Victor Codina – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com Mon, 01 Mar 2021 13:21:23 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.4 https://i0.wp.com/observatoriodaevangelizacao.com/wp-content/uploads/2024/04/cropped-logo.png?fit=32%2C32&ssl=1 Victor Codina – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com 32 32 232225030 “A pandemia é um sinal dos tempos que nos leva a voltar ao ethos do Reino e à fraternidade”, com a palavra o teólogo VÍCTOR CODINA https://observatoriodaevangelizacao.com/a-pandemia-e-um-sinal-dos-tempos-que-nos-leva-a-voltar-ao-ethos-do-reino-e-a-fraternidade-com-a-palavra-o-teologo-victor-codina/ Mon, 01 Mar 2021 13:21:23 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=38457 [Leia mais...]]]> O messianismo é uma chave privilegiada para interpretar ideologias, movimentos políticos, científicos, sociais, econômicos e religiosos que sob uma liderança carismática convocam o povo a sair da prostração e transformar uma realidade histórica de pobreza e morte… A atual pandemia feriu mortalmente os modernos messianismos da ciência e do progresso, o estado de bem-estar neoliberal, a segurança e a afirmação de Fukuyama de que agora chegamos ao fim da história. Agora eles querem nos consolar que em breve voltaremos à normalidade de antes. Mas essa “normalidade” tem causado desigualdades sociais, venda de armas, guerras, violência e destruição da natureza, fome, machismo e feminicídios, migrações, morte de crianças, abusos sexuais, vítimas e caos. Não podemos voltar a essa “normalidade”... É preciso discernir os messianismos.”

Confira a reflexão do teólogo jesuíta Victor Codina:

A pandemia é um sinal dos tempos que nos leva a voltar ao ethos do Reino e à fraternidade

O messianismo é uma chave privilegiada para interpretar ideologias, movimentos políticos, científicos, sociais, econômicos e religiosos que sob uma liderança carismática convocam o povo a sair da prostração e transformar uma realidade histórica de pobreza e morte. Eles podem ser à esquerda ou à direita, eles oferecem a salvação completa, uma mudança total nas estruturas, embora muitas vezes levem à morte: Auschwitz, Gulag soviético, Hiroshima, ataques ao World Trade Center em Nova York etc.

Etimologicamente messianismo vem do hebraico “messias”, que significa “ungido” e em grego é traduzido como “cristo”. O messianismo tem raízes judaico-cristãs, embora se desenvolva por canais seculares ou ateus. Talvez esta origem religiosa explique porque muitos messianismos são vividos com um fervor semelhante ao fervor religioso. Mesmo em países democráticos, a propaganda eleitoral tem um sotaque messiânico: “Vote no nosso partido e tudo vai melhorar.”

É impossível neste breve espaço abordar o tema do messianismo, oferecemos apenas alguns elementos para reflexão e diálogo. Pertencem aos messianismos, a Revolução Francesa e a Revolução Russa de 1917, o Nacional Socialismo Hitlerista do Terceiro Reich (Terceiro Reino), o nacional-catolicismo franquista, os movimentos anticoloniais do terceiro mundo, a Primavera Árabe, a luta de Mandela contra o apartheid sul-africano, o movimento não violento de Gandhi, a luta de Luther King contra o racismo, os movimentos feministas, ambientalistas, indigenistas, sem-terra, LGBTQI+, anti-tortura e anti-tráfico, mas também o peronismo, o zapatismo, o sandinismo, o socialismo do século 21 dos países bolivarianos, o “América primeiro” de Trump, a réplica brasileira de uma política anti-ecológica e anti-indígena etc.

A atual pandemia feriu mortalmente os modernos messianismos da ciência e do progresso, o estado de bem-estar neoliberal, a segurança e a afirmação de Fukuyama de que agora chegamos ao fim da história. Agora eles querem nos consolar que em breve voltaremos à normalidade de antes. Mas essa “normalidade” tem causado desigualdades sociais, venda de armas, guerras, violência e destruição da natureza, fome, machismo e feminicídios, migrações, morte de crianças, abusos sexuais, vítimas e caos. Não podemos voltar a essa “normalidade”.

É preciso discernir os messianismos, para isso ajuda ir às origens bíblicas. Os profetas do Primeiro Testamento anunciaram um Messias da família de Davi. Os Evangelhos, principalmente o Evangelho de Mateus que se dirige aos cristãos de origem judaica, anuncia Jesus Cristo, filho David e Abraão, confessa que Jesus de Nazaré é o Messias ou Cristo, anunciado pelos profetas. Em seu batismo, Jesus é ungido pelo Espírito como o Messias e o Pai o proclama seu Filho amado. Jesus vai ao deserto para discernir como deve ser seu messianismo.

Seus contemporâneos, que viveram sob a opressão do Império Romano e da teocracia sacerdotal, esperavam um Messias davídico e político que os libertasse de Roma e da hipocrisia religiosa. Jesus não optou por um messianismo davídico de poder, riqueza e prestígio, mas por um messianismo nazareno de serviço humilde .

O messianismo de Jesus passa pela cruz.

O teólogo biblista brasileiro Jaldemir Vitório, apresenta-nos características fundamentais da utopia do Reino de Deus segundo o Evangelho de Mateus: as bem-aventuranças, a fraternidade local e universal, o amor, o perdão sem vingança, a não violência, a predileção pelos marginalizados (crianças, mulheres , doentes, pecadores), o não servir a dois senhores, a Deus e ao dinheiro, o procurar fazer a vontade do Pai, o confiar em sua misericórdia e a certeza de que os pobres serão nossos juízes no julgamento final da história.

Jesus, para evitar confusão, afirma que seu messianismo passa pela cruz, consequência da rejeição da teocracia judaica e do Império Romano ao seu projeto do Reino de Deus: Jesus reina da cruz . É a luta entre o Reino e o anti-Reino, mas a última palavra não é a cruz ou o túmulo, mas a ressurreição, a Páscoa e o dom do Espírito à sua comunidade e ao mundo. Seu Reino é uma alternativa à sociedade mundana, um Reino que já começa na história como uma pequena semente, mas cuja plenitude é escatológica, apocalíptica. Esses critérios evangélicos nos ajudam a discernir messianismos na sociedade e na Igreja.

Lamentavelmente, os messianismos humanos frequentemente se desviam do ethos do Reino de Deus de Jesus e produzem muitas vítimas. Isso acontece também na Igreja, na qual o Reino muitas vezes é reduzido a doutrinas, normas e ritos, a utopia do Reino torna-se mundana, como se a Igreja já fosse o Reino definitivo, a missão muitas vezes tem se degenera em proselitismos, a unidade eclesial é quebrada, as elites eclesiais se distanciam do povo e muitos cristãos corrompem a mensagem do Reino: lucro, violência, destruição da natureza, vítimas.

Mas o Espírito prometido por Jesus à Igreja e à humanidade até o fim da história está presente e em ação, não está em greve, mas sempre desperta, na Igreja e na sociedade, profetas, movimentos e comunidades proféticas que atualizam o messianismo de Jesus. Hoje Francisco encoraja os cristãos a viverem a alegria do Evangelho, defende uma Igreja dos pobres e na saída, pirâmide invertida, poliedro, promove a fraternidade universal, o cuidado pela casa comum e o sonho de um mundo diferente e melhor. A pandemia é um sinal dos tempos que nos instiga a voltar ao ethos do Reino, à fraternidade, ao cuidado da criação e à confiança em um Deus Pai de todos.

O que podemos fazer agora? Aprendermos com o passado, discernirmos o momento presente, nos converter novamente ao Reino de Deus, caminhar humildemente na história diante de Deus, semear amor, direito e justiça e esperar, contra toda esperança, o dia em que o Senhor faça novas todas as coisas, enxugue todas as lágrimas e não permita haver mais morte ou choro (Apocalipse 21,4-5).

Fonte:

Religião digital

]]>
38457
Testemunhos sobre o papa Francisco (2) https://observatoriodaevangelizacao.com/testemunho-sobre-o-papa-francisco-2/ Thu, 14 Nov 2019 14:44:54 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=33207 [Leia mais...]]]>

Por que o papa Francisco incomoda tanto?

O que realmente incomoda aos detratores do papa Francisco é que sua teologia deriva da vida real: da realidade da injustiça, pobreza e destruição da natureza; e da realidade do clericalismo eclesial.

Tudo bem em abraçar crianças e pessoas doentes; mas torna-se totalmente insuportável quando ele vai a Lampedusa, quando circula entre refugiados e migrantes em campos de refugiados como o de Lesbos.

Incomoda as pessoas quando diz que não deveríamos construir muros contra os refugiados, mas pontes de diálogo e hospitalidade. Incomoda quando, seguindo os passos de João XXIII, ele diz que a Igreja deve ser pobre e existir para os pobres; que os pastores devem cheirar como as ovelhas; que a Igreja deve se mover e sair de si mesma para alcançar as periferias do mundo; e incomoda muito quando diz que os pobres são um lugar teológico, uma fonte de revelação.

Incomoda quando afirma que o clericalismo é a lepra da Igreja e quando enumera as quatorze tentações da Cúria do Vaticano – que variam da pretensão de ser indispensáveis e necessários à gana por riqueza, até viver vidas duplas e sofrer de um Alzheimer espiritual.

E a irritação aumenta quando ele acrescenta que essas também são tentações das dioceses, das paróquias e das comunidades religiosas. Incomoda ouvir que a Igreja deve ser concebida como uma pirâmide invertida, com os laicos em cima e o papa e os bispos embaixo; como incomoda ouvi-lo dizer que a Igreja é um poliedro e sinodal. Isso significa que todos nós temos que percorrer o mesmo caminho juntos, que devemos ouvir uns aos outros e dialogar entre nós […].

Incomoda aos grupos conservadores o fato de Francisco agradecer a Gustavo Gutiérrez, Leonardo Boff, Jon Sobrino e José María Castillo por sua contribuição teológica, anulando a suspensão a divinis de Miguel d’Escoto e de Padre Ernesto Cardenal. Ficaram furiosos quando Hans Küng escreveu para ele reafirmando a necessidade de repensar a infalibilidade e Francisco respondeu chamando-o de “caro coirmão” e dizendo que levaria em consideração os comentários de Küng e estava disposto a abrir um diálogo sobre a infalibilidade.

Muitos ficam incomodados pelo fato que Francisco tenha canonizado São Óscar Romero, bispo salvadorenho mártir, rotulado por muitos como comunista e útil fantoche nas mãos da esquerda – depois que sua causa tinha permanecido trancada por anos.

Incomoda o fato de que Francisco diga “quem sou eu para julgar?”. Incomoda quando diz que a Igreja é feminina e que, se as mulheres não forem ouvidas, a Igreja se torna mais pobre e facciosa. […]

Obviamente, o problema não é que Francisco não seja um teólogo, mas sim que sua teologia seja pastoral. Francisco parte do dogma para o kerygma, dos princípios teóricos ao discernimento e à mistagogia pastoral. E a sua teologia não é colonialista, mas vem do sul global do mundo para incomodar o norte.

Passando para o confronto crítico com aqueles que acusam Francisco de ser um terceiro-mundista e um comunista, devemos afirmar que sua mensagem está em perfeita continuidade com a tradição profético-bíblica e com a doutrina social da Igreja.

O que incomoda é sua clarividência profética: Francisco diz não a uma economia da exclusão e da desigualdade; não a uma economia que mata e faz vítimas; não a uma economia sem rosto humano; não a um sistema social e econômico injusto que nos aprisiona em estruturas sociais injustas; não à globalização da indiferença; não à idolatria do dinheiro; não ao dinheiro que governa em vez de servir; não à desigualdade que produz violência; não a quem tenta se esconder por trás de Deus para justificar a violência; não à insensibilidade social que nos anestesia diante do sofrimento dos outros; não às armas e à indústria militar; não ao tráfico humano; não a toda forma de morte provocada.

Francisco nada mais faz que cumprir o mandamento “não matar”, defendendo o valor da vida humana do começo ao fim, e repropõe hoje a pergunta de Deus a Caim “onde está o teu irmão?”.

Sobre Francisco também incomoda a sua crítica ao paradigma antropocêntrico e tecnocrático, que destrói a natureza, polui o meio ambiente, corrói a biodiversidade e exclui os pobres e as populações indígenas de uma vida humana digna. As multinacionais não apreciam quando ele critica as empresas de desmatamento, extração de petróleo, hidrelétricas, mineração, que destroem o meio ambiente, danificam as populações indígenas daquelas terras e ameaçam o futuro de nossa casa comum. Incômodas também são as suas críticas aos líderes políticos que são incapazes de tomar decisões corajosas.

O fato de ter convocado o Sínodo para a Amazônia (outubro de 2019), que amplificou a necessidade de proteger o meio ambiente e salvar as populações indígenas das áreas amazônicas do genocídio, ampliou muito o incômodo provocado pelo papa Francisco. Alguns altos prelados da Igreja tentaram minar o evento dizendo que o instrumentum laboris é herético e panteísta, negando, entre outras coisas, a necessidade de salvação em Cristo. Outros comentaristas se concentraram exclusivamente na proposta de ordenar homens indígenas casados para celebrar a Eucaristia nas partes mais remotas da Amazônia, mas não disseram absolutamente nada sobre a denúncia profética que esse documento preparatório faz contra a destruição causada pelo extrativismo realizada na Amazônia. Como também nada disseram sobre a questão da pobreza e da exclusão das populações indígenas, que certamente nunca foram tão ameaçados como agora.

A oposição a Francisco é uma oposição ao Concílio Vaticano II e à reforma evangélica da Igreja que João XXIII queria promover. Francisco está na linha de todos os profetas que queriam reformar a Igreja, junto com Francisco de Assis, Inácio de Loyola, Catarina de Sena, Teresa de Jesus, Angelo Roncalli, Helder Câmara, Dorothy Stang, Pedro Arrupe, Ignacio Ellacuría e o nonagenário dom Pedro Casaldáliga.

Francisco ainda tem muitos assuntos pendentes para uma reforma evangélica da Igreja… Os papas passam, mas o Senhor Jesus ainda está presente e incentiva a Igreja até o fim dos séculos, o mesmo Jesus que foi considerado comilão e um beberrão, amigo de pecadores e prostitutas, demonizado e louco, sedicioso e blasfemo. E acreditamos que o Espírito do Senhor que desceu sobre a Igreja primitiva no Pentecostes nunca a abandona e não permitirá que o pecado, a longo prazo, triunfe sobre a santidade.

E enquanto isso, como Francisco sempre pede, desde sua primeira aparição na sacada de São Pedro no Vaticano como bispo de Roma até hoje, oremos ao Senhor por ele, para que sua esperança não esmoreça e confirme a fé de seus irmãos. E se não podemos orar ou não somos crentes, lhe desejamos pelo menos boas vibrações.

Teólogo boliviano jesuíta pe. Victor Codina. Foto: Observatório da Evangelização durante 0 29º Congresso Internacional da SOTER
Teólogo boliviano jesuíta pe. Victor Codina. Foto: Camilla Moreira/ Observatório da Evangelização durante o 29º Congresso Internacional da SOTER

Víctor Codina é teólogo, padre jesuíta boliviano, autor de muitos livros e artigos científicos, de modo especial, na área de eclesiologia. Ele participa ativamente da caminhada de preparação do Sínodo da Amazônia, convocado pelo papa Francisco que ocorrerá em outubro de 2019. 

(Confira o artigo completo que foi publicado pela Rede Eclesial Pan-Amazônica — REPAM, em 31/07/2019.)

Fonte:

www.redamazonica.org

]]>
33207
Sete chaves teológicas para o Sínodo da Amazônia. Artigo do teólogo jesuíta pe. Victor Codina https://observatoriodaevangelizacao.com/sete-chaves-teologicas-para-o-sinodo-da-amazonia-artigo-do-teologo-jesuita-pe-victor-codina/ https://observatoriodaevangelizacao.com/sete-chaves-teologicas-para-o-sinodo-da-amazonia-artigo-do-teologo-jesuita-pe-victor-codina/#comments Wed, 02 Oct 2019 11:00:00 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=32001 [Leia mais...]]]> Trata-se de um Sínodo singular, importante e conflitivo:

  • Singular, porque aborda um tema universal – a ecologia integral – desde um lugar geográfico muito concreto.;
  • Importante pela temática que sintetiza o magistério de Francisco (Evangelii Gaudium, Laudato Si’, Episcopalis Communio) e constitui como o ápice do seu pontificado;
  • Conflitivo porque é crítico a organismos financeiros, econômicos e políticos que exploram e destroem a Amazônia, e crítico também do poder do clericalismo eclesial.

Isso já está manifestado nas reações contrárias ao Sínodo e ao Instrumentum Laboris, da parte de organismos políticos e eclesiais. Se compreende que o Sínodo seja conflitivo e se compreende que se pretenda calá-lo, que muitos meios o querem reduzir ao tema de celibato eclesiástico que sempre produz morbidez.

Tampouco é casual que aumentem nesses meses acusações de abusos sexuais do clero como para que a Igreja, antes de denunciar a outros, se limpe ela mesma de toda imundícia. Se acusa o Instrumentum Laboris de herético, panteísta, apóstata, insensato, que nega a salvação de Jesus, que deseja que a sociedade volte à era das cavernas, arcos e flechas.

Para iluminar essa complexa situação, oferecemos sete chaves teológicas fundamentais, que se autoimplicam e se solapam mutuamente.

Confira, a seguir, o precioso artigo:

(O artigo é de Victor Codina, s.j., publicado por Religión Digital, 29/ 09/ 2019. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo, ilustrado com imagens de Religión Digital. Os grifos são nossos do Observatório da Evangelização)

1ª) A vida é o tema central do Sínodo

O título do Sínodo, “Amazônia, novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral”, pode gerar uma certa perplexidade ante a pluralidade de temas implicados. O tema central é a vida, “a vida do território amazônico e de seus povos, a vida da Igreja, a vida do planeta” (Instrumentum Laboris – IL – 8). E a vida é um tema profundamente bíblico: Deus Pai é o criador da vida, Jesus veio para nos dar vida em plenitude (João 10, 10), o Espírito Santo é vivificador, Senhor e doador da vida.

O tema do Sínodo forma parte integrante da missão eclesial de todos os tempos, prolongar a missão de Jesus que passou pelo mundo fazendo o bem e libertando de toda ameaça de morte (Atos 10, 38), que anuncia um Reino de vida, que envia os seus discípulos para dar vida e libertar do mal, que entrega amorosamente sua vida para que nós tenhamos vida, nos liberta do pecado e da morte, ele é a ressurreição e a vida (João 11, 25) e tem as chaves do Reino da Morte (Apocalipse 1, 18).

Essa vida é algo integral, inclui a vida do planeta, a vida humana material, cultural e espiritual dos povos amazônicos, a vida plena das comunidades eclesiais amazônicas, é a vida humana começando pelo mais elementar e material (bios) e é a vida plena, salvífica, divina que nos comunica o Espírito do Senhor ressuscitado (zoe) (IL 11). Corresponde à Igreja anunciar e defender a vida e denunciar e lutar contra todas as ameaças de morte.

Tão unilateral e tendencioso é reduzir o Sínodo às mudanças climáticas, concentrando-o apenas no manejo de homens indígenas casados, enquanto silencia a dimensão ecológica integral.

2ª) Metodologia do ver e escutar

A metodologia do Sínodo não é a de Lumen Gentium a partir da Trindade (LG 1-4), mas sim da Gaudium et Spes, que parte da realidade (GS 1-10). É a metodologia que tem sua origem nos movimentos da juventude operária católica europeia (JOC) e que a América Latina assumiu a partir de Medellín até Aparecida (exceto em Santo Domingo): VER, JULGAR e AGIR. Francisco também nos adverte que a realidade é mais importante que a ideia (EG 231-233).

Porém a novidade do Sínodo consiste em que ao ver, se adiciona o escutar, superando assim o risco de cair em uma frieza sociológica, objetiva e distante. Escutar implica passar de ser mero agente a ser receptor e paciente, deixar-se impactar pela realidade humana, pelo clamor do povo, como Javé diante do clamor do povo que explodiu no Egito subindo até Deus (Ex 3, 7-10), como Jesus, cujo coração é movido pelo sofrimento das pessoas que vivem como ovelhas sem pastor (Mc 6,34). Escutar é o estado de espírito necessário para julgar e agir com compaixão pela dor dos outros.

Essa atitude de escuta forma parte intrínseca da sinodalidade da Igreja, isto é, de uma Igreja em caminho conjunto que dialoga e escuta a todos, que sabe que o Espírito do Senhor foi derramado sobre toda a humanidade e que o Povo de Deus o recebeu pelos sacramentos de iniciação e que lhe confere o sentido profundo da fé (LG 12). Essa doutrina tradicional foi aprofundada por Francisco em Episcopalis Communio precisamente para que os Sínodos episcopais sejam um momento de escuta e discernimento do povo de Deus. E Francisco em Puerto Maldonado (Peru) preferiu escutar o indígenas antes de lhes dirigir a palavra.

Acrescentamos que no caso da Amazônia não somente se trata de escutar o povo, mas sim de escutar um povo pobre, que faz parte daqueles privilegiados bíblicos aos quais foram revelados os mistérios do Reino de Deus (Lc 10, 21-22).

Esse desejo de escutar se concretizou em uma ampla consulta da REPAM aos povos amazônicos para conhecer suas inquietudes, problemas e esperanças: 65 mil pessoas participaram em processos de consulta, preparação e escuta, junto com 90% dos bispos e vigários apostólicos amazônicos.

3ª) Atitude profética ante a vida ameaçada

A leitura das contribuições das comunidades indígenas revela um constante clamor: destruição extrativista do território amazônico por empresas petroleiras e mineradoras, madeireiras, megaprojetos hidráulicos, concessões florestais, monoculturas, agrotóxicos, rodovias e ferrovias, que destroem o território, caça e pesca predatória etc. que expulsam os indígenas para cidades e ribeiras, contaminam a terra e a água, destroem a biodiversidade, produzem doenças a crianças e jovens, geram problemas sociais associados ao alcoolismo, violência contra a mulher, trabalho sexual, tráfico de pessoas, criminalização e assassinato de líderes defensores do território. A vida está ameaçada por estruturas de morte, fruto do paradigma tecnocrático e do afã do lucro de grupos financeiros, econômicos e políticos.

Não é que somente se sintam ameaçados em seu território, mas também em sua identidade humana, cultural e espiritual, pois a terra não é um lugar ou um objeto, mas sujeito, a Mãe-Terra, a qual as multinacionais cortam as veias e fazem sangrar. Nunca o povo amazônico esteve tão ameaçado como agora.

Frente a essa grave situação a Igreja não pode calar e precisa denunciar profeticamente essas injustiças que afetam a Amazônia e todo o planeta. Seu silêncio seria cúmplice da morte, seria pecado de omissão.

O Sínodo exige uma conversão ecológica como Francisco já reivindicava na Laudato Si’ (LS 216-221). No entanto, o Sínodo não é agressivo e deveria ser visto de forma positiva, como um chamado ao diálogo e à conversão ecológica de todas as partes implicadas, como uma ajuda a superar dificuldades e buscar uma nova ordem mundial, para cuidar do planeta Terra, unir a todos que desejam preservar nossa Casa Comum, assumir com esperança um futuro melhor, uma ecologia integral.

4ª) Eclesiologia da Igreja local: Uma Igreja amazônica

A Igreja nascida em Jerusalém é uma igreja local e universal. Mais tarde, a Igreja universal se configura como uma comunhão das Igrejas locais sob a presidência da caridade do bispo de Roma. As Igrejas locais não são parte da Igreja universal, mas uma porção da Igreja universal, nas quais e a base das quais se constitui a Igreja Católica, una e única (LG 23). O Vaticano II reconhece o valor das Igrejas locais, com sua própria identidade cultural e histórica, sua diversidade litúrgica e canônica que enriquece a Igreja universal (LG 23, SC 37-40; 65, AG 22). A Igreja é um povo de Deus com muitas faces (EG 115.121).

O Sínodo deve ouvir a voz das comunidades cristãs da Amazônia que expressam um duplo aspecto na extensa pesquisa. Por um lado, agradecem os 500 anos de evangelização da Igreja missionária que fundou e formou as várias comunidades cristãs ao longo dos séculos, com grande sacrifício e generosidade de padres, missionários religiosos e religiosas. E ele pede que eles continuem ajudando-os com centros de treinamento e se defendendo contra as agressões atuais das multinacionais.

Mas, ao mesmo tempo, lamentam que ainda exista um sentido colonial e vertical da missão, pouco inculturado e dialógico, com uma pastoral mais de visita do que de presença estável. Solicita-se que os missionários conheçam a língua e a cultura do povo e tenham uma visão positiva das capacidades dos povos indígenas de liderar suas comunidades eclesiais nas várias formas de missão e ministérios, pois eles e elas são os que melhor conhecem sua gente e sabem como acompanhá-los e direcioná-los. Uma igreja local madura deve ter seus próprios ministros nativos.

Daí a necessidade e legitimidade de falar de uma Igreja com rosto amazônico, uma Igreja que responda às necessidades e preocupações dos povos amazônicos, buscando a melhor maneira de defender sua vida e anunciar o Evangelho da salvação de maneira inculturada, em diálogo com sua cultura, espiritualidade e identidade histórica, uma identidade que ultrapassa as diferentes fronteiras políticas geográficas dos povos. Uma Igreja de rosto amazônico é samaritana, profética, nazarena, missionária, defensora da vida em todas as suas dimensões, que hoje busca novos caminhos de evangelização e inserção pastoral (IL 107-114).

O Sínodo terá que realizar esses novos caminhos. Um deles poderia ser a constituição da Conferência Episcopal da Amazônia, que agrupa todas as jurisdições eclesiásticas com os povos da Amazônia, dando uma figura canônica legal ao que a REPAM já começou de maneira pastoral.

5ª) Contribuições da Amazônia para o mundo e a Igreja

É injusto considerar a Amazônia apenas como um grupo de pessoas pobres que precisam de defesa e proteção. São povos diferentes, outros, com grandes riquezas humanas, culturais e espirituais, com uma sabedoria milenar e ancestral, anterior ao cristianismo.

Como o índio Juan Diego, que oferece rosas ao bispo Juan de Zumárraga no meio do inverno, a Amazônia oferece aos bispos reunidos no sínodo e à igreja universal a riqueza de suas flores: a beleza de sua natureza exuberante e seus rios, a proposta da natureza. “Bem-viver” e a busca pela “terra sem males”, ou seja, uma vida em harmonia com a natureza, com a comunidade e com Deus, uma espiritualidade integral, o sentido da festa e da celebração, uma sabedoria tradicional no cuidado da terra, da saúde e dos remédios, um conceito de desenvolvimento e progresso muito diferente do conceito moderno de progresso tecnocrático que acumula bens nas mãos de poucos e destrói a natureza.

Em um momento de crise ecológica e humanitária no planeta, a Amazônia nos oferece alternativas, não para negar os avanços positivos do progresso moderno, mas para aprender com eles a se sentir parte da natureza, onde tudo está conectado e merece respeito e, assim, vamos evitar o caos de um possível futuro desastre ecológico planetário. Não podemos hipotecar o futuro das novas gerações com nosso conceito destrutivo e desastroso do chamado progresso moderno.

Essa avaliação positiva dos povos amazônicos não deve nos levar à ingenuidade idealista do mito do “bon sauvage“, nem fechar os olhos para as deficiências e erros que afetam toda cultura humana, nem negar a necessidade da graça e salvação de Cristo. Sempre precisamos discernir, mas não há dúvida de que antes da chegada dos missionários na Amazônia, o Espírito do Senhor já havia chegado.

6ª) A Eucaristia faz a Igreja

Somente depois de falar sobre a necessidade de defender a Amazônia das ameaças que a destroem, é que se fala da Eucaristia. Sem justiça, não há Eucaristia, não é a ceia do Senhor (1 Cor 11). Antes de oferecer a oferta, é preciso reconciliar-se com os irmãos (Mt 5,23-24). Por isso, ainda é suspeito que alguns setores queiram reduzir o Sínodo da Amazônia à questão dos ministérios dos homens casados.

A afirmação de Henri de Lubac, que resume a tradição patrística “a Eucaristia faz a Igreja, a Igreja faz a Eucaristia“, que João Paulo II reuniu na Ecclesia de Eucharistia, mostra a centralidade da Eucaristia na vida cristã, pois, como diz o Vaticano II, a Eucaristia é a fonte e o cume de toda a vida cristã (SC 10; PO 5).

É necessário aprofundar a importância eclesial e vital da Eucaristia. Sem a Eucaristia, a Igreja definha e morre. A vida em abundância que Jesus nos oferece (Jo 10,10) não é apenas o pão material com o qual ele alimenta os famintos que desejam entusiasticamente chamá-lo de rei, mas o pão da vida de seu corpo e sangue, dado pela vida do mundo (Jo 6). A Eucaristia tem uma dimensão pessoal, comunitária, eclesial e social, mas também cósmica, porque nela a criação, o pão e o vinho são transfigurados e presentes ao Senhor ressuscitado e antecipam a escatologia dos novos céus e da nova terra do Reino.

Por todas essas razões, não se pode privar durante anos inteiros as comunidades sem Eucaristia devido à falta de ministros e das grandes distâncias, com o risco de que as comunidades se tornem comunidades evangélicas da Palavra ou simplesmente desapareçam. Daí a urgência de prover às comunidades ministros ordenados para evangelização, serviço e celebração dos sacramentos, especialmente a Eucaristia.

A consulta aos povos da Amazônia é clara: eles pedem a ordenação daquelas pessoas que a comunidade julga adequadas para o ministério, seja celibatário ou casado, não apenas anciãos. São as comunidades que devem escolher e propor os seus ministros.

O celibato é um grande dom e carisma que o Espírito dá a alguns cristãos. E é compreensível que a Igreja Latina a exija dos candidatos ao ministério presbiteriano por seus grandes benefícios. Mas uma lei eclesiástica não pode ser apresentada, como a do celibato obrigatório para o ministério presbiteral na Igreja Latina sobre o direito divino à Eucaristia. Isso tornaria a lei do celibato uma ideologia, como a circuncisão poderia ter sido para os cristãos vindos da gentileza.

Devemos lembrar que o celibato não era exigido na Igreja primitiva e não era obrigatório na Igreja Latina até o século XIII. Tampouco é obrigatório nas igrejas católicas orientais.

De qualquer forma, a dispensa canônica de uma lei eclesiástica é sempre possível em casos específicos, como aconteceu quando Pio XII e Bento XVI ordenaram, respectivamente, pastores anglicanos luteranos e casados que desejavam entrar na Igreja Católica.

Também seria necessário discutir o diaconato das mulheres, conforme solicitado na consulta, que daria à Igreja uma nova face feminina e reconheceria liturgicamente o serviço que elas já prestam em suas comunidades. Além das diferentes opiniões teológicas sobre se houve ou não um diaconato sacramental feminino no passado, o Papa tem poder suficiente para poder estabelecê-lo por razões pastorais.

Também seria necessário discernir se não é possível adaptar a matéria e a forma dos sacramentos, salva e orum substantia, ao contexto amazônico, onde nem pão de trigo nem vinho de uva são frutos de suas terras, onde certamente a imersão no rio é mais expressivo que o batismo por mera infusão de água…

Finalmente, uma sugestão. Na liturgia eucarística, existem duas epicleses ou invocações do Espírito. Na primeira, pede-se ao Espírito que faça o pão e o vinho sacramentalmente se tornarem o Corpo e o Sangue do Senhor ressuscitado. Na segunda epiclesis, o Espírito é invocado para que a comunidade se torne o corpo eclesial do Senhor. Você não pode pensar em uma terceira epiclesis que, ouvindo o clamor dos últimos, pediu ao Espírito que em toda a criação, desde a Eucaristia da floresta amazônica até o altar do mundo, a plenitude do universo se realiza todos os dias, a vida plena, os novos céus e a nova terra, o foco transbordante do amor e da vida de Deus para o cosmos, a divinização da humanidade e dos santos casamentos, a unificação da criação com o Criador (LS 236)?

7ª) O Espírito do Senhor age desde os últimos

Essa última chave é certamente a mais importante para entender as chaves anteriores em profundidade. Devemos começar pelo fato de que o Povo de Deus acredita que quem o lidera é o Espírito do Senhor que preenche o universo (GS 11) e que toda a Igreja, especialmente pastores e teólogos, deve auscultar, discernir e interpretar, com a ajuda do Espírito, as múltiplas vozes de nosso tempo (GS 44), para entender os planos de Deus e, portanto, a Verdade revelada pode ser melhor percebida (GS 44).

Essa é a teologia dos sinais dos tempos, formulada por João XXIII em Pacem in Terris e que o Vaticano II se aprofundou em Gaudium et spes. O Senhor está presente, age e se manifesta na história humana através de eventos e desejos profundos da humanidade. A história humana não é homogênea, mas há momentos estelares, tempos de graça, kairós, que exigem uma profunda conversão e mudança em direção ao Reino de Deus. São lugares teológicos privilegiados para capturar e aprofundar a revelação única de Jesus Cristo.

Mas, ao que foi dito acima, acrescenta-se que esse Espírito que dirige a história geralmente age de baixo para cima, dos últimos (eschatoi), para que pareça mais claro que não é a sabedoria ou o poder humano que direciona a história para o Reino, mas o Espírito, que vibra desde o começo no caos original da criação ( Gn 1.2), que desperta juízes e profetas em tempos de crise do povo de Israel, ilumina a mãe dos Macabeus em pleno martírio de seus filhos, fé em ressurreição (2 MC 7,22 a 23), o que torna as mulheres inférteis conceber filhos ( Gn 11,30; 25,21; 29,31; Lc 1,7.27) e uma virgem gerar Jesus ( Lc 1, 35 ), aquele que derrama seus dons no Messias ( Is 11,1-9), guia a vida e a obra de Jesus e o ressuscita dentre os mortos. O Criador e o Espírito que dá Vida agem de baixo, do último para o bem de todos. Os pobres ocupam um lugar privilegiado no povo de Deus (EG 197-201)

Esse espírito presente nas profundezas da história, que se manifesta nos últimos, pobres, marginalizados e descartados, é aquele que agora clama pelos povos amazônicos, pedindo justiça em suas terras, liberdade para viver sua identidade e sua cultura, para que seu território, a Mãe Terra, seja respeitado. O clamor da terra se junta ao clamor dos pobres, é o Espírito do Senhor que clama por eles.

Já através deste último, descartado e ameaçado, o Senhor quer nos fazer ouvir sua voz, para que abandonemos os caminhos da morte e nos convertamos para uma ecologia integral e que a Igreja inicie novos caminhos, seja uma Igreja de rosto amazônico, aberta a uma reforma de suas comunidades, ministérios, liturgia, teologia indiana, evangelização e missão. E através da Amazônia, a salvação e a reforma são estendidas a toda a Igreja e a todo o planeta.

Os recentes e trágicos incêndios florestais na Amazônia revelaram a fragilidade da região, a tragédia de seus habitantes e o risco para todo o planeta. O Sínodo da Amazônia hoje é um presente providencial. Peçamos ao Senhor seu Espírito para transformar corações e renovar a face da terra. Veni, Creator, Spiritus…!

Teólogo boliviano jesuíta pe. Victor Codina. Foto: Observatório da Evangelização durante 0 29º Congresso Internacional da SOTER

Víctor Codina é teólogo, padre jesuíta boliviano, autor de muitos livros e artigos científicos, de modo especial, na área de eclesiologia. Ele participa ativamente da caminhada de preparação do Sínodo da Amazônia, convocado pelo papa Francisco que ocorrerá neste mês de outubro de 2019.

Fonte:

IHU

]]>
https://observatoriodaevangelizacao.com/sete-chaves-teologicas-para-o-sinodo-da-amazonia-artigo-do-teologo-jesuita-pe-victor-codina/feed/ 2 32001