Vidas negras importam – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com Fri, 11 Feb 2022 12:46:15 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.4 https://i0.wp.com/observatoriodaevangelizacao.com/wp-content/uploads/2024/04/cropped-logo.png?fit=32%2C32&ssl=1 Vidas negras importam – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com 32 32 232225030 “Templos, Igrejas e protestos”, com a palavra Ir. Marcelo Barros https://observatoriodaevangelizacao.com/templos-igrejas-e-protestos-com-a-palavra-ir-marcelo-barros/ https://observatoriodaevangelizacao.com/templos-igrejas-e-protestos-com-a-palavra-ir-marcelo-barros/#comments Fri, 11 Feb 2022 12:46:15 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=43396 [Leia mais...]]]> Diante das discussões sem profundidade do fato ocorrido na Igreja do Rosário em Curitiba, um protesto contra a banalização da violência e das manifestações crescentes de racismo em nosso país, protesto pela dignidade da vida e do povo negro, convidamos você a ler o artigo do monge beneditino Marcelo Barros: “Em Roma, o papa Francisco pode considerar prioritário dialogar com movimentos populares e defender a vida de migrantes africanos, mas essa não é ainda a sensibilidade de muitos ministros e fieis católicos no Brasil. As pastorais sociais da CNBB e muitos padres e agentes de pastoral participaram dos atos de protesto e de denúncia contra o racismo. Muitos religiosos gritaram com as organizações populares que “vidas negras importam”, mas para muitos cristãos, católicos e evangélicos, esse assunto parece não fazer parte do anúncio da fé e da missão da Igreja... Originalmente, o Cristianismo não tinha templos e sim Igrejas. Enquanto os santuários se colocam como locais sagrados, Igrejas significam espaços de assembleia. Quando o apóstolo Paulo chamou as comunidades às quais escrevia de Igrejas, estava afirmando que eram assembleias de pessoas não reconhecidas como cidadãs pelo império, mas que nas comunidades cristãs, podiam se reunir e se manifestar como assembleias de cidadãos e cidadãs do reinado divino no mundo. Ainda hoje, quando manifestantes ocupam uma Igreja, de alguma forma, interpelam aos senhores do templo: Qual é o sentido e a missão da Igreja?

Confira na íntegra a reflexão de Marcelo Barros:

Manifestação Justiça por Moise, em Curitiba — Foto: Victor Hugo/RPC

Templos, Igrejas e protestos

Ir. Marcelo Barros

Nesses dias, a imprensa ávida por qualquer notícia sensacionalista que legitime denúncias contra movimentos populares e partidos considerados de esquerda, se deleitou com imagens e narrativas do que chamaram de invasão de uma Igreja em Curitiba. Autoridades eclesiásticas e civis protestaram contra o desrespeito ao lugar sagrado e o assunto está sendo debatido na própria câmara de vereadores da cidade.

O debate se dá sobre o fato dos manifestantes terem entrado na Igreja depois da Missa e terem expressado dentro do templo a denúncia contra o assassinato truculento e cruel de Moise, jovem congolês, barbaramente torturado e assassinado, em um quiosque na Barra da Tijuca. Nestes mesmos dias, ocorreu também, no Rio de Janeiro, a morte de outro negro, baleado por vizinho policial, que o confundiu com um ladrão. Naquele final de semana, em diversas regiões do Brasil, ocorreram manifestações de protestos contra esses atos extremos de racismo contra negros. Em Curitiba, no centro histórico da cidade, o ato se reuniu em frente a uma Igreja, que, historicamente, pertenceu a uma confraria negra. Depois do horário da missa, no final da tarde, os manifestantes entraram na Igreja e encerraram ali o seu protesto pacífico.

Sobre o fato, podem se fazer várias considerações. Antes de tudo, em termos metodológicos e estratégicos, organizações populares e partidos progressistas tomaram posições críticas em relação ao ocorrido. De fato, o grupo que fazia a manifestação não sofreu nenhuma perseguição, não fugia de nenhuma repressão e não precisava ter ocupado a Igreja, sem permissão dos responsáveis pelo templo.

Do ponto de vista institucional, todos sabem que a maioria dos eclesiásticos católicos concorda que Igrejas sejam usadas para missas de posse de governadores ou prefeitos de direita. No entanto, considera desrespeito ao lugar sagrado qualquer manifestação de categorias populares que possa ser vista como sendo de esquerda.

Em Roma, o papa Francisco pode considerar prioritário dialogar com movimentos populares e defender a vida de migrantes africanos, mas essa não é ainda a sensibilidade de muitos ministros e fieis católicos no Brasil. As pastorais sociais da CNBB e muitos padres e agentes de pastoral participaram dos atos de protesto e de denúncia contra o racismo. Muitos religiosos gritaram com as organizações populares que “vidas negras importam”, mas para muitos cristãos, católicos e evangélicos, esse assunto parece não fazer parte do anúncio da fé e da missão da Igreja.

Sonhamos com tempos nos quais padres e bispos não somente não se oponham, como fiquem felizes quando suas Igrejas forem ocupadas pacificamente por grupos populares que defendem a justiça e a vida para todas as pessoas humanas e na comunhão com todos os seres vivos.
Ir. Marcelo Barros

Na época da ditadura militar brasileira, em Recife, estudantes que protestavam contra a repressão ocuparam uma Igreja no centro da cidade. Assim que soube, o próprio arcebispo Dom Helder Camara foi para a Igreja e se colocou lá ao lado dos estudantes até conseguir que eles pudessem sair do templo em segurança. O mesmo ocorreu em Salvador, BA, onde a Igreja ocupada pelos rapazes e moças foi a basílica do Mosteiro de São Bento. O abade Dom Timóteo Amoroso Anastácio não somente abriu as portas da Igreja, como declarou o Mosteiro como espaço de abrigo e santuário de proteção da juventude. Do mesmo modo, em São Bernardo do Campo, em 1980, a Igreja Matriz foi abrigo para assembleias dos metalúrgicos em greve perseguidos pela ditadura.

Atualmente, embora em outro contexto político, a sociedade tem direito de cobrar dos responsáveis das Igrejas a coerência profética com o evangelho de libertação. Originalmente, o Cristianismo não tinha templos e sim Igrejas. Enquanto os santuários se colocam como locais sagrados, Igrejas significam espaços de assembleia. Quando o apóstolo Paulo chamou as comunidades às quais escrevia de Igrejas, estava afirmando que eram assembleias de pessoas não reconhecidas como cidadãs pelo império, mas que nas comunidades cristãs, podiam se reunir e se manifestar como assembleias de cidadãos e cidadãs do reinado divino no mundo. Ainda hoje, quando manifestantes ocupam uma Igreja, de alguma forma, interpelam aos senhores do templo: Qual é o sentido e a missão da Igreja?

Ao mesmo tempo que desejamos que os movimentos populares sempre se esmerem por respeitar educadamente a todos os ambientes e deem exemplo de diálogo com todas as pessoas com as quais se encontram, pedimos a Deus que os discípulos de Jesus aceitem retomar o caráter profético da fé cristã.

Mesmo se a postura do arcebispo e da arquidiocese de Curitiba tem sido, em geral, mais aberta e solidária, sonhamos com tempos nos quais padres e bispos não somente não se oponham, como fiquem felizes quando suas Igrejas forem ocupadas pacificamente por grupos populares que defendem a justiça e a vida para todas as pessoas humanas e na comunhão com todos os seres vivos.

Sobre o autor:

Marcelo Barros

Ir. Marcelo Barros é monge beneditino, escritor e teólogo biblista brasileiro. Em 1969 foi ordenado padre por dom Helder Camara e, durante quase dez anos, de 1967 a 1976, trabalhou como secretário e assessor de dom Helder para assuntos ecumênicos. É membro da Comissão Teológica da Associação Ecumênica dos Teólogos do Terceiro Mundo (ASETT), que reúne teólogos da América Latina, África, Ásia e ainda minorias negras e indígenas da América do Norte. Assim, em seu blog, ele se define: “Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar”. Marcelo recebeu, em 2021, o título de doutor Honoris Causa pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB. Dentre seus mais de 50 livros publicados, artigos e assessorias, destacamos aqui: Teologias da Libertação para os nossos dias (Vozes, 2019); com Emerson Sbardelotti e Edward Guimarães, organizou com mais de 40 autores, 50 anos de Teologias da Libertação. Memórias, revisão, perspectivas e desafios (Recriar, 2022).

]]>
https://observatoriodaevangelizacao.com/templos-igrejas-e-protestos-com-a-palavra-ir-marcelo-barros/feed/ 3 43396
“Vidas negras importam” https://observatoriodaevangelizacao.com/vidas-negras-importam/ Fri, 20 Nov 2020 21:43:34 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=36493 [Leia mais...]]]> 20 de novembro é Dia da Consciência Negra… É dia de luto (pelas vítimas do racismo) e de luta (por justiça social)… 75,5% das vítimas de homicídio em 2017 foram pessoas negras… No balanço geral, em 2018, os brancos ganhavam em média 73,9% mais do que pretos ou pardos… 66,7% da população carcerária do Brasil é negra. De cada três pessoas presas no Brasil, duas são negras… 75% das pessoas assassinadas pela polícia e 61% das mulheres vítimas de feminicídio de junho de 2019 a maio de 2020 nos estados de SP, RJ, BA, CE e PE são negras.O racismo não para por aí. Ele cria uma cultura racista que justifica e alimenta o racismo econômico, social, político e policial... Que a memória de Zumbi dos Palmares e de tantos lutadores e lutadoras do povo nos anime e nos comprometa sempre mais na luta contra toda forma de racismo e na construção de um grande quilombo de fraternidade, justiça e paz…

Confira, na íntegra, a reflexão do teólogo prof. dr. Francisco de Aquino Júnior:

20 de novembro é Dia da Consciência Negra.

Nessa data, fazemos memória de Zumbi dos Palmares – líder do Quilombo dos Palmares assassinado em 1695, denunciamos a falsa democracia racial no Brasil e reafirmamos a luta negra por direitos e justiça racial. É dia de luto (pelas vítimas do racismo) e de luta (por justiça racial).

O documento Síntese dos Indicadores Sociais do IBGE de 2019 revela que “no balanço geral, em 2018, os brancos ganhavam em média 73,9% mais do que pretos ou pardos”. Para compreender esse dado é importante lembrar que “a presença dos pretos ou pardos é mais acentuada nas atividades agropecuárias (60,8%), na construção (62,6%), nos serviços domésticos (65,1%)”, enquanto os brancos têm uma presença mais acentuada em “administração pública, educação, saúde e serviços sociais” e em “informação, financeiras e outras atividades profissionais”.

Atlas da Violência 2019 revela que 75,5% das vítimas de homicídio em 2017 foram pessoas negras. Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em outubro de 2020, revela que 66,7% da população carcerária do Brasil é negra. De cada três pessoas presas no Brasil, duas são negras. E, segundo relatório produzido pela Rede de Observatórios da Segurança, 75% das pessoas assassinadas pela polícia e 61% das mulheres vítimas de feminicídio de junho de 2019 a maio de 2020 nos estados de SP, RJ, BA, CE e PE são negras.

Mas o racismo não para por aí. Ele cria uma cultura racista que justifica e alimenta o racismo econômico, social, político e policial. Produz uma linguagem racista: “a coisa tá preta”, “mercado negro”, “lista negra”, “humor negro” etc. Produz um padrão de beleza racista: negro é feio, cabelo de negro é ruim (duro, bombril, pixaim), “parece um macaco” etc. Produz um humor racista (pense nas piadas racistas…). Produz um imaginário religioso racista: diabo/pecado é negro, “cor do pecado”, “negro de alma branca”, “será o benedito?”, “parece o cão chupando manga” – quantos anjos negros têm na coroação de Maria no mês de maio?

Tudo isso agride/violenta a dignidade das pessoas negras, considerando-as e fazendo com que elas mesmas se considerem pessoas inferiores (da senzala…): “ovelha negra”, “de gente só tem os dentes”, “só é gente quando está no banheiro”, “é negro, mas bom/honesto/limpo”, “reconheça seu lugar” etc. Chegamos ao ponto em que ofensa/agressão tenha se tornado sinônimo de comparação com negro: “denegrir” a imagem de alguém é reduzi-la à condição de negro…

E ainda tem gente que diz que não há racismo no Brasil. No fundo, essa negação do racismo é uma forma sutil de esconder o racismo que há entre nós (“não tenho nada contra negro, mas…”) e é muito útil para aos interesses das elites que precisam de pessoas inferiores para fazerem trabalho inferiores com salários inferiores (“são cheios de direitos”). Não por acaso, há tanta reação contra políticas públicas de afirmação de direitos da população negra como a “política de cotas” para negros nas universidades, no serviço público, nos partidos e como a “criminalização do racismo”.

O racismo é um atentado contra a dignidade das pessoas negras (violência/injustiça), contra a humanidade das pessoas e sociedades racistas (desumanidade) e contra Deus e seu reinado de fraternidade justiça e paz (pecado). Diante de tamanha injustiça, desumanidade e pecado, somos chamados à conversão pessoal e social que concretiza em relações de igualdade e fraternidade com o povo negro e em políticas e instituições de afirmação de direitos e combate a toda forma de racismo.

Que o grito de George Floyd nos EUA (“não consigo respirar”), do adolescente João Pedro no RJ (“eu estou aqui”), do menino Miguel em Recife (“eu quero minha mãe”) e de tantos negros e negras pelo Brasil e mundo afora não nos deixem “em paz”…

Que a memória de Zumbi dos Palmares e de tantos lutadores e lutadoras do povo nos anime e nos comprometa sempre mais na luta contra toda forma de racismo e na construção de um grande quilombo de fraternidade, justiça e paz…

Que o Espírito de Jesus de Nazaré faça ecoar em nós e em nossas comunidades seus “gemidos inefáveis” nos gemidos do povo negro. Que Ele renove a nós e a nossas comunidades e nos comprometa sempre mais na construção do reinado de Deus nesse mundo, no qual “vidas negras importam”…

AXÉ!!!

Sobre o autor:

Prof. dr. Francisco de Aquino Júnior

Francisco de Aquino Júnior possui graduação em Teologia e Filosofia, mestrado e doutorado em Teologia. É professor da Faculdade Católica de Fortaleza (FCF) e da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP); presbítero da Diocese de Limoeiro do Norte – CE. Dentre seus livros merecem destaque: Teologia como intelecção do reinado de Deus (A) – O método da Teologia da Libertação segundo Ignacio Ellacuria. São Paulo: Loyola, 2010; A dimensão socioestrutural do Reinado de Deus, São Paulo: Paulinas, 2011; Teoria Teológica. Práxis Teológica. Sobre o método da Teologia da Libertação. São Paulo: Paulinas, 2012; Viver segundo o espírito de Jesus Cristo. Espiritualidade como seguimento. São Paulo: Paulinas, 2014; O caráter práxico-social da teologia. Tópicos fundamentais de epistemologia teológica. São Paulo: Loyola, 2017; Nas Periferias do Mundo. Fé, Igreja, Sociedade. São Paulo: Paulinas, 2017; Teologia em saída para as periferias. São Paulo: Paulinas/ Unicap, 2019.

Fonte:

www.portaldascebs.org.br

]]>
36493