Prof. Carlos Vainer – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com Thu, 21 Nov 2019 20:18:46 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.4 https://i0.wp.com/observatoriodaevangelizacao.com/wp-content/uploads/2024/04/cropped-logo.png?fit=32%2C32&ssl=1 Prof. Carlos Vainer – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com 32 32 232225030 6 teses para a discussão da Economia de Francisco, com a palavra o prof. Carlos Vainer https://observatoriodaevangelizacao.com/6-teses-para-a-discussao-da-economia-de-francisco-com-a-palavra-o-prof-carlos-vainer/ Thu, 21 Nov 2019 20:18:46 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=33350 [Leia mais...]]]> “Em seu chamado, o Papa afirmou ser necessário buscar uma ‘economia diferente, que faz viver e não mata, inclui e não exclui, humaniza e não desumaniza, cuida da criação e não a depreda’… O desafio lançado pelo chamado do papa Francisco convoca não apenas a um aprofundamento dos diagnósticos, mas também, e sobretudo, à busca de alternativas que apontem para uma outra ordem econômica e social… Segundo Cândido Grzybovski, ‘É necessário e ainda possível criar alternativas à civilização produtivista, consumista, socialmente concentradora de riquezas e excludente, destruidora da natureza, movida pelas forças de mercado em busca de lucros e acumulação. A desigualdade e a injustiça social exacerbada pela globalização, bem como a ameaça da mudança climática, tornam imprescindível e urgente tal tarefa de transformação de modos de viver, saindo da armadilha do desenvolvimento como ideal de vida. E não será com barbárie, com mais patriarcalismo, com racismo, xenofobia, fundamentalismos ou fascismos, com violências e guerras que poderemos enfrentar isto tudo.’ Sim, outras economias e outros modos de vida são possíveis.”

Confira, a seguir, as seis teses propostas pelo autor. São elas: 1. À busca de alternativas ao modelo e não de um modelo alternativo; 2. Historicidade e a construção de sujeitos histórico; 3. A prática da crítica não substitui a crítica da prática; 4. Resistir e construir alternativas em múltiplas escalas – estratégias e alianças transescalares; 5. Contra o individualismo e o privatismo, preservar e reinventar a esfera pública e os comuns; 6. Educação e culturas para projetar novas alternativas.

Introdução

1. O presente texto busca reunir e sistematizar algumas reflexões e propostas para o processo de discussão deflagrado pelo chamado do papa Francisco – Economia de Francisco, lançado simbolicamente numa data cheia de significado – 1º de maio de 2019.

2. Em seu chamado, o Papa afirmou ser necessário buscar uma “economia diferente, que faz viver e não mata, inclui e não exclui, humaniza e não desumaniza, cuida da criação e não a depreda. E, relembrando a Carta Encíclica Laudato si, afirmou: 

tudo está intimamente conectado e a salvaguarda do ambiente não pode ser separada da justiça para com os pobres e da solução dos problemas estruturais da economia mundial. É necessário, portanto, corrigir os modelos de crescimento incapazes de garantir o respeito ao meio ambiente, o acolhimento da vida, o cuidado da família, a equidade social, a dignidade dos trabalhadores e os direitos das futuras gerações.

3. Trata-se de um ambicioso programa, tanto mais que assistimos, no Brasil, na América Latina e também nos países centrais – Estados Unidos e Europa – uma avassaladora ofensiva de correntes ideológicas e governos de extrema direita que atacam e destroem direitos sociais, econômicos, culturais e ambientais conquistados nos últimos 70 anos.

4. Os diagnósticos são conhecidos e assustadores:

  • as desigualdades e a concentração de riqueza avançam tanto entre os países quanto no interior de cada país;
  • populações originárias e tradicionais são expropriadas de seus territórios ancestrais num verdadeiro processo de etnocídio;
  • multiplicam-se os ataques aos direitos conquistados no último século pelos trabalhadores, centenas de milhões deles condenados ao desemprego e precarização;
  • partidos e governos xenófobos perseguem imigrantes, restringindo seu direito à livre circulação num mundo em que capitais e mercadorias são livremente deslocados;
  • O racismo, em suas múltiplas manifestações, mantém os afro-descendentes da diáspora em condições subalternas e, tão ou mais grave, alimenta um verdadeiro genocídio da juventude negra em muitas cidades das Américas;
  • Por toda parte, por trás dos discursos sobre “sustentabilidade”, territórios são submetidos a um insano e predatório extrativismo, esgotando a água e outros recursos ambientais, agravando a crise climática e destruindo as condições materiais de reprodução da vida.

5. O diagnóstico se completa com a identificação e nomeação dos responsáveis dessa verdadeira crise sistêmica:

  • as grandes corporações industriais e financeiras;
  • as elites internacionais e nacionais que promovem o consumismo e o produtivismo como fim único da vida, numa acumulação e centralização de capitais e riquezas jamais vistas. Estes são os beneficiários e os promotores de um sistema socialmente injusto, brutal, racista, machista, homofóbico, destruidor do meio ambiente;
  • Um pequeno e extremamente minoritário grupo concentra recursos econômicos, mas também políticos e culturais: sua influência é decisiva nos governos e no controle dos meios de comunicação, levando também à crise dos regimes democráticos e dos sistemas de representação.

6. O desafio lançado pelo chamado do papa Francisco, porém, convoca não apenas a um aprofundamento dos diagnósticos, mas também, e sobretudo, à busca de alternativas que apontem para uma outra ordem econômica e social.

O objetivo destas teses é o de contribuir para essa discussão, focalizando alguns elementos teórico-conceituais e metodológicos que podem ajudar a orientar a busca em que se engajam, por todo mundo, tantos lutadores e lutadoras pela democracia e pela justiça. Elas estão fundadas na convicção de que 

É necessário e ainda possível criar alternativas à civilização produtivista, consumista, socialmente concentradora de riquezas e excludente, destruidora da natureza, movida pelas forças de mercado em busca de lucros e acumulação. A desigualdade e a injustiça social exacerbada pela globalização, bem como a ameaça da mudança climática, tornam imprescindível e urgente tal tarefa de transformação de modos de viver, saindo da armadilha do desenvolvimento como ideal de vida. E não será com barbárie, com mais patriarcalismo, com racismo, xenofobia, fundamentalismos ou fascismos, com violências e guerras que poderemos enfrentar isto tudo.

(Cândido Grzybovski, Os princípios éticos do cuidado e do compartilhamento na base da nova economia)

Tese 1. À busca de alternativas ao modelo e não de um modelo alternativo

7. Em sua encíclica, o papa Francisco afirma ser necessário <…> corrigir os modelos de crescimento incapazes de garantir o respeito ao meio ambiente, o acolhimento da vida, o cuidado da família, a equidade social, a dignidade dos trabalhadores e os direitos das futuras gerações” (Carta Encíclica Laudato si’, ênfase do autor). 

Que modelo é esse? O próprio Papa indica algumas de suas características: consumismo, desperdício, estilos de vida, que, na verdade, são constitutivos do “nosso sistema econômico-social” (Papa Francisco, Chamado de Assis). Trata-se, pois, de um sistema complexo que articula e combina, de maneira dinâmica e inseparável, dimensões e relações econômicas, políticas, culturais e, também, morais. Mais que um modelo, um “sistema econômico-social.

8. Este modelo, ou sistema econômico-social, tem história, que é a história do capitalismo e da modernidade. Seus primeiros passos foram marcados pela conquista e colonização das Américas, aniquilando as sociedades e populações originárias, escravizando os sobreviventes e mais de 10.000.000 de africanos caçados e submetidos a trabalhos forçados nas minas e plantations americanas. As riquezas extraídas do tráfico de humanos e de mercadorias produzidas pelo trabalho escravo tiveram como contraface, no continente europeu, a expropriação dos camponeses e sua transformação em força de trabalho, formando as primeiras colunas do proletariado moderno, cujo trabalho extenuante alimentará o desenvolvimento urbano-industrial.

Colonialidade, expropriação e violência, racismos, submissão do trabalho aos interesses mercantis não são, porém, apenas traços do nascimento do capitalismo e da eclosão da modernidade; são relações permanentes, pode-se dizer estruturais.

9. Um dos traços dominantes do modelo capitalista-moderno de organização da produção econômica, da vida social e das formas culturais e subjetividades dominantes está na difusão de modelos, padrões, formas de conceber o mundo e produzir saberes que foram e são engendrados nos centros dominantes (Europa Ocidental, Estados Unidos). Se a independência política na segunda metade do século XX deu fim ao colonialismo, permanece a colonialidade do saber e do poder, como modo de relacionamento entre centro e periferias do sistema capitalista mundial, como elemento central de produção e reprodução das relações econômicas, sociais, políticas e culturais dominantes. 

A colonialidade e o eurocentrismo, que lhe é inerente, significam a homogeneização dos modos e meios de vida; o desconhecimento, desvalorização e aniquilação de saberes tradicionais e populares; o combate sem trégua à diversidade de modos de pensar e experimentar a vida econômica e social.

10. No momento em que se abre uma reflexão ampla sobre caminhos e fins que ofereçam uma saída para a crise social e ambiental do sistema econômico-social dominante, e, por consequência, do modelo atual de crescimento simultaneamente concentrador e destruidor de riquezas (materiais, culturais, ambientais), impõe-se rejeitar qualquer tentação de conceber e propor um único modelo alternativo para todos os povos e nações, para todas as cidades e territórios. 

11. Isso significa afirmar que reconhecemos, valorizamos e buscaremos preservar, apoiar, fortalecer, divulgar todas as experiências, formas, caminhos, meios alternativos que operem com valores, conceitos e objetivos que coloquem a solidariedade social no lugar do individualismo hedonista, a responsabilidade ambiental no lugar da destruição da natureza, o direito à felicidade no lugar do direito ao lucro máximo, o espaço público e os comuns no lugar da propriedade e do interesse privados.

Isso significa, igualmente, que os caminhos abertos pela história para superarmos a crise atual se constroem na/da coexistências de múltiplas visões de mundo e modos de vida, de diferenciadas e ricas formas de organização econômica que respondem às realidades, experiências e culturas dos diferentes povos e grupos sociais.

Ao pretenso universalismo fundado, na verdade, na unicidade eurocêntrica e na negação do diferente, apostamos no pluriversalismo e na valorização do diverso. Trata-se, mais do que nunca, de afirmar que não buscamos um e único modelo alternativo, mas múltiplas e diversas alternativas ao modelo atual.

Tese 2. Historicidade e a construção dos sujeitos históricos

12. Afirmar a historicidade do sistema econômico-social vigente (cf. 2.2) não quer dizer apenas que ele teve um início, mas, também, e sobretudo, que ele pode ter um fim, pode ser superado, assim como outros modos de organização da produção material e reprodução da vida social o foram ao longo da história. O mundo e a sociedade não estão fadados a sucumbir e desaparecer com o inexorável colapso econômico, social e ambiental do sistema e modelos vigentes.

13. Assim como não buscamos um modelo ideal alternativo, que sintetize a totalidade diversa dos anseios e visões de mundo, também não acreditamos que um “modelo alternativo” possa emergir das elucubrações de um grupo de “iluminados” ou líderes carismáticos. A construção, experimentação e afirmação de alternativas serão o resultado de um processo complexo, não linear, feito de avanços e recuos, no curso do qual também se constituem os sujeitos sociais coletivos que são e serão os sujeitos históricos da transformações econômicas, sociais, políticas, culturais, ambientais que viabilizarão a superação do sistema/modelo vigente.

14. Esse fazer-se do(s) sujeito(s) coletivo(s) é inescapável, e, como já mostrou a história, estão condenadas ao fracasso tanto as tentativas de depositar o destino dos povos nas mãos de lideranças individuais, como aquelas que se inspiraram em modelos únicos, totalizantes e, quase sempre, totalitários. 

15. Os sujeitos sociais coletivos não são a criatura de qualquer liderança, nem uma epifania. São eles também sujeitos históricos, cuja historicidade está enraizada nas seculares lutas de resistência dos oprimidos, discriminados, perseguidos. 

É na luta que se constituem e se afirmam os sujeitos sociais das transformações históricas e da construção das alternativas. Ou, dito de outra maneira, a construção de alternativas ao sistema/modelo dominante é, de um lado, construção dos sujeitos sociais que são os portadores e sujeitos da emergência e, de outro lado, afirmação histórica das alternativas. 

Tese 3. A prática da crítica não substitui a crítica da prática

16. A construção de alternativas é um processo histórico que envolve várias dinâmicas e dimensões. De um lado, ela se escora num sistemático e rigoroso processo de crítica teórica e moral do sistema vigente. A crítica é indispensável, até mesmo para que venha à tona sua historicidade, para que seja revelada a mistificação das elucubrações legitimadoras de seus teóricos de plantão, que proclamam a sociedade contemporânea como fim da história e realização máxima da humanidade. 

A prática da crítica oferece elementos para conhecer os mecanismos através dos quais o sistema produz e se reproduz:

  • a) sua base material e as relações econômicas que promovem a desigualdade econômica;
  • b) as bases políticas das relações de dominação;
  • c) as bases culturais e morais que legitimam e subalternizam os oprimidos, explorados e discriminados.

17. A prática da crítica pode desafiar as ideias dominantes, pode interpelar e desmontar a colonialidade do saber, é essencial mesmo para dotar os sujeitos coletivos que constroem alternativas de saberes críticos. Mas as transformações das bases materiais e culturais do modelo/sistema vigente somente ocorrerão se forem confrontadas praticamente.

18. As críticas práticas têm duas e inseparáveis dimensões. De um lado, a dimensão da resistência:

  • são os trabalhadores que resistem ao desemprego, à degradação e precarização de suas condições de trabalho;
  • os camponeses, povos originários, quilombolas e populações tradicionais que resistem à expropriação de seus territórios;
  • são as mulheres que resistem ao machismo e às condições desiguais no mercado de trabalho;
  • são os negros que resistem ao racismo;
  • são os LGBT que resistem à homofobia;
  • são todos e todas que, das mais diversas formas, lutam para impedir que o mercado os submeta de modo total e definitivo à lógica mercantil da produção máxima e do lucro máximo. 

19. Outra dimensão das críticas práticas está na construção de alternativas:

  • São as práticas que substituem a competição e a individualidade pela colaboração e coesão social, as práticas de associativismo e economias solidárias, as experiências de agroecologia e práticas amigáveis com o meio ambiente. Aí estão incluídas a invenção de caminhos para a autogestão: coletivos sociais que organizam e regem territórios, fábricas, preservação de sementes etc.

Mesmo quando localizadas e parciais, mesmo quando temporárias, essas práticas alternativas são portadoras de um inestimável ensinamento: é possível produzir e viver de modo diferente daquele que o sistema impõe como modelo único.

20. As práticas de resistência e a prática de alternativas (alternativas práticas) quase sempre caminham juntas.

Os mesmos sujeitos das resistências são os coletivos sociais que inventam e experimentam novas práticas. Por isso, não obstante a importância de manter e desenvolver os esforços para ampliar e aprofundar a prática da crítica (teórica, moral), é indispensável compreender que a prática da crítica não substitui a crítica da prática.

Tese 4. Resistir e construir alternativas em múltiplas escalas – estratégias e alianças transescalares

21. As práticas de resistência e de experimentação de alternativas são sempre localizadas:

  • nas fábricas onde trabalhadores lutam contra a precarização e degradação das condições de trabalho;
  • nos territórios onde camponeses, indígenas, quilombolas e populações tradicionais resistem à desterritorialização e preservam seus meios e modos de vida;
  • na defesa das sementes crioulas e na agroecologia;
  • nas práticas de autogestão de fábricas, do território e de unidades agropecuárias;
  • no associativismo, cooperativismo e múltiplas formas de economia solidária, inclusive círculos de trocas não mercantis de bens e serviços;
  • nas favelas e bairros populares onde moradores buscam impedir a implantação de grandes projetos urbanos e os processos de aburguesamento que segregam as cidades;
  • nas salas de aula de escolas e universidades onde estudantes defendem a educação pública, gratuita e de qualidade;
  • nos atos públicos em que mulheres lutam contra a dupla jornada e os salários desiguais para trabalho igual;
  • nos movimentos em que afro-descendentes lutam contra o genocídio da juventude negra, contra o racismo e todas as formas de discriminação;
  • nos atos em que se levam às ruas os protestos contra a homofobia e se afirma a diversidade sexual como direito humano.

22. O fato de as lutas serem localizadas não quer dizer que os adversários contra os quais se batem sejam, eles também, locais. Ao contrário, quase sempre as lutas são travadas contra forças econômicas e políticas que operam na escala regional, nacional e internacional. As grandes corporações operam em todas as escalas, e mobilizam a seu favor as forças políticas do estado em escala local, regional e nacional.

23. Há, por assim dizer, um descompasso entre a escala, quase sempre local, em que se constituem e lutam os sujeitos coletivos enraizados em grupos sociais subalternos e as escalas em que atuam as forças econômicas e políticas dominantes. Este descompasso constitui um grande desafio para quem quer abrir caminhos para alternativas ao sistema/modelo vigente. De um lado, forças locais e localizadas, muitas vezes setoriais e segmentadas; de outro lado, grandes potências econômico-sociais mobilizando recursos de todos os tipos e em todas as escalas – dito em outras palavras, atuando com estratégias e táticas trans-escalares.

24. O enfrentamento e superação deste desafio dependem da capacidade que os sujeitos coletivos tiverem de criar e promover relações de cooperação e solidariedade ativa que transcendam o local e o setorial, que propiciem alianças horizontais – nas localidades entre vários grupos e setores em luta – e verticais – com várias outras forças nas escalas regional, nacional e internacional.

25. Há uma longa e rica herança neste campo, inclusive a nível internacional. Mais recentemente, os vários Fóruns Sociais Mundiais, não obstante suas limitações, mostraram a extraordinária acolhida e potência desse tipo de iniciativa e esforço. Há experiências de alianças e coalizões que atravessam fronteiras e continentes. Nas defesa da Amazônia e dos povos da floresta, na solidariedade aos imigrantes que circulam pelo mundo à procura de dias melhores, nas ações convergentes contra as grandes agências multilaterais (OMC, FMI, Banco Mundial) que pretendem impor a lei das grandes corporações e do capital financeiro a tudo e a todos, a todo momento emergem e se ampliam as formas de um agir comum.

Por um tempo, os ecologista lançaram um slogan: “Pensar globalmente, agir localmente”. Hoje, mais que nunca, impõe-se pensar e agir localmente, pensar e agir regionalmente, pensar e agir nacionalmente, pensar e agir internacionalmente. Mais que nunca impõe-se resistir e construir alternativas em múltiplas escalas, agir e tecer alianças transescalares

Tese 5. Contra o individualismo e o privatismo, preservar e reinventar a esfera pública e os comuns

26. Nos últimos 30 anos assistiu-se a um processo acelerado de expansão dos espaços e esferas da vida social e do território diretamente controlados por capitais e grupos privados, em detrimento dos espaços e esfera públicas. O processo de privatização, que é também processo de aprofundamento e expansão da mercantilização, atingiu as empresas estatais, os territórios, os recursos ambientais, os espaços urbanos, seja através de transferência direta de patrimônio público, seja através das chamadas parcerias público-privadas … mas a privatização e mercantilização foram além, espraiando-se pela totalidade da vida social. 

27. Este processo de verdadeira colonização pelo mercado da vida econômica, política e social, alimenta e é alimentado pelo individualismo e pela competição, corroendo os laços de solidariedade que ligavam, e ainda ligam, diferentes grupos sociais e gerações. 

  • Na questão ambiental, os teóricos de um ajuste ambiental do capitalismo pregam a privatização e mercantilização da natureza, inclusive através da criação de um mercado de direitos de poluir e destruir.
  • Na esfera dos serviços públicos, assiste-se praticamente por toda parte a sua privatização, destituindo os mais pobres dos poucos serviços a que conseguiram aceder após muitas e árduas lutas – saúde, transporte, educação. A privatização de serviços de água e esgoto, colocada sob a tutela de grandes empresas multinacionais, provocou verdadeiros levantes, de que foi exemplo admirável a vitória do povo na Guerra da Água, em Cochabamba, em 2000. 

28. Ao contrário do que vaticinaram os teóricos do pensamento privatista, segundo os quais a posse comum de recursos conduziria necessariamente a seu esgotamento (Hardin, Garret. “A tragédia dos comuns”, https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/3203283/mod_resource/content/2/a_trag%C3%A9dia_dos_comuns.pdf, publicado originalmente em Science, 1968), o que se constata é que foram preservadas florestas, rios e outros recursos cuja posse, uso e gestão eram de populações tradicionais. Foi ali onde os territórios e recursos foram submetidos à exploração privada que a destruição se impôs.

29. Os comuns e a esfera pública democrática e com vitalidade são condição das alternativas ao modelo/sistema dominante. E não se trata apenas de formas e regimes de propriedade, mas de valores e conceitos, subjetividades e projetos societários que privilegiam os interesses coletivos e públicos. O agir em comum, o partilhar o comum, é disso que se trata quando se concebem e experimentam novas formas e meios de viver.

Mais do que nunca, pois, aqueles e aquelas que se engajam na resistência e na construção de alternativas estão desafiados a preservar e reinventar a esfera pública e os comuns.

Tese 6. Educação e cultura para projetar novas alternativas

30. O que enfrentamos, pois, está ancorado numa economia política da acumulação e da destruição, da concentração e da exploração, da discriminação e da desigualdade… mas só se sustenta e reproduz porque está, também, estruturado sobre a base de uma educação e cultura que produzem, reproduzem, difundem, inculcam e homogeneízam mentes e corações.

31. Como dizia Paulo Freire: “Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor”.

Não é casual que correntes de extrema-direita ataquem o grande pedagogo da libertação e defendam que ele seja destituído do título de “patrono da educação brasileira”. Uma grande batalha, talvez a mais decisiva de todas, se esteja desenrolando no terreno da educação e da cultura.

33. Também aqui somos herdeiros de uma longa história e rico patrimônio:

  • Em seus primórdios, se poderiam citar os pensadores renascentistas, como Rabelais e Montaigne, ou os iluministas, como Rousseau, com seus ideais de uma educação voltada para a formação de consciências críticas, para a dúvida, para a experimentação e diálogo;
  • Nos séculos XVIII e XIX, o pensamento libertário e emancipatório difundiu, a seu modo, perspectivas e horizontes que alimentavam os subalternos a lutarem por um mundo diferente;
  • Mais recentemente, a Teologia da Libertação, a Pedagogia e a Filosofia da Libertação;
  • Já no século XXI, os estudos pós-coloniais e a crítica da colonialidade do saber e do poder resgatam a contribuição do pensamento e da educação que se liberta das cadeias do eurocentrismo.

34. Nada a ver com a rejeição grosseira à cultura e ao saber científico que alimenta os fundamentalismos de todos os tipos e fornece o arsenal dos que atacam a educação e a cultura como bens públicos e múltiplos, diversos. Ao lado do terraplanismo e do anti-evolucionismo, estão presentes o elogio do individualismo, do hedonismo, do consumismo. Intolerância e ódio alimentam parcelas da população, inclusive entre os mais pobres e oprimidos, como uma compensação mórbida pelas frustações com um sistema que os condena à miséria material e espiritual.

A relembrar a frase de uma peça antinazista de Hans Jost, depois atribuída a Goering, chefe da Gestapo e braço direito de Hitler: “Quando ouço falar em cultura, levo a mão ao revólver”.

35. Afirmar a cultura como bem público e bem comum, resgatar e promover as culturas diversas dos povos do mundo e dos diversos segmentos sociais das sociedades nacionais, eis as bases sobre as quais se poderão construir alternativas… pois a alternativas de que falamos, que almejamos e estamos construindo são feitas de (re)educação e cultura(s) diversas, críticas, múltiplas, em permanente e respeitoso diálogo – Educação e cultura para projetar novas alternativas.

Conclusão: a luta e o debate continuam

36. Estas teses não resolveram os problemas com que se defrontam indivíduos e coletivos que refletem e buscam construir alternativas ao modelo/sistema dominante. Nem tiveram essa pretensão. Alinharam-se reflexões sobre alguns dos pontos que, de uma maneira ou outra, já estão presentes, e deverão ser cada vez mais considerados, no processo em curso.

37. Mas faltam muitas outras coisas.

Falta aprofundar e ampliar a prática da crítica, incluindo os saberes que não são produzidos nem cultivados nos espaços acadêmicos. Um extraordinário material, a ser estudado e difundido, está incrustado nas lutas concretas, tanto para resistir à destruição (ambiental, social, cultural) quanto para construir alternativas. Que os sujeitos coletivos destas lutas tomem a palavra e confrontem seus saberes e práticas, num diálogo que deverá ser simultaneamente intelectual, político, moral … e voltado para a prática.

38. A invenção, elaboração e construção históricas de alternativas deverá nascer de uma relação, sempre tensa:

  • entre prática da crítica e da crítica prática;
  • do diálogo entre saberes acadêmico-científico e saberes populares e tradicionais;
  • de encontros e convergências interculturais;
  • das lutas e alianças transescalares;
  • da confrontação incansável ao individualismo competitivo;
  • da afirmação do agir e do ser em comum que promovem a esfera pública;
  • de experiências de educação emancipatória e da conversação respeitosa e pluriversalista entre culturas. 

É neste processo que se estão e se estarão construindo tanto as condições históricas quanto os sujeitos coletivos que poderão tornar viável a passagem a outras economias e outros modos de viva. A crise sistêmica do modelo/sistema dominante exige isso, a história em aberto torna isso possível.

Sobre o autor:

Prof. Dr. Carlos Vainer, da UFRJ

Carlos Vainer é economista e sociólogo, professor titular-colaborador do Instituto de pesquisa e planejamento urbano e regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro – IPPUR/UFRJ e coordenador da Rede de Observatórios de conflitos urbanos, do Núcleo experimental de planejamento conflitual, do programa de graduação em gestão pública para o desenvolvimento econômico e social e do Curso de especialização, energia e sociedade no capitalismo contemporâneo.

Fonte:

www.ecofranbr.org

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