Por que o papa Francisco incomoda tanto?
O que realmente incomoda aos detratores do papa Francisco é que sua teologia deriva da vida real: da realidade da injustiça, pobreza e destruição da natureza; e da realidade do clericalismo eclesial.
Tudo bem em abraçar crianças e pessoas doentes; mas torna-se totalmente insuportável quando ele vai a Lampedusa, quando circula entre refugiados e migrantes em campos de refugiados como o de Lesbos.
Incomoda as pessoas quando diz que não deveríamos construir muros contra os refugiados, mas pontes de diálogo e hospitalidade. Incomoda quando, seguindo os passos de João XXIII, ele diz que a Igreja deve ser pobre e existir para os pobres; que os pastores devem cheirar como as ovelhas; que a Igreja deve se mover e sair de si mesma para alcançar as periferias do mundo; e incomoda muito quando diz que os pobres são um lugar teológico, uma fonte de revelação.
Incomoda quando afirma que o clericalismo é a lepra da Igreja e quando enumera as quatorze tentações da Cúria do Vaticano – que variam da pretensão de ser indispensáveis e necessários à gana por riqueza, até viver vidas duplas e sofrer de um Alzheimer espiritual.
E a irritação aumenta quando ele acrescenta que essas também são tentações das dioceses, das paróquias e das comunidades religiosas. Incomoda ouvir que a Igreja deve ser concebida como uma pirâmide invertida, com os laicos em cima e o papa e os bispos embaixo; como incomoda ouvi-lo dizer que a Igreja é um poliedro e sinodal. Isso significa que todos nós temos que percorrer o mesmo caminho juntos, que devemos ouvir uns aos outros e dialogar entre nós […].
Incomoda aos grupos conservadores o fato de Francisco agradecer a Gustavo Gutiérrez, Leonardo Boff, Jon Sobrino e José María Castillo por sua contribuição teológica, anulando a suspensão a divinis de Miguel d’Escoto e de Padre Ernesto Cardenal. Ficaram furiosos quando Hans Küng escreveu para ele reafirmando a necessidade de repensar a infalibilidade e Francisco respondeu chamando-o de “caro coirmão” e dizendo que levaria em consideração os comentários de Küng e estava disposto a abrir um diálogo sobre a infalibilidade.
Muitos ficam incomodados pelo fato que Francisco tenha canonizado São Óscar Romero, bispo salvadorenho mártir, rotulado por muitos como comunista e útil fantoche nas mãos da esquerda – depois que sua causa tinha permanecido trancada por anos.
Incomoda o fato de que Francisco diga “quem sou eu para julgar?”. Incomoda quando diz que a Igreja é feminina e que, se as mulheres não forem ouvidas, a Igreja se torna mais pobre e facciosa. […]
Obviamente, o problema não é que Francisco não seja um teólogo, mas sim que sua teologia seja pastoral. Francisco parte do dogma para o kerygma, dos princípios teóricos ao discernimento e à mistagogia pastoral. E a sua teologia não é colonialista, mas vem do sul global do mundo para incomodar o norte.
Passando para o confronto crítico com aqueles que acusam Francisco de ser um terceiro-mundista e um comunista, devemos afirmar que sua mensagem está em perfeita continuidade com a tradição profético-bíblica e com a doutrina social da Igreja.
O que incomoda é sua clarividência profética: Francisco diz não a uma economia da exclusão e da desigualdade; não a uma economia que mata e faz vítimas; não a uma economia sem rosto humano; não a um sistema social e econômico injusto que nos aprisiona em estruturas sociais injustas; não à globalização da indiferença; não à idolatria do dinheiro; não ao dinheiro que governa em vez de servir; não à desigualdade que produz violência; não a quem tenta se esconder por trás de Deus para justificar a violência; não à insensibilidade social que nos anestesia diante do sofrimento dos outros; não às armas e à indústria militar; não ao tráfico humano; não a toda forma de morte provocada.
Francisco nada mais faz que cumprir o mandamento “não matar”, defendendo o valor da vida humana do começo ao fim, e repropõe hoje a pergunta de Deus a Caim “onde está o teu irmão?”.
Sobre Francisco também incomoda a sua crítica ao paradigma antropocêntrico e tecnocrático, que destrói a natureza, polui o meio ambiente, corrói a biodiversidade e exclui os pobres e as populações indígenas de uma vida humana digna. As multinacionais não apreciam quando ele critica as empresas de desmatamento, extração de petróleo, hidrelétricas, mineração, que destroem o meio ambiente, danificam as populações indígenas daquelas terras e ameaçam o futuro de nossa casa comum. Incômodas também são as suas críticas aos líderes políticos que são incapazes de tomar decisões corajosas.
O fato de ter convocado o Sínodo para a Amazônia (outubro de 2019), que amplificou a necessidade de proteger o meio ambiente e salvar as populações indígenas das áreas amazônicas do genocídio, ampliou muito o incômodo provocado pelo papa Francisco. Alguns altos prelados da Igreja tentaram minar o evento dizendo que o instrumentum laboris é herético e panteísta, negando, entre outras coisas, a necessidade de salvação em Cristo. Outros comentaristas se concentraram exclusivamente na proposta de ordenar homens indígenas casados para celebrar a Eucaristia nas partes mais remotas da Amazônia, mas não disseram absolutamente nada sobre a denúncia profética que esse documento preparatório faz contra a destruição causada pelo extrativismo realizada na Amazônia. Como também nada disseram sobre a questão da pobreza e da exclusão das populações indígenas, que certamente nunca foram tão ameaçados como agora.
A oposição a Francisco é uma oposição ao Concílio Vaticano II e à reforma evangélica da Igreja que João XXIII queria promover. Francisco está na linha de todos os profetas que queriam reformar a Igreja, junto com Francisco de Assis, Inácio de Loyola, Catarina de Sena, Teresa de Jesus, Angelo Roncalli, Helder Câmara, Dorothy Stang, Pedro Arrupe, Ignacio Ellacuría e o nonagenário dom Pedro Casaldáliga.
Francisco ainda tem muitos assuntos pendentes para uma reforma evangélica da Igreja… Os papas passam, mas o Senhor Jesus ainda está presente e incentiva a Igreja até o fim dos séculos, o mesmo Jesus que foi considerado comilão e um beberrão, amigo de pecadores e prostitutas, demonizado e louco, sedicioso e blasfemo. E acreditamos que o Espírito do Senhor que desceu sobre a Igreja primitiva no Pentecostes nunca a abandona e não permitirá que o pecado, a longo prazo, triunfe sobre a santidade.
E enquanto isso, como Francisco sempre pede, desde sua primeira aparição na sacada de São Pedro no Vaticano como bispo de Roma até hoje, oremos ao Senhor por ele, para que sua esperança não esmoreça e confirme a fé de seus irmãos. E se não podemos orar ou não somos crentes, lhe desejamos pelo menos boas vibrações.
Víctor Codina é teólogo, padre jesuíta boliviano, autor de muitos livros e artigos científicos, de modo especial, na área de eclesiologia. Ele participa ativamente da caminhada de preparação do Sínodo da Amazônia, convocado pelo papa Francisco que ocorrerá em outubro de 2019.
(Confira o artigo completo que foi publicado pela Rede Eclesial Pan-Amazônica — REPAM, em 31/07/2019.)
Fonte: