Pe. Márcio Pimentel – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com Mon, 16 Dec 2019 10:00:00 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.4 https://i0.wp.com/observatoriodaevangelizacao.com/wp-content/uploads/2024/04/cropped-logo.png?fit=32%2C32&ssl=1 Pe. Márcio Pimentel – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com 32 32 232225030 O Natal como sacramento da regeneração (2ª parte) https://observatoriodaevangelizacao.com/o-natal-como-sacramento-da-regeneracao-2a-parte/ Mon, 16 Dec 2019 10:00:00 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=33818 [Leia mais...]]]> Se Santo Agostinho chama o Natal de “aniversário” – conforme vimos no primeiro artigo desta série, ainda que com um sentido mais profundo e um significado mais abrangente do que o habitual, São Leão Magno vai muito além. Não são poucos os sermões de sua autoria que trazem consigo elementos-fonte para os textos eucológicos do tempo do Natal, sobretudo pela marcante teologia presente nos libbeli do Sacramentário Veronense, também chamado de Leonino.

Para este Papa, cujo pontificado se deu entre 440 e 461, a celebração da Natividade do Senhor passa muito distante da lembrança de uma data. É verdadeiro sacramento, pelo qual “o círculo do ano faz-nos outra vez presente (reparatur, isto é re+apresentação) o mistério (sacramentum) da nossa salvação.” Ou seja, Leão Magno compreende que, pelas vias da ritualidade litúrgica, os fiéis podem participar do nascimento de Cristo, uma vez que foram “admitidos” neste evento. A alegria e o prazer de celebrar o Natal se funda no fato de, pelo “nascimento de nosso Senhor Jesus Cristo, pelo qual Ele Se vestiu da carne da nossa natureza” se explica em razão de “nos tornarmos consortes da natureza divina”.

A Liturgia, portanto, dá acesso ao acontecimento. É porta de ingresso no mistério. Não é apenas um ensino sobre ele, mas a condição de nossa participação nele, afinal “o que era visível em nosso Salvador passou para seus mistérios”, segundo o mesmo Papa Leão (CIC 115). Por esta razão terá muita importância para Ele o advérbio “hoje”.

“Hoje o Verbo de Deus apareceu vestido de carne… Hoje, os pastores souberam pelas palavras dos Anjos que o Salvador tinha nascido… Hoje, aos que estão à frente dos rebanhos do Senhor foi entregue nova forma de mensagem (…) A festa de hoje renova para nós o sagrado início da vida de Jesus, nascido da Virgem Maria. E enquanto adoramos o nascimento do nosso Salvador, celebramos também o nosso nascimento. Efetivamente, a geração de Cristo é a origem do povo cristão: o Natal da cabeça é também o Natal do Corpo.”

Deste modo, continua noutro lugar, “o Natal do Senhor, em que o “Verbo se fez carne”, não tanto o havemos de lembrar como acontecimento do passado, mas antes imaginá-lo como se o vissem agora nossos olhos.” E como o veem senão pela condicionalidade da mesma carne assumida pelo Verbo, cujos ritos litúrgicos são verdadeira extensão? Aliás é exatamente isto que afirma o Catecismo da Igreja Católica ao tratar da Economia Sacramental presente na Igreja: que pelos gestos (ritualidade) e palavras (Sagrada Escritura e eucologia) o mesmo Cristo age no hoje dos fiéis (cf. CIC 1088). A lógica é simples: se Deus nos alcançou na carne, abrançando e assumindo nossa humanidade para comunicar o Deus, é pela mesma carne que este mistério pascal “permanece  e atrai tudo para a vida”.

A eucologia das missas do Natal do Senhor nos apresentam com nitidez esta compreensão:

“Concedei, ó Deus, que sejamos renovados, ao celebrarmos o Natal de vosso Filho, que se faz alimento e bebida neste divino mistério.” (Oração depois da comunhão na Missa da Vigília)

“Acolhei, ó Deus, a oferenda da festa de hoje, na qual o céu e a terra trocam seus dons, e dai-nos participar da divindade daquele que uniu a vós a nossa humanidade.” (Oração sobre as oferendas, Missa da Noite)

“Nós vos pedimos, ó Deus, que estas oferendas realizem em nós o mistério do Natal.” (Oração sobre as oferendas da Missa da Aurora)

“Ó Deus que, admiravelmente criastes o ser humano e mais admiravelmente restabelecestes a sua dignidade, dai-nos participara da divindade do vosso Filho, que se dignou assumir a nossa humanidade.” (Oração do Dia da Missa do Dia)

Conclui-se, pois, que a celebração do Natal do Senhor deve nos orientar na participação de um acontecimento e não, simplesmente, nos referir a uma data perdida no passado e que o caminho para isso passa por assumir os ritos como porta de acesso ao mundo do Deus-Conosco.

Sobre o autor:

Pe. Márcio Pimentel

Padre Márcio Pimentel é especialista em Liturgia pela PUC-SP e mestrando
em Teologia na Faculdade Jesuíta de Teologia e Filosofia (Faje / Capes)
Pároco da paróquia São Sebastião e São Vicente

Fonte:

www.arquidiocesebh.org.br/opiniao-e-noticias/

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O Natal como sacramento da regeneração (1ª parte) https://observatoriodaevangelizacao.com/o-natal-como-sacramento-da-regeneracao/ Sun, 08 Dec 2019 23:27:42 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=33731 [Leia mais...]]]> Seria necessário aqui relembrar que o Natal do Senhor não é mera comemoração de seu aniversário? É verdade que Santo Agostinho fala, ao menos por duas vezes, do “aniversário do Natal de nosso Salvador.” Entretanto, o tom de seu discurso a respeito dessa solenidade exige pensarmos sobre as consequências do acontecimento rememorado. Ele afirma que o dia do Natal é santificado pelo evento celebrado. Em um sermão, ainda sobre o Natal, ele afirma:

O Evangelho não diz: ‘a carne se fez Palavra’, mas: ‘a Palavra se fez carne’. (…) Aquele que era Filho de Deus, para nascer da Virgem Maria fez-Se filho do homem, assumindo a forma de servo. Continuou a ser o que era e assumiu o que não era. Nasceu do Pai, sem dia temporal, nasceu da mãe no dia de hoje (…). O Dia que marca o início do crescimento dos dias é símbolo da obra de Cristo, pelo qual o nosso homem interior se renova dia após dia…

Nota-se, com clareza, que a questão é posta em relação ao significado desse acontecimento que, embora datável no passado, ao ser lembrado no presente da comunidade celebrante, lhe concede lugar de honra diante de Deus e do mundo. O Natal do Senhor é ocasião para Agostinho afirmar que esse dia é santificado pelo evento comemorado:

santificador do dia de hoje, desde o seio da mãe…; inefavelmente sábio e sabiamente mudo; enche o mundo e jaz num presépio; governa os astros e toma o peito materno; tão grande na forma de Deus como pequeno na forma de servo…

Para o bispo de Hipona, portanto, o “dia de hoje leva-nos ao dia eterno”. Este dia é o próprio Jesus Cristo, pois Ele “ao nascer da Virgem, tornou sagrado o dia de hoje.” Cristo é celebrado no Natal como o amanhecer de Deus para o mundo, segundo a teopoética, diríamos, de Agostinho. A Natividade do Senhor faz-se, então, festa da Luz, porque o Sol nascente vence a noite e assim, a humanidade inteira pode alegrar-se pelo raiar do Dia Eterno.

Como a liturgia realiza o mistério do Natal?

Seguindo essa compreensão de sabor agostiniano, vale a pena verificar como a Liturgia realiza, no corpo dos fiéis em festa, essa teologia. 

Pensemos no tempo do Advento, durante o qual se agregou, à pratica celebrativa de inúmeras comunidades do mundo inteiro, o costume de acendermos a Coroa do Advento. A progressão da luz, pedagogicamente inculcada no acender gradual da primeira à quarta vela, alude a este processo longe do raiar do Sol desde o tempo da promessa até a ocasião do cumprimento.

A Coroa do Advento sinaliza simbolicamente para os fiéis aquilo que o Primeiro e o Segundo Testamentos testemunham: que a única Luz, o Filho, raiz e razão do tempo, irrompeu na história humana desde época remotas até o momento crucial de sua manifestação plena na encarnação.

Antônio Alcade cita em seu “Canto e Música Liturgica” (Paulinas: 1998, p.107) uma breve poesia para o acendimento da Coroa que diz:

“Vigilantes acendemos /

a coroa do Advento. /

Nos círios oferecemos /

quatro etapas de um encontro.”

Sim, trata-se de um único encontro: Deus com a humanidade, o Dia Eterno com o Tempo, o Céu com a Terra, o Espírito desposando a carne. É isto que celebramos no Natal, cujo Advento nos orienta os sentidos.

Sobre o autor:

Pe. Márcio Pimentel

Padre Márcio Pimentel é especialista em Liturgia pela PUC-SP e mestrando
em Teologia na Faculdade Jesuíta de Teologia e Filosofia (Faje / Capes)
Pároco da paróquia São Sebastião e São Vicente

Fonte:

www.arquidiocesebh.org.br/opiniao-e-noticias/

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Para refletir… Sobre o desafio das Missas de Cura e Libertação – 2ª parte https://observatoriodaevangelizacao.com/para-refletir-sobre-o-desafio-das-missas-de-cura-e-libertacao-2a-parte/ Tue, 28 May 2019 10:00:55 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=30619 [Leia mais...]]]> Falar em Missa de Cura e Libertação ou de qualquer outra ação litúrgica com vistas a conseguir a cura de enfermidades e doenças põe em questão a dimensão terapêutica do rito. No artigo anterior afirmei que a fé possui, necessariamente, uma dimensão terapêutica. Consequentemente, os ritos pelos quais a fé se faz fato deve possuir tal característica. Mas, em que sentido isso é possível, sem corrermos o risco de reduzir as celebrações da Igreja à condição de medicamento quase num sentido farmacológico.

A problemática é bem antiga. Há quinze anos a Congregação para a Doutrina da Fé, cujo prefeito era o então Cardeal Ratzinger, atual papa emérito Bento XVI, lançava uma instrução denominada “Sobre as orações para alcançar de Deus a cura”. Na introdução se lê:

A oração que implora o restabelecimento da saúde é, pois, uma experiência presente em todas as épocas da Igreja e naturalmente nos dias de hoje. Mas o que constitui um fenômeno sob certos aspectos, novo, é o multiplicar-se de reuniões de oração, por vezes associadas a celebrações litúrgicas, com o fim de alcançar de Deus a cura. Em certos casos, que não são poucos, apregoa-se a existência de curas alcançadas, criando assim a expectativa de que o fenômeno se repita noutras reuniões do gênero. Em tal contexto faz-se por vezes apelo a um suposto carisma de cura. Essas reuniões de oração feitas para alcançar curas põem também o problema do seu justo discernimento sob o ponto de vista litúrgico, nomeadamente por parte da autoridade eclesiástica, a quem compete vigiar e dar as diretivas oportunas em ordem ao correto desenrolar das celebrações litúrgicas.”[1]  

A preocupação se desdobra em duas direções:

a) a compreensão propriamente terapêutica da fé, o que alude a um problema eminentemente teológico e doutrinal, sobre o qual acenamos no artigo anterior;

b) a questão litúrgica, uma vez que o contexto para que esta compreensão da fé tome forma e torne-se fato, são as celebrações da Igreja.

De início é importante ressaltar que o magistério da Igreja reconhece o direito e o costume de, em diversas épocas, o fiel aproximar-se do Senhor para suplicar-lhe a cura de suas enfermidades e doenças, o consolo no sofrimento, o bálsamo para sua dor. Mas, de imediato acrescenta que as doenças e enfermidades possuem um sentido próprio no contexto da história da Salvação e estão relacionadas de uma maneira muito particular ao Mistério de Cristo. “A dor e Deus não são contraditórios e a sua coerência é um conteúdo fundamental da fé”, escreve Ravasi.[2]  De fato, no ritual da Unção dos Enfermos, quem preside, ao suplicar a cura na oração pós-unção, não se limita a designar a extirpação dos males, mas ocupa-se com estabelecer um nexo de sentido daquela enfermidade ou doença com a paixão do Senhor e o mistério da sua morte de cruz e ressurreição. Veja-se, um exemplo:

Senhor Jesus Cristo, que, para resgatar os homens e curar os doentes, quisestes assumir a nossa natureza humana, olhai propício para este vosso servo, que tanto necessita da saúde da alma e do corpo; restabelecei com o vosso poder e consolai com a vossa ajuda aquele que ungimos em vosso nome com a santa Unção, para que consiga levantar as forças e vencer o mal (e concedei àquele que fizestes participante da vossa Paixão a graça de confiar na eficácia dos seus sofrimentos). Vós que sois Deus com o Pai na unidade do Espírito Santo.

 O que está em cheque aqui é o próprio conceito de cura e, consequentemente, o que se tem em mente quando se afirma e alardeia que os ritos da Igreja curam. É importante salientar que a doença, na história da Salvação, não tem apenas conotação negativa. A própria Instrução citada acima fala disso. Ao comentar trechos do livro de Jó que abordam sobre o sofrimento humano, afirma:

A doença, embora possa ter uma conotação positiva, como demonstração da fidelidade do justo e meio de reparar a justiça violada pelo pecado, e também como forma de levar o pecador a arrepender-se, enveredando pelo caminho da conversão, continua, todavia a ser um mal.”[3]  

O teólogo liturgista Eugenio Sapori conclui que a Instrução, seja em seus aspectos doutrinais ou práticos, insiste sobre quanto a doença e a cura necessitam serem vistas sob o aspecto do anúncio da vitória do Reino de Deus sobre o mundo, que necessariamente conduz o ser humano à saúde integral.[4] 

Renato Zanchetta, médico e doutor em teologia (liturgia pastoral) sustenta que o mundo, altamente controlado e mediado pela técnica, fez-nos centrar a atenção nas enfermidades e doenças indo aos limites das possibilidades, conduzido as pessoas ao esquecimento do término da vida como uma característica humana. E, citando Leonardo Boff, sugere de tomar o termo “cura” acentuando o seu significado mais amplo e mais atento à pessoa. Não tanto por atenção no aspecto “farmacológico” dos processos terapêuticos (inclua-se aqui os ritos), mas no sentido e abrangência da cura em relação ao ser humano e seu destino. Vale sua pergunta: “nessa nova atitude global (tecnicista), a cura, é fronteira, se identifica ou faz parte integrante da salvação?”[5]  

Neste sentido, voltando à Instrução sobre as orações para obter de Deus a cura, pode-se dizer, com tranquilidade, que rezar a Deus suplicando-lhe auxílio no sofrimento e cura nas situações de enfermidade tem seu mérito por revelar a fidelidade do crente, sua humildade perante o Criador e a abertura e disposição para acolher a vontade dEle para sua vida, mesmo no contexto de sofrimento e morte. Mas, imediatamente esclarece:

É óbvio que o recurso à oração não exclui, antes encoraja, o emprego dos meios naturais úteis a conservar e a recuperar a saúde e, por outro lado, estimula os filhos da Igreja a cuidar dos doentes e a aliviá-los no corpo e no espírito, procurando vencer a doença. Com efeito, ‘reentra no próprio plano de Deus e da sua Providência que o homem lute com todas as forças contra a doença em todas as suas formas e se esforce, de todas as maneiras, por manter-se em saúde.’” [6] 

A mesma Instrução, que admoesta cristãos e cristãs a suplicarem a Deus pela saúde integral do ser humano, conclui a parte Doutrinal (capítulo I) afirmando claramente que essas orações – litúrgicas ou devocionais  – não devem perder seu direcionamento primeiro. Citando como exemplo os Santuários, a Instrução adverte:

Nos santuários são também frequentes outras celebrações que, por si, não se destinam especificamente a implorar de Deus graças de curas, mas que nas intenções dos organizadores e dos que nelas participam têm, como parte importante da sua finalidade, a obtenção de curas. Com esse objetivo, costumam fazerem-se celebrações litúrgicas, como é o caso da exposição do Santíssimo Sacramento com bênção, ou não litúrgicas, mas de piedade popular, que a Igreja encoraja, como pode ser a solene reza do Terço. Também essas celebrações são legítimas, uma vez que não se altere o seu significado autêntico. Por exemplo, não se deveria pôr em primeiro plano o desejo de alcançar a cura dos doentes, fazendo com que a exposição da Santíssima Eucaristia venha a perder a sua finalidade; essa, de fato, «leva a reconhecer nela a admirável presença de Cristo e convida à íntima união com Ele, união que atinge o auge na comunhão sacramental”.[7] 

Notas:

  1. CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ. Sobre as orações para alcançar de Deus a cura. Arquivo PDF,disponível em http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_20001123_istruzione_po.html. Acesso dia: 14 de janeiro de 2016.
  2. RAVASI, Gianfranco. O que é o homem? Sentimentos e laços humanos na Bíblia. Prior Velho (Portugal): Pauinas, 2011, p. 70.
  3. CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ. Sobre as orações para alcançar de Deus a cura, Cap I, 1. 
  4. Cf. SAPORI, Eugenio. Dimensione terapêutica del rito. Uma realtà posibile. In. Rivista Liturgica n. 98. Padova: Edizione Messaggero, p. 77.
  5. ZANCHETTA, Renato. Malattia, Salute, Salvezza. Il Rito come terapia. Padova: Edizioni Messaggero, 2004, p. 40.
  6. CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ. Sobre as orações para alcançar de Deus a cura, Cap 2.
  7. CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ. Sobre as orações para alcançar de Deus a cura, Cap 2.

Sobre o autor:

Pe. Márcio Pimentel

Padre Márcio Pimentel é especialista em Liturgia pela PUC-SP e mestrando
em Teologia na Faculdade Jesuíta de Teologia e Filosofia (Faje / Capes)
Pároco da paróquia São Sebastião e São Vicente

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Para refletir… Sobre o desafio das Missas de Cura e Libertação – 1ª parte https://observatoriodaevangelizacao.com/para-refletir-sobre-o-desafio-das-missas-de-cura-e-libertacao-1a-parte/ Mon, 27 May 2019 21:08:40 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=30617 [Leia mais...]]]> Um dos livros dentre os quais retomei a leitura, “o que a fé não é”, me fez recordar alguns assuntos espinhosos em matéria litúrgica. Dentre esses está a problemática das missas de cura de libertação. Já que a Liturgia da Igreja constitui-se “fé em ato”, interferir seu contexto ritual e eucológico arbitrariamente como costuma ocorrer nestas ocasiões é preocupante. É exatamente no contexto celebrativo que poderemos encontrar desde as mais belas expressões da fé, às mais delirantes e – porque não – heréticas maneiras de exprimi-la e realizá-la.

O caso das chamadas Missas de Cura e Libertação trazem consigo questões complexas e ao mesmo tempo interessantes na compreensão e experiência do mistério de Cristo e do ser humano que a Liturgia da Igreja encerra. Pessoalmente, minha opinião de teólogo da liturgia é que estas celebrações trazem um defeito de base: transformam o médico e o devir terapêutico em medicamento. E foi exatamente neste ponto que o livro de Mitch Finley me ofereceu alguns insights, os quais compartilho neste breve artigo. Sua primeira reflexão se intitula “a fé não é uma aspirina espiritual”. Dentre suas afirmações que me parecem mais pertinentes está a seguinte:

“a fé de Jesus não o salvou da dor e do sofrimento, nem durante sua vida, nem enquanto morria pendurado na cruz. Portanto seria inadequado pensarmos a fé como uma forma de escapar da dor e do sofrimento, como uma espécie de novocaína espiritual.”[1]

Se para Jesus foi assim, igualmente será inadequado transformar os ritos com os quais a Igreja recorda sua vida e a nos impregna com sua presença em um mero medicamento que nos livraria desta ou daquela dor. Em hipótese alguma significa desconsiderar a perspectiva terapêutica que é inerente à fé cristã. Como muito bem nos recorda Eugen Biser, “o cristianismo é uma religião terapêutica.”[2]

A cura dos doentes e enfermos e a expulsão dos espíritos maus foram traços característicos do ministério de Jesus. Entretanto, a finalidade da ação terapêutica de Jesus residia na retirada de todo obstáculo – inclusive doenças, enfermidades e possessões – no processo de restabelecimento da dignidade filial que Ele recebe do Pai como missão. O que está em jogo, portanto, não são as feridas que necessitam ser curadas, mas a qualificação da vida de cada homem e mulher como experiência de filho e filha amada por Deus. Ed René Kivitz em seu Talmidim, o afirma explicitamente:

“eu imaginava (quando me tornei discípulo de Jesus) que poderia contar com seus favores para resolver meus problemas cotidianos, afinal Jesus é mestre em milagres. Mas com o passar do tempo fui percebendo que o chamado de Jesus era muito mais profundo. Ele queria que eu me tornasse outro tipo de pessoa. Um tipo de pessoa exatamente igual a ele.”[3]

Neste sentido, para aplicar a Jesus o apelativo de “médico” e desdobrarmos as consequências no que se refere à Liturgia, é preciso situar sua ação curativa no contexto do cuidado, como fruto da compaixão e misericórdia que o habitam. Assim, a Sacrosanctum Concilium começa por afirmar que Deus, em seu Filho, Palavra encarnada, ungido pelo Espírito, foi enviado para “anunciar a boa nova aos pobres, curar os contritos de coração, ‘medico da carne e do espírito’, mediador entre Deus e os homens.”[4] Ao encarnar-se, portanto, a missão de Jesus é anunciar o evangelho, curar os corações, cuidar do ser humano integral e ser pontífice entre Deus e a humanidade. As celebrações da Igreja, todas e cada uma, reúnem em si e realizam esta missão de Jesus – integralmente. Jesus, como aquele que nos preside em cada ação litúrgica não é um farmacêutico e os ritos – suas ações – não são comprimidos ou xaropes.

Inácio de Antioquia em sua Carta aos Efésios afirma Jesus como médico do ser humano porque “em Cristo realizou-se o pleno cumprimento da nossa reconciliação e foi-nos dada a plenitude do culto divino”.[5] Ao associarmo-nos, pelo Batismo, Crisma e Eucaristia, à pessoa de Jesus, tendo sido iniciados em seu Evangelho, podemos ter a sua vida em nós e, como filhos e filhas no Filho, viver neste mundo com um novo proceder. A Liturgia por seus ritos e preces não tem por função curar doenças psicossomáticas ou de qualquer outra ordem, mas resgatar e conservar em nós a humanidade de Cristo e assim estabelecer decisivamente nosso vínculo com Deus, permitindo-nos participar da vida divina. Utilizando uma metáfora empregada por Crispino Valenziano, os sacramentos da iniciação nos dão o DNA divino: a filiação. A Liturgia deve por em movimento este DNA. Quando não o faz, é rito e nada mais, muito mais próxima da magia do que do memorial que as celebrações devem se constituir.[6]

Notas:

  1. FINLEY, Mitch. O que a fé não é. São Paulo: Loyola, 2004, p. 12.
  2. BISER, Eugen. Citado por PAGOLA, José Antonio. O Caminho aberto por Jesus. Marcos. Petrópolis: Vozes, 2013.
  3. KIVITZ, Ed René. Talmidim. O passo a passo de Jesus. São Paulo: mundocristão, 2012, p. 8.
  4. Constituição Dogmática sobre a Sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium n.5 . Documentos do Concílio Vaticano II. São Paulo: Paulus, 2002.
  5. Inácio de Antioquia. Carta aos Efésios 7,2. In. Antologia Litúrgica. Textos litúrgicos, patrísticos e canônicos do primeiro milênio. Fátima: Secretariado Nacional de Lituriga, 2003, n.219, p. 102.
  6. Cf. GRILLO, Andrea, VALENZIANO, Crispino. L’uomo della Liturgia. Assis: Citadella Editrice, 2007, p. 101.

Sobre o autor:

Pe. Márcio Pimentel

Padre Márcio Pimentel é especialista em Liturgia pela PUC-SP e mestrando
em Teologia na Faculdade Jesuíta de Teologia e Filosofia (Faje / Capes)
Pároco da paróquia São Sebastião e São Vicente

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Sobre Missas de Cura e Libertação https://observatoriodaevangelizacao.com/sobre-missas-de-cura-e-libertacao/ Sat, 04 Jun 2016 17:34:28 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=7505 [Leia mais...]]]> O Observatório da Evangelização disponibiliza aqui a primeira parte da pertinente reflexão do liturgista Pe. Márcio Pimentel sobre Cura e Libertação. Vale a pena ler para  melhor compreender as razões que levaram a Arquidiocese de Belo Horizonte ter se posicionado contra as chamadas Missas de Cura e Libertação, posicionamento que é confirmado na pesquisa questionário para a 5ª Assembleia do Povo de Deus, quando 73% dos participantes declararam que a Igreja não deve investir em atividades como essa.

Sobre Cura e Libertação

(parte 1)

Um dos livros dentre os quais retomei a leitura, “o que a fé não é”, me fez recordar alguns assuntos espinhosos em matéria litúrgica. Dentre esses está a problemática das missas de cura de libertação. Já que a Liturgia da Igreja constitui-se “fé em ato”, interferir seu contexto ritual e eucológico arbitrariamente como costuma ocorrer nestas ocasiões é preocupante. É exatamente no contexto celebrativo que poderemos encontrar desde as mais belas expressões da fé, às mais delirantes e – porque não – heréticas maneiras de exprimi-la e realizá-la.

O caso das chamadas Missas de Cura e Libertação trazem consigo questões complexas e ao mesmo tempo interessantes na compreensão e experiência do mistério de Cristo e do ser humano que a Liturgia da Igreja encerra. Pessoalmente, minha opinião de teólogo da liturgia é que estas celebrações trazem um defeito de base: transformam o médico e o devir terapêutico em medicamento. E foi exatamente neste ponto que o livro de Mitch Finley me ofereceu alguns insights, os quais compartilho neste breve artigo. Sua primeira reflexão se intitula “a fé não é uma aspirina espiritual”. Dentre suas afirmações que me parecem mais pertinentes está a seguinte: “a fé de Jesus não o salvou da dor e do sofrimento, nem durante sua vida, nem enquanto morria pendurado na cruz. Portanto seria inadequado pensarmos a fé como uma forma de escapar da dor e do sofrimento, como uma espécie de novocaína espiritual.”[1] Se para Jesus foi assim, igualmente será inadequado transformar os ritos com os quais a Igreja recorda sua vida e a nos impregna com sua presença em um mero fármaco que nos livraria desta ou daquela dor.

As celebrações da Igreja, todas e cada uma, reúnem em si e realizam esta missão de Jesus – integralmente. Jesus, como aquele que nos preside em cada ação litúrgica não é um farmacêutico e os ritos – suas ações – não são comprimidos ou xaropes
Em hipótese alguma significa desconsiderar a perspectiva terapêutica que é inerente à fé cristã. Como muito bem nos recorda Eugen Biser, “o cristianismo é uma religião terapêutica.”[2] A cura dos doentes e enfermos e a expulsão dos espíritos maus foram traços característicos do ministério de Jesus. Entretanto, a finalidade da ação terapêutica de Jesus residia na retirada de todo obstáculo – inclusive doenças, enfermidades e possessões – no processo de restabelecimento da dignidade filial que Ele recebe do Pai como missão. O que está em jogo, portanto, não são as feridas que necessitam ser curadas, mas a qualificação da vida de cada homem e mulher como experiência de filho e filha amada por Deus. Ed René Kivitz em seu Talmidim, o afirma explicitamente: “eu imaginava (quando me tornei discípulo de Jesus) que poderia contar com seus favores para resolver meus problemas cotidianos, afinal Jesus é mestre em milagres. Mas com o passar do tempo fui percebendo que o chamado de Jesus era muito mais profundo. Ele queria que eu me tornasse outro tipo de pessoa. Um tipo de pessoa exatamente igual a ele.”[3]

Neste sentido, para aplicar a Jesus o apelativo de “médico” e desdobrarmos as consequências no que se refere à Liturgia, é preciso situar sua ação curativa no contexto do cuidado, como fruto da compaixão e misericórdia que o habitam. Assim, a Sacrosanctum Concilium começa por afirmar que Deus, em seu Filho, Palavra encarnada, ungido pelo Espírito, foi enviado para “anunciar a boa nova aos pobres, curar os contritos de coração, ‘medico da carne e do espírito’, mediador entre Deus e os homens.”[4] Ao encarnar-se, portanto, a missão de Jesus é anunciar o evangelho, curar os corações, cuidar do ser humano integral e ser pontífice entre Deus e a humanidade. As celebrações da Igreja, todas e cada uma, reúnem em si e realizam esta missão de Jesus – integralmente. Jesus, como aquele que nos preside em cada ação litúrgica não é um farmacêutico e os ritos – suas ações – não são comprimidos ou xaropes.

Inácio de Antioquia em sua Carta aos Efésios afirma Jesus como médico do ser humano porque “em Cristo realizou-se o pleno cumprimento da nossa reconciliação e foi-nos dada a plenitude do culto divino”.[5] Ao associarmo-nos, pelo Batismo, Crisma e Eucaristia, à pessoa de Jesus, tendo sido iniciados em seu Evangelho, podemos ter a sua vida em nós e, como filhos e filhas no Filho, viver neste mundo com um novo proceder. A Liturgia por seus ritos e preces não tem por função curar doenças psicossomáticas ou de qualquer outra ordem, mas resgatar e conservar em nós a humanidade de Cristo e assim estabelecer decisivamente nosso vínculo com Deus, permitindo-nos participar da vida divina. Utilizando uma metáfora empregada por Crispino Valenziano, os sacramentos da iniciação nos dão o DNA divino: a filiação. A Liturgia deve por em movimento este DNA. Quando não o faz, é rito e nada mais, muito mais próxima da magia do que do memorial que as celebrações devem se constituir.[6]

O autor, Márcio Pimentelimages, é presbítero da Arquidiocese de Belo Horizonte. Liturgista com especialização em Liturgia, Ciência e Cultura pela PUC-SP e em Música Ritual pela FACCAMP-SP. Cursa Licenciatura em Educação Musical pela UFMG e é pós-graduando em Terapia Familiar. Atua há duas décadas na Pastoral Litúrgica, assessorando comunidades de fé e agentes de pastoral em diversas partes do país. Na Arquidiocese coordenou por cinco anos a Comissão Arquidiocesana de Liturgia. Atualmente desenvolve seu ministério na Paróquia São Sebastião e São Vicente e é assessor eclesiástico para a Liturgia junto à Comissão Arquidiocesana de Liturgia – CAL.

1 FINLEY, Mitch. O que a fé não é. São Paulo: Loyola, 2004, p. 12.
2 BISER, Eugen. Citado por PAGOLA, José Antonio. O Caminho aberto por Jesus. Marcos. Petrópolis: Vozes, 2013.
3 KIVITZ, Ed René. Talmidim. O passo a passo de Jesus. São Paulo: mundocristão, 2012, p. 8.
4 Constituição Dogmática sobre a Sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium n.5 . Documentos do Concílio Vaticano II. São Paulo: Paulus, 2002.
5 Inácio de Antioquia. Carta aos Efésios 7,2. In. Antologia Litúrgica. Textos litúrgicos, patrísticos e canônicos do primeiro milênio. Fátima: Secretariado Nacional de Lituriga, 2003, n.219, p. 102.
6 Cf. GRILLO, Andrea, VALENZIANO, Crispino. L’uomo della Liturgia. Assis: Citadella Editrice, 2007, p. 101.

Fonte: www.arquidiocesebh.org.br 

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