Tragédia de Mariana – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com Wed, 25 Oct 2017 21:57:25 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.4 https://i0.wp.com/observatoriodaevangelizacao.com/wp-content/uploads/2024/04/cropped-logo.png?fit=32%2C32&ssl=1 Tragédia de Mariana – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com 32 32 232225030 Dossiê: A lama da destruição – Dois anos de devastação, sofrimento e impunidade https://observatoriodaevangelizacao.com/dossie-a-lama-da-destruicao/ Wed, 25 Oct 2017 21:57:25 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=25985 [Leia mais...]]]> A barragem da Samarco que rompeu perto de Mariana – e a longa luta por direitos e justiça

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Créditos: © TerraSense/Greenpeace, Música: Sad Marimba Planet by Lee Rosevere CC BY 4.0

I – Os rastros de destruição

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Foto: Douglas Magno

 

No dia 5 de novembro de 2015, rompeu a barragem do Fundão, no Município de Mariana, Minas Gerais, Brasil. Milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério de ferro da empresa Samarco, uma empresa de sociedade anônima controlada em partes iguais pela anglo-australiana BHP Billiton Brasil Ltda. e a brasileira Vale S.A., formaram uma enxurrada de lama que destruiu vilarejos, 349 casas, escolas e igrejas, além de contaminar o Rio Gualaxo do Norte, Rio do Carmo e do Rio Doce. Ao todo, 19 pessoas morreram.

Segundo a empresa de consultoria americana Bowker Associates, o desastre de Mariana representa o triplo recorde mundial da história da mineração: 1. trata-se do derrame de uma quantidade de lama entre 32 e 62 milhões de metros cúbicos, 2. a extensão da destruição ao longo de 680 km e 3. os danos avaliados entre 5 e 55 bilhões de dólares.

No que diz respeito à reparação e a indenização, muitas das pessoas atingidas ainda esperam por justiça.

 

A comunidade de Bento Rodrigues foi destruída pela lama

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Foto: Neno Vianna/EFE

Não havia uma sirene de alarme instalada no complexo das barragens de rejeitos de minério de ferro da empresa Samarco quando a barragem do Fundão rompeu, no dia 5 de novembro de 2015. Não havia quem avisasse aos moradores de Bento Rodrigues, cidade localizada a cerca de 2,5 quilômetros vale abaixo da barragem.

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Créditos: Commons WikimediaOpenStreetMap contributors/Sturm CC BY-SA 4.0

Não havia quem avisasse aos moradores de Bento Rodrigues

A enxurrada de lama de ao menos 32 milhões de metros cúbicos de lama atingiu diretamente o pequeno vilarejo de Bento Rodrigues. Os moradores não foram avisados. Os 56 milhões de metros cúbicos que estavam armazenados na barragem seriam suficientes para encher 24.800 piscinas olímpicas.

Restavam apenas 11 minutos

Restavam apenas 11 minutos até que a lama chegasse a Bento Rodrigues, derrubando muros e casas, soterrando ruas e praças, destruindo árvores e pequenos jardins dos moradores, levando os currais e as criações. Quem escutou o barulho lá de longe teve apenas tempo para tentar fugir da lama e salvar a vida dos demais.

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“A barragem rompeu!”

A barragem rompeu!“, gritou a moradora Paula Geralda Alves, que ouviu a notícia no rádio do colega de trabalho. Ela logo pegou sua moto e foi avisar aos moradores de Bento Rodrigues, buzinando alto para alertar a todos e todas. “A buzina da minha moto é bem fraquinha, mas, nesse dia, não sei por que, estava alta“, relatou Paula . “Na hora em que aconteceu isso, eu saí correndo, pegando menino e idoso para jogar em cima de caminhão, ajudei uma vizinha a carregar o pai dela que não anda. Só depois disso que eu subi em um morro e olhei para baixo. Daí eu vi que estava tudo tomado de lama. O Bento tinha acabado.

 

A lama seguiu seu caminho

Depois de Bento Rodrigues, a lama destruiu as casas do vilarejo do distrito de Paracatu de Baixo.

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Foto: Raquel Freitas/G1

E a lama seguiu

Quatorze horas após o rompimento da barragem, a enxurrada de lama, passando por inúmeras casas e sítios, bem como os povoados Pedras e Gesteira, além, de outros, chegou ao município vizinho Barra Longa. Mesmo tendo passado mais que 11h desde o rompimento em Bento Rodrigues, ninguém avisou a população de Barra Longa. A lama destruiu casas e muros, escolas e igrejas, soterrou ruas e pontes.

 

A lama desceu nos vales dos rios Gualaxo do Norte, Carmo e Doce

Nada conseguiu barrar o caminho da enxurrada de lama.

A barragem do Fundão ficava localizada a uma altitude de aproximadamente 1.200 metros acima do nível do mar. A lama seguiu caminho vale abaixo, em direção ao Rio Gualaxo do Norte, encheu o percurso deste pequeno rio e seguiu mais 55 km para o rio do Carmo. Percorreu os 22 km do rio do Carmo, quando atingiu, ao fim, o rio Doce. A lama, carregada de rejeito de mineração, passou pelas comportas e turbinas da UHE Risoleta Neves, Candonga. Percorreu, nos 17 dias seguintes, os 580 km restantes do Rio Doce, cruzando os estados de Minas Gerais e Espírito Santo, até chegar no dia 22 de novembro à praia de Regência, em Linhares, Espírito Santo, foz do rio Doce no Oceano Atlântico.

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Foto: Gabriela Biló/Estadão

II – As pessoas afetadas

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Vidas afetadas

Dos 853 km de extensão do Rio Doce, 586 km foram atingidos pela enxurrada de lama.

Dezenove pessoas morreram. Segundo a denúncia da Procuradoria da República de Minas Gerais e Espírito Santo, 349 famílias foram desalojadas. 349 casas foram destruídas; dois estabelecimentos de saúde; quatro escolas; oito pontes; 195 propriedades rurais foram diretamente impactadas, 25 das quais foram quase completamente devastadas, com 75,01% a 100% de suas áreas atingidas. As localidades mais afetadas pela enxurrada de lama contaminada, que, segundo o Ministério Público, »se tornaram impróprias para ocupação humana «, foram os distritos e subdistritos de Mariana, como Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo, Camargos, Águas Claras, Pedras, Campina Barreto, Gesteira, Ponte da Gama, além do Município de Barra Longa.

 

Cadê a informação oficial?

Diante dos rastros de destruição e a lentidão dos órgãos públicos em publicar análises confiáveis, biólogos, microbiologistas, toxicólogos e zoólogos foram para as regiões diretamente afetadas para começar um trabalho voluntário, a fim de preencher a lacuna de informação oficial sobre as consequências do rompimento da barragem da Samarco. Dante Pavan, biólogo do grupo de pesquisas GIAIA (Grupo Independente de Avaliação de Impacto Ambiental) foi um dos primeiros a analisar a lama e as reações dos seres vivos a ela. Dante Pavan foi para Bento Rodrigues em dezembro de 2015, poucas semanas após a enxurrada de lama ter destruído o vilarejo no distrito de Mariana.

 

Moradores traumatizados

Vendo a destruição em Bento Rodrigues, o morador Cristiano ainda hoje tem dificuldade de entender o que aconteceu com sua casa, seu vilarejo. » É a realidade mesma, a coisa caiu «, diz.

Os moradores que sobreviveram contam das angústias que vivem no dia a dia. Vivem traumatizados. Dona Aparecida de Barra Longa conta que não mais consegue dormir em paz. Ela diz que »tem que tomar remédio para dormir tranquila. A gente nunca sabe quando pode acontecer, se vai acontecer de novo.«

 

A lama atingiu terras férteis

A onda de lama afetou também, rio abaixo, as terras antigamente férteis de camponeses que cultivavam as margens do rio. O camponês José, de Tumiritinga, Minas Gerais, teve que abandonar o cultivo de beterraba, cenoura, alface, onde a lama afetou as suas terras. Tornou-se impossível trabalhar com a terra afetada pela lama tóxica.

A camponesa Marlene, de Tumiritinga (MG) também conta sobre sua vida: como era antigamente, como é hoje e o que se perdeu com a lama.

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Água de beber, água da vida

Nos Estados de Minas Gerais e Espírito Santo, o fornecimento de água ficou comprometido para consumo da população, para matar a sede de animais e para a irrigação de campos – e em alguns casos, até hoje o uso da água continua comprometido. O uso de caminhões-pipa tem sido a alternativa para que seres humanos e animais não morram de sede.

A enxurrada de lama contaminada causou, segundo denúncia do Ministério Público, a »interrupção do abastecimento público de água total ou parcial em 12 cidades, tais como Alpercata/MG, Governador Valadares/MG, Tumiritinga/MG, Galileia/MG, Resplendor/MG, Itueta/MG, Aimorés/MG, Baixo Guandu/ES, Colatina/ES e Linhares/ES, afetando uma população estimada de 424 mil pessoas«.

Em Colatina e em outras cidades, houve conflitos sobre a distribuição de água. Nas primeiras semanas foi distribuída água mineral. O vereador da cidade, Mario Pinto, conta das »filas para pegar água, filas quilométricas, gente brigando por água, brigando de fato mesmo «.

 

A lama e a pesca

Um relatório da Terra Brasis Resseguros estimou que 3,5 milhões de habitantes da região foram afetados pela falta de água. Conforme tal relatório, aproximadamente três mil pescadores não conseguem mais trabalhar ao longo do Rio Doce e em sua foz, quando o rio encontra o mar.

A vida aquática do Rio Doce sofreu danos que não cabem em números. A pesca artesanal foi, desde então, altamente afetada.

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O Watu não é mais o mesmo

A lama também afetou a Terra Indígena Krenak, situada ao lado do Rio Doce. Os Krenak vivem e trabalham em 4.900 hectares de terra em Resplendor, no leste de Minas Gerais, cerca de 500 quilômetros da capital do estado, Belo Horizonte.

A empresa Samarco mandou construir cercas nas margens do rio, para que nenhum dos Krenak se aproximasse das águas contaminadas. Depois de reclamações, a barreira foi retirada.

O Rio Doce, o Watu, como os indígenas chamam o rio, não é mais o mesmo. Os Krenak consideram essas águas sagradas e purificadoras. Eles faziam seus rituais sagrados nas margens do Rio. Pescar, caçar, beber água do rio, usar a água para irrigação, tudo isso acabou com a chegada da lama. Sua rotina foi extinta de uma hora para outra. Ninguém mais chega perto do rio. As sete aldeias Krenak foram forçadas a se adaptar e passaram a fazer compras nos supermercados da cidade.

O Watu está morto, dizem hoje os indígenas Krenak. O Watu não é mais o mesmo. O Watu, »esse rio, para nós foi tudo «, diz Daniel Krenak. »E hoje, ele encontra-se do jeito que está.«

Também foram afetados os indígenas Tupiniquim e Guarani, nas terras indígenas de Caieiras Velhas II, Comboios e Tupiniquim, no município de Aracruz, Espírito Santo. A interdição da pesca e a mortandade dos peixes ameaçam a segurança alimentar desses povos.

Mariana Disaster: Rio Doce Affected by Mining Dam Collapse Rio Doce nach Dammbruch von Bento Rodrigues

III – A lama afeta ou não a sua saúde?

A água do Rio Doce… é doce ou amarga?

A população continua desconfiada sobre a qualidade da água do Rio Doce

No município de Baixo Guandu, por exemplo, a população dependia da água do Rio Doce para captação. O Serviço Autônomo de Água e Esgoto (SAAE) de Baixo Guandu quis verificar a qualidade da água do rio, pouco tempo depois o rompimento da barragem. Foi detectada a presença de partículas de metais pesados como chumbo, alumínio, ferro, bário, cobre, boro e mercúrio. »A situação pode ser resumida em duas palavras: rio morto «, disse Luciano Magalhães, diretor do SAAE. »Não serve mais para nada, nem para irrigação e nem para os animais, muito menos para consumo humano. O cenário é o pior possível. O Rio Doce acabou. Parece que jogaram a tabela periódica inteira.«

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Água do Rio Doce entre Baixo Guandu e Colatina, Créditos: Christian Russau

A Samarco nega. Em relatório publicado , a empresa informou: »Em relação à qualidade da água do rio Doce, os laudos, de modo geral, mostraram uma elevação na quantidade de metais na água, logo após a passagem da pluma e por um curto período de tempo (alguns dias). Grande parte desse aumento não está relacionada diretamente à composição química do rejeito, formado basicamente de óxido de silício, de ferro e de alumínio. Esse aumento momentâneo deve-se à resuspensão de metais que já existiam, depositados no fundo do rio. Entretanto, a fase crítica passou e a concentração já voltou aos patamares registrados antes do rompimento da barragem do Fundão.«

A empresa conclui no comunicado: »Em resumo, é importante ressaltar que os resultados atuais indicam que a qualidade da água encontra-se similar aos padrões observados em 2010, conforme indicado no relatório de 15/12/15 do Serviço Geológico do Brasil (CPRM).«

O que a população residente às margens do Rio Doce, a qual depende da captação destas águas, pensa sobre essas afirmações? Confiar como, se, desde 2010, não houve atualização do monitoramento da qualidade da água?

#LamaqueMata - www.fb.com/lamaquemata
Moradores de Cachoeira Escura-MG pegam água numa bica na rua. Samarco não distribui mais água na comunidade, Créditos: Joka Madruga/#lamaquemata

Dessa forma, há controvérsias em relação à questão da qualidade da água. Diversos órgãos de nível federal e estadual realizam o monitoramento da qualidade das águas do Rio Doce. Mas, tendo em vista a negligência crônica do Estado, diversos grupos de cientistas e da sociedade civil levaram a frente suas próprias análises dos impactos ambientais do rompimento da barragem do Fundão para as águas do rio. Um destes é o Grupo Independente de Avaliação do Impacto Ambiental (GIAIA).

O Grupo GIAIA constatou em seu »Relatório Parcial Expedição Rio Doce« a existência de arsênio, manganês e chumbo acima do permitido segundo a resolução 357 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA). Como para os metais ferro e alumínio não existe padrão de legislação, o grupo GIAIA faz a seguinte observação:

»Mesmo não tendo padrão de legislação comparativa, os metais Ferro (Fe) e Alumínio (Al) estão em concentrações extremamente altas em todos os pontos de coleta afetados pela lama de rejeito […]. Estes valores aumentados podem causar impactos em médio e longo prazo, visto que a biodisponibilidade destes elementos pode aumentar ou diminuir com o passar do tempo (em meses, anos ou décadas) e desta forma o monitoramento periódico deve ser efetuado a fim de acompanhar este processo.«

Um estudo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em cooperação com o projeto Rio de Gente e Greenpeace, constatou que, além do rio, a água subterrânea também está contaminada por altos níveis de metais pesados, que prejudicam o desenvolvimento das plantações e entram na cadeia alimentar, oferecendo riscos à saúde no longo prazo.

Em julho de 2017, a Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) publicou o relatório final do »Monitoramento da Influência da Pluma do Rio Doce após o rompimento da Barragem de Rejeitos em Mariana/MG – Novembro de 2015: Processamento, Interpretação e Consolidação de Dados «. No relatório, os cientistas constatam »um aumento da concentração de metais e metaloides, primeiramente na coluna d’água, e posteriormente nos sedimentos superficiais« e que »houve um impacto devido à lama da barragem de mineração que atingiu a área costeira do rio Doce na comunidade zooplanctônica, alterando sua estrutura com perda imediata de diversidade e aumento na abundância de algumas espécies.« O relatório constatou consequências a longo prazo para o ecossistema.

 

Confiar em quê e em quem?

A qualidade da água continua gerando dúvidas na população, principalmente depois da divulgação de diversas declarações contraditórias de autoridades. De acordo com o Instituto Mineiro de Gestão das Águas (IGAM), análises mostrariam que a água não pode ser consumida diretamente »de nenhum dos rios atingidos«, nem pelos animais, nem para uso na agricultura, no que diz respeito ao Estado de Minas Gerais.

No Estado do Espírito Santo amostras mais recentes, de abril de 2017, indicam que a quantidade de rejeitos permanece quase a mesma depois que a lama chegou, em novembro de 2015. Provavelmente as enchentes, recorrentes na época de chuvas, levaram a lama que ficava nas margens do Rio, fator este que se repetirá nas próximas estações do ano.

A água tratada pelas companhias de saneamento pode ser consumida, segundo as autoridades citadas pela imprensa. Mas esta água tem sido rejeitada por muitos moradores. A população desconfia da qualidade e prefere qualquer outra fonte à água que vem do rio.

Confiar em quê e em quem? »A gente não tem laudos assim, realmente publicados, que comprovam que esta água está realmente boa «, diz o bispo Joaquim Wladimir Lopes Dias da diocese Colatina, Espírito Santo.

 

IV – Quem é o responsável

A empresa Samarco Mineração S.A. é uma sociedade anônima, uma joint venture controlada em partes iguais por dois acionistas: a anglo-australiana BHP Billiton Brasil Ltda. e a brasileira Vale S.A. A Samarco produz pelotas de minério de ferro e exporta este produto para o mercado mundial da indústria siderúrgica.

Em 2013, a barragem Fundão passou por um processo de revalidação da sua licença de operação. Segundo um estudo encomendado pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais, havia um risco de rompimento da barragem, como foi constatado no estudo feito pelo Instituto Prístino. O estudo fala na »possibilidade de desestabilização […] resultando num colapso da estrutura«. Mesmo assim, a licença de operação foi concedida pelo Conselho Estadual de Política Ambiental (COPAM) de Minas Gerais. O relatório »Vale de Lama – Relatório de inspeção em Mariana após o rompimento da barragem de rejeitos do Fundão« da organização Justiça Global, que trabalha com a proteção e promoção dos direitos humanos, avalia, que »é possível afirmar que a empresa e o Estado de Minas Gerais tinham ciência da possibilidade de ruptura das barragens«.

Segundo declarações de Roger Lima de Moura, delegado federal da Polícia Federal a barragem de Fundão foi »uma barragem doente, desde o início da construção ela já apresentou problemas. No primeiro alteamento do projeto já foi utilizado material diferente do que constava do projeto. Por exemplo, no projeto estava previsto para a construção das primeiras galerias de drenagem uso de brita e rocha e foi usado resto de minério fino e resto de minério« Segundo o delegado Roger Lima de Moura, a empresa sabia dos riscos quando instalou a barragem e aumentou a produção, mesmo sabendo da situação inadequada da estrutura. Roger também afirmou que » também havia problemas no monitoramento, com equipamentos que não estavam funcionando. As causas justificaram o indiciamento.«

Samarco disse que »repudia qualquer alegação de conhecimento prévio de risco de ruptura na barragem.«

A Política Nacional de Segurança de Barragens determina, conforme a lei, que a fiscalização da segurança dessas estruturas compita aos órgãos e entidades da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Os responsáveis pelo licenciamento e pela fiscalização das atividades da Mineradora Samarco são o Instituto Nacional do Meio Ambiente (IBAMA), o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) e o órgão ambiental do Estado de Minas Gerais, a Fundação Estadual do Meio Ambiente (FEAM). Segundo as análises da professora universitária Maria Galleno de Souza Oliveira »os poderes públicos federal e estadual estão se esquivando das suas responsabilidades, não expondo de maneira clara e transparente o que foi efetivamente realizado quanto as suas fiscalizações. No máximo, há um relatório de 2014, publicado pela Agência Nacional de Águas (ANA), sobre a questão da segurança das barragens no Brasil, que deveria ter sido apreciado pelo Congresso Nacional. Conforme consta nesse relatório […], em relação aos riscos somente 15% das barragens foram classificadas e cadastradas, o que significa um número muito baixo, tendo em conta que há no Brasil 14.966 barragens cadastradas «. No Brasil, nos últimos quatro anos, cada barragem passível de fiscalização recebeu, em média, uma única visita de fiscais do governo federal. Em Minas Gerais, só há quatro funcionários que fiscalizam as barragens do estado. O Tribunal de Contas da União (TCU) avaliou que a fiscalização de barragens foi »frágil e deficiente «.

Tanto a omissão e a negligência do Estado, quanto às falhas da empresa Samarco, estão entre os fatores que aparentemente levaram ao rompimento da barragem do Fundão. É o que constata Bruno Milanez no livro “Desastre no Vale do Rio Doce: Antecedentes, impactos e ações sobre a destruição”. »Em relação aos fatores que levaram especificamente ao rompimento da barragem do Fundão, têm-se a omissão e a negligência do Estado na fiscalização e licenciamento do empreendimento, bem como diversas falhas da empresa na manutenção da barragem, dentre as quais se destaca a insuficiência do plano de emergência para as comunidades situadas no entorno da barragem, da mesma forma que a realização de obras de alteamento da mesma além do devido.«

 

O rompimento da barragem e as novas ameaças de um »licenciamento flex«

Mesmo com todas estas gravíssimas experiências relacionadas ao rompimento da barragem do Fundão, o panorama político tende a piorar, no que diz respeito à política ambiental e à segurança de barragens, ao invés de aprender lições. No Congresso Nacional, a política acelera as tramitações de leis e emendas que visam ainda mais a »flexibilização« do atual sistema de licenciamento ambiental, já bastante fragilizado, através do uso crescente pelas autoridades no Brasil do chamado Termo de Ajustamento de Conduta (TAC). Além disso, durante anos tramitou no Congresso Nacional o projeto legislativo de um novo Código de Mineração. Como este novo código ainda não foi aprovado na íntegra pela Câmara e pelo Senado, a mais nova tentativa de facilitar o avanço das mineradoras tem sido o uso de medidas provisórias, assinadas pelo Executivo, para propor a criação de uma Agência Nacional Reguladora da Mineração, o que iria alterar esse importante eixo ambiental por meio de uma política de governo. Esta iniciativa, somada à proposta da nova Lei Geral de Licenciamento, teria como meta contribuir para uma nova onda »licenciamento flex «, que, caso venham a ser aplicadas na prática, representariam o risco implícito de uma »futura fábrica de Marianas «, conforme criticam mais que 250 organizações da sociedade civil.

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(In-)Justiças e Impunidades

Poucos dias após o rompimento da barragem em Mariana, a Vale S.A. e a BHP Billiton Brasil Ltda. argumentaram que a responsabilidade pelas questões técnicas e financeiras ficaria só com a Samarco, uma vez que a empresa é uma sociedade anônima e, por isso, de responsabilidade limitada, com uma equipe de gestão totalmente independente dos seus acionistas.

Mesmo assim, a Justiça Federal em Ponte Nova aceitou em novembro de 2016 a denúncia contra 22 pessoas e as empresas Samarco, Vale, BHP Billiton e VogBR , feita pelo Ministério Público Federal (MPF). Em agosto de 2017, este processo foi suspenso por irregularidades nas investigações. Os advogados da defesa alegaram que escutas telefônicas usadas no processo foram feitas de forma ilícita.

No dia 2 de março de 2016, a Samarco, a Vale, a BHP Billiton Brasil Ltda. e as autoridades brasileiras firmaram um acordo »para remediação e compensação dos impactos relacionados ao rompimento da barragem «, acordo este que foi amplamente rejeitado pela sociedade civil.

Além disso, o Ministério Público Federal ingressou com uma ação civil pública contra a Samarco, Vale e BHP Billiton, na qual pede reparação de danos com valor estimado em R$ 155 bilhões.

O coordenador do MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens) Thiago da Silva, do município mineiro de Barra Longa, disse que o acidente foi uma »tragédia criminosa, resultante da negligência do Estado brasileiro e da ganância das mineradoras «, exatamente os idealizadores do acordo. »Quem coordena o processo é a mineradora criminosa. Alguma coisa aqui está errada. É direito das famílias participarem disso. Isso é fundamental. A sociedade civil tem o direito de organizar esse processo. A ideia de um acordo não está errada em sua raíz. O que questionamos é: onde os atingidos estão?«

Acordos e Ações na Justiça

O acordo assinado no dia 2 de março de 2016 entre a Samarco, Vale, BHP Billiton Brasil e as autoridades brasileiras foi suspenso pela justiça em julho de 2016. Apesar desta suspensão, o acordo continua sendo implementado pelas empresas e pelo governo federal. A Fundação Renova é »a gestora no território de toda a política de reparação e tem contratado inúmeras assistências técnicas para realização dos planos, as quais trouxeram inúmeros atores novos, muitas vezes não capacitados, que têm gerado outras violações de direitos relacionados ao acesso à informação e ao respeito à dignidade das comunidades «, critica o MAB.

Os afetados, junto a organizações como o MAB, contestam os acordos feitos sem a participação dos atingidos, Em janeiro de 2017, foi firmado um novo acordo entre a Samarco e o Ministério Público Federal, acordo este que acabou sendo suspendido um mês depois.

Lutar por indenização, compensação e justiça, sendo uma pessoa afetada, no Brasil, não é fácil, explica Guilherme Meneghin, promotor do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, na comarca de Mariana. Ele está à frente de nove ações civis públicas no município de Mariana contra a Samarco, Vale e BHP Billiton Brasil Ltda. Na entrevista a seguir, ele detalha como o Ministério Público atua para garantir os direitos das pessoas afetadas pelo rompimento da barragem.

 

Mariana não é um caso isolado

O caso de rompimento da barragem do Fundão, da Samarco, não é um caso isolado. O relatório do Grupo de Trabalho das Nações Unidas sobre empresas e direitos humanos constatou: “Embora a causa exata do rompimento da barragem de Fundão ainda seja desconhecida, tais eventos não deveriam ocorrer jamais. O incidente assinala a importância de regras de licenciamento rígidas, de monitoramento regulatório adequado de planos de contingenciamento. O Grupo de Trabalho está preocupado com o alto número de barragens e de mineração, particularmente localizado no Estado de Minas Gerais e no Brasil em geral, tendo em vista que há uma capacidade limitada ao nível de Estado e da União de fazer inspeções de segurança para garantir que uma tragédia como essa nunca se repita”.

Segundo dados da Comissão Internacional de Grandes Barragens (ICOLD, na sigla em inglês), que registra 58.000 barragens no mundo inteiro, as barragens de mineração romperam 10 vezes mais que barragens de rios. Na construção de barragens de mineração existem geralmente três formas de construção: »upstream« (onde cada camada de barragem mais elevada se constrói acima da velha camada seca da antiga barragem), »center« (onde se eleva o nível da barragem nela mesma) e »downstream« (onde se eleva a barragem vale abaixo, fortalecendo a estrutura). A forma de construir barragens »upstream« é a maneira mais barata para as mineradoras, mas também é aquela com o maior risco de rompimento.

 

Mariana: um caso internacional

Internacionalmente, houve diversas denúncias às comissões das Nações Unidas, à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA , entre outras. As instituições internacionais de direitos humanos geralmente se limitam a recomendações aos Estados, no intuito de proteger as pessoas contra violações (perpetuadas por empresas privadas) de tais direitos. Mesmo que o resultado do processo seja positivo, as recomendações ou decisões não são judiciáveis, nem no nível nacional, nem no nível internacional. Os procedimentos de queixa visam uma resolução de disputas e não um juízo final. Neste sentido, as reclamações não oferecem uma ferramenta confiável para compensar adequadamente as vítimas. No entanto, não se pode subestimar o efeito político de tais decisões, pois dizem respeito à imagem do governo.

O sistema de proteção dos direitos humanos das Nações Unidas obriga os Estados contratantes a promover e garantir a proteção dos direitos humanos. Além disso, as empresas não são consideradas “sujeitos de direito” no âmbito do Direito Internacional de Direitos Humanos, e tratados internacionais só são vinculantes, caso os Estados os ratifiquem. Isso significa que, em última análise, a vontade dos Estados é decisiva em relação aos acordos internacionais e sua interpretação. Além disso, existem vários acordos internacionais não vinculativos, como as Diretrizes das Nações Unidas para Negócios e Direitos Humanos ou as Diretrizes da OCDE para Empresas Multinacionais. Eles não representam uma lei vinculativa, mas significam recomendações para as empresas, bem como para os Estados, para transpor as regras internacionais para as leis e políticas nacionais. Neste sistema, as vítimas de violações dos direitos humanos não podem obter quaisquer direitos justiciáveis, quando se baseiam em referências internacionais.

Por isso, existe uma demanda clara por regras e obrigações para empresas. A globalização criou relações corporativas cada vez mais complexas e ao mesmo tempo, as normas estatais nacionais estão aparentemente cada vez mais incapazes de lidar com esta internacionalização do mundo dos negócios. As crescentes liberalização dos mercados financeiros e transnacionalização dos processos de produção e das estruturas corporativas significam que as competências e as funções de regulamentação social e ecológica do Estado têm pouco efeito, no que diz respeito à competição internacional por “condições favoráveis de investimento”. No âmbito das Nações Unidas, desde a década de 1970, há varias iniciativas para regular empresas transnacionais de modo mais efetivo, ou seja, fazer com que elas se tornem efetivamente responsáveis por violações de direitos humanos. Durante anos, tramitou um confronto na ONU, entre os países do Sul e do Norte, sobre a chamada iniciativa Equador. Embora que ainda em disputa acirrada, esta iniciativa, a Resolução 26/9 foi aprovada em 2014 pelo Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas pela maioria. Desta forma começaram os debates sobre um instrumento internacional legal vinculante, para que sejam atribuídas à atuação das empresas transnacionais, no futuro, obrigações diretas relacionadas a todas as questões de direitos humanos.

No final de outubro de 2017 será realizada a próxima sessão Grupo de Trabalho Intergovernamental do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas em Genebra. Entidades da sociedade civil entregaram várias propostas para o debate da agenda sobre o futuro do tratado vinculante. Pouco antes da sessão à presidência do Grupo de Trabalho apresentou uma proposta com elementos para um instrumento internacional. Desta forma, espera-se que sejam definidas as obrigações extraterritoriais para os Estados e que as lacunas práticas e legais na proteção dos direitos humanos relativos às atividades das empresas transnacionais sejam fechadas.

Estas ambições certamente enfrentarão muitos obstáculos no âmbito internacional, o que representará um trâmite de muitos anos até que um tratado seja aprovado. Mesmo assim, as propostas são uma esperança de que seja consolidado um sistema de proteção dos direitos humanos das Nações Unidas que mereça este nome.

Por enquanto, resta aos afetados se organizar e protestar. Com apoio de movimentos sociais, os afetados pelo rompimento da barragem da Samarco organizaram passeatas e manifestações, nas ruas e nas câmaras municipais, fechamento de rodovias e de trilhos de trem, intervenções artísticas, além do ingresso de ações na justiça.

Uma dessas manifestações aconteceu um ano após o rompimento da barragem do Fundão. Cerca de mil pessoas do MAB, pessoas atingidas, de igrejas, pastorais e ONGs se uniram sobre as ruínas da escola do distrito de Bento Rodrigues, exigindo justiça às 19 pessoas morreram e aos milhares de afetados pela lama das mineradoras Samarco, Vale e BHP. »Justiça!«

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“Mariana: Megaphone voices of affected people – fight corporate impunity” – um projeto de CIDSE, aliança internacional de organizações católicas de desenvolvimento e seus membro.

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Texto: Christian Russau (FDCL)

Em cooperação com:

Contatos:

Herbert Wasserbauer, DKA Áustria
Stefan Reinhold, CIDSE

Setembro de 2017. A maior parte das entrevistas foi realizada por motivo do primeiro aniversário da ruptura da barragem do Fundão.

 

Fonte:

https://cidse.atavist.com/a-lama-que-trouxe-a-destruio

 

Obs.: Para recordar, veja aqui o Relatório da ONG Justiça Global

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