Portal das CEBs – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com Tue, 05 Oct 2021 02:37:37 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.4 https://i0.wp.com/observatoriodaevangelizacao.com/wp-content/uploads/2024/04/cropped-logo.png?fit=32%2C32&ssl=1 Portal das CEBs – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com 32 32 232225030 “Por uma Igreja missionária-sinodal”, com a palavra o teólogo Francisco de Aquino Júnior https://observatoriodaevangelizacao.com/por-uma-igreja-missionaria-sinodal/ Tue, 05 Oct 2021 02:37:37 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=41789 [Leia mais...]]]> Desde o início do seu ministério como bispo de Roma, o papa Francisco tem provocado e convocado a Igreja a um processo de renovação/conversão pastoral em vista de uma maior fidelidade à sua missão evangelizadora no mundo (EG 19-49). Sua Exortação Apostólica Evangelii Gaudium é um convite a uma “nova etapa evangelizadora” com indicação de “caminhos para o percurso da Igreja nos próximos anos” (EG 1). O Sínodo dos Bispos para a Região Pan-Amazônica (2019), a criação da Conferência Eclesial da Amazônia (2020), a Assembleia Eclesial da América Latina e do Caribe (2021) e o próximo Sínodo dos Bispos sobre sinodalidade (2023) são parte e expressão fecunda e eficaz desse processo de renovação eclesial em curso. Trata-se de um processo de renovação/conversão missionária-sinodal.

Renovação/conversão missionária

A “nova etapa evangelizadora” de que fala Francisco consiste fundamentalmente numa “transformação missionária da Igreja” (EG, cap. I). Ela existe para a missão. Ela é missionária por sua própria natureza (AG 2). E sua missão é a mesma de Jesus: “tornar o Reino de Deus presente no mundo” (EG 176). Esta é a eterna novidade da Igreja e toda renovação/reforma da Igreja deve se realizar a partir e em vista dessa missão.

Trata-se de um processo de descentramento eclesial (interesses institucionais) e de saída para as periferias do mundo (rostos concretos com dores, esperanças, lutas) para anunciar a Boa Notícia do reinado de Deus:

  • manifestar a ternura de Deus;
  • ungir as feridas;
  • regar a esperança;
  • cultivar a solidariedade;
  • animar as lutas por direito.

Francisco tem falado muito de uma “Igreja em saída para as periferias”. Não se trata de qualquer saída para qualquer lugar e para qualquer coisa. Trata-se de “sair da própria comodidade e ter a coragem de alcançar todas as periferias que precisam da luz do Evangelho” (EG 20). Ao falar de uma “Igreja em saída”, ele retoma o processo de renovação conciliar que fala da Igreja como “sacramento de salvação” ou “sinal e instrumento do Reino de Deus” no mundo (LG 1, 9, 48). Ao falar de “saída para as periferias”, insiste no “lugar privilegiado dos pobres no povo de Deus” (EG 197-201) ou no que se convencionou chamar a partir da América Latina de “opção preferencial pelos pobres” (EG 198): uma “forma especial de primado da caridade cristã, testemunhada por toda a Tradição da Igreja” (João Paulo II) que está “implícita na fé cristológica naquele Deus que se fez pobre por nós, para enriquecer-nos com sua pobreza” (Bento XVI). É nesse sentido que Francisco fala de uma “Igreja pobre para os pobres”, insistindo que “a nova evangelização é um convite a reconhecer a força salvífica dos pobres e a colocá-los no centro do caminho da Igreja” (EG 198). Este é o cerne da “transformação missionária da Igreja” de que fala Francisco. Trata-se de “voltar à fonte e recuperar o frescor original do Evangelho” (EG 11).

Renovação/conversão sinodal

A conversão missionária da Igreja diz respeito à totalidade do povo de Deus na diversidade de seus carismas e ministérios. Como ensina o Concílio Vaticano II, pelo batismo, todos os cristãos são “ungidos” com o Espírito Santo e dotados com um “senso da fé”, pelo qual “recebe a Palavra de Deus, penetra-a mais profundamente e mais plenamente a aplica na vida” (LG 12). Isso faz da Igreja uma comunidade, na qual “reina entre todos verdadeira igualdade quanto à dignidade e ação comum de todos os fiéis na edificação do Corpo de Cristo” (LG 32). E é nesse sentido que Francisco fala de sinodalidade ou Igreja sinodal: o “caminhar juntos” do Povo Santo de Deus na comum dignidade e missão (igualdade fundamental) e na riqueza e complementaridade de seus carismas e ministérios (diversidade carismático-ministerial).

O texto fundamental aqui é o discurso de Francisco por ocasião dos 50 anos de instituição do Sínodo dos Bispos no dia 17 de outubro de 2015 (Este discurso está disponível no site do Vaticano). Ele afirma que a sinodalidade é uma “dimensão constitutiva da Igreja” que “nada mais é que o ‘caminhar juntos’ do rebanho de Deus pelas sendas da história ao encontro de Cristo Senhor”. Recorda com o Concílio que o fundamento desse “caminhar juntos” é a “unção” do Espírito e o “senso sobrenatural da fé” que ela confere a todos os batizados. Insiste que em virtude dessa “unção” e desse “senso da fé” todo batizado é um “sujeito ativo da evangelização”, o que “impede uma rígida separação entre Igreja docente e Igreja discente”. Antes de qualquer diferença na Igreja, como ensina o Concílio, “reina entre todos verdadeira igualdade quanto à dignidade e ação comum” (LG 32). E isso, diz ele, “oferece-nos o quadro interpretativo mais apropriado para compreender o próprio ministério hierárquico” que deve ser um “serviço” ao Povo de Deus.

Francisco reconhece que sinodalidade “é um conceito fácil de exprimir em palavras, mas não é assim fácil pô-lo em prática”. E oferece algumas orientações para um processo sinodal:

  • a) “uma Igreja sinodal é uma Igreja da escuta: cada um à escuta dos outros e todos à escuta do Espírito Santo”;
  • b) “o caminho sinodal começa por escutar o povo […] continua escutando os pastores […] e culmina na escuta do bispo de Roma”;
  • c) níveis de exercício da sinodalidade: Igrejas particulares, instancias intermediárias, Igreja universal;
  • d) “numa Igreja sinodal, o Sínodo dos Bispos é apenas a manifestação mais evidente dum dinamismo de comunhão que inspira todas as decisões eclesiais”;
  • e) “o compromisso de edificar uma Igreja sinodal está cheio de implicações ecumênicas” e é como “estandarte erguido entre as nações”.

A criação da Conferência Eclesial da Amazônia (junho de 2020) e a realização da Assembleia Eclesial da América Latina e do Caribe (novembro de 2021), enquanto organismo e evento de toda a Igreja e não apenas dos bispos, avançam ainda mais na direção de uma Igreja verdadeiramente sinodal, na qual a totalidade do povo de Deus aparece como “sujeito” eclesial.

Renovação/conversão missionário-sinodal

Conversão missionária e conversão sinodal são dois aspectos do mesmo processo de renovação evangélica da Igreja: A Igreja só se renova na missão de anúncio/realização do reinado de Deus que é um reinado de fraternidade, justiça e paz. E essa missão compete à totalidade do povo de Deus na diversidade e complementaridade de seus carismas e ministérios. Trata-se, portanto, de um processo de renovação/conversão missionária (“Igreja em saída para as periferias”) sinodal (“caminhar juntos” de todo povo de Deus), no qual a missão é compreendida e vivida de modo sinodal e a sinodalidade é compreendida e vivida em perspectiva e dinamismo missionários.

Mas é preciso ficar muito atento para não banalizar ou distorcer o sentido profundo da missão e do dinamismo sinodal da Igreja. Toda insistência aqui é pouca. missão da Igreja é “tornar o Reino de Deus presente no mundo” (EG 176). Isso significa que ela tem que se preocupar e se envolver com os problemas do mundo e fermentar a sociedade com a força e o dinamismo do Evangelho de Jesus Cristo. Por isso, Francisco tem falado tanto de “opção preferencial pelos pobres”, de “fraternidade e amizade social” e do “cuidado da casa comum”. E a sinodalidade eclesial se dá precisamente nessa missão. Quando se perde isso de vista, termina em burocratismo, ativismo e disputa de poder. Falando dos organismos de participação na Igreja, Francisco adverte que “só na medida em que estes organismos permanecerem ligados a ‘baixo’ e partirem do povo, dos problemas do dia-a-dia, é que pode começar tomar forma uma Igreja sinodal”. É nesse sentido que falamos com Francisco de uma renovação missionária-sinodal da Igreja.

(Adaptação e grifos, Edward Guimarães, para o Observatório da Evangelização)

Sobre o autor:

Prof. dr. pe. Francisco de Aquino Júnior (Foto. Camilla Moreira, Observatório da Evangelização)

Francisco de Aquino Júnior possui graduação em Teologia e Filosofia, mestrado e doutorado em Teologia. É professor da Faculdade Católica de Fortaleza (FCF) e da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP); presbítero da Diocese de Limoeiro do Norte – CE. Dentre seus livros merecem destaque: Teologia como intelecção do reinado de Deus (A) – O método da Teologia da Libertação segundo Ignacio Ellacuria. São Paulo: Loyola, 2010; A dimensão socioestrutural do Reinado de Deus, São Paulo: Paulinas, 2011; Teoria Teológica. Práxis Teológica. Sobre o método da Teologia da Libertação. São Paulo: Paulinas, 2012; Viver segundo o espírito de Jesus Cristo. Espiritualidade como seguimento. São Paulo: Paulinas, 2014; Pastoral social. Dimensão socioestrutural da caridade cristã. Brasilia: Edições CNBB, 2016; O caráter práxico-social da teologia. Tópicos fundamentais de epistemologia teológica. São Paulo: Loyola, 2017; Nas Periferias do Mundo. Fé, Igreja, Sociedade. São Paulo: Paulinas, 2017; Organizações populares. São Paulo: Paulinas, 2018; Teologia em saída para as periferias. São Paulo: Paulinas/ Unicap, 2019; com Maurício Abdala e Robson Sávio, é organizador do livro: Papa Francisco com os movimentos populares. São Paulo: Paulinas, 2018; com Agenor Brighenti, é organizador do livro: Pastoral Urbana. Novos caminhos para a Igreja na cidade. Petrópolis: Vozes, 2021.

Fonte:

www.portaldascebs.org.br

]]>
41789
“Vidas negras importam” https://observatoriodaevangelizacao.com/vidas-negras-importam/ Fri, 20 Nov 2020 21:43:34 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=36493 [Leia mais...]]]> 20 de novembro é Dia da Consciência Negra… É dia de luto (pelas vítimas do racismo) e de luta (por justiça social)… 75,5% das vítimas de homicídio em 2017 foram pessoas negras… No balanço geral, em 2018, os brancos ganhavam em média 73,9% mais do que pretos ou pardos… 66,7% da população carcerária do Brasil é negra. De cada três pessoas presas no Brasil, duas são negras… 75% das pessoas assassinadas pela polícia e 61% das mulheres vítimas de feminicídio de junho de 2019 a maio de 2020 nos estados de SP, RJ, BA, CE e PE são negras.O racismo não para por aí. Ele cria uma cultura racista que justifica e alimenta o racismo econômico, social, político e policial... Que a memória de Zumbi dos Palmares e de tantos lutadores e lutadoras do povo nos anime e nos comprometa sempre mais na luta contra toda forma de racismo e na construção de um grande quilombo de fraternidade, justiça e paz…

Confira, na íntegra, a reflexão do teólogo prof. dr. Francisco de Aquino Júnior:

20 de novembro é Dia da Consciência Negra.

Nessa data, fazemos memória de Zumbi dos Palmares – líder do Quilombo dos Palmares assassinado em 1695, denunciamos a falsa democracia racial no Brasil e reafirmamos a luta negra por direitos e justiça racial. É dia de luto (pelas vítimas do racismo) e de luta (por justiça racial).

O documento Síntese dos Indicadores Sociais do IBGE de 2019 revela que “no balanço geral, em 2018, os brancos ganhavam em média 73,9% mais do que pretos ou pardos”. Para compreender esse dado é importante lembrar que “a presença dos pretos ou pardos é mais acentuada nas atividades agropecuárias (60,8%), na construção (62,6%), nos serviços domésticos (65,1%)”, enquanto os brancos têm uma presença mais acentuada em “administração pública, educação, saúde e serviços sociais” e em “informação, financeiras e outras atividades profissionais”.

Atlas da Violência 2019 revela que 75,5% das vítimas de homicídio em 2017 foram pessoas negras. Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em outubro de 2020, revela que 66,7% da população carcerária do Brasil é negra. De cada três pessoas presas no Brasil, duas são negras. E, segundo relatório produzido pela Rede de Observatórios da Segurança, 75% das pessoas assassinadas pela polícia e 61% das mulheres vítimas de feminicídio de junho de 2019 a maio de 2020 nos estados de SP, RJ, BA, CE e PE são negras.

Mas o racismo não para por aí. Ele cria uma cultura racista que justifica e alimenta o racismo econômico, social, político e policial. Produz uma linguagem racista: “a coisa tá preta”, “mercado negro”, “lista negra”, “humor negro” etc. Produz um padrão de beleza racista: negro é feio, cabelo de negro é ruim (duro, bombril, pixaim), “parece um macaco” etc. Produz um humor racista (pense nas piadas racistas…). Produz um imaginário religioso racista: diabo/pecado é negro, “cor do pecado”, “negro de alma branca”, “será o benedito?”, “parece o cão chupando manga” – quantos anjos negros têm na coroação de Maria no mês de maio?

Tudo isso agride/violenta a dignidade das pessoas negras, considerando-as e fazendo com que elas mesmas se considerem pessoas inferiores (da senzala…): “ovelha negra”, “de gente só tem os dentes”, “só é gente quando está no banheiro”, “é negro, mas bom/honesto/limpo”, “reconheça seu lugar” etc. Chegamos ao ponto em que ofensa/agressão tenha se tornado sinônimo de comparação com negro: “denegrir” a imagem de alguém é reduzi-la à condição de negro…

E ainda tem gente que diz que não há racismo no Brasil. No fundo, essa negação do racismo é uma forma sutil de esconder o racismo que há entre nós (“não tenho nada contra negro, mas…”) e é muito útil para aos interesses das elites que precisam de pessoas inferiores para fazerem trabalho inferiores com salários inferiores (“são cheios de direitos”). Não por acaso, há tanta reação contra políticas públicas de afirmação de direitos da população negra como a “política de cotas” para negros nas universidades, no serviço público, nos partidos e como a “criminalização do racismo”.

O racismo é um atentado contra a dignidade das pessoas negras (violência/injustiça), contra a humanidade das pessoas e sociedades racistas (desumanidade) e contra Deus e seu reinado de fraternidade justiça e paz (pecado). Diante de tamanha injustiça, desumanidade e pecado, somos chamados à conversão pessoal e social que concretiza em relações de igualdade e fraternidade com o povo negro e em políticas e instituições de afirmação de direitos e combate a toda forma de racismo.

Que o grito de George Floyd nos EUA (“não consigo respirar”), do adolescente João Pedro no RJ (“eu estou aqui”), do menino Miguel em Recife (“eu quero minha mãe”) e de tantos negros e negras pelo Brasil e mundo afora não nos deixem “em paz”…

Que a memória de Zumbi dos Palmares e de tantos lutadores e lutadoras do povo nos anime e nos comprometa sempre mais na luta contra toda forma de racismo e na construção de um grande quilombo de fraternidade, justiça e paz…

Que o Espírito de Jesus de Nazaré faça ecoar em nós e em nossas comunidades seus “gemidos inefáveis” nos gemidos do povo negro. Que Ele renove a nós e a nossas comunidades e nos comprometa sempre mais na construção do reinado de Deus nesse mundo, no qual “vidas negras importam”…

AXÉ!!!

Sobre o autor:

Prof. dr. Francisco de Aquino Júnior

Francisco de Aquino Júnior possui graduação em Teologia e Filosofia, mestrado e doutorado em Teologia. É professor da Faculdade Católica de Fortaleza (FCF) e da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP); presbítero da Diocese de Limoeiro do Norte – CE. Dentre seus livros merecem destaque: Teologia como intelecção do reinado de Deus (A) – O método da Teologia da Libertação segundo Ignacio Ellacuria. São Paulo: Loyola, 2010; A dimensão socioestrutural do Reinado de Deus, São Paulo: Paulinas, 2011; Teoria Teológica. Práxis Teológica. Sobre o método da Teologia da Libertação. São Paulo: Paulinas, 2012; Viver segundo o espírito de Jesus Cristo. Espiritualidade como seguimento. São Paulo: Paulinas, 2014; O caráter práxico-social da teologia. Tópicos fundamentais de epistemologia teológica. São Paulo: Loyola, 2017; Nas Periferias do Mundo. Fé, Igreja, Sociedade. São Paulo: Paulinas, 2017; Teologia em saída para as periferias. São Paulo: Paulinas/ Unicap, 2019.

Fonte:

www.portaldascebs.org.br

]]>
36493
Chegou a hora dos leigos e leigas? Onde? Para quem? https://observatoriodaevangelizacao.com/chegou-a-hora-dos-leigos-e-leigas-onde-para-quem/ Mon, 05 Mar 2018 20:09:56 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=27503 [Leia mais...]]]> A Igreja Católica lançou no Brasil o Ano do Laicato, que ocorrerá ao longo do ano litúrgico de 2018. Pode ser mais uma oportunidade de retomar o papel do laicato na Igreja “em saída”, como lembram certas falas e documentos. Volta-se, novamente, a falar do protagonismo dos leigos, dentro do modelo de igreja pedido pelo Vaticano II. Soltam-se muitas frases de efeito e reflexões sobre este protagonismo laical. Aponta-se o mundo secular e suas culturas como o campo específico do laicato.

Um ano voltado para o papel do laicato pode ser um momento de avanço pastoral. Os leigos são “o sal da terra e a luz do mundo” (Mt 5,13.14). Mas seria bom também que os leigos e leigas fossem o sal da paróquia e luz da Igreja. O Ano do Laicato bem pode ser um momento propício de os leigos e leigas questionarem o clericalismo que ainda trava a ação pastoral da Igreja. Na sua Carta ao cardeal Marc Ouellet, de março de 2016, o papa Francisco lembra que

“olhar para o Santo Povo fiel de Deus e sentimo-nos parte integrante dele, posiciona-nos na vida e, portanto, nos temas que tratamos de maneira diversa. Isto ajuda-nos a não cair em reflexões que podem, por si só, ser muito úteis, mas que acabam por homologar a vida de nosso povo ou por teorizar de tal modo que a especulação acaba por matar a ação. Olhar continuamente para o povo de Deus salva-nos de certos nominalismos declarativos (slogans) que são frases bonitas, mas não conseguem apoiar a vida de nossas comunidades. Por exemplo, recordo a famosa frase ‘Chegou a hora dos leigos!’…mas parece que o relógio parou!”.

O que se espera de um Ano do Laicato é que o relógio seja colocado de novo em movimento.

O rumo dado à caminhada da Igreja a partir do Vaticano II, ou seja, a eclesiologia proposta por este Concílio, coloca o laicato como o sujeito da evangelização. Tal proposta se choca com a eclesiologia tridentina, que colocava o clero como principal agente da evangelização. Para que o protagonismo dos leigos possa avançar, a Igreja deve enfrentar o clericalismo. Voltando à carta de Francisco:

“Não podemos refletir sobre o tema do laicato ignorando uma das maiores deformações que a América Latina deve enfrentar – e para a qual peço que dirijais uma atenção particular – o clericalismo.”

Na carta, Francisco retoma todo o esforço de denúncia deste desvio feito no Documento de Aparecida. No entanto, a palavra “clericalismo” foi censurada e eliminada do Documento (por exemplo, em DAp 100 b). Não há dúvida de que o Ano do Laicato pode ser uma boa oportunidade em denunciar e trabalhar a mentalidade clericalista presente ainda em grande parte do laicato latino-americano. O mesmo vale para a formação do clero, ainda presa ao modelo tridentino de formar “fora do mundo”, num regime de internato.

Para o Vaticano II, os fiéis leigos são

“cristãos que estão incorporados a Cristo pelo batismo, que formam o povo de Deus e participam das funções de Cristo: sacerdote, profeta e rei. Realizam, segundo sua condição, a missão de todo o povo cristão na Igreja e no mundo” (LG 31; cf. DAp 209).

Portanto, na eclesiologia do Vaticano II o Santo Povo fiel de Deus, leigos e leigas, deve viver as dimensões messiânicas inerentes ao sacramento do batismo. É preciso recuperar a consciência de que, pelo batismo, todos somos sacerdotes e sacerdotisas, profetas e profetisas, reis e rainhas. E exercer estas funções “na Igreja e no mundo”.

Exercemos nosso sacerdócio batismal formando a assembléia celebrativa. Esta congregação dos batizados e batizadas torna-se sacramento da presença de Deus. Como disse Jesus: “onde dois ou mais estiverem reunidos em meu nome, eu estarei no meio deles” (Mt 18,20). É a assembléia celebrativa, congregada em nome da Trindade Santa, que pode dizer com toda força e convicção “O Senhor está no meio de nós!”. Nesta assembléia somos todos e todas co-celebrantes. Pelo batismo somos “consagrados para ser edifício espiritual e sacerdócio santo” (LG 10).

Exercemos nossa profecia batismal no serviço da Palavra de Deus. Leigos e leigas, no seguimento missionário de Jesus, têm a Palavra de Deus como fonte de sua espiritualidade. Esta Palavra é a alma da ação evangelizadora. Conhecer a Palavra é anunciar a Palavra. Desconhecer a Palavra é desconhecer o próprio Cristo. Nossa dimensão profética batismal nos leva a apresentar o Pão da Palavra, sendo necessária a interpretação adequada dos textos bíblicos presentes na liturgia, na catequese e nas várias frentes pastorais. Todo cristão batizado é agente da pastoral bíblica tendo em vista a animação bíblica de toda a pastoral (cf. DAp 248).

O batismo nos torna reis e rainhas. Um grande perigo é reduzir esta dimensão batismal régia à vivência da caridade. Todos temos que viver a caridade a partir das três dimensões messiânicas do batismo. A dimensão batismal régia nos torna a todos, leigos e leigas, co-responsáveis pela condução do povo de Deus, pela manutenção do patrimônio da Igreja e pela organização eclesial. Exercemos esta função régia ocupando cargos na administração ou na coordenação das comunidades, paróquias ou dioceses.

É inegável que houve substanciais avanços no protagonismo dos leigos dentro da vida eclesial. A formação teológica deixou de ser monopólio clerical, surgiram os ministérios, novas formas de organização e as responsabilidades pastorais. Também é certo que qualquer surto de reclericalização acontece em detrimento das conquistas leigas na vida da Igreja. Busca-se anular a participação dos leigos, calando-os e diminuindo-lhes os espaços de comunhão e participação. Como lembra Francisco em sua citada carta:

“O clericalismo leva a uma homologação do laicato, tratando-o como um ‘mandatário’ limita as diversas iniciativas e esforços e, ousaria dizer, as audácias necessárias para poder anunciar a Boa Nova do Evangelho em todos os âmbitos da atividade social e, sobretudo, política. O clericalismo, longe de dar impulso aos diversos contributos e propostas, apaga pouco a pouco o fogo profético do qual a Igreja está chamada a dar testemunho no coração de seus povos”

Viver o Ano do Laicato significa enfrentar o desafio do clericalismo. Não adianta “empurrar” os leigos para as ações missionárias fora do ambiente eclesial enquanto o leigo for considerado “cidadão de segunda categoria” dentro da Igreja. Leigo comprometido não pode ser aquele ou aquela que trabalha obediente e calado nas obras da Igreja. Como lembra Aparecida: “A construção da cidadania, no sentido mais amplo, e a construção da eclesialidade dos leigos, é um só e único movimento” (DAp 215). Leigos e leigas para o mundo, tudo bem! Mas leigos e leigas para a vida da Igreja também!

Francisco Orofino, biblista, assessor de grupos populares e comunidades de base nos municípios da Baixada Fluminense, doutor em Teologia Bíblica na PUC-Rio e professor de Teologia Bíblica no Instituto Paulo VI, na diocese de Nova Iguaçu (RJ).

Fonte:

Portal das CEBs

]]>
27503