Pe. Vanildo Paiva – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com Tue, 22 Dec 2020 03:13:15 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.8 https://i0.wp.com/observatoriodaevangelizacao.com/wp-content/uploads/2024/04/cropped-logo.png?fit=32%2C32&ssl=1 Pe. Vanildo Paiva – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com 32 32 232225030 A casa e a Palavra na catequese, com a palavra Vanildo de Paiva https://observatoriodaevangelizacao.com/a-casa-e-a-palavra-na-catequese-com-a-palavra-vanildo-de-paiva/ Tue, 22 Dec 2020 03:13:15 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=37205 [Leia mais...]]]> No complexo contexto desta longa pandemia de COVID-19, quando todos os âmbitos da vida foram profundamente afetados, Vanildo Paiva nos oferece pertinente e necessária reflexão sobre as estreitas relações mútuas entre fé cristã, família e catequese na vida da Igreja. O autor aprofunda sobre “o lugar que a Igreja sempre atribuiu às famílias, especialmente aos pais cristãos, na educação da fé das crianças, jovens e adultos“. Para ele, “se a Palavra e a liturgia encontram na ‘casa’, isto é, em cada lar, seu lugar privilegiado de vivência e expressão, também a catequese precisa ser redescoberta como um exercício eminentemente doméstico, em consórcio íntimo com outras formas de catequese comunitária e paroquial.” O autor entende a Igreja doméstica, “como modelo de organização e vivência de amor, comunhão, ajuda mútua e vida fraterna“. Para ele, “o embrião do cristão comprometido com um mundo melhor é gerado no útero familiar, e ali deve ser cuidado amorosamente“. Nesse sentido, afirma que “se a missão da catequese é educar a pessoa na fé, na esperança e no amor para que seja ‘sal da terra e luz do mundo'(cf. Mt 5, 13-14),  essa educação começa no santuário de vida que é a família, sempre auxiliada pela comunidade eclesial nessa missão“. Sendo assim, “a catequese que se espera dos pais é aquela do testemunho cristão, que aponta o sentido da vida a partir da experiência de Deus. Em outras palavras, o que as novas gerações precisam receber de seus pais e demais adultos da família (irmãos, avós, tios etc.) é a concretude de uma fé traduzida em gestos capazes de iluminar os eventos familiares, desde os mais simples do dia a dia“.

Confira a reflexão:

A CASA E A PALAVRA NA CATEQUESE

Vanildo de Paiva[1]

“Eu e minha família serviremos ao Senhor” (Js 24,15)

INTRODUÇÃO

01. A catequese em família tem sido preocupação da Igreja, de modo geral, e da catequese, especificamente, já há muito tempo. Basta um rápido sobrevoo aos manuais de catequética ou documentos da Igreja para comprovar isso. A declaração conciliar Gravissimum Educationis é clara ao afirmar: “Os pais devem ser para seus filhos os primeiros educadores da fé” (n. 2). A ressonância a essa proclamação se fez logo sentir nos Diretórios Catequéticos Gerais (Diretório Catequético Geral – 1971: nn. 78.80.81; Diretório Geral para a Catequese – 1997: nn. 226-227 e 255), na exortação apostólica Catechesi Tradendae de João Paulo II (n. 68), no documento Catequese Renovada, da CNBB (nn. 1221-123), no Diretório Nacional de Catequese (nn. 238-240), no documento conclusivo da Conferência de Aparecida (nn. 302-303) e, agora, no novo Diretório para a Catequese – 2020 (nn. 226-235), só para citar alguns desses textos oficiais.

02. Apesar de tanta tinta e saliva gastas, a impressão que se tem é de que, cada vez mais, a família tem se desobrigado dessa sua missão tão importante, ou por falta de consciência dela ou, em muitos casos, por descuido. Não é raro ouvirmos queixas de catequistas, carregadas de conformismo, no que se refere à omissão das famílias dos catequizandos em seus itinerários catequéticos. Chega-se mesmo ao abandono das tentativas de envolvê-las, numa postura que combina indignação e desânimo: “Fazer o quê? Os pais não têm nada a oferecer, porque também nada receberam!”. E, em parte, isso é verdade! Além de um certo fracasso da família cristã frente à sua tarefa intransferível de educadora da fé das novas gerações, essa fala conformista denuncia o fracasso da própria Igreja, mãe e mestra, que se descuidou da catequese com adultos, que atualmente tem sido olhada com mais atenção.

03. Só que ninguém contava com o surto pandêmico do coronavírus, para nós iniciado em março de 2020, que mudou drasticamente as nossas vidas e tem exigido o repensar de toda a ação pastoral da Igreja! De uma hora para outra, a catequese voltou a seu lugar de origem – ao menos teoricamente! -, isto é, ao núcleo familiar, pegando sobretudo os pais de surpresa. A família se viu sobrecarregada com tarefas que, na verdade, sempre foram dela, mas quase sempre terceirizadas: a educação inicial (escolar) e a transmissão da fé (catequese) a seus filhos.

04. A presente reflexão visa a recuperar, ainda que brevemente, o lugar que a Igreja sempre atribuiu às famílias, especialmente aos pais cristãos, na educação da fé das crianças, jovens e adultos. Se a Palavra e a liturgia encontram na “casa”, isto é, em cada lar, seu lugar privilegiado de vivência e expressão, também a catequese precisa ser redescoberta como um exercício eminentemente doméstico, em consórcio íntimo com outras formas de catequese comunitária e paroquial. Mais do que um grande problema, o recolhimento social a que fomos submetidos pela pandemia nos traz a oportunidade de assumir de vez essa questão tão importante. Um rápido percurso histórico será feito, desde a catequese judaica, berço da nossa fé, até as perspectivas e desafios para uma catequese em família hoje.

I. O JUDAÍSMO E A CATEQUESE EM FAMÍLIA

Família de judeus durante a refeição da Pessach, a Páscoa Judaica. (Foto: Reprodução)

05. O judaísmo é uma cultura e uma religião que têm na família a sua centralidade, e é dentro do lar e nos costumes inculcados pela família que todo judeu desenvolve sua fé e molda seus comportamentos. A base religiosa da vida dos filhos é de responsabilidade do pai e da mãe. As crianças aprendem pelo exemplo dos pais e, desde cedo, participam dos ritos tradicionais de seu povo. A iniciação catequética e litúrgica, portanto, acontece prioritariamente em casa e de modo integrado. Não há uma distinção entre o que se sabe sobre Deus e o que se reza a Deus. O conteúdo catequético é o mesmo conteúdo litúrgico.

06. A família é verdadeira escola de fé, pelo que é dito em casa, pela maneira como os mandamentos de Deus são vividos e pelo espírito orante que marca a vida doméstica. Ela é a guardiã dos preceitos e das tradições. Ensinamentos éticos e valores morais, sobretudo, são amadurecidos dentro do lar. Aí se aprendem a honra aos pais, o zelo pelos pobres, a acolhida e hospitalidade aos estrangeiros, a valorização dos mais velhos, a caridade para com os enfermos e as regrinhas básicas para um relacionamento saudável e equilibrado. É na família que a Aliança deve ser vivida de modo mais pleno, e a experiência da presença de Deus é feita de muitos modos, especialmente nos relacionamentos amorosos entre pais e filhos.

07. Essa formação catequética e litúrgica não se dá somente pelo ensino teórico. A dimensão simbólica é fundamental para a vivência religiosa e cultural do judaísmo. Vários objetos, que fazem parte do cotidiano, significam muito na construção desse aprendizado. No batente da porta das casas judias, há um mezuzá, pequeno pergaminho que contém o Shemá (“escuta, ó Israel, o Eterno é nosso Deus, o Eterno é Um…”), a ser rezado diariamente como expressão de fidelidade a Deus. Passar pela mezuzá, quando se entra ou se sai da casa, é entender que toda a conduta deve ter como inspiração as palavras sempre sábias do Eterno. Não se trata de um amuleto protetor, mas de uma afirmação de compromisso e identidade. Outros símbolos, objetos e ritos auxiliam na expressão da fé da família judaica e são fortemente catequéticos: velas que são acesas à chegada do Shabat (sábado, o dia santo judaico), comidas apropriadas para as festas, o lavar as mãos de forma ritual, os nomes dados aos filhos, as bênçãos e orações apropriadas para cada momento do dia, cerimônias altamente significativas por ocasião dos casamentos e funerais etc.

08. O jeito judaico de ensinar passa pela experiência, pela vivência, pela dimensão do simbólico, do orante e do ritual. As crianças crescem ouvindo os grandes feitos de Deus na história de seus antepassados e procurando discernir a passagem desse mesmo Deus pela sua história pessoal.  A vida judaica, no seu todo, é marcada pela oração. Há bênçãos para inúmeras circunstâncias cotidianas. Deus, ao abençoar, comunica a plenitude dos seus dons. O ser humano, ao bendizer Deus, reconhece nele a fonte da vida. As bênçãos permitem que os judeus não se esqueçam de que vivem à sombra do Todo-poderoso, sob “as asas do Altíssimo” e que, consequentemente, devem viver na fidelidade e na gratidão. As festas e ritos são fundamentais para a educação na fé. O estudo das Escrituras ocupa papel importante na vida do judeu.No centro da espiritualidade de Israel está a Palavra pela qual Deus se fez conhecer a si mesmo e que ajuda a interpretar a história. Por isso, fazer conhecer a história do povo é ao mesmo tempo iniciar no mistério de Deus que opera nesta história. Daí a tarefa específica de todo judeu de conhecer a Palavra e transmiti-la às novas gerações”.[2] Essa transmissão da fé acontece, em primeiro lugar, na família, tendo seu prolongamento na sinagoga.

II. A IGREJA: DA CASA PARA O MUNDO

Jesus e seus discípulos na ceia. (Foto: Reprodução)

09. Jesus, como bom judeu que era, foi educado em casa, primeiramente pelos seus pais, pessoas de oração e conhecimento da Palavra de Deus, que viviam de acordo com a Toráh (o livro da Lei e dos mandamentos de Deus). Aos treze anos, ele já era um bar mitzváh[3]. Como bom judeu, fiel às tradições de seu povo, Jesus frequentava assiduamente as sinagogas (cf. Mt 4, 23; 13, 54; Mc 1,21; Lc 4, 15; 4, 31; 6, 6) e tomava parte das preces e orações do templo (cf. Mc 14, 49; 11, 17; Lc 19,47; Jo 18,20), que ele mesmo chamou de “casa de oração” (Mt 21,13). Quando pequeno, Jesus foi levado, por seus pais, ao templo para o rito da apresentação e da purificação da sua mãe Maria, conforme ditava a Lei (cf. Lc 2, 22-40). As peregrinações ao templo de Jerusalém fizeram parte da história de Jesus (cf. Lc 2, 42s).

10. Ainda que fosse um pregador ambulante, liberdade que o anúncio do Reino lhe exigia, Jesus valorizava muito a casa das pessoas.A casa, enquanto espaço familiar, foi um dos lugares privilegiados para o encontro e o diálogo de Jesus e seus seguidores com diversas pessoas (Mc 1, 29; 2, 15; 3, 20; 5, 38; 7, 24). Nas casas ele curava e perdoava os pecados (Mc 2, 1-12), partilhava a mesa com publicanos e pecadores (Mc 2, 15ss; 14, 30), refletia sobre assuntos importantes, como o jejum (Mc 2,18-22), orientava sobre o comportamento na comunidade (Mc 9, 33ss; 10, 10) e a importância de se ouvir a Palavra de Deus (Mt 13, 17.43). […] Os encontros de Jesus, ao longo de seu caminhar, criam oportunidades para experiências que reforçam e alargam as relações fraternas e comunitárias nos ambientes domésticos por onde ele passa (Mt 8, 14; Lc 10, 38-42; Lc 19, 1-10). A casa é, assim, assumida como lugar para cultivo e a vivência dos valores do Reino.”[4]

11. É de grande significado para nós o fato de Jesus ter nos presenteado com a Eucaristia em contexto doméstico e fraterno, na companhia de seus discípulos e, provavelmente, de sua mãe e outros amigos: “E digam ao dono da casa onde ele entrar: ‘O Mestre manda dizer: Onde é a sala em que eu e os meus discípulos vamos comer a Páscoa?’ Então ele mostrará para vocês, no andar de cima, uma sala grande, arrumada com almofadas. Preparem aí tudo para nós”. (Mc 14, 14-15).  Do mesmo modo, tanto na linguagem lucana (cf. At 2, 1-3), quanto na joanina (cf. Jo 20, 19-22), o Espírito Santo foi derramado sobre os discípulos em um cenáculo, pequena sala onde eles se reuniam para as orações e para fazer a memória de tudo que o Senhor lhes havia dito.

12. Tanto o livro dos Atos dos Apóstolos como as cartas de Paulo nos atestam o costume das comunidades cristãs de se reunirem nas casas para oração, aprofundamento da Palavra, celebração da Eucaristia e experiências de partilha dos bens. Digna de menção é a casa de Priscila e Áquila (cf. 1Cor 16, 9), “modelo de família capaz de alargar os horizontes do seu lar para acolher os irmãos na fé, em uma casa aberta e ampliada que se torna Igreja”.[5]

13. As experiências da presença do Ressuscitado nos ambientes das casas confirmam a sua promessa: “Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estarei aí, no meio deles!” (Mt 18, 20). O conhecido relato do encontro de Jesus com os discípulos de Emaús (cf. Lc 24, 13-35) é paradigmático nesse sentido. Se é no caminho que o divino Peregrino ouve as angústias dos seus amigos e aprofunda com eles a Palavra, é no aconchego da casa e da refeição fraterna que seus olhos se abrem e eles dão conta de reconhecer o Cristo, cuja Palavra lhes fazia arder os corações (cf. Lc 24, 32). E daí, saem correndo para anunciar aos demais, que estavam reunidos em outra casa, o evento central que sempre sustentou a fé das comunidades cristãs (cf. Lc 24, 34-35). Portanto, é da casa para o mundo que ecoa a Boa-Nova: o Senhor está vivo! Ele está no meio de nós! A casa permitiu que o cristianismo primitivo se organizasse em comunidades pequenas, com poucas pessoas, que se conheciam e compartilhavam a mesa da refeição cotidiana”.[6] Mesmo depois, com o crescimento do número de cristãos, a casa não perdeu o seu lugar simbólico do que se espera que a Igreja sempre seja: família, casa da acolhida fraterna, lugar da comunhão dos irmãos e irmãs!

III. CATEQUESE EM FAMÍLIA: CAMINHOS HISTÓRICOS

Família em oração (Foto: Reprodução)

14. A catequese da Igreja primitiva girava em torno do chamado kerigma, isto é, o anúncio da salvação trazida por Jesus Cristo, que se concentrava nas suas obras, morte, ressurreição e glorificação pelo poder de Deus, e visava ao despertar da fé, à conversão dos pagãos e sua consequente adesão ao discipulado. Pouco a pouco, a Igreja nascente viu a necessidade de uma instrução mais profunda daqueles que estavam em processo de conversão, oferecendo-lhes um anúncio mais sistemático. Há acenos dessa catequese narrativa em vários episódios descritos pelos Atos dos Apóstolos: o anúncio da Boa-Nova a Filipe (cf. At 8, 26-40); a vinda do Espírito sobre a família de Cornélio (cf. At 10); Barnabé e Paulo ensinando os irmãos em Antioquia, durante um ano (cf. At 11, 26); Paulo em Trôade (cf. At 20, 7-12) e em Éfeso (cf. At 20, 17-36). Já no início, Atos fala da assiduidade à escuta do anúncio dos apóstolos. Também a liturgia foi se firmando como o lugar privilegiado do anúncio pascal e do aprofundamento da Palavra, tanto nos ritos quanto nas homilias.[7]

15. A Didaqué[8] nos apresenta, sucintamente, como as comunidades cristãs do primeiro século viviam sua fé em comunidades pequenas, com a mínima estrutura, sem ministérios fixos, com liturgias muito simplificadas, resumidas a celebrações em ambiente doméstico. Os capítulos IX e X deixam claro que a celebração eucarística acontecia dentro de uma refeição comum, da qual participavam somente os batizados. No mais, o texto catequético se dedica a apontar o caminho àqueles que, pelo batismo, optaram pela vida cristã: amor, partilha, serviço, perseverança no bem e na justiça, hospitalidade, oração, enfim, vida comunitária.

16. Não tardou para que a mensagem cristã deixasse os ambientes judaicos e se estendesse além-fronteiras. A tendência judaizante do cristianismo foi vencida pela ideia da universalidade da salvação, bem refletida no que o evangelista Marcos nos relata quanto ao mandato missionário do Senhor: “Então Jesus disse-lhes: Vão pelo mundo inteiro e anunciem a Boa Notícia para toda a humanidade’’ (16, 15). Não tardou também para que os choques culturais acontecessem, e a evangelho necessitasse de outras roupagens para se fazer entender em terras estranhas. Entre heresias e apologias[9], o cristianismo foi se firmando aos longos dos séculos. Também as perseguições aos cristãos foram se tornando mais sistemáticas e generalizadas, no final do século III, início do século IV. Vale lembrar, aqui, que aqueles que realmente estavam convictos da sua fé tiveram que vivê-la e transmiti-la às escondidas. Ainda no século II da nossa era, cristãos abastados de bens cediam suas casas, com lugares definidos para o clero e para os fiéis, favorecendo as celebrações litúrgicas. Ficaram conhecidas como Domus Ecclesiae[10].

17. A distância da primeira primavera da Igreja, isto é, Pentecostes, foi alargando para as novas gerações de cristãos, e o primeiro amor, transmitido e testemunhado pelos apóstolos e seus mais fiéis seguidores, foi se esfriando. O catecumenato, que começara possivelmente em meados do século II, no século seguinte, foi se estruturando como a resposta mais eficaz da Igreja à preparação e recepção daqueles que se convertiam ao cristianismo. Destinado exclusivamente aos adultos, o catecumenato consistia em um processo gradual e progressivo de conhecimento vivencial e adesão a Jesus Cristo e à sua proposta de vida. Conciliava: resposta de fé ao anúncio feito pela Igreja, aprofundamento da experiência de encontro com Jesus na oração e na escuta da Palavra, instrução quanto aos ensinamentos essenciais da fé cristã, recepção dos sacramentos da iniciação (batismo-confirmação-eucaristia) e, consequente, testemunho de vida. Há notícias de que, no Concílio de Elvira (306), exigia-se dois anos de caminhada, exigência essa que foi ampliada para uma média de três anos, posteriormente.[11] Infelizmente, no VI e VII séculos, o catecumenato foi declinando, bem como o espírito que o animava, até que desapareceu por completo. Desse período áureo do catecumenato temos lindas catequeses dos chamados Santos Padres, que hoje buscamos resgatá-las em vista a uma catequese mais mistagógica.

18. Para não perdermos o filão dessa reflexão, é importante ressaltar que a catequese ainda estava vinculada à casa e aos lares cristãos. Ainda que a conversão fosse um ato eminentemente do adulto, entende-se que o adulto convertido e tornado cristão se responsabilizava em educar na fé a sua família. Sabe-se, por exemplo, que, ainda que não fosse regra generalizada, crianças eram batizadas nesse período, o que configurava um desejo de que toda a família fosse cristã. Digna de nota é a “conversão” do imperador Constantino, e a liberdade concedida ao cristianismo – não sem interesses políticos! – no ano de 313, colocando a Igreja em uma nova condição: de perseguida a privilegiada. Entramos em uma nova fase que durará séculos, passando por toda a Idade Média, o chamado “tempo da cristandade”, em que ser cristão era estar imerso em uma sociedade cristã, ao menos em teoria. Tudo cheirava à sacristia da igreja e todos eram cristãos desde o nascimento, sem nenhum incômodo, desde que obedecessem às autoridades religiosas e políticas. A catequese continuava apostando na família, apesar da maioria já não ter mais o vigor do comprometimento com o Evangelho, mas não abria mão da fachada cristã. Havia algumas escolas paroquiais ou ligadas aos mosteiros e as pregações dominicais para manter a sociedade religiosa. “Havia pouca formação catequética nas famílias. Os concílios de Arles (813) e Aix-la-Chapelle (836) insistiram para que os pais e padrinhos ensinassem às crianças o Pai-Nosso e o Creio, mas na comunidade não se organizava nenhuma catequese para as crianças; só se mandava que os pais, voltando para casa, explicassem aos filhos o significado do sermão, e que os padrinhos fossem exemplos de vida cristã para os afilhados”.[12] Enfim, sobrevivia-se com o mínimo!

19. Mas o século XVI sopraria ventos com forças além das esperadas pela Igreja. E viriam de dentro dela mesmo! Martin Lutero, padre agostiniano, descontente com vários ensinamentos e práticas da Igreja, fez sua as vozes de outros também insatisfeitos e pediu reformas. Não havendo entendimentos nem da parte dos reformadores nem da parte da Igreja liderada pelo papa Leão X, ela se fragmentou como nunca havia acontecido com tal gravidade. Em 1517, Lutero publicou suas famosas 95 Teses, seguidas de muitos outros textos, como o Catecismo Alemão (Grande Catecismo) e o Pequeno Catecismo para o uso dos simples pastores e pregadores, como também colocou as Sagradas Escrituras traduzidas na mão do povo. Na contrapartida, a Igreja Católica começou a publicar seus catecismos, como os famosos de São Pedro Canísio e o de São Carlos Borromeu, este encomendado pelo Concílio de Trento (1545-1563). Como os novos tempos e a invenção da imprensa trouxeram consigo a escolarização das crianças, os protestantes logo criaram as escolas dominicais para instruir os filhos de seus seguidores. Obviamente, a Igreja Católica seguiria essa mesma trilha. Nasceu o catecismo paroquial, que foi assumindo proporções generalizadas, nas cidades e comunidades rurais, até os tempos recentes. Surgiu, então, a instrução doutrinal em momento de extrema necessidade, confiada a catequistas paroquiais, que entenderam sua missão como escolarização religiosa das crianças, em vista da recepção dos sacramentos da eucaristia e, em algumas épocas, da confirmação. As famílias, em grande parte despreparadas no conhecimento da teologia católica, foram ficando cada vez mais distante dessa obrigação da educação da fé de seus filhos, “terceirizando” às instâncias paroquiais esse compromisso.

20. Uma segunda primavera da Igreja seria antevista pelo papa João XXIII, ao anunciar, na festa da conversão de Paulo, em 25 de janeiro de 1959, a decisão de convocar o Concílio Vaticano II. De fato, o Espírito, como o vento, sopra onde quer e quando quer (cf. Jo 3, 8). O século XX foi, para a catequese, momento de amadurecimento e novos rumos: “Pastoralmente, é o século da catequese: rico de ideias, iniciativas, documentos do magistério e viragens decisivas. Caracteriza-se por um centro irradiador: o Concílio Vaticano II, acontecimento que inspirou e consolidou algumas linhas de orientação e de renovação do itinerário catequético atual”.[13] Na América Latina, especialmente no Brasil, as inspirações conciliares foram muito bem acolhidas no terreno da catequese. Congressos, Semanas de Catequese, formações, textos abundantes, grandes catequetas… tudo isso tem levado a catequese a rever não somente seus métodos, mas também seus conteúdos, ampliar seus interlocutores e principais agentes. Pouco a pouco, a família foi reaparecendo no horizonte da educação da fé: em alguns momentos como destinatária dos esforços catequéticos, em outros como protagonista.

IV. PANDEMIA 2020: O RETORNO AO LAR E O DESAFIO DA CATEQUESE EM CASA

Associação das mulheres indígenas Sateré Mawé produzem máscara na pandemia de Covid-19 (Foto: reprodução)

21. O ano de 2020 ficará marcado para sempre na história da humanidade como o ano da grande  epidemia da COVID-19, que vem ceifando vidas em todas as partes do mundo. De uma hora para outra, o mundo se viu de “pernas pro ar”. Governos, profissionais de saúde, cientistas, sociedade civil, Igrejas, todos tivemos que tomar medidas urgentes para tentar minimizar a contaminação pelo vírus mortal e os impactos da doença. Ainda é impossível quantificar a proporção dos impactos sociocultural, econômico, político, psicológico e religioso causado pelo vírus e o uso (e abuso!) que dele se faz, na tentativa de superação dessa ameaça de destruição da humanidade. Todos os setores estão tentando adequar sua vida ao novo contexto, com mais perguntas do que respostas a respeito do dia de amanhã. Na vida da Igreja não é diferente. As estruturas eclesiais também se mostraram despreparadas para lidar com a nova situação, e os templos e centros pastorais tiveram que fechar, provisoriamente, as suas portas, para colaborar na salvação das vidas, não somente para a eternidade, mas já, para o hoje da história de cada fiel católico. Alternativas foram buscadas de todos os lados; no entanto, para além das respostas ao atendimento espiritual do povo, um grande deslocamento se deu: a Igreja transferiu-se para dentro de cada lar. Melhor dizendo: a Igreja, que cada lar cristão é, precisou vir à tona e fazer-se valer, efetivamente.

22. Sem romantismos, mas buscando uma visão bem realista, para muita gente ficar dentro de casa não está sendo nada fácil! Forçosamente, tivemos que permanecer mais tempo dentro dos nossos lares, conviver com aqueles que, possivelmente, há tempos não convivíamos por conta da correria ou dos desafetos. Tivemos que nos apertar em casas estreitas, sentar à mesma mesa no horário das refeições, dividir as tarefas domésticas, batalhar pelo pão de cada dia, nos enquadrar em regras de boa convivência e olhar nos olhos daqueles que deveriam ser os mais importantes para nós, tomados pelo medo e pela angústia, a pedirem amor, solidariedade, cuidado. E como lhes temos respondido?

23. A intensificação do convívio familiar foi de grande importância para muitos de nós, no momento em que o núcleo familiar vinha sofrendo grandes abalos e fragmentações. Conviver mais intensamente com aqueles que deveriam ser os mais próximos a nós pode levar-nos a pensar na família como comunidade de amor e cuidado, imprescindíveis em nossas vidas.A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”, já dizia o grande poeta Vinícius de Moraes. E cessando, ainda que por um tempo, o nosso corre-corre, pudemos nos encontrar (ou desencontrar!) com a realidade de alegrias e tristezas de nossos familiares, inclusive tendo a chance de superar os tais bloqueios e desafetos. Será que poderemos reaprender a diferença entre ter uma casa e ter um lar; que há valores preciosos bem mais perto de nós do que pensamos; e que relações mais saudáveis com os familiares farão de nossa família o lugar da acolhida, da ajuda mútua, do cultivo da vida feliz e da experiência da presença de Deus?

24. A catequese presencial nas paróquias também foi suspensa por tempo indeterminado. Já que todos foram obrigados ao recolhimento social, permanecendo em suas casas, também os catequistas e catequizandos tiveram que modificar sua rotina. Não obstante várias iniciativas de suplência tomadas pela Igreja, a esperança da continuidade do processo catequético foi depositada na figura dos pais e das famílias. Foi então, que constatamos, sem disfarces, o que há muito já sabíamos: ”o rei está nu!”.[14] Percebemos, com significativas exceções, que a maioria dos pais sequer compreende o que seja a catequese. Sentem-se totalmente despreparados para liderar o processo e oprimidos por uma missão que julgam não ser deles.

V. A CASA E A PALAVRA NA CATEQUESE: DESAFIOS E PERSPECTIVAS

Celebração na ocupação Rosa Leão (Foto: reprodução)

25. Fala-se do retorno a um “novo normal”, no pós-pandemia. A mim a expressão não agrada, se por normal se entender a retomada das coisas “velhas” para mantê-las do mesmo modo. A “pastoral de manutenção”, tão combatida pela Igreja nos últimos tempos, é uma inimiga atraente que ronda nossas práticas, sempre tentando nos convencer a “deixar do jeito que está pra ver como é que fica”, na lei do menor esforço. Quanto a isso, o documento da Conferência de Aparecida é enfático: “Nenhuma comunidade deve isentar-se de entrar decididamente, com todas as forças, nos processos constantes de renovação missionária e de abandonar as ultrapassadas estruturas que já não favorecem a transmissão da fé”.[15] E há algo mais: a ideia de “novo normal” nos dá a impressão de que o tempo da pandemia funcionou mais ou menos como parênteses que foram abertos e, ao serem fechados, ficaremos autorizados a seguir como se nada tivesse, de fato, acontecido. Não! O novo já começou! O que estamos experimentando, agora, já faz parte de um novo ciclo iniciado na história da humanidade e, oxalá, o amanhã seja a consolidação dos bons aprendizados que tivemos até aqui. Por isso, mesmo mantendo nosso realismo quanto ao lado trágico dessa pandemia, não podemos deixar de olhar para tudo que estamos vivenciando como oportunidade de aprendizados, apelos de mudança e possíveis resgates.[16] E, dentre os resgates a serem feitos, especificamente pensando na catequese, não há dúvidas de que o protagonismo da família na educação da fé das novas gerações há de ser um dos mais importantes. Segundo o cardeal José Tolentino Mendonça[17], “antes de ser templo, a Igreja foi casa. Jesus saiu do templo e entrou na casa. E aí começou a experiência cristã.”  Mas, como já acenamos, a casa, pouco a pouco, foi perdendo a sua força de epicentro do kerigma. É agora a hora de acolhermos os sinais dos tempos e repensarmos o caminho que temos feito. É momento de tentarmos responder com mais seriedade a questões que se mostram fundamentais: que lugar nossas famílias têm dado à vida cristã? O que seria, de fato, a catequese com a família e em família? O que a Igreja espera dos pais em relação à educação da fé de seus filhos? Que tipo de interação poderia ser aprofundada entre as famílias dos catequizandos e a catequese dada nas nossas comunidades eclesiais? Essas e outras questões precisam, com urgência, ocupar as atuais pautas dos nossos debates, sob pena de retomarmos a rotina de nossa catequese paroquial, sem termos tirado boas lições desse momento crítico que vivemos em nossa caminhada pastoral.

26. Nesse momento de pensarmos alternativas ou soluções, podemos partir do pressuposto histórico de que descuidamos sobremaneira da catequese com os adultos. Na ânsia de suprir as deficiências cumulativas na educação da fé das crianças, acabamos por supor que seus pais estavam evangelizados o suficiente para darem conta de sua missão de primeiros catequistas. É certo que muitos pais, especialmente aqueles que participam das atividades pastorais e evangelizadoras de nossas comunidades, estão bem nutridos da Palavra e têm feito de seus lares verdadeiras Igrejas domésticas. Muito desse mérito deve-se aos esforços da Pastoral Familiar e outros movimentos de casais existentes em nossa Igreja. O novo Diretório para a Catequese traz uma palavra de gratidão a essas famílias cristãs, pela riqueza de seu testemunho: “com íntima alegria e profunda consolação, a Igreja olha para as famílias que se mantêm fiéis aos ensinamentos do Evangelho agradecendo-as e encorajando-as pelo testemunho que oferecem. Graças a elas, de fato, se torna credível a beleza do matrimônio indissolúvel e fiel para sempre[18]. No entanto, nem mesmo esse Setor Família tem atingido, como se esperava, um número considerável das famílias de nossos catequizandos. Há paróquias com uma visão muito restrita do campo de ação da pastoral familiar, contentando-se com grupos de casais autocentrados, sem perspectiva missionária, com ações voltadas apenas para o atendimento daqueles já integrados na vida eclesial. Todo o impulso dado pela Iniciação à Vida Cristã, sobretudo no Brasil, tem sido sinal de esperança para que tenhamos adultos verdadeiramente discípulos de Jesus Cristo e capazes de viver com integralidade a sua fé e transmiti-la às novas gerações.

27. Mas, infelizmente, uma parte maior dessas famílias foi somente “vernizada” de Evangelho, se quisermos usar uma expressão do papa Paulo VI[19], contentando-se com uma catequese incipiente, não raras vezes focada apenas na doutrina cristã, mas sem mais exigências vivenciais da fé. Junte-se a isso o estilo de vida atual, que em nada favorece o cultivo de uma espiritualidade cristã, como lembra Cárdenas Glez: “ultimamente, a transmissão da fé nas famílias tem tido características e acentuações que não se viviam antes: a vida de trabalho dos pais com seus horários, o descanso dos finais de semana, os meios de comunicação e tantas outras novas situações, fazem com que a vivência de fé em família seja cada vez mais esporádica, marginal e até nula. Parece que não há lugar para Deus… No melhor dos casos, a fé vem ao final da lista de necessidades”.[20] Desse modo, a família não dá conta de se anunciar como Boa-Nova do Reino[21] e os pais não têm muito o que oferecer a seus filhos em termos de exemplos de vida cristã.  Essa realidade nos desafia e exige da Igreja iniciativas mais eficazes e orgânicas na evangelização e sustentação da vida de fé das famílias, em perspectivas mais missionárias e atentas a uma linguagem que realmente possa ecoar no coração de cada lar.

28. Mas, quando se fala do protagonismo da família, especialmente dos pais cristãos, na catequese das novas gerações, em que exatamente se pensa? Seria muni-los de instruções, cursos e manuais para que eles mesmos transmitam sistematicamente a seus filhos os conteúdos que fundamentam a fé cristã católica? Essa insegurança no conhecimento dos elementos essenciais da nossa fé tem vindo à tona nesse tempo de pandemia, em que catequizandos de todas as idades têm desafiado seus pais com muitas perguntas, deixando-os literalmente sem palavras. Cuidar da sua formação, para que saibam “dar as razões de sua esperança” (1Pd 3, 15) e construir suas vidas nessas bases seguras, sempre foi e continuará sendo tarefa da Igreja. Ser cristão em uma sociedade tão plural, na qual a Palavra de Deus precisa ser discernida, em meio a tantas palavras humanas infladas pelos sofisticadíssimos meios de comunicação e pelas mídias sociais, em tempos de pós-verdades e de tantas fake news, não é nada fácil! Admitir que a cristandade acabou há muito tempo e que não estamos mais em uma sociedade assumidamente cristã, e que pululam por toda parte propostas de vida as mais variadas, muitas até destoantes do Evangelho, é fundamental. Em contexto com nuances muito diferentes, mas com a mesma carga de gravidade dos primeiros tempos do cristianismo, o pluralismo atual exige que a vida cristã volte a ser opção segura, madura, esclarecida, alimentada pela espiritualidade, adesão a Jesus e a seu projeto de vida, e não apenas aderência a uma religião. É como profetizava o teólogo Karl Hahner, no século passado: “o cristão do futuro, ou será um místico ou não será nada”.[22]

29. A catequese que se espera dos pais é aquela do testemunho cristão, que aponta o sentido da vida a partir da experiência de Deus. Em outras palavras, o que as novas gerações precisam receber de seus pais e demais adultos da família (irmãos, avós, tios etc.) é a concretude de uma fé traduzida em gestos capazes de iluminar os eventos familiares, desde os mais simples do dia a dia. Valorizem-se a oração em família, a bênção dos alimentos à mesa, o “Deus te abençoe” e o “vá com Deus”. Sejam cultivados a educação para os valores éticos e humanos decorrentes de uma fé esclarecida, o exato lugar de Deus em meio aos acontecimentos felizes ou aos trágicos vividos pela família, o respeito às pessoas que são sacramentos de Deus em nossos lares e fora deles, as narrativas dos feitos maravilhosos de Deus na vida de cada um de seus membros: “o que ouvimos e aprendemos, o que nossos pais nos contaram, não os esconderemos dos nossos filhos; contaremos à próxima geração os louváveis feitos do Senhor, o seu poder e as maravilhas que fez”. (Sl 78, 3-4).  

30. Podemos falar de uma missão iniciática dos filhos à fé cristã, assumida pelos pais no lar, Igreja doméstica, em interação com outras possibilidades de catequese oferecidas pela Igreja em outros contextos. E como não pode haver eficaz iniciação de alguém sem o aspecto vivencial, pensar a casa e a Palavra na catequese é pensar a dinâmica do lar, imbuída do espírito evangélico muito mais do que sua repetição teórica: “trata-se de uma educação cristã mais testemunhada que ensinada, mais ocasional que sistemática, mais permanente e cotidiana do que estruturada em períodos[23]. Isso não exclui, obviamente, a possibilidade e necessidade dos pais cristãos aprofundarem a sua fé e conhecerem melhor a doutrina da sua Igreja. No entanto, o que se espera de uma catequese em família é que seus membros, juntos, possam escrever uma teografia[24] familiar que os faça perceber sempre os rastros do amor de Deus, na cotidianidade da vida. Uma catequese que os leve a testemunhar isso à sociedade, como no início do cristianismo, em que as casas dos cristãos irradiavam aos de fora o valor da fé e as relações nelas estabelecidas funcionavam como modelos para as relações na comunidade eclesial. Lar cristão e Igreja se referem mutuamente, em íntima reciprocidade, como reforça o Diretório para a Catequese: “Comunidade e família são, uma para a outra, uma constante e recíproca referência: enquanto a comunidade recebe da família uma compreensão da fé imediata e ligada naturalmente aos acontecimentos da vida, a família, por sua vez, recebe da comunidade uma chave explícita para reler, na fé, a própria experiência”.[25]

31. Nesse tempo de pandemia, dentre tantas iniciativas de aproximação da Igreja às famílias, desejosa de entrar em cada lar e em cada coração, viu-se emergir uma relação até então pouco explorada: a da Igreja com os meios de comunicação e as mídias sociais. De acordo com Sbardelotto, “o fenômeno digital escancarou as casas ao mundo, fazendo com que as pessoas fossem convocadas ao ‘céu aberto’ da comunicação, inclusive para viver uma nova eclesialidade (ekklesía, do grego, “chamar para fora”), ressignificada pelo fechamento dos templos e pela conectividade das redes. Essa conjuntura problematizou não só a compreensão da fé, mas também a sua própria experiência”.[26] De fato, esse “fenômeno digital” trouxe mudanças muito interessantes, sobretudo, em relação aos meios tradicionais de transmissão e celebração da fé e muitos questionamentos quanto ao seu uso na evangelização, na catequese e na liturgia. Fato é que não se poderá mais desconsiderar sua relevância daqui para frente, sobretudo quando se olha para o interior das casas, onde o uso desses meios, em proporções e condições diferenciadas, é uma realidade eminente. Boa parte das famílias está conectada muitas horas por dia, e essas conexões geram um novo tipo de interação e presença. Como reforça o autor citado, “é preciso, portanto, superar a dicotomia ‘virtual x real’, ‘offline x online’. Hoje, vivemos uma experiência ‘onlife’.”[27] Isso não é só um detalhe a mais, quando pensamos a relação catequese e família, mas um aspecto que merecerá muitas reflexões da nossa parte.

32. O novo Diretório para a Catequese, além de várias referências à família ao longo do texto, dedica vários números à consideração da sua importância no processo de educação da fé.[28] Traz como âmbitos da catequese familiar: a) a catequese na família (227-228); b) a catequese com a família (229-230); c) a catequese da família (231), além de apresentar preciosas indicações pastorais (232) e os novos cenários familiares (233-235). Nas indicações pastorais, ele chama a nossa atenção para o “arco da existência”, especialmente para momentos decisivos da vida familiar aos quais a comunidade cristã deverá direcionar sua solicitude: preparação dos jovens e adultos para o matrimônio, catequese mistagógica para os novos casais, catequeses dos pais que pedem o batismo para seus filhos ou estão em processo de iniciação à vida cristã, catequese intergeracional e nos grupos de casais. Isso confirma para nós o que há tempos a catequese vem apontando, não obstante a fragmentação pastoral existente em nossas paróquias: catequese não é só o conjunto de ações que visam à educação da fé das crianças e jovens, mas abre-se um leque de direções que exige uma pastoral orgânica e uma visão de catequese permanente, que vai do útero materno ao útero da terra, com a morte. Portanto, pensar a catequese, hoje, equivale a vencer a tentação dos partidarismos e somar esforços, dialogar, planejar em comunhão, “enxugar” projetos e buscar a unidade pastoral.

33. Ao tratar dos novos cenários familiares, o Diretório revela o lado materno da Igreja em relação a “novas relações, novos casais, novas uniões, e novos casamentos”[29], mostrando que, “com cuidado, respeito e solicitude pastoral, a Igreja quer acompanhar aqueles filhos marcados por um amor ferido, que se encontram em uma condição mais frágil, renovando-lhes a confiança e esperança[30]. De modo muito específico, ele atribui à catequese uma urgente missão: “Além do acompanhamento espiritual pessoal, os catequistas encontrem caminhos e modos para favorecer a participação destes irmãos também na catequese: em grupos específicos formados por pessoas que partilham da mesma experiência conjugal ou familiar; nos outros grupos de famílias ou de outros já existentes. Assim, é possível evitar formas de isolamento ou discriminação e despertar o desejo de acolher e responder ao amor de Deus”.[31]

CONCLUSÃO

34. Percorremos um caminho longo nessa reflexão, mas interessante para nos ajudar a pensar o lugar que a “casa” e a “Palavra” ocuparam, estão ocupando e vão ocupar em nossos processos catequéticos. Partindo da experiência da vida religiosa e catequética dos judeus em contexto doméstico, passamos pela história da Igreja e chegamos aos dias de hoje, marcados pelo impacto da pandemia, que nos obrigam a pensar essa relação tão necessária da catequese – e não podemos deixar de acrescentar aqui a liturgia! – com as famílias. Vimos que a Igreja nasceu no contexto da casa e do pequeno grupo fiel à prática de Jesus, Verbo que armou sua tenda (sua casa) no meio de nós (cf. Jo 1, 14). Entendemos a Igreja doméstica, na qual a educação e a celebração da fé deveriam lhe dar uma identidade, como modelo de organização e vivência de amor, comunhão, ajuda mútua e vida fraterna. O embrião do cristão comprometido com um mundo melhor é gerado no útero familiar, e ali deve ser cuidado amorosamente. Se a missão da catequese é educar a pessoa na fé, na esperança e no amor para que seja “sal da terra e luz do mundo” (cf. Mt 5, 13-14),  essa educação começa no santuário de vida que é a família, sempre auxiliada pela comunidade eclesial nessa missão: “os pais devem ser orientados não só para dar uma formação consciente e explicitamente cristã aos filhos, mas para eles mesmos crescerem em seu compromisso cristão e na capacidade de iluminar pela fé a realidade familiar e social, que são chamados a construir”. [32]

(Os grifos são nossos)

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

a) Documentos Pontifícios

Declaração sobre a Educação Cristã (Gravissimum Edicationis). Compêndio do Vaticano II. Petrópolis: Vozes, 1987.

PONTIFÍCIO CONSELHO PARA A PROMOÇÃO DA NOVA EVANGELIZAÇÃO. Diretório para a Catequese. São Paulo: Paulus, 2020.

JOÃO PAULO II. A Catequese em nosso tempo (Catechesi Tradendae). São Paulo: Salesiana, 1982.

PAULO VI. A Evangelização no mundo contemporâneo (Evangelii Nuntiandi). São Paulo: Paulinas, 1977.

b) Documento do Episcopado Latino-americano

Documento de Aparecida. São Paulo: CNBB, Paulus e Paulinas, 2007.

c) Documentos da CNBB

Catequese Renovada (doc. 26). São Paulo: Paulinas, 1983.

Diretório Nacional de Catequese (doc. 84). São Paulo: Paulinas, 2005.

Comunidade de comunidades: uma nova paróquia: a conversão pastoral da paróquia (doc. 100). São Paulo: Paulinas, 2014.

Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora no Brasil 2015-2019 (doc. 102). São Paulo: paulinas, 2015.

Iniciação à Vida Cristã: itinerário para formar discípulos missionários (doc. 107). Brasília: CNBB, 2017.

Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora no Brasil 2019-2023 (doc. 109). Brasília: CNBB, 2019.

d) Outras obras

BOLLIN, A.; GASPARINI, F. A Catequese na vida da Igreja. São Paulo: Paulinas, 1998.

GEEURICKX, J. A catequese na comunidade cristã. Pequena história da Igreja. Coleção Catequese Fundamental (vo. 9). Petrópolis: Vozes, 1991.

RAHNER, Karl. Escritos de Teologia VI. Madrid: Taurus Ediciones. 1967.

TEJO, Díaz Javier (org.). Después de la pandemia, ¿qué catequesis?  Ediciones Universidad Finis Terrae, 2020.

e) Sites

SBARDELOTTO, M. Virtualização da fé? Reflexões sobre a experiência religiosa em tempos de pandemia. Disponível em http://www.ihu.unisinos.br/601104-virtualizacao-da-fe-reflexoes-sobre-a-experiencia-religiosa-em-tempos-de-pandemia, acessado em 23.07.2020.

PAIVA, V. O Senhor foi grande conosco! Por isso estamos alegres! Disponível em http://www.ihu.unisinos.br/600293-o-senhor-foi-grande-conosco-por-isso-estamos-alegres-artigo-de-vanildo-de-paiva?fbclid=IwAR11Od5WO_a77hueSO68vDjdiLmEnZaVp0VyFT-ClHsng3mA4blvi1Hr-Qc, acessado em 23.07.2020.


Notas:

[1] Contatos do autor: vanildopaiva@hotmail.com – WhatsApp (35) 99707-3889.

[2] GEEURICKX, J.  A Catequese na Comunidade Cristã, p.11.

[3] Palavra que significa “filho dos mandamentos”. Aos treze anos, o menino se tornava um bar mitzvah e a menina, aos doze, uma bat mitzvah (filha dos mandamentos, das obrigações). Por ocasião desse ritual, que se dava em parte na sinagoga, em parte na própria casa, os filhos adquiriam as obrigações legais e religiosas dos adultos.

[4] Diretrizes Gerais da ação Evangelizadora no Brasil 2019-2023, nn. 73-74.

[5] Idem, n. 78.

[6] Idem ibidem, n. 80.

[7] BOLLLIN, A.; GASPARINI, F. A catequese na vida da Igreja, p. 22-23.

[8] Didaqué significa “instrução, doutrina”. Trata-se de um escrito certamente do final do primeiro século, uma espécie de catecismo dos primeiros cristãos. Ela nos traz notícias de como viviam as primeiras comunidades, como celebravam a sua fé e, sobretudo, que tipo de ética era exigida aos novos cristãos, que viviam dentro de uma sociedade pagã.

[9] HERESIA, nesse caso, é todo ensinamento ou ideia que contraria a doutrina professada pela Igreja. APOLOGIA é a defesa apaixonada e bem argumentada da doutrina da Igreja, combatendo a heresia.

[10] Domus Ecclesiae significa, literalmente, “casa da igreja”.  “A Igreja de Dura Europo é a mais antiga casa de oração cristã cujo local se encontra identificado, e uma das primeiras igrejas cristãs de que há registro. Situa-se em Dura Europo, na atual Síria, e aparenta ter sido uma habitação comum que foi convertida em casa de oração, que funcionou entre os anos 233 e 256, até a cidade ser abandonada, depois da conquista dos Persas” (Wikipédia).

[11] GEEURICKX, J. A Catequese na Comunidade Cristã, p. 28-29.

[12] Idem, p. 47-48.

[13] BOLLIN, A.; GASPARINI, F. A Catequese na vida da Igreja, p. 207.

[14] Referência a um conto no qual um rei é iludido por costureiros malandros a lhes encomendar uma vestimenta solene inigualável, mas totalmente transparente. Para confeccionar tal vestimenta lhe cobraram uma fortuna. O rei e toda sua corte, embora não vissem tal roupa, não quiseram questionar os artesãos, com medo de serem chamados de ignorantes e incapazes de apreciar tal obra de arte. Isto, até o dia em que o rei “vestiu” tal indumentária e foi desfilar em procissão solene, sob aplausos de todos que, mesmo não vendo roupa alguma, prefeririam se calar. Mas, uma criança não deixou por menos. À passagem do rei, apontou a farsa, gritando em alto e bom som: “o rei está nu!”. 

[15] Documento de Aparecida, n. 365.

[16] Sobre esses aprendizados, escrevi um outro artigo nos quais tento olhar para eles de modo mais detalhado: http://www.ihu.unisinos.br/600293-o-senhor-foi-grande-conosco-por-isso-estamos-alegres-artigo-de-vanildo-de-paiva?fbclid=IwAR11Od5WO_a77hueSO68vDjdiLmEnZaVp0VyFT-ClHsng3mA4blvi1Hr-Qc.

[17] Live sobre espiritualidade cristã, e, 24.06.2020, disponível em http://radioamerica.arquidiocesebh.org.br/noticia/dialogos-on-line-de-teologia-pastoral-veja-a-live-com-o-cardeal-dom-jose-tolentino-mendonca/.

[18] Diretório para a Catequese (2020), n. 226.

[19] PAULO VI. Evangelii Nuntiandi, n. 50.

[20] GLEZ, H. C. Transmitir la fe desde la família en tiempo de pandemia. In Después de la pandemia, ¿qué catequesis?, p. 29 : “En el último tiempo, la transmisión de la fe en las famílias ha tenido características y acentuaciones que no se vivían antes: la vida de trabajo de los papás con sus horarios, el descanso de los fines de semana, los medios de comunicación y tantas nuevas situaciones, hacen que la vivencia de la fe en la familia sea cada vez más esporádica, marginal y hasta nula. Parece que no queda lugar para Dios (…) En el mejor de los casos, la fe viene al final de la lista de necessidades”.

[21] “A vida conjugal e familiar, vivida segundo o projeto de Deus é, por si mesma um evangelho, no qual se pode ler o amor gratuito e paciente de Deus pela humanidade” (Diretório Geral para a Catequese [2020], n. 228.

[22] RAHNER, Karl. Escritos de Teologia VI. Madrid: Taurus Ediciones. 1967.

[23] Diretório para a catequese (2020), n. 227.

[24] Teografia (teo= Deus + grafia: escrita, relato) diz respeito à percepção e narrativa da ação amorosa de Deus no dia a dia de cada pessoa, em sua biografia.

[25] Diretório para Catequese (2020), n. 229.

[26] SBARDELOTTO, M. Virtualização da fé? Reflexões sobre a experiência religiosa em tempos de pandemia. Disponível em http://www.ihu.unisinos.br/601104-virtualizacao-da-fe-reflexoes-sobre-a-experiencia-religiosa-em-tempos-de-pandemia.

[27] Idem.

[28] Diretório para a Catequese (2020), nn. 226-235.

[29] Idem, ibidem (2020), n. 233.

[30] Diretório para a Catequese (2020), n. 234.

[31] Idem, n. 235.

[32] Documento Catequese Renovada, n. 123.

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CATEQUESE E LITURGIA em tempos de distanciamento social e pós-pandemia, confira a reflexão teológico-pastoral do pe. Vanildo de Paiva https://observatoriodaevangelizacao.com/catequese-e-liturgia-em-tempos-de-distanciamento-social-e-pos-pandemia-confira-a-reflexao-teologico-pastoral-do-pe-vanildo-de-paiva/ Sat, 11 Jul 2020 12:41:14 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=35051 [Leia mais...]]]>  Para o autor, “a nossa espiritualidade alimenta-se da “mística da recomeço” e, sobretudo, da vitória. No centro da nossa fé está aquele que pareceu fracassar aos olhos humanos, mas está vivo e ressuscitado no meio de nós: Jesus Cristo!”. Ele assume como epígrafe a afirmação do papa Francisco, que em carta à revista Vida Nova diz: “Se pudemos aprender algo em todo este tempo, é que ninguém se salva sozinho (…) É o sopro do Espírito que abre horizontes, desperta a fraternidade para dizer ‘presente’ perante a enorme e inadiável tarefa que nos espera. É urgente discernir e encontrar a pulsação do Espírito para dar impulso, juntamente com outros, a dinâmicas que possam testemunhar e canalizar a nova vida que o Senhor quer gerar neste momento concreto da história (…) Este é o momento propício para encontrar a coragem de uma nova imaginação possível, com o realismo que só o Evangelho nos pode oferecer.” 

Confira a instigante e pertinente reflexão do pe. Vanildo de Paiva:

O SENHOR FOI GRANDE CONOSCO. POR ISSO, ESTAMOS ALEGRES! (1) 

Pistas para reflexão sobre CATEQUESE E LITURGIA, em tempos de distanciamento social e pós-pandemia(2) 

Pe. Vanildo de Paiva(3) 

“Se pudemos aprender algo em todo este tempo, é que ninguém se salva sozinho (…) É o sopro do Espírito que abre horizontes, desperta a fraternidade para dizer ‘presente’ perante a enorme e inadiável tarefa que nos espera. É urgente discernir e encontrar a pulsação do Espírito para dar impulso, juntamente com outros, a dinâmicas que possam testemunhar e canalizar a nova vida que o Senhor quer gerar neste momento concreto da história (…) Este é o momento propício para encontrar a coragem de uma nova imaginação possível, com o realismo que só o Evangelho nos pode oferecer.” 

Papa Francisco 

Carta à Revista Vida Nova, publicada no dia 17.04.2020 

I. INTRODUÇÃO 

01. Caminhamos na fé e na esperança. Maria nos ensinou que podemos até interrogar a Deus: “Mas como isso será possível?” (Lc 1, 4), já que precisamos sempre dar as razões da nossa esperança a todos quantos as pedem a nós (cf. 1Pd 3,15), mas não nos cabe a desesperança. A nossa espiritualidade alimenta-se da “mística da recomeço” e, sobretudo, da vitória. No centro da nossa fé está aquele que pareceu fracassar aos olhos humanos, mas está vivo e ressuscitado no meio de nós: Jesus Cristo! Certamente essa mística não escapou a Paulo, outro que teve que recomeçar depois de “cair por terra” (At 9,4), ao nos deixar, como testamento espiritual, a mais bela síntese da luta cristã: “Todavia, esse tesouro nós o levamos em vasos de barro, para que todos reconheçam que esse incomparável poder pertence a Deus e não é propriedade nossa. Somos atribulados por todos os lados, mas não desanimamos; somos postos em extrema dificuldade, mas não somos vencidos por nenhum obstáculo; somos perseguidos, mas não abandonados; prostrados por terra, mas não aniquilados. Animados pelo mesmo espírito de fé, sobre o qual está escrito: ‘Acreditei, por isso falei’, também nós acreditamos e por isso falamos. Pois sabemos que aquele que ressuscitou o Senhor Jesus, também nos ressuscitará com Jesus e nos colocará ao lado dele juntamente com vocês. E tudo isso se realiza em favor de vocês, para que a graça, multiplicando-se entre muitos, faça transbordar a ação de graças para a glória de Deus” (1Cor 4, 7-9.13-15). 

02. O título desta reflexão nos remete a outra experiência de recomeço. Trata-se da volta dos judeus do trágico exílio na Babilônia (sec. VI a.C.), vivência de provação e sofrimento, dentre tantos “Egitos” a que foram submetidos. Privados de sua terra, da sua liberdade e do exercício público de sua religião, só lhes restaram o lamento: “Como cantar a Deus em terra estranha?” (Sl 137,4), e a memória, que alimentava o sonho do retorno: “Que minha língua se cole ao céu da boca, se de ti, Jerusalém, eu me esquecer” (Sl 137,6). Mas o tempo dos salgueiros babilônicos, enfim, ficou para trás, e qual não foi o júbilo, quando puderam retornar! “Quando o Senhor mudou a sorte de Sião, a nossa boca se encheu de riso, e a nossa língua de canções. Até entre as nações se comentava: ‘o Senhor foi grande com eles!’. Sim, o Senhor foi grande conosco, e por isso estamos alegres” (Sl 126, 1-3). Sabiam que a reconstrução não seria fácil, mas a certeza do protagonismo do Deus do êxodo, daquele que tirara o povo das garras do faraó naquela terrível e libertadora noite no Egito, nunca mais fora esquecida. Outra vez – e quantas fossem necessárias! – não se cansariam de testemunhar: “Clamamos então ao Deus dos nossos antepassados, e ele ouviu a nossa voz. Ele viu nossa miséria, nosso sofrimento e nossa opressão. E o Senhor nos tirou do Egito com mão forte e braço estendido, em meio a grande terror, com sinais e prodígios. E nos trouxe a este lugar, dando-nos esta terra: uma terra onde corre leite e mel” (Dt 26,7-9). 

03. “Também sou teu povo, Senhor, e estou nessa estrada” … Assim gostamos de cantar, reafirmando nossa identidade de povo de Deus, continuador da história da salvação, que, em Cristo, chegou à sua plenitude. Também seguimos, rumo à definitiva terra prometida, convictos da nossa condição de peregrinos na fé, até que cheguem as “coisas que os olhos não viram, nem os ouvidos ouviram, nem o coração humano imaginou, tais são os bens que Deus tem preparado para aqueles que o amam” (1Cor 2,9). E, do mesmo modo que o povo da Antiga Aliança nunca abandonou a sua certeza de que Deus sempre o acompanhou pelos caminhos da história, nós também, filhos de Deus na Nova Aliança, podemos continuar cantando: “somente a tua graça me basta, e mais nada”. 

04. Quem diria que experimentaríamos um pouco do sabor do exílio ou da longa noite amarga do Egito, com essa pandemia do coronavírus? Obviamente as condições são outras! No entanto, os cenários mundial e brasileiro que se descortinam diante de nós, nos quais nós mesmos desenrolamos o drama da nossa existência, também cheiram a sofrimento, dor e morte. Para a maioria de nós, nunca a morte trágica esteve tão perto de nossas portas, mesmo daquelas “marcadas com o sangue do cordeiro” (Ex 12,7)! Quem contava com a necessidade de mudar drasticamente o ritmo de vida, distanciar-se socialmente do trabalho e do convívio com os familiares e amigos, para preservar a sua vida e de seus semelhantes? Quem ao menos suspeitava ter que acompanhar, de perto ou à distância, a agonia e a morte de tantos irmãos e irmãs, que partiram sem ao menos darem o seu adeus? Quem sonhava assistir, tomado por uma ira santa, a ingerência de uma situação gravíssima por parte do Estado, cujos chefes, versões medíocres dos antigos faraós, brincam com a vida humana e fazem dela objeto de trocas espúrias? Quem chegou a pensar, um dia, em ver as portas das igrejas fechadas e suas celebrações transferidas para a Igreja doméstica da família, na medida do possível, ou mediada pelas tecnologias de comunicação e redes sociais? Quem diria que, de um momento para o outro, os encontros catequéticos e demais atividades pastorais seriam suspensos na sua modalidade presencial, exigindo dos catequistas e demais lideranças criatividade e empenho redobrados, para descobrirem outras possibilidades de fazer ecoar a Boa-nova de Jesus Cristo? Quem diria! 

II. OLHANDO OS IMPACTOS DA PANDEMIA NA VIDA CRISTÃ E NAS SUAS ATIVIDADES PASTORAIS 

05. Tudo isso é muito real e nos desafia! Os impactos causados por essa pandemia ainda não podem ser calculados ou medidos, mas sabemos que são e serão muito grandes. Nem o mundo nem nós seremos os mesmos, depois desse primeiro semestre de 2020. Vou me abster de uma análise mais sociológica ou política da situação por questões óbvias: há excelentes analistas por aí, que podem nos ajudar, e não pretendo me alongar nessa reflexão. No entanto, entendo ser importante, ao menos, apontar alguns desses impactos na nossa vida cristã e nas atividades evangelizadoras e pastorais de nossa Igreja. 

06. O primeiro olhar é para dentro de nós mesmos. “De repente, não mais do que de repente”, tivemos que nos confrontar com nossa fragilidade e débil condição de criaturas. Quando tudo parecia estável e nossos planos bem seguros, tivemos de abandoná-los ou postergá-los, já que o momento apontava para sua inviabilidade. Sentimo-nos como se a vida tivesse “puxando nosso tapete”. E como é difícil ficar, ainda que momentaneamente, sem horizontes! A impossibilidade de planejar o futuro talvez seja uma das experiências que mais impacte nossas emoções, pois nos traz a sensação da não continuidade da existência. Rouba-nos o senhorio que julgamos ter dos nossos destinos. E, inevitavelmente, surge a pergunta: “O Senhor está no meio de nós, ou não?” (Ex 17,7). Isso toca profundamente na questão da nossa fé. Afirmar a presença de Deus na bonança é muito tranquilo. Reafirmá-la, no entanto, no meio do furacão ou da tempestade, eis o desafio! Como bem ressaltou o Papa Francisco, na memorável Bênção Urbi et Orbi, na Praça de São Pedro(4), atualizando o clamor dos discípulos de Jesus: “Avançamos, destemidos, pensando que continuaríamos sempre saudáveis num mundo doente. Agora, nós, sentindo-nos em mar agitado, imploramos-te: ‘Acorda, Senhor!’”. 

07. A Palavra nos ensina que “a fé é um modo de já possuir aquilo que se espera, é um meio de conhecer realidades que não se veem” (Hb 11,1). Diria que é colocar o pé na estrada antes mesmo de Deus colocar o caminho. Trata-se de uma entrega de nossa vida nas mãos daquele que pode conduzi-la a um porto seguro. É con-fiança, isto é, dar nossos passos seguros de que Deus é o fiador que garante nossa caminhada, se a fazemos de acordo com sua vontade. E, mais uma vez, é de Maria, mãe de Jesus, que aprendemos a lição do “faça-se em mim segundo tua Palavra” (Lc 1,38), mesmo compreendendo muito pouco do que estava por vir. Mas não é uma experiência fácil de se fazer. Nossa espiritualidade não se desvincula do turbilhão de nossas emoções agitadas pelos ventos do medo e da angústia. Somos uma pessoa só, e tudo está muito integrado ou desintegrado dentro de nós! Por isso mesmo, o medo convive com a fé, e isso não consiste em pecado, absolutamente. Como nos recordou o Papa, na ocasião acima citada: “O início da fé é reconhecer-se necessitado de salvação. Não somos autossuficientes, sozinhos afundamos: precisamos do Senhor como os antigos navegadores, das estrelas. Convidemos Jesus a subir para o barco da nossa vida”. Desse modo, nossa fé cristã nos faz entender que não podemos atribuir a Deus uma pandemia como esta, como se ele estivesse à espreita para castigar a humanidade, mas também, em extrema posição, não podemos querer que ele resolva tudo para nós. Nós lhe entregamos nosso obséquio de fé e nossa disposição para fazer sua vontade. E ele nos dá a sua graça, como concluiu o Santo Padre: “Confiemos-lhe os nossos medos, para que ele os vença. Com ele a bordo, experimentaremos – como os discípulos – que não há naufrágio. Porque esta é a força de Deus: fazer resultar em bem tudo o que nos acontece, mesmo as coisas ruins. Ele serena as nossas tempestades, porque, com Deus, a vida jamais morre”. 

08. Outro olhar dirige-se à nova rotina que tivemos que estabelecer, na maioria dos casos, junto de nossos familiares. Isso tem a ver com a vivência da virtude da caridade. Forçosamente, tivemos que permanecer mais tempo dentro dos nossos lares, conviver com aqueles que, possivelmente, há tempos não convivíamos por conta da correria ou dos desafetos. Tivemos que nos apertar em casas estreitas, sentar à mesma mesa no horário das refeições, dividir as tarefas domésticas, batalhar pelo pão de cada dia, nos enquadrar em regras de boa convivência e olhar nos olhos daqueles que deveriam ser os mais importantes para nós para, ali, sondar-lhes os vestígios do medo e da angústia a pedirem amor, solidariedade, cuidado. E como lhes temos respondido? 

09. Um terceiro olhar volta-se para fora de nossos lares, para a sociedade e, de modo muito especial, para nossas comunidades eclesiais. E, aqui, podemos questionar que impacto sofreu nossa esperança. Certamente, choramos ao ver tantos irmãos nossos sendo acometidos pela COVID-19 e morrendo, não raras vezes, desamparados e privados de dignidade. Vimos famílias inteiras perdendo, subitamente, o pouco que lhes garantia o sustento e a vida. Constatamos, com sentimento de impotência e vergonha, o descaso do poder público pela vida do cidadão e seus mais sórdidos deboches frente à dura realidade enfrentada por toda a população, sacrificando especialmente os mais empobrecidos. É possível que o desespero ou a indignação tenham questionado nossa esperança cristã. E tivemos que ser fortes, para reafirmar: “Se Deus é por nós, quem será contra nós?” (Rm 8,31). 

10. Com que dor no coração vimos nossas igrejas fecharem as portas para as celebrações presenciais, e as chaves serem passadas nos cadeados dos salões paroquiais e centros pastorais! “Catequese suspensa por tempo indeterminado”, esse era o cartaz afixado nas portas das salas de catequese ou o recadinho enviado no grupo de WhatsApp dos catequizandos ou de seus pais…Padres, catequistas, cristãos em geral, suspiravam pelos cantos da casa: “nunca imaginei que isso pudesse acontecer. Nem semana santa teremos!”. Nem faltou o descrente a zombar: “Gritem mais alto; pode ser que seu deus esteja ocupado. Quem sabe teve que se ausentar ou então está viajando. Talvez esteja dormindo e seja preciso acordá-lo” (1Rs 18,27). 

III. O QUE PODEMOS APRENDER COM ESSE MOMENTO HISTÓRICO? 

11. Voltemos ao salmo 126: “os que semeiam com lágrimas, ceifarão em meio a canções. Vão andando e chorando ao levar a semente. Ao regressar, voltam cantando, trazendo seus feixes” (vv. 5-6). Nós, os cristãos, teimamos em acreditar na vitória da vida. O mistério pascal nos mobiliza a jamais acreditar que a cruz e a morte sejam as últimas respostas para a peregrinação humana. Se Cristo está vivo, nossa fé não é vã e ilusória (cf. 1Cor 15,14), e a certeza de sua ressurreição é o suficiente para alimentar em nós a “mística do recomeço”. Sabemos que tudo isso vai passar. Mais um ciclo da história será encerrado, para abrirmos um outro, que esperamos seja melhor. Mas, para isso, é preciso que aprendamos algo com esse momento difícil, mas fecundo, de pandemia e recolhimento social. Ele não pode ser visto apenas como tragédia, mas também, e principalmente, como oportunidade de revisão de nossas vidas, em todas as suas dimensões. Seria terrível se disséssemos, no pós-pandemia: “sou um sobrevivente”. Nada mais deplorável que isso! Não fomos criados por Deus para arrastar a vida como sobreviventes de catástrofes. Se “foi para a liberdade que Cristo nos libertou” (Gl 5,1) e se ele veio para que tivéssemos vida em plenitude (cf. Jo 10,10), é para frente que devemos seguir, e de cabeça erguida. Somos viventes, e como tais protagonizaremos um novo tempo. Os impactos sofridos nos farão responder com criatividade, coragem, esperança em Deus, “fé na vida, fé no homem, fé no que virá”(5)… Para tanto, retomemos os três olhares lançados sobre os impactos causados por essa pandemia, perguntando pelos aprendizados que eles podem nos trazer. 

12. É certo que cada um de nós está fazendo e deverá fazer leituras próprias do caminho percorrido, durante esse período de duração da pandemia. Prejuízos e saldos serão contabilizados não somente agora, mas na trajetória a seguir. No entanto, de modo objetivo, podemos acenar para três aspectos pessoais que merecem reflexão: 1) A superação do egoísmo: mais do que nunca sentimos o quanto dependemos uns dos outros. Ficar em casa e usar máscaras quando saímos, por exemplo, foi fundamental para garantir a nossa saúde, mas também a dos nossos semelhantes. Saber que algum excesso poderia colocar em risco a vida alheia nos fez ver que todos estamos interligados e somos igualmente responsáveis uns pelos outros. A falta de alguns serviços essenciais também nos fez pensar que nenhum de nós é autossuficiente. Entendemos melhor que, se muito dessa pandemia se deve a ações irresponsáveis de alguns, as soluções para uma maior qualidade de vida para todos dependerão da união de todos e não apenas do esforço de poucos. 2) A pergunta pelo essencial da vida: a triste realidade do contágio do coronavírus e a realidade de tantas mortes trágicas nos fizeram enxergar que de nada adianta poder ou dinheiro nessa hora. Todos somos vítimas em potencial. E a iminência do fim pediu de nós uma revisão do que realmente consideramos essencial em nossas vidas. De repente, todos tivemos que deixar tudo e ficar dentro de casa, contentando-nos com o mínimo. Vale a pena a correria da vida, no esforço de alimentar os monstros do acúmulo de coisas e do consumismo? Isso pode nos salvar? 3) O reforço das virtudes da fé, da esperança e da caridade: essas virtudes, ensina-nos a Igreja, são dons de Deus. No entanto, exigem nossa acolhida e nossa resposta diária. Fiquemos atentos ao modo como nutrimos a nossa vida cristã, para que sempre estejamos prontos a responder com coragem aos desafios tantos que a vida nos traz! 

13. A intensificação do convívio familiar foi de grande importância para muitos de nós, no momento em que o núcleo familiar sofre grandes abalos e fragmentações. Conviver mais intensamente com aqueles que deveriam ser os mais próximos a nós pode levar-nos a pensar na família como comunidade de amor e cuidado, imprescindíveis em nossas vidas. “A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”, já dizia o grande poeta Vinícius de Moraes. E cessando, ainda que por um tempo, o nosso corre-corre, pudemos nos encontrar (ou desencontrar!) com a realidade de alegrias e tristezas de nossos familiares, inclusive tendo a chance de superar alguns bloqueios e desafetos. Acredito que poderemos reaprender a diferença entre ter uma casa e ter um lar; que há valores preciosos bem mais perto de nós do que pensamos; e que relações mais saudáveis com os familiares farão de nossa família o lugar da acolhida, da ajuda mútua, do cultivo da vida feliz e da experiência da presença de Deus. 

14. No que se refere à nossa vida social, também podemos afirmar que a pandemia está sendo uma escola de valores humanos e cristãos, para quem seriamente se permite fazer as perguntas fundamentais sobre suas experiências. Olhar para uma sociedade à beira do caos, levanta questões que nos comprometem: quem é responsável por tudo isso? Por que nos faltam as mínimas condições para a superação dessa crise? Se tudo está interligado, como poderemos nos articular, fraternalmente, para encontrar as saídas? O que justificaria tanta fragmentação, competição e ódio entre grupos e pessoas? De que modo temos cuidado da nossa casa comum, dom precioso de Deus para todos, e não apenas para alguns? Que atitudes proféticas precisamos assumir frente ao descaso público pela vida do ser humano e da natureza? Talvez tenhamos mais perguntas do que respostas. Mas já são meio caminho andado! Penso que a experiência da própria vulnerabilidade nos pode tornar mais sensíveis à vida dos nossos irmãos. Quantas iniciativas solidárias e assistenciais emergiram, como reflexos da compaixão, hóspede eterna dos corações humanos, mesmo daqueles embrutecidos pelas amarguras ou decepções da vida! 

IV. CATEQUESE E LITURGIA EM TEMPOS DE PANDEMIA 

15. Apurando o foco dessa reflexão, olhemos mais de perto o contexto eclesial, especialmente as questões que envolvem as duas dimensões fundamentais da vida cristã: catequese e liturgia. Acredito ser impossível falar de uma sem me referir à outra. Aliás, por si mesmas, elas se referem mutuamente. A liturgia, enquanto celebração do Mistério Pascal, exige a catequese como iniciação, e a catequese, explicitação desse mesmo Mistério, só se liberta da mera transmissão de conteúdos e do risco da relação teórica com Deus se, no seu processo, a dimensão orante e celebrativa encontrar seu devido espaço. São dimensões que nasceram juntas na história da nossa fé cristã, ainda que, historicamente, tenham sido separadas por muito tempo. Hoje, busca-se uma interação entre elas, para que se faça valer o que a Igreja sempre se propôs, ao menos teoricamente: lex credendi, lex orandi, lex vivendi (crer o que se reza, rezar o que se crê e viver o que se crê e o que se reza). Já acenei, acima, para os impactos que a pandemia e o consequente recolhimento social trouxeram para nossa fé e prática cristãs. Pretendo, agora, apontar algumas questões que merecem nossa atenção, já que exigirão de nós uma séria reflexão e até novas posturas daqui para frente. 

16. A pandemia nos cobrou criatividade e até quebra de resistências, em alguns aspectos. Também nos fez pensar em resgates e ampliação de concepções. Refiro-me, mesmo, às tradicionais respostas conceituais do que seja catequese e liturgia. Não digo que o que compreendíamos a respeito delas não tenha mais valor. Obviamente, temos um rico depósito teológico e prático que ilumina as duas dimensões e precisa ser cada vez melhor compreendido. Isso não nos impede, entretanto, de perceber os desdobramentos que as novas realidades nos sugerem. Em outras palavras: a Igreja sempre se atualiza, ou, como preferem os mais clássicos, é semper reformanda, sem deixar de ser fiel à sua vocação primeira. Exemplificando: quando pensávamos que poderia haver uma catequese à distância, via mídias sociais? Celebrar em casa, com os familiares, para a maioria de nós, parecia coisa somente dos primeiros tempos do cristianismo…ainda mais, sem a figura do padre. Perguntas, as mais variadas, logo começaram a aparecer: catequese por WhatsApp vale? É possível ao catequista fazer-se presente na vida do catequizando, não estando fisicamente perto dele, mas virtualmente? Na internet há afeto? E uma parcela significativa de catequizandos que não tem acesso às mídias sociais, como atingi-la? Missa pela TV ou mídias sociais vale? Existe mesmo essa tal de “comunhão espiritual”? Dá para ficar tanto tempo sem a comunhão eucarística? Mas, o leigo pode presidir celebrações e até dar bênçãos? Isso não é “coisa de padre”? Mais uma vez, temos mais perguntas do que respostas. 

17. O Papa Francisco tem insistido na necessidade de buscarmos novas linguagens e meios para a evangelização e a catequese. Ele diz: “É preciso ter a coragem de encontrar os novos sinais, os novos símbolos, uma nova carne para a transmissão da Palavra, as diversas formas de beleza que se manifestam em diversos âmbitos culturais, incluindo aquelas modalidades não convencionais de beleza que podem ser pouco significativas para os evangelizadores, mas tornaram-se particularmente atraentes para os outros”(6). Nova carne. Expressão estranha, mas provocativa, pois nos remete à maravilhosa pedagogia de Deus, que se encarnou, tornou-se gente, para ficar mais próximo de nós! Esse é o paradigma para o evangelizador, e a pandemia nos fez olhar de novo para ele. 

18. Aqui entra uma rápida chamada de atenção para o papel que os meios de comunicação (rádio, tv etc.) e as novas mídias sociais podem cumprir em nossos itinerários evangelizadores e celebrativos. Esse papel, obviamente, não será de suplência. Nada dispensa a figura do catequista junto a seu grupo de catequizandos, nos encontros “presenciais” ou da assembleia reunida para as celebrações litúrgicas. No entanto, faz-nos pensar com mais seriedade no quanto podem ser usados a nosso favor e incluídos como parte metodológica de nossos processos, ao invés de serem exorcizados, como ocorre na prática de alguns. O conceito de “virtual”, sabemos, não equivale ao de irreal. As mídias sociais podem ser consideradas uma extensão dos nossos sentidos, uma continuidade do sujeito e garantem, de outra forma, uma presença, especialmente quando já existe uma vinculação afetiva das partes envolvidas. Em algumas circunstâncias, seu poder de atingir o coração e a consciência das pessoas pode ser até maior do que o discurso ou as estratégias usadas dentro dos templos ou salas de catequese. Os recursos midiáticos têm a mesma natureza da arte e primam pela via da beleza e, por isso mesmo, têm forte poder de mobilização psíquica e espiritual. Veiculam informações, mas também afetos e encantamentos. 

19. Um cuidado, no entanto, deve ser tomado, especialmente no campo das celebrações sacramentais. Por mais interessantes e bonitas que sejam as celebrações transmitidas pelos meios de comunicação e mídias sociais, eles têm seus limites. A liturgia não é só performance. Para além da engenhosidade das formas e roupagens, há um conteúdo que só realiza no fato real, na experiência, na presença física e no contato direto com o sinal, transfigurado pela ação de Deus e pela fé do fiel, experiência que a distância virtual não dá conta de reproduzir. Assim, por exemplo, a missa pela TV pode ser uma forma de oração, de nutrição pela Palavra ouvida, de avivamento do amor pela Eucaristia, mas não equivale à participação “presencial” na missa da comunidade. Do mesmo modo, a chamada “comunhão espiritual” só pode ter sentido quando entendida como intimidade com Deus na oração e entrega de vida, mas não substitui a comunhão nas espécies consagradas do pão e do vinho, corpo e sangue do Senhor. O mesmo equivale para a adoração ao Santíssimo à distância. É preciso cuidar para que a tela da TV não se transforme em um amuleto ou simulador da presença real de Jesus na hóstia consagrada! Seria o máximo da banalização e do empobrecimento do sacramento da Eucaristia! 

20. A impossibilidade da nossa presença física nos templos para as celebrações ou nos espaços onde a catequese acontece provocou um deslocamento não só geográfico, mas teológico e pastoral, muito interessante: para o núcleo familiar. Sem planejamento algum, tivemos de devolver às famílias, especialmente aos pais, o que sempre lhes coube cumprir: a educação da fé de seus filhos. É fato que isso tem seus problemas, visto que grande parte deles não se sente apta para tal função, o que denuncia, mais uma vez, o descuido da Igreja quanto à iniciação dos adultos e à catequese permanente. Mas até isso pode ter seu lado bom: muitos pais tiveram que se mobilizar, reaprender as orações básicas do cristão, reencontrar-se com a Palavra de Deus, pesquisar etc. “Essa pandemia deveria oportunizar a redescoberta da Igreja doméstica, da liturgia familiar e do templo que nossas casas e nós mesmos somos. Tempo de redescobrir nosso sacerdócio batismal, valorizando a força da Palavra de Deus que também é alimento e goza de sacramentalidade. Se por hora não é prudente que celebremos a Eucaristia em nossa comunidade eclesial, celebremos o Mistério Pascal de Cristo em nossa comunidade doméstica, por meio de outras possibilidades como, por exemplo, a celebração da Palavra de Deus, da Liturgia das Horas ou do Ofício Divino das Comunidades, das celebrações de bênçãos, como por exemplo a da mesa, dentre outras”(7). Dois apelos, ao menos, permanecem: como fazer da família o epicentro do kerigma, devolvendo-lhe de vez seu protagonismo na educação dos seus filhos? Como envolver as famílias em nossos itinerários catequéticos e celebrativos no dia a dia da catequese? 

21. Outro elemento importante a se considerar, talvez o primeiro em ordem de importância, diz respeito ao ponto de partida da catequese e, quiçá, da liturgia: a vida das pessoas. Esta é o conteúdo básico da evangelização e da celebração. Sem a vida e a realidade do povo, a catequese se transforma em instrução abstrata e distante da realidade, e a liturgia se reduz a ritualismo vazio de significado. Não tenho dúvida de que o Mistério Pascal sempre será o centro da vida cristã e que, de algum modo, ele é o mesmo, independente dos homens. No entanto, Deus tudo fez por nós e pela nossa salvação. E esta só se atualiza na vida e a partir da vida muito peculiar de cada um de seus filhos. A pandemia nos fez individualizar os interlocutores da mensagem e da oração cristã. Vimos que os fiéis que compõem a assembleia litúrgica têm rosto e nome, casa e endereço (para muitos, infelizmente, a rua!), e tivemos que nos dirigir pessoalmente a cada um deles, procurando envolvê-los em nossas atividades e propostas. No dizer do catequeta mexicano De La Cruz,“a pandemia, bem entendida como uma oportunidade, veio impulsionar o catequista a migrar de uma catequese somente centrada em conteúdos doutrinais e celebrações sacramentais para aprender a assumir as angústias e esperanças do homem de hoje como parte essencial do conteúdo da catequese, e não levá-las em conta somente como uma referência metodológica por implementar. O catequista teve que aprender a deixar de falar de Cristo Jesus, para aprender a viver como Cristo Jesus em relação íntima com as pessoas e comunidades”(8). Fica a questão: no princípio de interação fé-vida, que lugar estamos dando a cada uma das pessoas em nossa catequese e nas celebrações litúrgicas? 

V. COMO SERÁ AMANHÃ? O PÓS-PANDEMIA 

22. “Como será o amanhã? Responda quem puder. O que irá me acontecer? O meu destino será como Deus quiser”, já cantava Simone. Talvez seja melhor que nos perguntemos, então: o que será que Deus quer de nós e da nossa Igreja, passada essa pandemia? Aqui, carecemos de discernimento para saber ler os sinais dos tempos e da sabedoria do Espírito, para não desperdiçarmos tantas lições que esse momento nos trouxe e ainda trará. A título de provocação, cito algumas questões que entendo que deverão fazer parte, com urgência, das nossas pautas de revisão e ajustes na caminhada da catequese e da liturgia: 

a) Espírito de muita acolhida aos catequistas e catequizandos, bem como às nossas assembleias litúrgicas, pois muitos retornarão com feridas expostas, merecendo nossos cuidados e ansiosos por encontrar em nós o coração do Bom Pastor. 

b) Para quem ainda não se convenceu que catequista não é mero instrutor e transmissor de doutrinas, fica a dica: catequese é vida, e a mensagem cristã só poderá ser acolhida quando de fato fizer coincidir a boa-nova de Jesus e a boa notícia que cada irmão ou irmã necessita escutar: a boa noticia do amor, da justiça, da fraternidade, da solidariedade etc. Isso requer começar sempre pela vida e não pelo livro. 

c) Ainda que estivéssemos ligados em rede, questiono se estávamos em comunidade. E como nos fez falta o calor humano dos irmãos e irmãs de caminhada! Cuidemos para que, na ânsia de colocar em dia nossas agendas, a burocracia não sufoque os afetos e vínculos fraternos. Penso que já entendemos que a pressa não pode nos levar a deixar para trás as pessoas a quem nos propomos servir. 

d) O retorno será momento de sínteses e releituras da caminhada feita. Que a preocupação com os conteúdos deixados para trás não seja desculpa para desprezarmos a riqueza das experiências vividas durante a pandemia. Na verdade, estas são conteúdos de primeira importância, tanto para a reflexão quanto para as celebrações. 

e) O pós-pandemia servirá também para aprimorarmos as vivências familiares e, doravante, entender a família como parceira na evangelização dos catequizandos, isto é, sujeito e, ao mesmo tempo, destinatária de nossos melhores esforços pastorais. Aqui, começa a se concretizar a tão propalada “Igreja em saída”, vislumbrada pelo Papa Francisco e se realiza a dimensão missionária da catequese e da liturgia. É a chance de abandonar um modelo de Igreja que se coloca como autorreferência, partindo para uma Igreja aberta ao mundo e realizando-se, enquanto tal, em todos os ambientes, de modo particular, em cada lar cristão. 

f) A iniciação cristã com adultos só ganha força depois de termos passado por tudo isso que a pandemia nos trouxe. Precisamos de uma Igreja adulta e madura na fé, na esperança e na caridade, para o enfrentamento dos embates que, sem previsões, a vida nos traz, e garantidora da continuidade do testemunho do Evangelho para as atuais e futuras gerações. 

g) Os meios de comunicação e as mídias sociais precisam ganhar mais espaço em nossa catequese e na liturgia. Eles mostraram sua importância e relevância. Mas, precisamos nos capacitar e conscientizar nosso povo, para que saibamos o seu devido lugar, sem as distorções tão acentuadas no período da pandemia. 

h) Precisamos de uma Igreja mais profética, que não admita o aviltamento da vida e da dignidade humana, bem como a destruição da nossa Casa Comum. Que a catequese e a liturgia não caiam na alienação e eduquem para o profetismo e o protagonismo cristão na sociedade. Depois do que vivenciamos, vendo ou participando de tantas ações solidárias de socorro aos mais necessitados e serviços gratuitos em defesa da vida, catequese e liturgia não poderão abrir mão de sua dimensão sociotransformadora, dimensão que lhes dá legitimidade. 

i) A formação continuada é fundamental para toda a liderança cristã, especialmente para os catequistas. Mas uma formação integral, e não apenas conteudista. 

j) A valorização do sacerdócio comum dos fiéis constitui outro aspecto de relevância para futuro da Igreja e a catequese e a liturgia poderão contribuir muito para isto. Vencer uma visão ainda clericalista, sobretudo no campo da liturgia, é mais do que necessário. Isso, não apenas porque faltem padres em várias partes do mundo para presidir as liturgias, mas porque a iniciação cristã faz do cristão leigo e leiga participantes do sacerdócio do Cristo, chamados a oferecer suas vidas como sacrifício agradável a Deus (cf. R, 12, 1) e capazes de promover, em seus lares e em outros ambientes, o louvor de Deus que lhes santifica a vida. 

k) Primemos pelo afeto e por relações verdadeiramente humanas! Afinal de contas, a vida é breve, e o que conta mesmo é o bem que fazemos às pessoas e o quanto podemos ser felizes no cultivo da fraternidade, da ternura e do amor! 

VI. CONCLUSÃO 

23. “O Senhor foi grande conosco, e por isso estamos alegres!” (Sl 126, 3). Não obstante tanto sofrimento que enfrentamos, teremos a graça de recomeçar. Fala-se do retorno como um “novo normal”. Gostaria que assim não fosse, pois o antigo “normal” provou sua insuficiência. Prefiro o desafio da renovação, do aprendizado, do amadurecimento, do mistério da semente que morre para gerar novo rebento. Será o tempo da criatividade suscitada pelo Espírito ou, como disse o Papa Francisco, este é o momento propício para encontrar a coragem de uma nova imaginação possível, com o realismo que só o Evangelho nos pode oferecer”(9). Como cantava o salmista, “o Senhor mudou a sorte de Sião” (Sl 126,1). Os rumos serão outros e espero que melhores! A “mística do recomeço” propõe que não esqueçamos as lágrimas da semeadura, das quais depende a fartura da colheita. Nossa fé nos pede que voltemos cantando, trazendo os feixes nos braços (cf. Sl 126,6). Afinal, mais uma noite de Egito ou de exílio ficará para trás. Agora é tempo da reconstrução, na certeza de que o Senhor sempre esteve no meio de nós e sempre nos dará a sua bênção: “Que o Senhor abençoe você desde Sião, e você veja a prosperidade de Jerusalém todos os dias de sua vida. Que você veja os filhos de seus filhos. Paz sobre Israel!” (Salmo 128 [127]). 

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA 

BÍBLIA. Edição Pastoral. São Paulo: Paulus. 2019. 

FRANCISCO, Papa. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium (A Alegria do Evangelho). São Paulo: Paulus & Loyola. 2013 

TEJO, Díaz Javier (org.). Después de la pandemia, ¿qué catequesis? Ediciones Universidad Finis Terrae, 2020 

Notas:

  • 1 Salmo 126(127), 3.
  • 2 Texto provisório. Toda contribuição será bem-vinda.
  • 3 Contato do autor: vanildopaiva@hotmail.com.  
  • 4 27 de março de 2020.  
  • 5 Trecho da música “Sementes do Amanhã”, de Gonzaguinha  
  • 6 Papa Francisco. A Alegria do Evangelho (Evangelii Gaudium), n. 168).  
  • 7 Daniel Reis. Campanha “Devolvam-nos a Missa”: novos coríntios. O mesmo erro. https://domtotal.com/noticia/1442123/2020/05/a-campanha-devolva-no-a-missa-novos-corintios-o-mesmo-erro, acessado em 21.06.2020. 
  • 8 José Flores de la Cruz. Intuiciones. La pandemia, bien entendida como una oportunidad, vino a impulsar al catequista a migrar de una catequeses solamente centrada en contenidos doctrinales y celebraciones sacramentales hacia un aprender a asumir las angustias y esperanzas del hombre de hoy como parte esencial del contenido de la catequesis, y no a tomarles en cuenta tan solo como una referencia metodológica por implementar. El catequista tuvo que aprender a dejar de hablar de Cristo Jesús para aprender a vivir como Cristo Jesús em relación íntima con las personas y comunidades. In Después de la pandemia, ¿qué catequesis? Ediciones Universidad Finis Terrae, 2020.  
  • 9 Conferir epígrafe deste texto.  

Sobre o autor:

Pe. Vanildo de Paiva

Possui mestrado em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (2014), pesquisando a ideia chave de “cuidado” em Winnicott, possui graduação em Psicologia – FAAT – Faculdades Atibaia (2011), em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1992) e em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (1989). Foi vice presidente da fundação educacional da Faculdade Católica de Pouso Alegre (FEJAN) e coordenador da extensão da Faculdade Católica de Pouso Alegre. É professor titular da Faculdade Católica de Pouso Alegre, nas áreas de Introdução ao exercício do filosofar e demais disciplinas filosóficas, bem como Psicologia Geral. Atua principalmente nos seguintes temas: cuidado religioso, desenvolvimento humano e espiritualidade, sexualidade e fé, relações humanas em ambientes religiosos, formação de educadores/as e catequistas etc. Entre seus livros publicados destacamos: Catequese e Liturgia: duas faces do mesmo Mistério. São Paulo: Paulus, 2008. Contato do autor: vanildopaiva@hotmail.com  

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