Vida Religiosa – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com Tue, 05 Apr 2022 13:00:00 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.4 https://i0.wp.com/observatoriodaevangelizacao.com/wp-content/uploads/2024/04/cropped-logo.png?fit=32%2C32&ssl=1 Vida Religiosa – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com 32 32 232225030 Rede “Um Grito pela Vida”: 15 anos https://observatoriodaevangelizacao.com/rede-um-grito-pela-vida-15-anos/ Tue, 05 Apr 2022 13:00:00 +0000 https://atomic-temporary-74025290.wpcomstaging.com/?p=44718 [Leia mais...]]]> Por ocasião da celebração dos 15 anos da Rede Um Grito pela Vida, Luis Miguel Modino entrevista a Ir. Valmi Bonh coordenadora nacional da Rede. De forma direta e simples, ela nos faz perceber a importância da articulação na luta  contra o tráfico humano, algo que invisibilizado em nossa sociedade e que ganha forças com a enorme penetração das redes sociais. Confira:

A Rede um Grito pela Vida está completando 15 anos, como a gente poderia definir esse caminho assumido principalmente pela Vida Religiosa do Brasil?

A gente pode resumir como uma forma de louvor e agradecimento, por toda a caminhada feita. A gente sempre parte de uma mística, nosso trabalho sempre é feito a partir de uma mística que é inspirada no projeto de Jesus, que convida para abrir as portas, para sair, para atravessar as portas, atravessar o rio, atravessar as nossas fronteiras pessoais e ir ao encontro dos outros.

Essa saída, esse colocar-se a caminho nos leva a querer sempre de novo ajudar a resgatar as vidas que estão sendo ameaçadas. Também temos muito presente os carismas congregacionais, os carismas que cada pessoa também traz dentro de si, nessa defesa, com uma atitude de indignação, de compaixão, de profecia, de defesa dos direitos humanos, assim a gente vai tentando resgatar a vida que está aí.

Nesses 15 anos, a gente fez esse papel de nos colocar nesse caminho junto com as mulheres, crianças, adolescentes e pessoas que são traficadas e exploradas. É um tempo de muita graça, de muito louvor por toda a caminhada que foi feita durante esses 15 anos nos diferentes estados do nosso país. No momento, nós estamos em 22 estados, com 28 núcleos. É um espaço pequeno em alguns lugares, mas que nos faz voltar à proteção, ao resgate das vidas ameaçadas.

Poderíamos dizer que a Rede um Grito pela Vida é uma expressão de uma Igreja samaritana, assumida pela Vida Religiosa. O que isso tem representado na caminhada da Vida Religiosa no Brasil?

Podemos dizer que é um espaço que a Vida Religiosa assumiu como Conferência dos Religiosos do Brasil, e a partir daí, esse processo de realmente abraçar a causa dessa defesa da vida das mulheres e crianças. Claro que nem toda a Vida Religiosa abraça isso, porque tem também outras causas desafiantes para abraçar e assumir.

Porém, é sempre um desafio para a Vida Religiosa, cristã, assumir esse processo de se lançar e colocar-se a caminho, de promover gestos concretos de defesa da vida dentro da Vida Religiosa, em todos os sentidos e em todas as circunstâncias. Pois, o tráfico de pessoas tira toda a dignidade do ser humano, e um dos grandes papeis da Vida Religiosa é ajudar a resgatar essa dignidade para que a pessoa possa se reestruturar e reiniciar uma vida mais digna dentro de uma sociedade cruel, que explora muito hoje o ser humano em todas as dimensões.

Em que mudou a sociedade brasileira e a realidade do tráfico humano nesses 15 anos?

Com a visibilidade que a Rede vai conquistando em cada espaço, em cada instância social nos diferentes estados, a conquista desse espaço vai se tornando cada vez mais presente a necessidade do ser humano assumir o seu papel de cuidar da vida de outro ser humano, de não ficar somente ao redor de si, mas também de ter um olhar além.

As redes sociais hoje dificultam isso também, porque nessas redes, se a pessoa não se cuida, ela se volta sobre si mesma e esquece quem está ao seu redor. A visibilidade que a gente consegue, de alguma forma, a nível de Brasil, da América Latina e internacionalmente, por meio da Rede, vai ajudando as pessoas a tomarem consciência da necessidade dessa abertura, de poder olhar para o outro como um ser humano, como alguém que precisa de ajuda, como alguém que precisa de uma relação próxima para poder também ser um portador de vida para com as pessoas com que ela convive.

O trafico humano sempre foi uma realidade escondida. Até que ponto a Rede um Grito pela e outras iniciativas similares no Brasil e no mundo estão ajudando a tomar consciência sobre isso e se realmente na Igreja e na Vida Religiosa do Brasil são realizados esforços para que esse crime seja mais visível e combatido com mais força?

No começo era muito invisível o crime do tráfico humano. Hoje já, com 15 anos de atividades da rede, nos diferentes estados, com as muitas e variadas atividades e ações concretas, tanto a nível de Vida Religiosa, como também na sociedade civil, que é um espaço que foi se conquistando aos poucos, a gente consegue marcar uma presença e tornar muito mais visível esse crime. Algo que precisa ser olhado com muito carinho, que precisa ser olhado com muita misericórdia, com muita compaixão, para poder ajudar essas pessoas que são necessitadas e que sofrem violência das mais diferentes formas. Não só da violência do tráfico humano, mas também os outros tipos de violência que hoje rondam o tempo todo à pessoa humana.

A nível de Brasil, mesmo sendo grupos pequenos, a gente tenta, da melhor forma, dar uma visibilidade maior, também pela participação e mobilização em encontros da sociedade, e também diante de incidências políticas. Hoje o espaço da incidência política se torna mais enfraquecido devido às circunstâncias e situações do nosso país atual, em todos os sentidos, econômica e politicamente. Com toda a crise econômica que está aí, a Covid também enfraqueceu essa questão do espaço das políticas públicas.

Há necessidade de a gente reaver essa efetivação das políticas para podermos ter novamente um espaço maior e quebrar um pouco esse crime do tráfico humano, da exploração, do abuso, das diferentes formas.

O Papa Francisco assumiu o combate ao tráfico humano, os refugiados e outros temas que preocupam à Rede um Grito pela Vida. Como isso tem ajudado no trabalho da Rede nos últimos anos?

O Papa Francisco conseguiu trazer para a sociedade mundial esse desafio, esse problema da exploração, do abuso, do tráfico humano, de pessoa vendendo pessoa, que é um dos crimes mais hediondos conforme a fala dele. Para nós, como Rede um Grito pela Vida, e mesmo todas as redes que a partir da Rede Talitha Kum, a nível mundial, a nível da América Latina, a nível do Brasil, que trabalham na prevenção do tráfico humano, o Papa Francisco é um exemplo de pessoa inspirada por Deus em defesa da vida nessas circunstâncias e em muitas outras.

O Papa Francisco é um ponto de referência das orientações pastorais sobre tráfico humano, que foi divulgado em 2019, são pontos centrais que nos orientam e que nos ajudam. O Papa Francisco é uma pessoa que se torna um elo entre todos os grupos que trabalham na prevenção do tráfico humano.

Diante da atual conjuntura no Brasil e no mundo, com a experiência vivida nesses 15 anos, quais os desafios que se apresentam no caminho da Rede um Grito pela Vida?

Os desafios são muitos e sempre estão aí. Nós como Rede temos esse objetivo de enfrentamento ao tráfico humano, defendendo a vida, especialmente de crianças e jovens, mulheres que são vítimas do tráfico. Essa nossa missão de sensibilizar, de capacitar, de informar, de denunciar, de ir tecendo redes e parcerias nessa luta por justiça e por políticas em prevenção do tráfico humano, os desafios são muitos.

No Brasil é um desafio a grande extensão geográfica, toda a situação governamental do país hoje, a tirada das conquistas das políticas públicas que defendam a mulher e a criança nessas situações. Um outro desafio muito grande é o aumento da vulnerabilidade a partir da pobreza, do desemprego, a infraestrutura muito precária, principalmente das pessoas que moram nas periferias, que são as vítimas mais fáceis para o tráfico humano.

Temos também os desafios dos grandes projetos de desenvolvimento, a possível exploração da Amazônia, onde acaba se tornando um espaço que provoca o tráfico humano, especialmente para a exploração sexual. Essa abertura da possibilidade exploração de garimpo, da questão das grandes fazendas. Toda a questão também dos grandes processos migratórios, trazendo presente a Guerra da Ucrânia, com pessoas de lá que já chegaram no Brasil. São situações e desafios muito grandes que nos envolvem.

Outro grande desafio é que no nosso país, não existe uma casa de acolhida de pessoas que são resgatadas do tráfico humano, que possam ficar um tempo determinado para poder se restabelecer e retomar à vida de outra maneira. A partir desses desafios tem outros em cada Estado, de forma diferente, devido à realidade diferente de cada Estado.

Como Coordenadora Nacional da Rede um Grito pela Vida, qual seria sua mensagem para a Vida Religiosa e para a Igreja do Brasil em vista de tomar uma maior consciência sobre essa problemática e o envolvimento cada vez maior no combate à exploração sexual de crianças e adolescentes e o tráfico de pessoas?

Quando a coordenação pensou um pouco essa data do dia 30 de março, trazendo toda a caminhada que foi feita, nós pensamos um logo e um tema específico para celebrar esses 15 anos, que é “Do Grito da Vida nasce a Esperança”. Exatamente pelo fato de sermos pessoas que precisam ser portadoras de esperança para quem grita pela vida.

Nessa logo, a gente colocou alguns pontos centrais. No desenho aparece o ramo verde, aparece a mão coma palma em forma de coração, aparece os 15 anos e também aparece a logo. Esse coração enraizado, que Deus coloca dentro de nós e nos provoca a uma opção pela promoção da vida, nasce esse ramo do verde como esperança. Das mãos abertas, esse trabalho de profecia na diferente história de cada pessoa, os dedos com cores diferentes, trazendo presente os dons diferentes da história, da vida, das raças, das culturas, e que vão criando raízes de paz, de justiça, de fraternidade.

É uma logo que a gente pensou nesse ramo de esperança do novo que brota para o alto, devido a toda circunstância de desalento que hoje as pessoas sofrem diante de tantas crises que existem, e pela luta, pela sobrevivência que as pessoas estão vivenciando.

/*! elementor – v3.6.1 – 03-04-2022 */
.elementor-widget-image{text-align:center}.elementor-widget-image a{display:inline-block}.elementor-widget-image a img[src$=”.svg”]{width:48px}.elementor-widget-image img{vertical-align:middle;display:inline-block}

pe. Luis Miguel Modino
Natural da Espanha, é missionário Fidei Donum na Diocese de São Miguel da Cachoeira, Amazonas. É parceiro do Observatório da Evangelização e articulista em diversos periódicos e revistas virtuais católicas.

]]>
44718
Frei Enoque: vida e missão, uma contestação em nome do Evangelho https://observatoriodaevangelizacao.com/frei-enoque-vida-e-missao-uma-contestacao-em-nome-do-evangelho/ https://observatoriodaevangelizacao.com/frei-enoque-vida-e-missao-uma-contestacao-em-nome-do-evangelho/#comments Sat, 11 Dec 2021 19:28:35 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=43153 [Leia mais...]]]> Jesus ordenou a seus discípulos que distribuíssem o pão multiplicado à multidão necessitada, de modo que “todos comeram e ficaram saciados” (cf Mc 6,34-44). Curou  os enfermos, passou a vida fazendo o bem (At 10,38 . No final dos tempos, nos julgará no amor (cf. Ml 25).

INTRUDUÇÃO

Em quatro de dezembro de mil novecentos e quarenta e dois, no auge da Segunda Guerra Mundial, nascia na pequena cidade de Cachoeirinha, Pernambuco, Enoque Salvador de Melo. Como em sua cidade natal não havia cartório, Enoque foi registrado na cidade vizinha de Belo Jardim. Filho mais velho dos agricultores, João Salvador da Silva e Sebastiana Maria de Melo, Enoque, por motivos desconhecidos, foi criado por sua tia materna, dona Maria José de Melo. Solteira, dona Maria José viveu com o filho no bairro Mocambo, região carente de Recife.

NA PERIFERIA DA SOCIEDADE

Foi exatamente na periferia da sociedade e em meio à pobreza que Deus foi buscar aquela criança para ser seu andarilho. A pequena casa de madeira, onde Enoque viveu seus primeiros anos, logo foi substituída por uma casa um pouco mais moderna. Após alguns anos mudaram-se para a Rua Frei Casemiro, no bairro Santo Amaro, próxima a igreja de São Sebastião. Foi ali que ele passou a maior parte de sua adolescência e juventude.

Quanto à sua educação, o depoente revela que, após completar o primeiro grau, sua mãe, mesmo com todos os problemas financeiros, se esforçava para mantê-lo em um dos colégios de elite de Recife, o Colégio Diocesano de Garanhuns, instituição pertencente à Igreja Católica. Nele, haviam dois cursos, o científico e o clássico. O clássico para quem ia fazer advocacia ou ser professor e o científico para quem ia fazer Medicina ou Química. Frei Enoque (2021) revela que: “O sonho de minha mãe era que eu fizesse medicina, eu nunca tive vontade, e meu sonho era fazer Direito”.

Frei Enoque na Romaria da Terra em Santana dos Frades/ Pacatuba, no ano de 1987.

Aos 17 anos, em 1963, Enoque era um jovem comum como outro qualquer. Torcedor assíduo do Esporte gostava de jogar futebol no time do bairro, brincava carnaval, namorava e trabalhava para ajudar a mãe nas despesas da casa e já estava com seu futuro planejado: iria prestar vestibular para Direito. Até que, em 1966, nas famosas e tradicionais Páscoas que eram comemoradas por diversos segmentos da sociedade, ocorre um evento que vai mudar o rumo de sua vida. Entre as páscoas, destacava-se a Páscoa dos militares e a Páscoa dos bancários.

Nessa ocasião, Enoque já contava com seus 20 anos, era noivo de uma moça chamada Lourdinha, que era da cidade de Cachoeirinha, e trabalhava como bancário no Banco Pernambucano, quando ele, como funcionário do banco, resolve participar da comemoração junto com seus colegas de trabalho. Foi nesse momento que Enoque teve contato com frei Angelino Caio Feitosa. Segundo relato do depoente; “Ele falou tão bem sobre são Francisco, empolgou-se tanto que ficou aquela semente.” A partir desse momento, Enoque resolve deixar tudo que havia conquistado e seguir outro objetivo na vida.

UMA EXPERIÊNCIA DECISIVA

Em janeiro de 1967, aos 21 anos, Enoque entra no convento dos Franciscanos Menor da região de Siriahein, em Recife. Com a idade relativamente tardia para seguir a vocação sacerdotal, o jovem recebeu seu primeiro hábito, tornando-se noviço franciscano no mês de fevereiro daquele mesmo ano. De imediato, o noviço teve que se adaptar a rotina e normas do convento; as atividades do dia a dia do convento eram divididas entre os estudos teológicos e as obrigações religiosas. No convento dos frades de Recife, havia noviços das regiões de Pernambuco, Pará e Ceará. A turma de Enoque era composta por 16 noviços e todos já tinham o segundo grau completo. Cada noviço tinha sua cela simples (quarto), composta de uma cama e um armário. Não eram permitidos aparelhos eletrônicos como rádio ou televisão. A turma ainda era acompanhada por um frade superior da casa, conhecido como guardião ou mestre, que era o responsável pela formação da turma. O dia no convento começava muito cedo.

Ao levantar, os noviços se retiravam para fazer o dejejum servido em uma sala grande com mesa coletiva. O café era compartilhado por todos que “na mesa grande se sentavam e ficavam de costas para a parede. Primeiro havia a leitura do Evangelho do dia, a regra de são Francisco, toda a vida franciscana”. Em geral a alimentação dos noviços e frades era simples. Somente em dias de festas, havia uma refeição mais elaborada; “tinha fruta, tinha refrigerante, vinho, né”. Após as refeições os noviços eram direcionados às suas atividades clericais, que além das orações diárias também incluía estudos sobre “os escritos franciscanos, cartas, tudo isso que tinha a vida dos santos, Santo Antônio, pois este era um ano em que a gente se espelhava e ia à fonte da vida da espiritualidade franciscana” (ENOQUE, 2021).

UMA TEOLOGIA APARTI DOS POBRES

Os estudos sobre Filosofia, Teologia e ciências afins, eram realizados fora do convento, após a realização dos votos que inclui, pobreza, castidade e obediência. Os cursos fora dos muros do mosteiro eram um dos poucos momentos que os jovens estudantes tinham contato com o mundo externo, onde os noviços entravam em contato com estudantes de outras ordens da igreja, professores e universitários, já que o Instituto de Teologia de Recife (INTER), local onde estudavam, funcionava na Faculdade de Filosofia de Recife (FAFI).

Durante todos os dias da semana, à tarde, em 1969, uma Kombi pegava os noviços os quais, nesse período, estavam no mosteiro que ficava na subida da Sé em Olinda, e os levava para Instituto de Teologia em Recife, fundado por Dom Helder Câmara, Arcebispo de Olinda/Recife.

Nessa época, o instituto contava com padres e professores renomados no seu quadro de colaboradores, como o sociólogo Humberto Plumén e o famoso teólogo José Comblin, que segundo o noviço era “um dos maiores teólogos da America Latina que defendia a Teologia da Libertação”. Em 1970, os estudantes tinham cursos excelentes e os professores eram os melhores que se podia ter naquele período, mas para a turma de alunos que viviam um dos períodos de transformação da Igreja Católica e uma das fases mais marcantes da história brasileira, isso não era suficiente.

Segundo Enoque,

“Recife, foi um centro de efervescência muito grande. Foi lá que apareceu morto, torturado o colaborador de dom Helder, o padre Antônio Enrique. Nós estávamos lá e a gente presenciava muita coisa, muita confusão. Nós tivemos um padre que foi preso, frei Bomfim, junto com frei Juvenal, porque ele se recusou a celebrar no dia 7 de Setembro porque é… a pedido dos militares, ele tinha que celebrar a Independência do Brasil e dizer que o Brasil estava livre do comunismo. Ai ele se recusou, porque se recusasse ele seria preso e torturado, depois ele ficou psicologicamente abalado.” (ENOQUE, 2021)

OS SANTOS SABEM LER OS SINAIS DOS TEMPOS

O projeto evangélico de Enoque começa a ganhar força após a Conferência Episcopal de Medellín (1968), a ponto de fazerem uma experiência missionária na diocese de Propriá, motivo este que levou seus colegas a chamarem ele de louco. O fato é que Enoque, ao lado de Roberto, não eram alienados que viviam olhando para o céu e se esquecendo do que acontecia diante de seus próprios olhos. No início de 1970, quando era estudante, Enoque e frei Roberto, seguem para a diocese de Propriá, localizada no alto sertão sergipano. Esta era administrada pelo então dom José Brandão de Castro.

Frei Enoque e dom Brandão no dia que foi admitir o ministério da palavra aos animadores das comunidades, em 1970, na cidade Gararu/SE.

A mudança fazia parte das experiências da Teologia da Enxada. Na ocasião, já estavam na diocese de Propriá frei Angelino Caio Feitosa, mestre dos noviços no convento de Olinda Recife, e o sergipano frei Juvenal Vieira Bomfim. Quando chegaram à região sergipana, os seminaristas da ordem dos franciscanos menor se deparam com uma diocese, onde a pobreza e a exploração da mão de obra dominavam o cenário social das comunidades ribeirinhas. Embora tivessem a presença marcante de padres Belgas e bispos comprometidos, a população carente era explorada pelos grandes latifundiários.

NÃO É NADA FÁCIL SER FIEL À PRÓPRIA CONSCIÊNCIA

Foi às margens do Rio São Francisco que o jovem frade Enoque começou a perceber que, mesmo que o seu coração estivesse voltado para os pobres, ele, geograficamente, vivia no centro da cidade. E, a partir do momento em que sua consciência falou alto, não havia nada mais digno a fazer do que deixar o centro e caminhar para o mundo dos pobres. Em 1971, quando os trabalhos da Igreja, estavam começando Enoque recebe, em Tacaimbó, o Diaconado, ou seja, o primeiro passo para a ordenação, que ocorre em 05 de dezembro do mesmo ano, na igreja de Porto da Folha.

A cerimônia de Ordenação, presidida por dom José Brandão de Castro, fugiu às normas ditadas pela Igreja Católica que prevê a ordenação de um padre em uma diocese ou em sua terra natal. Nesse caso, dois dias depois da ordenação, no dia 07 de dezembro, Enoque realiza os últimos votos, seguindo assim a ordem franciscana “de pobreza, castidade e obediência.”

HUMANIZA-SE COM O PASSAR DO TEMPO

Hoje, aos 50 anos de sacerdócio, frei Enoque nos ensina que o sujeito da nova evangelização é toda a comunidade eclesial, segundo sua própria natureza: os bispos, em comunhão com o Papa, nossos presbíteros e diáconos, os religiosos e religiosas, e todos os homens e mulheres que constituímos o Povo de Deus. Suas santas missões as margens dos quilombos e sem terras no estado de Sergipe, nos mostram que a religiosidade popular é uma expressão privilegiada da inculturação da fé. Não se trata só de expressões religiosas, mas também de valores, critérios, condutas e atitudes que nascem do dogma católico e constitui a sabedoria de nosso povo, formando-lhe a matriz cultural. O anúncio da Boa Nova exige uma renovada espiritualidade que, iluminada pela fé que se proclama, anima, com a sabedoria de Deus, a autêntica promoção humana, sendo o fermento de uma cultura cristã.

A FÉ É UMA EXPRESSÃO PÚBLICA

A percepção de frei Enoque é algo espetacular. Ele vê algo que não era comum, ou seja, que a fé deve ser pública. Não podemos fazer com que a fé seja refém das paredes da Igreja. A fé é uma expressão pública e deve, portanto, nos levar ao encontro dos outros, principalmente dos mais pobres. Para frei Enoque, a forma privilegiada de encontrar a Deus é quando nos encontramos com os pobres. Deus se encontra na realidade, e é a partir da realidade que marcamos um encontro com Deus. Por fim Frei Enoque (2021) deixa claro:

“Meus companheiros e companheiras de caminhada com alegria testemunhamos que em Jesus Cristo, temos a libertação integral para cada um de nós e para nossos povos; libertação do pecado, da morte e da escravidão feita de perdão e reconciliação”.

Jesus Cristo nos convoca em sua Igreja, que é sacramento de comunhão evangelizadora. Nela devemos viver a unidade de nossas Igrejas na caridade, comunicando e anunciando essa comunhão a todo o mundo, através da Palavra, com a Eucaristia e com os demais sacramentos. A Igreja vive para evangelizar. Sua vida e vocação se realizam quando se faz testemunho, quando provoca a conversão e conduz os homens e as mulheres à salvação (cf. EN 15).

REFERÊNCIAS:

BINGEMER, Maria Clara Lucchetti. Experiência de Deus e pluralismo religioso no moderno em crise. São Paulo: Loyola, 1993.

HOONAERT, Eduardo. Teologia que vem das catacumbas: desafios atuais. São Paulo: Loyola, 2003.

PAULO VI, Papa.Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi. São Paulo: Paulinas, 1975.

UM FATO TRISTE. Jornal A defesa de Propriá, p.07, junho de 1984.

FONTES ORAIS:

Entrevista com Frei Enoque Salvador de Melo concedida a Eduardo Gomes em 14 de abril de 2021.

Sobre o autor:

Eduardo Gomes

Eduardo Gomes – Possui graduação em Filosofia, pelo Seminario Maior Nossa Senhora da Conceição de Aracaju (2018), e é graduando em Teologia por essa mesma instituição (SMNSC). Atualmente dedica-se na construção de artigos de caráter hagiográficos, teológicos da história de fé das CEBs, pastorais sociais, movimentos populares.

]]>
https://observatoriodaevangelizacao.com/frei-enoque-vida-e-missao-uma-contestacao-em-nome-do-evangelho/feed/ 1 43153