Racismo – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com Thu, 17 Feb 2022 23:57:11 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.4 https://i0.wp.com/observatoriodaevangelizacao.com/wp-content/uploads/2024/04/cropped-logo.png?fit=32%2C32&ssl=1 Racismo – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com 32 32 232225030 Memória de dois centenários: 1822; 1922 https://observatoriodaevangelizacao.com/memoria-de-dois-centenarios-1822-1922/ Thu, 17 Feb 2022 23:57:11 +0000 https://atomic-temporary-74025290.wpcomstaging.com/?p=43647 [Leia mais...]]]>

Neste artigo do jesuíta Geraldo de Mori, a Encarnação do Verbo é o paradigma para repensar as estruturas de um Brasil ainda perpassado pelas chagas do racismo e da desigualdade. Pensar o Cristo Salvador, que se faz carne e assume a condição humana em sua complexidade, deve nos mover à uma verdadeira conversão que manifeste a Vida do Ressuscitado nos homens e mulheres que constroem essa pátria. Leia abaixo, o texto completo:

Duas importantes datas comemorativas serão recordadas em 2022: o bicentenário da independência do Brasil, em 7 de setembro; o centenário da Semana de Arte Moderna, entre 11-18 de fevereiro. A primeira data recorda o que se convencionou chamar de “Dia da Pátria”, pois faz memória do “Grito do Ipiranga”, que marca o “evento fundador” da autonomia política do país. A segunda faz memória de um evento artístico, visto por muitos de seus intérpretes como fundamental para pensar a identidade nacional. De qualquer forma, muito se ouvirá falar dessas duas comemorações, que serão revisitadas por intelectuais de todas as áreas do saber, incluindo os/as da teologia.

Muitos poderiam se perguntar, que sentido pode ter para quem se diz discípulo e discípula de Jesus Cristo comemorar uma data de caráter nacionalista ou uma data que despertou uma série de releituras sobre o Brasil e a brasilidade? A fé cristã, enquanto oferta universal de salvação, não ultrapassa nacionalismos e identitarismos, perguntando-se sobre questões que dizem respeito ao sentido radical da existência de todos e não a aspectos que caracterizam a particularidade de cada povo ou nação? Que interesse pode ter para quem é cristão/ã no Brasil voltar-se para essas comemorações?

Provavelmente uma das afirmações teológicas mais densas do Novo Testamento é a do versículo 14 do primeiro capítulo do Evangelho de João que diz: “E o Logos se fez sarx e habitou entre nós”. A palavra “Logos”, traduzida em geral por “Verbo” ou “Palavra” e o termo “sarx”, traduzido por “carne”, evocam a solução cristã do paradoxo que perpassa a maior parte das culturas e religiões: como é possível que o divino, o imutável, o infinito, se torne humano, mutável, finito? O que é o caminho da maioria das religiões, a saber, elevar o ser humano ao que é tido como divino, perene e eterno, é completamente transformado pela afirmação do Prólogo joanino: o divino desce, assume aquilo que parece incompatível com ele, a carne, em sua debilidade e mortalidade. O caminho todo de Jesus, do Deus que ele anunciou, do reinado do qual se fez arauto e servidor, da morte ignominiosa que sofreu, do anúncio de que ressuscitou, que é o Cristo, o Senhor e o Filho de Deus, está contido nessa declaração de Jo 1,14. Dela derivou o que é conhecido como dogma da encarnação, para o qual, nada do que é humano é estranho a Deus, de que tudo é chamado a ser transfigurado Nele.

O que é o caminho da maioria das religiões, a saber, elevar o ser humano ao que é tido como divino, perene e eterno, é completamente transformado pela afirmação do Prólogo joanino: o divino desce, assume aquilo que parece incompatível com ele, a carne, em sua debilidade e mortalidade.

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Esse caminho de transfiguração da “carne” não significa que ela seja abolida, ou que o que lhe é próprio perdeu sua densidade. Pelo contrário, todo o percurso da soteriologia (doutrina da salvação) cristã passa justamente pela carne, com tudo o que lhe é próprio, suas debilidades, contradições, ausências, pecado, buscas, realizações, sejam elas individuais ou grupais. Nesse sentido, desde o início, seja Jesus, sejam seus seguidores, pensaram a salvação ao redor da categoria “reino ou reinado de Deus”, do qual a Igreja é servidora, sinal antecipatório. Ou seja, existe uma dimensão pessoal da salvação e da fé, pois cada um/a é chamado/a pelo nome a tornar-se discípulo/a, mas esse discipulado se dá numa comunidade de fé, que ganha os traços de cada época e lugar em que o anúncio da boa nova do reinado de Deus se faz presente. Apesar de universal, a fé sempre se traduz em cada pessoa que crê e no “nós” eclesial no qual se insere. Esse “nós” é formado por muitos rostos, línguas, povos e nações, como tão bem aparece no texto do dia de pentecostes narrado nos At 2. Em cada lugar e época esse nós é instado a testemunhar o paradoxo do “Verbo que se faz carne e habita entre nós”.

No caso dos possíveis significados teológicos das comemorações que marcarão o ano de 2022 no Brasil, à luz da teologia da encarnação, brevemente recordada acima, dois episódios recentes da violência pela qual passa o Brasil, o do assassinato do jovem congolês Moïse Mugenvi Kabagambe, no dia 24/01/2022, e o de Durval Teófilo Filho, no dia 02/02/2022, deveriam sacudir a consciência cristã do país, pois, apesar de terem participado ativamente na formação social, cultural religiosa e econômica do país, muitos homens e mulheres negros ainda têm seus direitos elementares negados. O racismo, que não vê no outro um igual, digno do mesmo respeito e dignidade, mas como alguém que é “menos”, continua sendo o “espinho na carne” de nosso país, que só poderá ser retirado e curado quando, de fato, quem se diz cristão/ã se deixar converter por Aquele que se fez o Bom Samaritano da humanidade, chamando todos e todas a se tornarem o “próximo” de quem jaz à beira do caminho. Oxalá, ao longo do ano, em que muito se refletirá sobre o “que faz o brasil, Brasil”, a fé cristã possa ir além de afirmações meramente ideológicas e ocas, tornando-se fé viva, que cria “novos céus e nova terra”.

 

 

pe. Geraldo De Mori, SJ
É professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE (Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia)




Fonte:https://faculdadejesuita.edu.br/fajeonline/palavra-presenca/memoria-de-dois-centenarios-1822-1922/

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O ser cristão e a consciência negra https://observatoriodaevangelizacao.com/o-ser-cristao-e-a-consciencia-negra/ Mon, 20 Nov 2017 19:29:03 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=26939 [Leia mais...]]]> Como pode um cristão se posicionar coerentemente no mundo sem conhecer a própria realidade? Porque “ser cristão”, ou seja, realmente buscar pautar a própria vida pela vida do Mestre de Nazaré, supõe buscar agir com os mesmos valores que nortearam a ação de Jesus. E Ele foi extremamente crítico diante das estruturas de seu tempo e viveu e foi assassinado por denunciá-las e tentar modificá-las.

Neste 20 de novembro, vale a pena nos debruçarmos sobre as estatísticas que espelham algo da nossa sociedade enferma, com graves sinais psicóticos.

Seis estatísticas que mostram o abismo racial no Brasil

No Brasil, a população negra é mais atingida pela violência, desemprego e falta de representatividade.

Tory Oliveira*

 

A população negra é a mais afetada pela desigualdade e pela violência no Brasil. É o que alerta a Organização das Nações Unidas (ONU). No mercado de trabalho, pretos e pardos enfrentam mais dificuldades na progressão da carreira, na igualdade salarial e são mais vulneráveis ao assédio moral, afirma o Ministério Público do Trabalho.

De acordo com o Atlas da Violência 2017, a população negra também corresponde a maioria (78,9%) dos 10% dos indivíduos com mais chances de serem vítimas de homicídios.

Ao ser confrontado com as estatísticas, o racismo brasileiro, sustentado em três séculos de escravidão e muitas vezes minimizados pela branquitude nativa, revela-se sem meias palavras.

“Esse é um país que convive com uma desigualdade estrutural, especialmente em relação à questão racial”, afirma Kátia Maia, diretora executiva da Oxfam, em entrevista à CartaCapital. 

Oded Grajew, presidente do conselho deliberativo da organização, diz que o preconceito social no País passa também pelo racismo. “Só não concorda quem não acompanha o dia a dia da vida brasileira. Um negro que dirige um carro médio, por exemplo, é parado diversas vezes pela polícia, ou quando vai a um restaurante, avisam a ele que a entrada de serviço é do outro lado. Para curar qualquer doença, é preciso reconhecer a doença”, afirma.

Segundo o IBGE, mais da metade da população brasileira (54%) é de pretos ou pardos, sendo que a cada dez pessoas, três são mulheres negras.

Igualdade salarial só em 2089

Apenas em 2089, daqui a pelo menos 72 anos, brancos e negros terão uma renda equivalente no Brasil. A projeção é da pesquisa “A distância que nos une – Um retrato das Desigualdades Brasileiras” da ONG britânica Oxfam, dedicada a combater a pobreza e promover a justiça social.

Em média, os brasileiros brancos ganhavam, em 2015, o dobro do que os negros: R$1589, ante R$898 mensais.

“Só alcançaremos uma equiparação salarial entre negros e brancos em 2089, 200 anos depois da abolição da escravidão no Brasil. Isso se a desigualdade continuar diminuindo no ritmo que está”, alerta a diretora-executiva da Oxfam.

A conta é feita com base em dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), considerando rendimentos como salários, benefícios sociais, aposentadoria, aluguel de imóveis e aplicações financeiras, entre outros.

Ainda segundo o relatório, 67% dos negros no Brasil estão incluídos na parcela dos que recebem até 1,5 salário mínimo (cerca de R$1400). Entre os brancos, o índice fica em 45%.

Feminicídio de mulheres negras aumentou, das brancas caiu

O feminicídio, isto é, o assassinato de mulheres por sua condição de gênero, também tem cor no Brasil: atinge principalmente as mulheres negras. Entre 2003 e 2013, o número de mulheres negras assassinadas cresceu 54%, ao passo que o índice de feminicídios de brancas caiu 10% no mesmo período de tempo. Os dados são do Mapa da Violência 2015, elaborado pela Faculdade Latino-Americana de Estudos Sociais. Uma evidência de que os avanços nas políticas de enfrentamento à violência de gênero não podem fechar os olhos para o componente racial.

As mulheres negras também são mais vitimadas pela violência doméstica: 58,68%, de acordo com informações do Ligue 180 – Central de Atendimento à Mulher, de 2015.

Elas também são mais atingidas pela violência obstétrica (65,4%) e pela mortalidade materna (53,6%), de acordo com dados do Ministério da Saúde e da Fiocruz.

Jovens e negros: as maiores vítimas da violência

Homens, jovens, negros e de baixa escolaridade são as principais vítimas de mortes violentas no País. A população negra corresponde a maioria (78,9%) dos 10% dos indivíduos com mais chances de serem vítimas de homicídios, de acordo com informações do Atlas da Violência 2017, elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e o pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Atualmente, de cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 71 são negras. De acordo com informações do Atlas, os negros possuem chances 23,5% maiores de serem assassinados em relação a brasileiros de outras raças, já descontado o efeito da idade, escolaridade, do sexo, estado civil e bairro de residência.

“Jovens e negros do sexo masculino continuam sendo assassinados todos os anos como se vivessem em situação de guerra”, compara o estudo.

Maioria dos presos

O Brasil abriga a quarta maior população prisional do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos, da China e da Rússia. Tratam-se de 622 mil brasileiros privados de liberdade, mais de 300 presos para cada 100 mil habitantes. Mais da metade (61,6%) são pretos e pardos, revela o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen).

Na contramão dos demais países, porém, a taxa de aprisionamento no Brasil não está diminuindo. Entre 2004 e 2014, o índice cresceu 67%. A taxa de superlotação por aqui também é maior: 147% no Brasil, ante 102% nos Estados Unidos e 82% na Rússia.

Baixa representatividade no cinema e na literatura

Só 10% dos livros brasileiros publicados entre 1965 e 2014 foram escritos por autores negros, afirma pesquisa da Universidade de Brasília (UnB) que também analisou os personagens retratados pela literatura nacional: 60% dos protagonistas são homens e 80% deles, brancos.

Já a pesquisa “A Cara do Cinema Nacional”, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, revelou que homens negros são só 2% dos diretores de filmes nacionais. Atrás das câmeras, não foi registrada nenhuma mulher negra. O fosso racial permanece entre os roteiristas: só 4% são negros.

O levantamento da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) considerou as produções brasileiras que alcançaram as maiores bilheterias entre 2002 e 2014. Dentre os filmes analisados, 31% tinham no elenco atores negros, quase sempre interpretando papeis associados à pobreza e criminalidade.

Crise e desemprego

A crise e a onda de desemprego também atingiu com mais força a população negra brasileira: eles são 63,7% dos desocupados, o que corresponde a 8,3 milhões de pessoas. Com isso, a taxa de desocupação de pretos e pardos ficou em 14,6% – entre os trabalhadores brancos, o índice é menor: 9,9%.

Os dados são da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), divulgada nesta sexta-feira 17 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Além disso, no terceiro trimestre de 2017 o rendimento médio de trabalhadores negros foi inferior ao dos brancos: 1,5 mil ante 2,7 mil reais.

*Colaboraram Rodrigo Martins e Miguel Martins

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