum, a verdade fundamental para todos. “Aceitar que há alguns valores permanentes, embora nem sempre seja fácil reconhecê-los, confere solidez e estabilidade a uma ética social” (n. 147). O consenso deve buscar a verdade em suas feições mais radicais. “Que todo o ser humano possui uma dignidade inalienável é uma verdade que corresponde à natureza humana, independentemente de qualquer transformação cultural” (FT, n. 213).
Importante destacar, para nós brasileiros, que o Papa Francisco, ao apresentar a urgência de uma nova cultura da amizade, inicie com um verso do Samba da Bênção, de Vinícius de Moraes. “A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro na vida”. E acrescenta: “o poliedro representa uma sociedade onde as diferenças convivem integrando-se, enriquecendo-se e iluminando-se reciprocamente, embora isso envolva discussões e desconfianças” (FT, n. 215). A cultura de um povo é o seu modo de viver. Por isso, “um pacto social realista e inclusivo deve ser também um pacto cultural, que respeite e assuma as diversas visões do mundo, as culturas e os estilos de vida que coexistem na sociedade” (FT, n. 219). E a amabilidade é ingrediente indispensável para tal pacto, que deve ser construído no cotidiano da existência de cada um.
Somos chamados a gerar a cultura do encontro. A busca pela paz não significa apenas combater as guerras. É também fundamental a promoção da justiça social, cuidando sobretudo dos mais pobres e vulneráveis. Sendo o perdão tema fundamental do cristianismo, é necessário entendê-lo bem para evitar leituras fatalistas. “Somos chamados a amar a todos, sem exceção, mas amar a um opressor não significa consentir que continue a ser tal; nem levá-lo a pensar que é aceitável o que faz. Pelo contrário, amá-lo corretamente é procurar, de várias maneiras, que deixe de oprimir, tirar-lhe o poder que não sabe usar e que o desfigura como ser humano” (FT, n. 241).
Além disso, ninguém pode pretender “encerrar por decreto as feridas ou cobrir as injustiças com um manto de esquecimento” (FT, n. 246). Nunca devemos perder a memória histórica dos fatos que nos envergonham como seres humanos. Manter a memória das vítimas, inclusive das que sobrevivem pela prática do bem e do perdão, é encontrar a face de transbordamento do perdão, que vai além dos horrores sofridos. “O perdão é precisamente o que permite buscar a justiça sem cair no círculo vicioso da vingança nem na injustiça do esquecimento” (FT, n. 252). Um exemplo concreto a ser reforçado é o empenho das Nações Unidas no combate as guerras, que se tornam, com armas nucleares potentes, de riscos incontroláveis. Nesse aspecto, Papa Francisco é assertivo: “todos os cristãos e homens de boa vontade estão chamados hoje a lutar não só pela abolição da pena de morte, legal ou ilegal, em todas as suas formas, mas também para melhorar as condições carcerárias, no respeito pela dignidade humana das pessoas privadas da liberdade” (FT, n. 268).
Por fim, as religiões devem estar a serviço da fraternidade no mundo. O diálogo entre as religiões a partir de um fundo transcendente, que nos leva a todos a aprofundar a dignidade da vida em sua integralidade, é fundamental. A liberdade religiosa para os crentes de todas as religiões é alicerce indispensável sem o qual não haverá paz no mundo. Em tantos casos, o próprio nome de Deus é usado para justificar a violência, mas isso não encontra “fundamento algum nas convicções religiosas fundamentais, mas nas suas deformações” (FT, n. 282).
Sobre o autor:
Dom Vicente de Paula Ferreira, CSSR é bispo auxiliar da Arquidiocese de Belo Horizonte, bispo referencial nas regiões episcopais de Nossa Senhora do Rosário e de Nossa Senhora Aparecida, e do vicariato episcopal para ação missionária. Na CNBB, ele é membro da Comissão Ecologia Integral e Mineração e preside a Comissão Episcopal Pastoral Ação Missionária do Regional Leste II. Ele é doutor em Ciências da Religião e é autor de livros, artigos, poemas e canções.
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