Vegonha exposta – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com Thu, 23 Apr 2020 04:39:40 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.4 https://i0.wp.com/observatoriodaevangelizacao.com/wp-content/uploads/2024/04/cropped-logo.png?fit=32%2C32&ssl=1 Vegonha exposta – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com 32 32 232225030 Vergonha exposta https://observatoriodaevangelizacao.com/vergonha-exposta/ Thu, 23 Apr 2020 04:39:40 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=34688 [Leia mais...]]]> “Religião pura e sem mancha é esta: 
assistir os órfãos e as viúvas em suas dificuldades 
e guardar-se livre da corrupção do mundo” (Tg 1,27)

Eu já passei por quase tudo nessa vida,
Em matéria de guarida, espero ainda a minha vez.
Confesso que sou de origem pobre,
mas meu coração é nobre;
foi assim que Deus me fez

(Serginho Meriti e Eri do Cais).

A pandemia da covid-19 veio escancarar a vulnerabilidade de milhões de brasileiros que vivem nas periferias existenciais. Trouxe à luz também a insensatez do sistema econômico neoliberal, que gera empobrecidos e os mantém subalternizados. Os dados não mentem. Na hora da crise, pouquíssimos brasileiros podem se dar ao luxo de fazer a quarentena necessária, sem precisar da miserável ajuda do governo para se manter. Grande parte da população tem sua pobreza descoberta e não há recurso do Estado que consiga reparar os danos sofridos por essa gente já tão sofrida.

Professora de uma instituição particular, tenho certa estabilidade nessa crise; pelo menos, me foi dado o direito de ficar de quarentena trabalhando pelo sistema remoto. Mas venho de uma família pobre e compreendo bem o que os mais pobres que eu estão passando. Meu pai e minha mãe, com 7 filhos e um pedacinho de terra recebido de herança, não tinham nada para nos oferecer além de amor, bons princípios e o desejo de que pudéssemos estudar. Perseguindo esse sonho, venderam sua propriedade nos Cafundós do Judas e foram para uma pequenina cidade de Minas Gerais. “Lá há escola para os filhos”, disse meu pai sonhador à minha mãe. Assim, eles se tornaram “sem terra” como milhões de brasileiros. Nove bocas para comer, meu pai trabalhando numa fábrica de farinha e mais uma filha a caminho, completando o redondo número de oito filhos. Além disso, havia ainda as minhas avós que constantemente ficavam temporadas conosco, primas que vinham para estudar etc. Era preciso prover comida para toda essa gente: um trabalho para titãs, tarefa que meus pais empreenderam com bravura. Meu pai na fábrica de farinha ou na horta; minha mãe na máquina de costura ou na lida incansável da casa.

Assim, nunca passamos fome; não sei o que é isso. Passamos, sim, muita vontade e muita vergonha. Vontade de comer guloseimas expostas nas vitrines das padarias ou nas merendeiras dos coleguinhas de escola. Invejo até hoje o pão com goiabada e a garrafinha de “laranjada” que minhas coleguinhas retiravam de suas bolsas à vista de todos os pobres da sala. E não só vontade; passamos também vergonha, muita vergonha mesmo, a triste vergonha de ver nossa fragilidade econômica exposta a todos. Em ocasiões especiais, essa vergonha se tornava ainda mais pública. Elenco três fatos.

O primeiro aconteceu na minha primeira comunhão. Eu tinha sete anos. Como minha família voltara para a roça, pois a vida na cidade estava insustentável com meu pai desempregado, fui morar por seis meses na casa da madrinha de minha irmã mais nova. Chegou o tempo de fazer catequese, sempre atrelado ao ano escolar. Meu irmão mais velho no terceiro ano e eu no segundo fomos escalados para o time que receberia o sacramento. Mas era preciso roupa própria: terno preto, camisa branca e gravata borboleta para os meninos; vestido branco, acompanho de luvas, sapatos e meias da mesma cor para as meninas. Não foi difícil achar um terninho emprestado para meu irmão, mas eu não tive a mesma sorte. A bondosa madrinha de minha irmã se prontificou a mandar fazer um vestido sob medida. Tudo ficou a seu critério e eu vivia um conto de fadas de vestir uma roupa nova, pois as demais eram sempre de segunda ou terceira mão. Chegado o grande dia, entramos todos em fila como num cortejo nupcial. As pequeninas noivinhas com seus pares. Não perdurou muito a minha alegria, quando vi os ares de risos apontando para meus trajes. Todas as miniaturas de noivas trajavam vestes longas ou mídis (vestidos na canela). Somente a pobre menina pobre ostentava um vestido curto. Passei a missa toda puxando a saia, mas não havia pano suficiente para cobrir a nudez da pobreza.

O segundo se deu muitas vezes na escola. Meu irmão mais velho e eu íamos sempre juntos para o ginásio (era assim que se chamava). Não sei porque cargas d’água, mesmo sendo colégio estadual, havia uma taxa a ser paga. Nós dois nunca tínhamos a tal contribuição. Era coisa irrisória, talvez para prover o material escolar ou a merenda, não sei. Certo é que, no dia do tal pagamento, meu irmão e eu chorávamos para faltar a escola, pois, na voz da diretora, ficaria do lado de fora quem não trouxesse o dinheiro. Meu pai, muito bravo e enérgico, dizia: “Vão para a escola e ai de vocês se eu souber que não entraram para a sala de aula”. Ele havia arriscado toda a sorte da família para que seus filhos estudassem; logo, não podia admitir que a gente voltasse derrotado dessa batalha. Assim, nos seus dizeres, deveríamos “chorar, espernear, brigar, pular o muro, fazer qualquer coisa, menos voltar sem estudar”. Todo mês era a mesma ladainha. Chorávamos e argumentávamos até chegar a diretora e ficar com dó dos “filhos do compadre Eugênio” e nos colocar para a sala de aula. Mas essa proeza não acontecia sem antes passar pela humilhação de sermos barrados na porta do colégio e de ouvir a promessa de que, “no mês que vêm, não adianta chorar”. Graças à persistência ensinada por nossos pais, sempre adiantou chorar. Nunca ficamos sem frequentar a escola.

O terceiro episódio é sem dúvida o mais humilhante de todos. Diz respeito ao chamado “atestado de pobreza”, que vez ou outra tínhamos de pedir na prefeitura para termos nossos direitos garantidos. Foi assim a vida inteira. Já jovenzinha, com dezesseis anos, fui buscar o tal atestado na Prefeitura para conseguir comprovar a impossibilidade de pagar alojamento e refeição na Universidade Federal de Viçosa, onde cursei engenharia, antes de me embrenhar pelo campo da teologia. Para pegar o documento, havia uma exposição pública de nossa miséria. Depois, a situação vexatória não findava. Era preciso entregar o papel na universidade e responder a uma infinidade de questionários que nos humilhavam ainda mais. E todo ano era a mesma coisa. Não raro, a gente tinha o pedido negado e precisava apelar da decisão. Era pobre tendo que provar que era miserável para não ficar ignorante e garantir o acesso à educação. A verdade é: estudamos todos, mas não sem antes deixar a descoberto a nossa pobreza.

Já faz mais de trinta anos que precisei tirar oficialmente meu último atestado de pobreza. Mantenho hoje a convicção de que acumular não é bom nem para quem acumula, muito menos para os explorados da sociedade e, por isso, sou adepta de uma vida simples. Apesar de tanto tempo, a situação do povo brasileiro não mudou muito. Quando os primeiros progressos começaram a aparecer depois dos investimentos sociais do governo Lula, veio o golpe de 2016 e retrocedemos anos luz nas incipientes conquistas.

Com a pandemia da covid-19, a miséria de nossa gente ganhou visibilidade na mídia. Segundo dados do governo, num país de 210 milhões de habitantes, aproximadamente 42 milhões se cadastraram para receber o auxílio emergencial. Estima-se que vamos chegar a 50 ou 55 milhões, quase 25% da população brasileira. A gente já sabia que era assim, mas os fatos andavam tão mascarados que quase nos iludimos. Num país onde 10% da população concentra 50% da renda do país, não era de esperar que fosse diferente. Certo é que, vitimado pela pandemia, o Brasil não tem mais como esconder seu abismo social.

O auxílio emergencial do governo, tão discutido e tão miseravelmente entregue a nossa gente, esfrega na cara dos vulneráveis do país seu atestado de pobreza. Um dos representantes do governo, em rede nacional, teve o descaramento de dizer que a equipe está assustada com o número elevado de pedidos de socorro e com o crescente número de cadastrados para receber o salário da fome. Chamou os cadastrados de “invisíveis do país” e afirmou que “o governo não sabia que eles existiam”. Não querendo concluir que os líderes do Brasil são perversos, dou-lhes a chance de serem cegos ou analfabetos, pois nunca andaram pelas ruas ou nunca leram os dados dos censos.

O problema da elite podre do Brasil é que, além de manter o pobre na subserviência, têm a necessidade de humilhá-lo, desprezá-lo, atribuir-lhe má fama e rotulá-lo de preguiçoso. Olhando as filas que se formam nas portas das lotéricas, dos CRAS e de outras instituições que efetuam os cadastros para o tal “benefício”, convenço-me cada vez mais dessa premissa. E não é só a fila para o auxílio emergencial: tem amontoado de gente para pegar cesta básica na porta das escolas, tem uma infinidade de moradores de rua buscando material de limpeza, tem fila do povo das favelas e aglomerados para ser socorrido por voluntários… Os que conseguem se tornar beneficiários de qualquer um desses auxílios comemoram e ficam agradecidos. Dá dó ver!

Escancarada pela pandemia, a vergonha de nossa gente veio a público e, tão sofrida ela se encontra, que já nem se envergonha de mais nada a não ser da fome. Pergunto: é o pobre-coitado “sem lenço e sem documento”, como cantou Caetano Veloso, que deve correr atrás do seu direito ou o estado brasileiro deveria dar jeito de socorrer sua gente? São eles filhos de uma “pátria mãe gentil” ou são enteados de uma madrasta má que privilegia suas crias? Enquanto nos países com menos desigualdade social o governo corre atrás dos atingidos pela pandemia para saber como auxiliá-los, nosso país expõe publicamente a vergonha de seu povo para o mundo inteiro ver. E não tem auxílio emergencial ou cesta básica capaz de tampar o rombo, como na minha primeira comunhão não havia pano para tampar a humilhação de ser pobre. Quando eu achei que havia se extirpado da sociedade brasileira o tal atestado de pobreza, vejo-o estampado nas mídias. Sonho com o dia em que ninguém mais precise comemorar por ter conseguido tirar esse infeliz documento. Por enquanto é só utopia que a gente canta nas nossas igrejas: “Irá chegar um novo dia, um novo céu, uma nova terra, um novo mar. E nesse dia, os oprimidos, a uma só voz a liberdade irão cantar. Na nova terra, o fraco, o pobre e o injustiçado serão juízes deste mundo de pecado. Na nova terra, o forte, o grande e o prepotente irão chorar até ranger os dentes”.

Sobre a autora:

Solange do Carmo

Solange Maria do Carmo é teóloga-leiga, mestre em teologia bíblica e doutora em teologia catequética. Sua trajetória pastoral tem início nos anos 80, quando engajou-se em movimentos de juventude e, logo em seguida, descobriu a força da Palavra de Deus com grupos de reflexão bíblica na Universidade Federal de Viçosa, onde cursou engenharia agrícola. Durante dezesseis anos, ela serviu a Igreja como missionária leiga, engajada numa comunidade de vida que prestava serviços de evangelização e catequese nas dioceses onde morou (Mariana – 10 anos – e Paracatu – 6 anos). Sua trajetória catequética remonta o ano de 1991, quando juntamente com o Pe. Orione (diocese de Mariana), empreendeu um projeto de evangelização na cidade de Viçosa, na Paróquia Santa Rita de Cássia, onde residiam. Nasceu desta parceria um sonho de evangelizar crianças e adultos, proporcionando a todos a experiência cristã de Deus, por meio de encontros catequéticos semanais dos mais diversos tipos. Solange é colaboradora do Observatório da Evangelização.

Fonte:

www.fiquefirme.com

]]>
34688