Solange Maria do Carmo – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com Fri, 01 Oct 2021 19:18:50 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.4 https://i0.wp.com/observatoriodaevangelizacao.com/wp-content/uploads/2024/04/cropped-logo.png?fit=32%2C32&ssl=1 Solange Maria do Carmo – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com 32 32 232225030 Duas teólogas mineiras produzem juntas precioso material de evangelização: uma Novena de Natal – 2021 https://observatoriodaevangelizacao.com/duas-teologas-mineiras-produzem-juntas-precioso-material-de-evangelizacao-uma-novena-de-natal-2021/ Fri, 01 Oct 2021 19:18:50 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=41689 [Leia mais...]]]> Evangelizar é missão de todos nós que pelo Batismo enraizamos a nossa vida na vida de Jesus. Ser cristão é o desafio diário de cultivar criativamente no contexto em que vivemos a vida nova em Jesus Cristo. Viver com a consciência do dom de sermos todos filhos e filhas de Deus. Desse modo, somos chamados a conviver em comunidade de forma ativa, na partilha de tudo o que somos e na alegria que brota da experiência e da fé que nos irmana pelo amor de Deus por nós. O longo tempo dessa pandemia tem despertado a força da Igreja doméstica, espaço dos cristãos leigos, da família comprometida com o Reino da justiça e da fraternidade inclusiva de todos na mesa da dignidade dos filhos e filhas de Deus. Que tal aproveitarmos o tempo do Advento que se aproxima, para organizar um jeito de reunir a família, vizinhos e amigos para preparar juntos o Natal?

Como celebrar de forma plena e feliz o Natal de Jesus, festa da vida, quando vivemos cercados de mortes por todos os lados? Quando não é a pandemia, é a política de morte implantada no país, que protege os grandes e pisoteia e destrói os mais frágeis. O Natal, apesar de tudo isso, faz esperançar, porque essa é a celebração do nascimento do Menino-Deus, pequenino e frágil, que se tornou sinal do amor misericordioso de Deus com os mais vulneráveis da Terra.

Saber quem é o Deus do Jesus-menino é fundamental para que a gente não transforme o Natal numa festa vazia, um evento comercial que celebra o consumismo e entorpece com presentes e com luzes de pisca-piscas colocados nas casas e nas praças. O Menino-Deus que se fez homem é o sinal claro e potente de que Deus ama o mundo e cada um de nós em particular, de que ele não se confunde com essas imagens enviesadas de Deus que circulam nas redes sociais.

Deus não é um juiz, nem um carrasco, nem um negociante que aceita o suborno de nossas preces. Ele não é um senhor de exércitos, com arma na mão pronto ao combate. Também não é um legalista de plantão, que nos vigia preocupado em saber se infringimos suas leis. Essas imagens de Deus que circulam na internet e nos grupos de whatsApp não têm nada a ver com o Deus de Jesus, que nos deu o seu filho no Natal, para nos ensinar que a vida humana é dom e graça, e que deve ser vivida na gratuidade da relação com ele.

A Novena de Natal, não há lugar para ele, trata da temática das imagens equivocadas e distorcidas de Deus, especialmente difundidas nessa pandemia.

Tania Mayer e Solange do Carmo, ambas teólogas, nos presenteiam com esse texto maravilhoso, pronto para ser degustado por todas as famílias, seja qual for o seu formato, sem nenhum preconceito. Afinal, o Deus de Jesus é respeitoso e amigo, capaz de declinar de sua grandeza para se fazer um como nós.

Bom Natal a todos!

Que ele seja recomeço de vida e sinal resistência na luta contra a morte e o mal!

Como adquirir?

Solange Maria do Carmo

Solange Maria do Carmo é natural de Teixeiras, MG. É teóloga, com mestrado em Bíblia e doutorado em Teologia da Práxis Cristã (Catequese) pela FAJE – Faculdade dos Jesuítas, BH. Leciona disciplinas de Teologia Bíblica e também Catequética no ISTA – Instituto Santo Tomás de Aquino – e na PUC-Minas. É coautora, juntamente com padre Orione Silva, da coleção Catequese Permanente, publicada pela editora Paulus. Tem diversos artigos publicados e assessora encontros e retiros para leigos e presbíteros.

Tânia da Silva Mayer

Tânia da Silva Mayer é natural de Virgolândia, MG, onde foi batizada, reside em Belo Horizonte há mais de trinta anos. É teóloga, mestra em estudos de cristologia, pela FAJE – Faculdade dos Jesuítas, BH, e atualmente é estudante de letras na UFMG. Articulista de religião, possui experiência na editoração, redação, correção e revisão, de textos diversos, materiais e subsídios pastorais para o povo de Deus. Assessora encontros, cursos, formações e retiros para diversos públicos em dioceses no país.

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O bom odor de Pedro do Araguaia https://observatoriodaevangelizacao.com/o-bom-odor-de-pedro-do-araguaia/ Sun, 25 Jul 2021 13:14:15 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=40061 [Leia mais...]]]>

defendo com ardor que não empenhemos um processo de canonização para esse homem de Deus. E muito menos proclamemo-lo como santo súbito, coisa que os integristas e conservadores gostam de fazer com seus líderes piedosos e defensores da doutrina. Mantenhamo-lo sempre Pedro do Araguaia. Sem mais. Assim deve ser; assim deve ser lembrado. Respeitemos sua rebeldia!”

Por Solange do Carmo

Bem aventurados vós, os pobres” (Lc 6,20)

“Na dúvida, fique do lado dos pobres”
(Pedro Casaldáliga)

O sábado, 08 de agosto de 2020, amanheceu mais cinzento pois Pedro partiu. Sim, Pedro. Era assim que ele gostava de ser chamado, pelo nome de batismo, sem nenhum título. Sem ele, o Brasil ficou mais sombrio, mais silencioso, mais inodoro e mais órfão. Por sua consciência política e sua coragem de denúncia, Pedro foi ameaçado, perseguido, jurado de morte, mas não recuou. Resistiu e prometeu que morreria de pé como as árvores da floresta. Tombado pelo cansaço da vida e não por uma bala de revólver, o bispo do Araguaia morreu martirizado pela doença de Parkinson, nos ensinando que é preciso alimentar a utopia de uma terra sem males, onde todos têm os direitos garantidos e não há explorador nem explorado.

O jovem Pedro veio da Espanha para anonimamente servir os pobres do Brasil. Mas, como o amor exala bom odor (2Cor 2,14-16), logo Pedro ficou conhecido pelo perfume da fé que exalava. Seu cheiro bom encantou mulheres e homens sofredores, que viram nele uma espécie de pai dos pobres. Esse título, em outros tempos dado a são Vicente de Paulo, cabe bem ao bispo do Araguaia. Sua caridade, porém, percorreu caminhos bem diferentes da difundida por Vicente, cuja filantropia imediata saciava a fome dos famintos e socorria os desabrigados. Pedro encarnou a vida do pequeno, do menor de todos, do mais insignificante dos humanos. Despojou-se de todo conforto, de toda segurança, de toda regalia, ao modo franciscano. Viveu junto dos explorados do Araguaia e se fez um deles. A comparação com o Pobrezinho de Assis também não faz jus à vida de Pedro. Talvez Pedro pudesse ser comparado ao santo Oscar Romero, mártir da América Latina, cruelmente assassinado no altar, cuja vida foi unida à de Cristo num só sacrifício. Mas, apesar da mesma bravura, os dois bispos se distinguem. A poesia de Pedro, sua vida às margens do Araguaia, e sua sensibilidade para questões urgentes do nosso tempo, fazem-no uma pessoa singular.

Pedro inaugurou um novo modelo de santidade que não cabe nos moldes canônicos da Igreja. Sua via de santificação foi a resoluta decisão política de enfrentamento dos exploradores e de defesa dos subalternizados, a começar pelas populações originárias. Suas causas ultrapassavam os muros da eclesia e se faziam incômodas para os grandes da Terra. Seu modo de ser cristão era único, seu apostolado episcopal era inusitado e sua visão de igreja era inconveniente. Sua piedade era rebelde, sua religiosidade subversiva e sua fé, escandalosa.

Quando ninguém nas igrejas falava de direitos dos indígenas ou de respeito aos deuses dos quilombos, Pedro, criava o CIMI e a pastoral da Terra. O bispo poeta fazia ecoar seus versos em favor dessa gente sem voz. A famosa missa dos quilombos, musicada por Milton Nascimento, fez história. Tornou-se peça de teatro e incomodou os poderosos por ocasião da ditadura.

Quando nas igrejas ainda não se falava de defesa do meio ambiente, nem havia o Francisco de Roma escrevendo a Laudato Si’, Pedro protegia as matas, os bichos e toda espécie de vida. Amaldiçoava as queimadas, as cercas e o direito de possuir a terra, entendida como dom de Deus para a vida de todos.

Quando nas igrejas ainda não se falava da maldição do garimpo e da indústria madeireira, Pedro levantava sua voz nos advertindo acerca dos perigos de exaurir a terra, de derrubar as matas e de poluir os rios. Enfrentou, junto aos pequenos agricultores e posseiros, os poderosos que querem exaurir o solo e ser donos das águas.

Quando nas igrejas não se falava de agricultura orgânica, nem dos males causados pelos defensivos agrícolas, Pedro abominava os agrotóxicos e preservava as sementes autóctones.

Quando nas igrejas não se falava ainda da falência do modelo econômico capitalista, Pedro sonhava com um mundo fraterno no qual o dinheiro não era senhor, nem o mercado seu reino. Colocou em versos sua paz inquieta; tornou conhecida sua indignação e inconformidade com os esquemas de privilégio de alguns em detrimento da escravidão de uma multidão.

Por tudo isso e muito mais, Pedro é um tipo de santo que não pode ser canonizado. Sua vida não pode ser enjaulada na política de privilégios que a Igreja estabelece para declarar uma vida como santa aos olhos dos crentes. Canonizar Pedro seria privatizar sua vida pública, estabelecer direitos autorais sobre seus escritos, conformar sua poesia rebelde aos devocionismos católicos, calar sua voz profética. O bispo de punhos cerrados não combinaria com os santos de mãos postas.

Duvido que Pedro aceitaria fazer dois milagres para garantir sua santidade. O bispo rebelde do Araguaia, que não assinou a penalidade do silêncio obsequioso imposto pelo papa João Paulo II, boicotaria toda tentativa de usar seu nome para promoção da Igreja institucional. Aquele que viveu pobre e morreu pobre reviraria no seio da terra se visse um só tostão ser gasto no processo de sua canonização. E, ainda, Pedro detestaria que sua vida ganhasse cercas – todas elas malditas no dizer do pobre do Araguaia – e ele não pudesse mais ser sinal para todos, católicos e não católicos, crentes e não crentes. Por fim, canonizar Pedro seria ferir sua honra colocando à frente de seu nome um título. Na sua kênose, Pedro desprezou toda titulação e somente como Pedro queria ser chamado.

Além do mais, parece no mínimo estranho cultuar inquisidores canonizados pelos papas Pios e Pedro ao mesmo tempo. Seria constrangedor Pedro e são João Paulo II no mesmo altar; o primeiro rompendo com todo laço com os grandes do mundo e o segundo aliado a presidentes de impérios e monarcas conservadoras. Não dá para imaginar Pedro e santos monarcas, como Luiz da França ou santa Helena, empenhados nas mesmas causas terrenas. A não ser que o céu esteja dividido em departamentos e que cada santo – como um deus do Panteon – cuide de uma causa específica, não há lugar para Pedro no mundo dos santificados. Haveria dissenso no céu, porque o rebelde do Araguaia não se calaria nem mesmo no estágio das beatitutes divinas.

Por tudo isso, defendo com ardor que não empenhemos um processo de canonização para esse homem de Deus. E muito menos proclamemo-lo como santo súbito, coisa que os integristas e conservadores gostam de fazer com seus líderes piedosos e defensores da doutrina. Mantenhamo-lo sempre Pedro do Araguaia. Sem mais. Assim deve ser; assim deve ser lembrado. Respeitemos sua rebeldia!

Sobre a autora:

Solange Maria do Carmo

Solange Maria do Carmo é teóloga-leiga, mestre em teologia bíblica e doutora em teológica catequética. Sua trajetória pastoral tem início nos anos 80, quando engajou-se em movimentos de juventude e, logo em seguida, descobriu a força da Palavra de Deus com grupos de reflexão bíblica na Universidade Federal de Viçosa, onde cursou engenharia agrícola. Durante dezesseis anos, ela serviu a Igreja como missionária leiga, engajada numa comunidade de vida que prestava serviços de evangelização e catequese nas dioceses onde morou (Mariana – 10 anos – e Paracatu – 6 anos). Sua trajetória catequética remonta ao ano de 1991, quando juntamente com o Pe. Orione (diocese de Mariana), empreendeu um projeto de evangelização na cidade de Viçosa, na Paróquia Santa Rita de Cássia, onde residiam. Nasceu desta parceria um sonho de evangelizar crianças e adultos, proporcionando a todos a experiência cristã de Deus, por meio de encontros catequéticos semanais dos mais diversos tipos.

Fonte:

www.fiquefirme.com.br

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Vergonha exposta https://observatoriodaevangelizacao.com/vergonha-exposta/ Thu, 23 Apr 2020 04:39:40 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=34688 [Leia mais...]]]> “Religião pura e sem mancha é esta: 
assistir os órfãos e as viúvas em suas dificuldades 
e guardar-se livre da corrupção do mundo” (Tg 1,27)

Eu já passei por quase tudo nessa vida,
Em matéria de guarida, espero ainda a minha vez.
Confesso que sou de origem pobre,
mas meu coração é nobre;
foi assim que Deus me fez

(Serginho Meriti e Eri do Cais).

A pandemia da covid-19 veio escancarar a vulnerabilidade de milhões de brasileiros que vivem nas periferias existenciais. Trouxe à luz também a insensatez do sistema econômico neoliberal, que gera empobrecidos e os mantém subalternizados. Os dados não mentem. Na hora da crise, pouquíssimos brasileiros podem se dar ao luxo de fazer a quarentena necessária, sem precisar da miserável ajuda do governo para se manter. Grande parte da população tem sua pobreza descoberta e não há recurso do Estado que consiga reparar os danos sofridos por essa gente já tão sofrida.

Professora de uma instituição particular, tenho certa estabilidade nessa crise; pelo menos, me foi dado o direito de ficar de quarentena trabalhando pelo sistema remoto. Mas venho de uma família pobre e compreendo bem o que os mais pobres que eu estão passando. Meu pai e minha mãe, com 7 filhos e um pedacinho de terra recebido de herança, não tinham nada para nos oferecer além de amor, bons princípios e o desejo de que pudéssemos estudar. Perseguindo esse sonho, venderam sua propriedade nos Cafundós do Judas e foram para uma pequenina cidade de Minas Gerais. “Lá há escola para os filhos”, disse meu pai sonhador à minha mãe. Assim, eles se tornaram “sem terra” como milhões de brasileiros. Nove bocas para comer, meu pai trabalhando numa fábrica de farinha e mais uma filha a caminho, completando o redondo número de oito filhos. Além disso, havia ainda as minhas avós que constantemente ficavam temporadas conosco, primas que vinham para estudar etc. Era preciso prover comida para toda essa gente: um trabalho para titãs, tarefa que meus pais empreenderam com bravura. Meu pai na fábrica de farinha ou na horta; minha mãe na máquina de costura ou na lida incansável da casa.

Assim, nunca passamos fome; não sei o que é isso. Passamos, sim, muita vontade e muita vergonha. Vontade de comer guloseimas expostas nas vitrines das padarias ou nas merendeiras dos coleguinhas de escola. Invejo até hoje o pão com goiabada e a garrafinha de “laranjada” que minhas coleguinhas retiravam de suas bolsas à vista de todos os pobres da sala. E não só vontade; passamos também vergonha, muita vergonha mesmo, a triste vergonha de ver nossa fragilidade econômica exposta a todos. Em ocasiões especiais, essa vergonha se tornava ainda mais pública. Elenco três fatos.

O primeiro aconteceu na minha primeira comunhão. Eu tinha sete anos. Como minha família voltara para a roça, pois a vida na cidade estava insustentável com meu pai desempregado, fui morar por seis meses na casa da madrinha de minha irmã mais nova. Chegou o tempo de fazer catequese, sempre atrelado ao ano escolar. Meu irmão mais velho no terceiro ano e eu no segundo fomos escalados para o time que receberia o sacramento. Mas era preciso roupa própria: terno preto, camisa branca e gravata borboleta para os meninos; vestido branco, acompanho de luvas, sapatos e meias da mesma cor para as meninas. Não foi difícil achar um terninho emprestado para meu irmão, mas eu não tive a mesma sorte. A bondosa madrinha de minha irmã se prontificou a mandar fazer um vestido sob medida. Tudo ficou a seu critério e eu vivia um conto de fadas de vestir uma roupa nova, pois as demais eram sempre de segunda ou terceira mão. Chegado o grande dia, entramos todos em fila como num cortejo nupcial. As pequeninas noivinhas com seus pares. Não perdurou muito a minha alegria, quando vi os ares de risos apontando para meus trajes. Todas as miniaturas de noivas trajavam vestes longas ou mídis (vestidos na canela). Somente a pobre menina pobre ostentava um vestido curto. Passei a missa toda puxando a saia, mas não havia pano suficiente para cobrir a nudez da pobreza.

O segundo se deu muitas vezes na escola. Meu irmão mais velho e eu íamos sempre juntos para o ginásio (era assim que se chamava). Não sei porque cargas d’água, mesmo sendo colégio estadual, havia uma taxa a ser paga. Nós dois nunca tínhamos a tal contribuição. Era coisa irrisória, talvez para prover o material escolar ou a merenda, não sei. Certo é que, no dia do tal pagamento, meu irmão e eu chorávamos para faltar a escola, pois, na voz da diretora, ficaria do lado de fora quem não trouxesse o dinheiro. Meu pai, muito bravo e enérgico, dizia: “Vão para a escola e ai de vocês se eu souber que não entraram para a sala de aula”. Ele havia arriscado toda a sorte da família para que seus filhos estudassem; logo, não podia admitir que a gente voltasse derrotado dessa batalha. Assim, nos seus dizeres, deveríamos “chorar, espernear, brigar, pular o muro, fazer qualquer coisa, menos voltar sem estudar”. Todo mês era a mesma ladainha. Chorávamos e argumentávamos até chegar a diretora e ficar com dó dos “filhos do compadre Eugênio” e nos colocar para a sala de aula. Mas essa proeza não acontecia sem antes passar pela humilhação de sermos barrados na porta do colégio e de ouvir a promessa de que, “no mês que vêm, não adianta chorar”. Graças à persistência ensinada por nossos pais, sempre adiantou chorar. Nunca ficamos sem frequentar a escola.

O terceiro episódio é sem dúvida o mais humilhante de todos. Diz respeito ao chamado “atestado de pobreza”, que vez ou outra tínhamos de pedir na prefeitura para termos nossos direitos garantidos. Foi assim a vida inteira. Já jovenzinha, com dezesseis anos, fui buscar o tal atestado na Prefeitura para conseguir comprovar a impossibilidade de pagar alojamento e refeição na Universidade Federal de Viçosa, onde cursei engenharia, antes de me embrenhar pelo campo da teologia. Para pegar o documento, havia uma exposição pública de nossa miséria. Depois, a situação vexatória não findava. Era preciso entregar o papel na universidade e responder a uma infinidade de questionários que nos humilhavam ainda mais. E todo ano era a mesma coisa. Não raro, a gente tinha o pedido negado e precisava apelar da decisão. Era pobre tendo que provar que era miserável para não ficar ignorante e garantir o acesso à educação. A verdade é: estudamos todos, mas não sem antes deixar a descoberto a nossa pobreza.

Já faz mais de trinta anos que precisei tirar oficialmente meu último atestado de pobreza. Mantenho hoje a convicção de que acumular não é bom nem para quem acumula, muito menos para os explorados da sociedade e, por isso, sou adepta de uma vida simples. Apesar de tanto tempo, a situação do povo brasileiro não mudou muito. Quando os primeiros progressos começaram a aparecer depois dos investimentos sociais do governo Lula, veio o golpe de 2016 e retrocedemos anos luz nas incipientes conquistas.

Com a pandemia da covid-19, a miséria de nossa gente ganhou visibilidade na mídia. Segundo dados do governo, num país de 210 milhões de habitantes, aproximadamente 42 milhões se cadastraram para receber o auxílio emergencial. Estima-se que vamos chegar a 50 ou 55 milhões, quase 25% da população brasileira. A gente já sabia que era assim, mas os fatos andavam tão mascarados que quase nos iludimos. Num país onde 10% da população concentra 50% da renda do país, não era de esperar que fosse diferente. Certo é que, vitimado pela pandemia, o Brasil não tem mais como esconder seu abismo social.

O auxílio emergencial do governo, tão discutido e tão miseravelmente entregue a nossa gente, esfrega na cara dos vulneráveis do país seu atestado de pobreza. Um dos representantes do governo, em rede nacional, teve o descaramento de dizer que a equipe está assustada com o número elevado de pedidos de socorro e com o crescente número de cadastrados para receber o salário da fome. Chamou os cadastrados de “invisíveis do país” e afirmou que “o governo não sabia que eles existiam”. Não querendo concluir que os líderes do Brasil são perversos, dou-lhes a chance de serem cegos ou analfabetos, pois nunca andaram pelas ruas ou nunca leram os dados dos censos.

O problema da elite podre do Brasil é que, além de manter o pobre na subserviência, têm a necessidade de humilhá-lo, desprezá-lo, atribuir-lhe má fama e rotulá-lo de preguiçoso. Olhando as filas que se formam nas portas das lotéricas, dos CRAS e de outras instituições que efetuam os cadastros para o tal “benefício”, convenço-me cada vez mais dessa premissa. E não é só a fila para o auxílio emergencial: tem amontoado de gente para pegar cesta básica na porta das escolas, tem uma infinidade de moradores de rua buscando material de limpeza, tem fila do povo das favelas e aglomerados para ser socorrido por voluntários… Os que conseguem se tornar beneficiários de qualquer um desses auxílios comemoram e ficam agradecidos. Dá dó ver!

Escancarada pela pandemia, a vergonha de nossa gente veio a público e, tão sofrida ela se encontra, que já nem se envergonha de mais nada a não ser da fome. Pergunto: é o pobre-coitado “sem lenço e sem documento”, como cantou Caetano Veloso, que deve correr atrás do seu direito ou o estado brasileiro deveria dar jeito de socorrer sua gente? São eles filhos de uma “pátria mãe gentil” ou são enteados de uma madrasta má que privilegia suas crias? Enquanto nos países com menos desigualdade social o governo corre atrás dos atingidos pela pandemia para saber como auxiliá-los, nosso país expõe publicamente a vergonha de seu povo para o mundo inteiro ver. E não tem auxílio emergencial ou cesta básica capaz de tampar o rombo, como na minha primeira comunhão não havia pano para tampar a humilhação de ser pobre. Quando eu achei que havia se extirpado da sociedade brasileira o tal atestado de pobreza, vejo-o estampado nas mídias. Sonho com o dia em que ninguém mais precise comemorar por ter conseguido tirar esse infeliz documento. Por enquanto é só utopia que a gente canta nas nossas igrejas: “Irá chegar um novo dia, um novo céu, uma nova terra, um novo mar. E nesse dia, os oprimidos, a uma só voz a liberdade irão cantar. Na nova terra, o fraco, o pobre e o injustiçado serão juízes deste mundo de pecado. Na nova terra, o forte, o grande e o prepotente irão chorar até ranger os dentes”.

Sobre a autora:

Solange do Carmo

Solange Maria do Carmo é teóloga-leiga, mestre em teologia bíblica e doutora em teologia catequética. Sua trajetória pastoral tem início nos anos 80, quando engajou-se em movimentos de juventude e, logo em seguida, descobriu a força da Palavra de Deus com grupos de reflexão bíblica na Universidade Federal de Viçosa, onde cursou engenharia agrícola. Durante dezesseis anos, ela serviu a Igreja como missionária leiga, engajada numa comunidade de vida que prestava serviços de evangelização e catequese nas dioceses onde morou (Mariana – 10 anos – e Paracatu – 6 anos). Sua trajetória catequética remonta o ano de 1991, quando juntamente com o Pe. Orione (diocese de Mariana), empreendeu um projeto de evangelização na cidade de Viçosa, na Paróquia Santa Rita de Cássia, onde residiam. Nasceu desta parceria um sonho de evangelizar crianças e adultos, proporcionando a todos a experiência cristã de Deus, por meio de encontros catequéticos semanais dos mais diversos tipos. Solange é colaboradora do Observatório da Evangelização.

Fonte:

www.fiquefirme.com

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Esperançar em tempos de Covid-19 https://observatoriodaevangelizacao.com/esperancar-em-tempos-de-covid-19-2/ Fri, 03 Apr 2020 19:24:11 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=34519 [Leia mais...]]]> “Todos ficam tontos, sem entender.
E o fabricante de imagens fica decepcionado com o ídolo,
porque sua estátua é mentira; vida ela não tem.” (Jeremias 9, 14)

“Ontem um menino que brincava me falou
Que hoje é semente de amanhã.
Para não ter medo que esse tempo vai passar.
Não se desespere não, nem pare de sonhar
.”
(Gonzaguinha)

Esperança. Palavra corriqueira, tão comum na boca do povo e tão necessária no coração da gente. O dito popular não nos deixa esquecer: “A esperança é a última que morre”. Nesses tempos de pandemia, a esperança tem sido nossa companheira, nossa aliada no meio da crise. É preciso esperançar, disse Rubem Alves.

Adoro esse verbo e vivo me esforçando para conjugá-lo corretamente, não conforme a gramática da língua portuguesa, mas conforme a gramática da vida. No passado, já esperancei muito. Agora, esperanço com dificuldades. E, no futuro, esperançarei também, apesar de no horizonte vislumbrar muitas desesperanças. Foi o fato de ter esperançado tanto que me fez resiliente. Por isso ainda continuo crendo no amor, lutando pelos direitos dos mais frágeis e sentindo aquela indignação diante da atitude dos perversos. É preciso continuar esperançando a esperança dos sonhadores, dos que sabem que tudo passa…

Estamos no momento meio tontos ainda, tentando entender a pandemia que assola o mundo em pleno século XXI. Faz parte da labilidade humana essa sensação de vertigem que acomete a gente como a pandemia do vírus.  É que os fabricantes de imagens ficam sempre decepcionados com seus ídolos, diria Jeremias – o profeta do século VI aC. A gente colocou a esperança na nossa onipotência e, vendo agora que nossa estátua é só ídolo, a frustração é grande. Colocamos nossa esperança no capital, no progresso desenfreado, no esgotamento dos recursos naturais… Conjugamos errado o verbo esperançar? É que o verbo esperançar é intransitivo e pronto. A gente esperança e nada mais. Esperançar não exige complementos.

Quando a gente coloca nossa esperança naquilo que não tem vida, fazemos do verbo esperançar um verbo transitivo indireto. Sobre isso, nós – os brasileiros – temos aprendido muito. Esperançamos fora da esperança. Esperançar em significa mitar. Na verdade, mitamos ou idolatramos e não esperançamos. Se esperançar é verbo que gera vida; mitar é verbo que gera morte. O resultado só pode ser catastrófico. Não se trata de morte biológica somente, mas de morte da esperança. Fica difícil esperançar de novo, porque a esperança foi maculada.

Nossa gente mitou demais em 2018. Fez arminha com a mão, acreditou na imprensa golpista, até eleger o tal mito. Em 2019, o ídolo de sobrenome Messias começou fazendo estragos. Como muita gente não diferencia mitar de esperançar, continuou mitando contra toda evidência, como se cumprisse à risca Rm 4, 18, cuja tradução não faz jus ao gesto de Abraão: “Ele esperou contra toda esperança”. Bem melhor seria “Ele esperançou contra toda desesperança”. Mas, mesmo com toda desgraceira que se abateu sobre o país, ainda não foi o bastante.

Em 2020, o verbo mitar começou a cair no descrédito para alguns poucos. Primeiro foi a imprensa, por causa das ofensas a uma tal jornalista. Se não lhes pisa no calo, não sentem a dor do sapato apertado nos pés dos outros. Depois foi a vez da classe médica, por causa do descrédito da saúde e das irresponsabilidades do mito nesse campo. Pouco a pouco, alguns vão percebendo a bobagem que fizeram: a estátua que erigiram era mentira.

Bem parecida com a imagem do ídolo de Daniel (Dn 2, 31-47), nosso mito tem cabeça de ouro, peito e braços de prata, ventre e quadril de bronze, pernas de ferro, pés de barro. Possui cabeça de ouro, pois suas invectivas e seus pronunciamentos politicamente incorretos – sempre propalados convenientemente na mídia – reluzem como o precioso metal atraindo os incautos. Estes não sabem que nem tudo que reluz é ouro. Seu tronco é de prata, pois nele não se ouve as batidas do coração, mas o tilintar do metais. Seu quadril de bronze não lhe permite rebolar nas crises, pois sua engrenagem não é lubrificada. Suas pernas de ferro pisam e maltratam os pequenos como carro de guerra sobre as cidades deixando rastro de destruição. Mas como todo ídolo ou mito é pura ostentação, os pés de barro revelam sua fragilidade e comprometem sua estrutura de preciosos metais.

Bastou uma pedrinha rolar do alto da montanha, diz o profeta Daniel, e bater nos pés de barro, para a estátua se espatifar toda. A pedrinha foi rolada do alto, o que significa a ação divina, sempre a nos socorrer. No entender do autor, Deus não tolera tanta arrogância e age em favor dos oprimidos. Era uma pedra pequena. Não era uma bomba, nem um míssil, nem um exército de inimigos aramados até os dentes, nem uma montanha que veio abaixo por um terremoto. Uma pedrinha. Só isso. Nada mais.

Estou longe de crer que o coronavírus e a pandemia da Covid-19 sejam ação divina. Meus diplomas de teóloga teriam que ser jogados no lixo se eu fizesse essa afirmação. Deus não tem nada a ver com isso. Nem mandou o vírus; nem permitiu que o demônio ou os chineses – coitados! – o espalhassem pelo mundo (faz-me rir a teoria que culpabiliza os chineses). Muito menos Deus está usando essa pandemia para nos converter ou para revelar sua glória, pois ele não é um Deus cruel que castiga uns para correção dos outros ou que humilha a humanidade para se projetar e mostrar seu poder. Deus é bom, sempre; só sabe ser bom, dele só vem coisa boa (Tg 1, 13), pois é amor (1 Jo 4 ,8). Mas como, para quem crê, o olhar da fé é lançado sobre todos os fatos, não faz mal teologizar e comparar o vírus à pedrinha. Invisível, que não se destrói com navios ou aviões de guerra, o corona mostra que muitos acreditaram no mito. Quando vemos as possíveis consequências da pandemia no Brasil, com o SUS sucateado, a ciência parada e as relações de trabalho totalmente fragilizadas, dá para imaginar o estrago que o vírus pode fazer.

Fazer arminha com a mão não vai parar a epidemia. É preciso bem mais do que isso. É preciso investimento em saúde, para se ter leitos de hospital para todos na hora do imprevisto. É preciso investir em ciência, para se ter vacina e remédio para combater os inimigos da saúde. É preciso ter relações de trabalho estáveis para não se sentir ameaçado pela crise financeira. Torcemos e rezamos para estarmos errados em nossas previsões acerca do desastre que a pandemia de Covid-19 promete causar no Brasil, mas – em meio a tanta desgraça – que essa pedrinha nos sirva de lição.

De novo Jeremias: “o fabricante de imagens fica decepcionado com o ídolo, porque sua estátua é mentira; vida ela não tem”. Fabricamos um mito, aliás nós não. Eles fabricaram… Quem? As grandes potências: indústria armamentista, agropecuaristas, donos de mega-igrejas, mineradoras, grandes empresários e a grande mídia. Fizeram o povo esperançar como verbo transitivo indireto. Nossa gente esperou que a estátua pudesse fazer milagre: o milagre de não ter que lutar contra as injustiças sociais, de não ter que repartir os bens, de não ter que brigar pelos direitos de todos, de não ter que fazer uns perderem privilégios para o bem das minorias oprimidas. Com medo do bicho papão do comunismo, elegeram uma estátua de pés de barro. E chamaram-na de messias, pois até o nome favorecia. O teatro fora muito bem pensado, para enganar os mais ingênuos.

Que os pés eram de barro, a gente já sabia, mas muitos não conseguiram ver. Marielle Franco, a pedrinha negra da favela do Rio de Janeiro, já havia rolado sobre o mito e quase conseguiu mostrar para todos as fraquezas dele e de sua familícia. Mas antes que lhe acertasse o calcanhar, os poderosos esmagaram-na sob os pés. Ainda depois de morta, ela lhes amedronta e atormenta suas noites com pesadelos. Estou esperançando como Jean Willis, a pedrinha gay da Bahia, de que, mesmo assassinada, Marielle ainda o derrube. Não custa esperançar. Se nem ela nem o corona conseguirem, resta pensar como cantou Gonzaguinha: “Esse tempo vai passar. Não se desespere não, nem pare de sonhar”. Uma hora uma pedrinha acerta os pés do mito.

(Os grifos são nossos)

Sobre a autora;

Solange do Carmo

Solange Maria do Carmo é teóloga-leiga, mestre em teologia bíblica e doutora em teologia catequética. Sua trajetória pastoral tem início nos anos 80, quando engajou-se em movimentos de juventude e, logo em seguida, descobriu a força da Palavra de Deus com grupos de reflexão bíblica na Universidade Federal de Viçosa, onde cursou engenharia agrícola. Durante dezesseis anos, ela serviu a Igreja como missionária leiga, engajada numa comunidade de vida que prestava serviços de evangelização e catequese nas dioceses onde morou (Mariana – 10 anos – e Paracatu – 6 anos). Sua trajetória catequética remonta o ano de 1991, quando juntamente com o Pe. Orione (diocese de Mariana), empreendeu um projeto de evangelização na cidade de Viçosa, na Paróquia Santa Rita de Cássia, onde residiam. Nasceu desta parceria um sonho de evangelizar crianças e adultos, proporcionando a todos a experiência cristã de Deus, por meio de encontros catequéticos semanais dos mais diversos tipos.

Fonte:

www.fiquefirme.com.br

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Fraternidade gratuita https://observatoriodaevangelizacao.com/fraternidade-gratuita/ Wed, 01 Apr 2020 02:17:35 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=34480 [Leia mais...]]]> “De graça recebestes, de graça deveis dar” (Mt 10,8)

“Hoje eu não saio não
Hoje eu vou ficar em casa, meu bem
Hoje eu não saio não
Eu quero ver televisão
Hoje eu não saio não
Não troco meu sofá por nada, meu bem”
(Arnaldo Antunes e Marcelo Geneci)

Se tem uma coisa que me irrita é gente prestando desserviço à comunidade humana em nome da fé. Se isso é intolerável para qualquer pessoa de bom senso, quanto mais para nós teólogos, cuja função e profissão é pensar a fé, dar suas razões, fazer brilhar sua luz.

Nestes tempos de pandemia do Covid-19, desserviços à humanidade pululam por toda parte. Desde o tal mito que governa o país até o mais simples operário, todos podem contribuir para a salvação de muitas vidas com suas grandes decisões ou com suas pequenas atitudes. Do tal presidente, a gente não pode esperar muita coisa. Já vimos que ele não tem nem bom senso nem bom caráter. A pandemia lhe convém para fazer o genocídio dos pobres, velhos, doentes, população de rua e presidiários, pois esses dão muita despesa ao Estado. Além do mais, a crise do coronavírus cai como uma luva para esconder sua incompetência de governar, e também de seu braço direito, o ministro das finanças, que não consegue fazer um plano econômico que gere renda, empregos etc. O país caminhava para o caos desde janeiro de 2019, quando o tal subiu a rampa do planalto e agora está em queda livre, pois o vírus veio mostrar as verdadeiras intenções do verme presidencial.

Não tendo como contar com o Estado, “salve-se quem puder” é a ordem do dia. Assim, prefeitos, governadores e outros líderes vão se unindo sem esperar que a presidência da república – a quem caberia a tarefa de tomar as rédeas da crise – lhes indique um caminho plausível. Ninguém está a salvo, exceto os ricaços que podem construir uma UTI em suas mansões e contratar médicos particulares e outros profissionais de saúde para o atendimento domiciliar. Para o povo que depende do serviço público ou até mesmo dos planos de saúde, resta o caos. Sabe-se muito bem que, se não nos submetermos ao isolamento social, daqui a poucos dias não haverá leitos vagos nos hospitais, doentes estarão abandonados em macas, esquecidos nos corredores, sem respiradores, morrendo solitários sem alguém da família para lhes segurar a mão.

Nessa situação de total anarquia, só a solidariedade pode nos abrir uma brecha e, se não nos salvar da morte biológica e da falência econômica, pelo menos nos salvará do vexame do egoísmo e da insensatez. É tempo de solidariedade, apesar de todo dia ser ocasião para fazer o bem. Mas, nesse tempo chamado hoje, a solidariedade se tornou, mais do que nunca, nossa única arma contra o vírus e contra os vermes.

Tenho uma amiga querida, piauiense, pobre e sofredora, que é teóloga assim como eu. Já nos socorremos em muitas situações difíceis, cuidando uma da outra, pondo o pão partido uma na boca da outra. Certa vez, quando lhe entreguei uma sacolinha com uma maçã e um pedaço de broa, pois ela ia para o terceiro turno de trabalho (dois deles comigo, no seminário de Mariana – MG), ela me agradeceu e disse: “Grata, amiga. Um sofredor logo identifica o outro”. Guardei para mim essa frase e a tenho repetido exaustivamente para não me esquecer de seu sentido mais profundo. A vida nos separou; ela foi para Fortaleza cuidar de sua comunidade e derramar seu sangue e suor na lida pastoral e teológica no Nordeste. Eu fiquei por aqui em BH, na mesma peleja. Sangue, suor e lágrimas têm sido o alimento da gente, pois esse é o pão dos sofredores. Apesar da distância, nutrimos a esperança e a solidariedade sem desanimar.

Do mesmo modo, tenho feito a experiência da fraternidade com outros e outras que cruzam meu caminho e o tornam menos fútil, menos insignificante, menos caótico. Sou grata a Deus por eles e não me canso de repetir a frase de Jesus: “De graça recebestes, de graça dai. ” (Mt 10, 8) ou, como afirmou Paulo: “há mais alegria em dar que em receber” (At 20, 35). Como acredito piamente nessa máxima que Lucas, autor do livro dos Atos dos Apóstolos, colocou na boca do apóstolo Paulo, sigo insistindo que a fraternidade é o caminho da alegria e nossa única esperança.

Horroriza-me, por isso, a atitude dessa gente egoísta e sem coração que só pensa nas suas ações na bolsa. As ações caindo fazem essa gente tremer, enquanto que a ameaça de morte de milhões de brasileiros não lhes diz respeito. É o caso do empresário R.J., aquele panaca que se diz apresentador do SBT, rede de TV tão panaca quanto ele, governada por um estelionatário que sempre saqueou o povo até ficar milionário e que dá apoio incondicional ao presidente B. Além do empresário-apresentador, ainda há outros. O dono daquela rede de sanduíches que tem nome parente de árvore e que anda afirmando por aí que todos devem voltar ao convívio social. Ah, tem também o dono daquela rede que tem uma estátua da liberdade, mas que coage seus funcionários e os força a votar em candidatos que apoiam os patrões em detrimento da vida dos subalternizados. E são muitos. O rol é interminável.

Essa gente não tem coração. No peito, existe um cofre; nas veias, corre puro interesse econômico e, no cérebro, em vez de sinapses neurais acontecem relações comerciais. A cifra é seu deus; na bíblia, Mamon, o deus dinheiro tão condenado por Lucas. Que eles sejam assim, a gente entende, apesar de jamais concordar, é claro. É compreensível, pois defendem seus próprios interesses. Agora, que pobres coitados, subalternizados e explorados, defendam as ideias dessa gente, isso é coisa repugnante.

Recebi hoje cedo um pedido de socorro de uma amiga do interior. Queria saber o que responder a uma mensagem de WhatsApp que defendia o fim do isolamento social. A argumentação é grotesca, mas confunde os menos periciados na teologia; “se o motoboy não pode fazer isolamento, se os profissionais de saúde não podem fazer isolamento, se os funcionários de supermercados, serviços de água e esgoto, energia elétrica etc., não podem fazer confinamento, é egoísmo alguns ficarem no confinamento”. Segundo eles, devemos todos nós voltar à vida social corriqueira para sermos solidários com os operários que estão na frente de batalha do coronavírus, expostos aí nas ruas, nos supermercados, nos hospitais, nas empresas. Dá tristeza ler isso. E pior, dá tristeza maior pensar que muitos acreditam e caem nessa falácia.

Para nós cristãos, a solidariedade é – ou deveria ser – um valor máximo. Então, ao ouvir tal argumentação, os cristãos de boa vontade têm aquela tendência heroica de romper o isolamento e achar que todos devem voltar ao trabalho em solidariedade aos que não podem se isolar.

Vamos por parte. Primeiro ponto. Nós não nos isolamos por nós mesmos, mas por causa dos mais fracos. As crianças não vão às escolas para justamente proteger os velhos; os sãos não vão à rua para proteger os doentes; os livres não vão aos presídios para proteger os presos; os que têm casa não saem de suas moradas para proteger os sem tetos, e nenhum de nós sai do confinamento exatamente para proteger quem não pode se confinar. Será tão difícil assim entender isso? Se eu vou para a rua, não arrisco a minha vida mas a de milhões de fragilizados. Eu, por exemplo, tenho dentro de minha casa uma irmã com doença degenerativa, autoimune, cuja saúde é mais frágil que um ovo de beija-flor. Estou confinada em casa, não por conveniência, mas por amor. Sou forte, saudável, faço exercício físico diariamente, só não chego a ser uma atleta como o presidente B., mas não ponho os pés na rua a não ser para o absolutamente necessário. Assim também as três pessoas que me ajudam nos cuidados com ela. Nessa hora de pandemia, a vida de uns está ainda mais do que nunca implicada na vida dos outros. Isso se chama solidariedade voluntária. Quem não assistiu o filme O Poço, disponível na Netflix, deve assistir. É um soco no estômago, mas é uma metáfora muito acertada sobre a sociedade neoliberal. Vale a pena.

Segundo ponto. Que falsa piedade cristã é essa que nos leva a uma solidariedade assassina? Como posso proteger o motoboy saudável e condenar os velhinhos do asilo ao cemitério? Se o coronavírus entra num asilo de idosos e os leitos de UTI não têm vaga para todos, será uma carnificina. Veremos se repetir a cena da Itália: caminhões e mais caminhões levando seus mortos, sem a família ter sequer o direito a um velório para deles se despedir. O mesmo seja dito sobre os presídios onde falta até ar para respirar quanto mais água, álcool gel, sabonete etc. Vale também a regra para os puteiros imundos, cheios de prostitutas que não têm outro lugar para se esconder. E o que dizer dos moradores de rua? E dos aglomerados, das favelas, dos cortiços, das comunidades de moradores nas palafitas à beira dos rios do Norte do país?

Realmente, é desolador ver que a solidariedade cristã é manipulada desse jeito e que os cristãos resolveram ser ingênuos como as pombas, mas se esqueceram de ser espertos como as serpentes (Mt 10,16). Nas palavras do evangelista Lucas, deixam que os filhos das trevas se tornem mais espertos que os filhos da luz (Lc 16,8).  O dono da hamburgueria e o empresário da televisão, assim como tantos outros que vivem da exploração do pobre e só pensam nos seus investimentos na bolsa, conseguem convencer os pobres coitados das comunidades cristãs que sair do confinamento é atitude de amor ao próximo. Do mesmo modo, o dono da empresa de evangelização, cuja igreja tem universal no nome, convence seus fiéis que continuar indo ao culto para entregar suas ofertas é atitude de fé. Não pode ser verdade que os cristãos sejam tão patéticos assim. Não foi isso que Jesus nos ensinou, nem é isso que uma boa teologia ensina. Só para esclarecer: no momento, caridade cristã é ficar no confinamento, e crer é saber que todos podem se contaminar e transmitir o vírus. O resto é manipulação da boa fé do povo. É o tamanduá convidando as formigas para uma festa.

Para terminar, permitam-me um terceiro ponto. Se você é cristão e lê a bíblia, deve conhecer o texto do confinamento de Jesus no deserto por quarenta dias. Simbolismo à parte, pois não dá tempo de explicar, Mateus e Lucas relatam a quarentena voluntária de Jesus em solidariedade a humanidade. Após o batismo, fora levado pelo Espírito para o deserto e lá foi tentado (Lc 4, 1-13; Mt 4, 1-11). O diabo, porém, tentou demovê-lo de seu propósito, usando três tentações: transformar a pedra em pão, saltar do alto do monte e adorar o tentador. As duas primeiras investidas começam com o capcioso “se és filho de Deus”. Se és filho de Deus transforma pedra em pão (Lc 4,3). Se és filho de Deus salta do alto do monte, pois os anjos vão te carregar no colo como está escrito no Sl 91 (Lc 4, 5-6). Na terceira, ele propõe uma barganha: ajoelha e me adora, e te darei os reinos deste mundo. Apesar de a ordem das tentações serem diferente em Mateus e Lucas, elas são praticamente idênticas. Jesus resistiu a todas elas. Foi provado no confinamento do deserto e foi aprovado. Todos sentem fome, pensou Jesus: por que eu não? Todos gostariam de ter Deus a seu serviço, de viver dos privilégios divinos, de ser mais protegido por ele que os outros: por que eu não? Todos gostariam de ter os reinos a seus pés, de serem superiores, de terem domínio e poder, especialmente o poder que o deus Mamon dá. Por que eu não? Então Jesus resistiu bravamente, porque, sendo homem, não havia outra forma de viver a não ser a vida humana. Mas preferiu-a viver na fidelidade ao projeto do Pai, o Deus da vida. Permaneceu firme até que satanás desistiu. Para Lucas, o tentador vai voltar lá no fim da vida do Mestre de Nazaré na hora da paixão. Mateus achou que já era o bastante. Sou mais para pensar como Lucas. Vencida uma tentação, sempre o diabo acha jeito de tentar de novo; é questão de tempo.

A cada cristão e a cada pessoa que acredita na solidariedade, em nome da fé cristã, advertimos: O Espírito nos conduziu ao confinamento para salvar muitas vidas. Os adoradores do diabo querem nos tentar a voltar a encher as ruas. Resistamos, pois o cuidado com a vida precede à preocupação com a economia. E cantemos alegres para espantar o tentador: 

Hoje eu não saio não; hoje eu vou ficar em casa… Lá no boteco, não; Telecoteco; No trio elétrico, não; Teatro, não; Não vou no esquema não; Nem no cinema, não; Em Ipanema, não; No circo, não. Hoje eu não saio não; Hoje eu vou ficar em casa, neném… Na padaria, não; Na academia, não; Periferia, não; No centro, não; No casamento, não; No lançamento, não; No movimento, não; Na praia, não”.

Lugar de gente consciente que ama a vida e dela cuida, por enquanto, é dentro de casa.

(Os grifos são nossos.)

Sobre a autora

Solange do Carmo

Solange Maria do Carmo é teóloga-leiga, mestre em teologia bíblica e doutora em teologia catequética. Sua trajetória pastoral tem início nos anos 80, quando engajou-se em movimentos de juventude e, logo em seguida, descobriu a força da Palavra de Deus com grupos de reflexão bíblica na Universidade Federal de Viçosa, onde cursou engenharia agrícola. Durante dezesseis anos, ela serviu a Igreja como missionária leiga, engajada numa comunidade de vida que prestava serviços de evangelização e catequese nas dioceses onde morou (Mariana – 10 anos – e Paracatu – 6 anos). Sua trajetória catequética remonta o ano de 1991, quando juntamente com o Pe. Orione (diocese de Mariana), empreendeu um projeto de evangelização na cidade de Viçosa, na Paróquia Santa Rita de Cássia, onde residiam. Nasceu desta parceria um sonho de evangelizar crianças e adultos, proporcionando a todos a experiência cristã de Deus, por meio de encontros catequéticos semanais dos mais diversos tipos.

Fonte:

www.fiquefirme.com.br

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Os efeitos da negação https://observatoriodaevangelizacao.com/os-efeitos-da-negacao/ Fri, 27 Mar 2020 03:28:07 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=34438 [Leia mais...]]]> “Se fôsseis cegos, não teríeis culpa;
mas como dizeis ‘Nós vemos’, o vosso pecado permanece” (Jo 9,41)

E nessa loucura de dizer que não te quero,
Vou negando as aparências,
Disfarçando as evidências.
Mas pra que viver fingindo,
Se eu não posso enganar meu coração?”
(Chitãozinho e Xororó)

A crise civilizacional que passamos é assustadora. O coronavírus colocou a humanidade em xeque. Já fazia tempo que minha sobrinha bióloga vinha me dizendo que a humanidade é um projeto que não deu certo. Pareceu-me pessimismo. Bom, devo concordar pelo menos no que diz respeito ao modelo social vigente: alguns poucos se armando até os dentes contra uma multidão de explorados e esquecidos da história, uma pequena parcela usufruindo dos resultados do progresso em detrimento da fome e do desprezo de bilhões, o consumismo desesperado esgotando o Planeta e seus recursos sem pensar no amanhã, o sistema financeiro sendo idolatrado e colocado acima da vida. Fica difícil acreditar no humano nesse cenário.

A Covid-19, porém, veio piorar a cena. Ameaçou pobres e ricos diante dos mesmos riscos da contaminação, apesar – é claro – e ainda deixar os abastados em situação de total privilégio graças a seus recursos. Pôs o mundo em quarentena, obrigando-nos ao confinamento de nossas casas. Provocou a redução do ritmo frenético de pessoas nas ruas e nos shoppings. Fechou as escolas, os comércios… Fez desmarcar congressos, reuniões, viagens… Lotou os hospitais, necrotérios e crematórios. Fez chorar o mundo. E só quem é muito louco ou muito perverso nega a realidade cruel que vivemos. É próprio dos psicopatas viverem em mundo alheio. E cabe aos perversos negarem a crise, especialmente quando ela lhes cobra responsabilidade e ações de solidariedade e cuidado com a vida. É mais fácil negar que agir.

A estratégia da negação não é coisa nova. Acontece sempre quando a gente recebe uma notícia ruim. Quem nunca se disse diante da notícia da morte súbita de um amado: “É mentira. Isso não está acontecendo”? Ou quem nunca passou pelo processo de negação de uma doença que o tenha acometido ou a um de seus familiares? Faz parte da vida negar. Negamos porque a realidade é tão avassaladora, que é melhor viver num mundo à parte, cheio de bolinhas multicores e borboletas azuis. Mas toda negação tem um fim; só não o tem em casos especiais, como acontece com a perversão e a psicopatia mental que fazem da negação um estágio constante.

Quando a negação se dá no âmbito pessoal, ela tem consequências funestas, mas é menos perigosa pois coloca em risco apenas o negador. Quando, porém, a negação se dá no campo social, sofre toda a sociedade. Por isso ela é criminosa e precisa ser contida.

Para os que são mentalmente incapazes de aceitar a realidade, a solução é o tratamento psiquiátrico. Quando não há retorno favorável, os que ainda tem sanidade aprendem a conviver com esse distúrbio e não dão mais importância ao que é dito pelo doente. Relevam, relativizam, fingem que não escutam, entram na deles para simplesmente amar e acolher ou ajudar-lhes a dar asas à imaginação por meio da arte, sempre tão terapêutica. Os “loucos” são quase sempre inofensivos. Quando fazem o mal, fazem-no normalmente mais a si mesmos que aos outros. É o caso de uma negação pessoal reiterada: uma mãe que perde a sanidade quando perde um filho; uma pessoa multimaltratada que se desliga do mundo real e vive num mundo só dela. É só lembrar de Arthur Bispo do Rosário confinado num hospício, capaz de tanta arte e sensibilidade.

Para os que são moralmente incapazes de aceitar a realidade, os perversos, a solução é bem outra, pois não se trata de um dispositivo mental, mas de uma incapacidade de amar e de ter empatia com os outros. Nesse caso, ignorar, relativizar e fingir não ver é tão criminoso quando fazer a negação social. Os perversos normalmente não fazem negações pessoais. Insistem em negações sociais que são capazes de matar, destruir e eliminar especialmente os pequenos. É uma cegueira da alma, ou do coração. São incapazes de ver a realidade porque a maldade lhes arrancou os olhos da solidariedade. Desumanizaram-se; coisificaram seus corações, passaram a ter a mente entorpecida por seus devaneios de grandeza, ganância e por interesses próprios. De tanto uma pessoa só olhar para si mesma, não vê nada mais além de espelho. É triste!

Na história humana, já tivemos casos de negações sociais catastróficas. Algumas com consequências seríssimas. Foi o caso da peste negra na Europa. As Igrejas se negaram a fechar as portas, pois os pastores negavam a realidade da peste, sua ameaça real. Insistiam que Deus traria a solução para a doença. Como escreveu Fernanda Torres em artigo recente na Folha da UOL, “foi necessário o alarmante milagre da multiplicação de óbitos para que a Igreja suspendesse missas, procissões e aglomerações de fiéis”.

É duro ver o que está acontecendo; manter a sanidade mental é exercício diário tão duro como o combate ao vírus. Mas é preciso continuar lendo, se informando, vendo vídeos instrutivos e terapêuticos… Toda ajuda é bem-vinda. Em meio tanta informação veiculada nas redes, não faltam, porém, verdadeiros absurdos. Não nos escapam algumas pérolas de crueldade, como é o caso do pronunciamento do presidente da república ontem em rede nacional transmitido (24/03/2020), do vídeo gravado por OdC, guru do desgovernante brasileiro (23/03/2020); da declaração do deputado JM, do Podemos, feita nas redes sociais sobre a chegada dos médicos cubanos na Itália (22/03/2020) e da decisão de Edir Macedo de manter seus templos lotados (com liminar judicial – 19/03/2020).

O primeiro, o mito de sobrenome Messias, teve o descaramento de fazer pronunciamento em rede nacional, minimizando os efeitos do coronavírus. Afirmou mais uma vez que se trata de uma gripinha, culpou a mídia de fazer alarde e de deixar a população histérica, ridicularizou o confinamento social e se mostrou contra o fechamento de escolas e outras instituições. Sobre esse ser desprezível, há pouco o que falar a não ser que a pandemia lhe convém: tem um bode expiatório para a crise no país e ainda encontrou uma arma letal para eliminar os fracos sem precisar fazer a matança dos pobres com suas próprias mãos. O verme presidencial transfere ao vírus a função de realizar o seu sonho: a higienização do país. A União diminuirá muitos gastos com a morte de velhos, de doentes, de presidiários, de moradores de rua, de favelados e de todo ser humano que ele despreza. Para ele, isso seria uma maravilha. Sem mover um dedo sequer o limpa estará feito. Basta deixar o vírus se alastrar. E, ao final, bingo: um álibi perfeito para o fracasso da economia. A culpa é do coronavírus.

O segundo, o pretenso filósofo, nega a letalidade da Covid-19. Afirma não haver uma única morte comprovadamente causada pela doença. Para ele, são casos de gripe, coisa comum e corriqueira, que todo ano acontece. Trata-se de uma manipulação das informações com interesses escusos, é claro, enxergados somente por ele, o vidente do século XXI e o maior sábio do mundo. Sua teoria da conspiração se tornou tão verdadeira aos seus olhos, que não consegue ver as imagens de caixões enfileirados ou dos caminhões do exército transportando cadáveres ou dos hospitais lotados com doentes para todos os lados.

O terceiro, o tal deputado apoiador de B., nega a eficácia da medicina cubana e a generosidade do povo da Ilha. Seu idealismo político raspou seus neurônios e paralisou seus sentimentos. Em plena crise de dimensões planetárias, fez postagens racistas comparando o avião que trazia os médicos com os navios que transportavam escravos: “faz lembrar a chegada dos navios negreiros”, disse ele.

O quarto, insiste no mesmo erro da época da peste. Igrejas cheias e fiéis entregando dízimos por medo da Covid-19 e por coação dos líderes. O tal pastor afirma que Deus protege quem crê e que nada de mal acontecerá aos seus eleitos. Faz leitura fundamentalista da bíblia e convence os desavisados de que falta de bom senso é fé. Não sei se é mais insano quem vai às igrejas, o pastor dessas igrejas, o juiz que assentiu a tal decisão. Irresponsabilidades múltiplas provocadas pela negação das evidências.

Quando a ignorância, o obscurantismo, o preconceito e o fundamentalismo são maiores que a empatia, chegamos a um grau de perversidade que não é possível tolerar. Ou quando esses são maiores que os dados da ciência, esbarramos num grau de insanidade que não podem prosseguir socialmente. Suspeito que esses quatro personagens citados fazem-no por perversão, mas deixo-lhes o benefício da dúvida. Talvez o façam por loucura. Não sei se a incapacidade de ver a realidade é de fundo moral ou uma psicopatia grave. Suspeito da primeira. Só sei que nenhum deles pode continuar falando e escrevendo essas insanidades ou tomando decisões prejudiciais para a humanidade. Precisam ser detidos pela justiça. São um perigo público. Se for perversão, pura maldade e desejo de lucro, devem ser punidos exemplarmente. Se for distúrbio mental, devem ser isolados da sociedade, não podem ocupar cargos públicos, nem religiosos, nem podem ser influenciadores digitais. É desanimador ver essa gente solta ou sem punição por aí. Precisamos fazer coro com os sertanejos e cantar: Chega de mentiras, de negar as aparências, de esconder as evidências!

 Não falta, porém, quem numa tentativa hercúlea de otimismo veja um aprendizado positivo no final da batalha. Fico contente que seja assim. Que tenha mais gente com “fé na vida, fé no homem, fé no que virá”! Eu, confesso, ando bastante descrente da humanidade. Não fosse a fé cristã, essa que move montanhas de arrogâncias e preconceitos, já teria desistido do ser humano. Mas se até Deus olhou para sua obra e viu que era muito boa, por que não continuar procurando essa bondade? Como cantam os Titãs, “quando não houver saída, quando não houver mais solução. Ainda há de haver saída, nenhuma ideia vale uma vida” (Sérgio Britto).

(Os grifos são nossos)

Sobre a autora

Solange do Carmo

Solange Maria do Carmo é teóloga-leiga, mestre em teologia bíblica e doutora em teologia catequética. Sua trajetória pastoral tem início nos anos 80, quando engajou-se em movimentos de juventude e, logo em seguida, descobriu a força da Palavra de Deus com grupos de reflexão bíblica na Universidade Federal de Viçosa, onde cursou engenharia agrícola. Durante dezesseis anos, ela serviu a Igreja como missionária leiga, engajada numa comunidade de vida que prestava serviços de evangelização e catequese nas dioceses onde morou (Mariana – 10 anos – e Paracatu – 6 anos). Sua trajetória catequética remonta o ano de 1991, quando juntamente com o Pe. Orione (diocese de Mariana), empreendeu um projeto de evangelização na cidade de Viçosa, na Paróquia Santa Rita de Cássia, onde residiam. Nasceu desta parceria um sonho de evangelizar crianças e adultos, proporcionando a todos a experiência cristã de Deus, por meio de encontros catequéticos semanais dos mais diversos tipos.

Fonte:

www.fiquefirme.com.br

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