Pe. Geraldo De Mori SJ – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com Wed, 10 Aug 2022 18:18:05 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.4 https://i0.wp.com/observatoriodaevangelizacao.com/wp-content/uploads/2024/04/cropped-logo.png?fit=32%2C32&ssl=1 Pe. Geraldo De Mori SJ – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com 32 32 232225030 Discernir a pastoral em tempos de crise: realidade, desafios, tarefas https://observatoriodaevangelizacao.com/discernir-a-pastoral-em-tempos-de-crise-realidade-desafios-tarefas/ Wed, 10 Aug 2022 18:18:05 +0000 https://atomic-temporary-74025290.wpcomstaging.com/?p=45586 [Leia mais...]]]> Por Eliseu Wisniewski**

O livro: Discernir a pastoral em tempos de crise: realidade, desafios, tarefas: Contribuições do 1º Congresso de Teologia Pastoral (Paulinas, 2022, 408 p.), organizado por Dr. Geraldo De Mori, recolhe grande parte das reflexões feitas nas conferências (p. 25-90), nos painéis (p. 91-254) e nos seminários (p. 255-361) do 1º Congresso Brasileiro de Teologia Moral. Esse evento foi organizado pelo Grupo de Pesquisa “Teologia e Pastoral”, do Programa de Pós-Graduação em Teologia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), e, realizado em formato virtual entre os dias 03 e 06 de maio de 2021.

Cartaz do 1º Congresso Brasileiro de Teologia Pastoral – De 03-06 de maio de 2021

Na Apresentação (p. 19-23) desta obra, Geraldo De Mori observa que “a temática original do Congresso, ‘Discernir a pastoral em tempos de crise: realidade, desafios, tarefas’, foi profundamente afetada pelas questões que surgiram durante a pandemia, algumas relacionadas ao uso do nome de Deus enquanto justificativa de propósitos contrários à fé cristã; e, outras, à compreensão de Igreja, identificada seja com figuras da instituição, seja do elã pentecostal-carismático, seja da pregação, seja da práxis profética das Comunidades Eclesiais de Base, seja da fragmentação pós-moderna, seja do tradicionalismo e fundamentalismo, essa última tendo crescido nos últimos anos, com vários grupos ativos na mídia social, acirrando a polarização, manipulando o uso da tradição, rompendo com o Concílio Vaticano II, o magistério do papa Francisco e da CNBB. A isso se acrescenta o crescimento do clericalismo e de estruturas eclesiásticas contrárias às mudanças empreendidas pelo Papa. Neste contexto, permanecem, contudo, as questões: “o que é evangelizar? Como ser testemunha da alegria do Evangelho, sobretudo nas periferias existenciais, no cuidado da casa comum, em atitude samaritana? Como participar dos processos de reforma da Igreja promovidos pelo atual Pontífice?” (p. 21-22).

Nesta perspectiva, os capítulos que compõe esta coletânea estruturada em quatro partes, cada um a seu modo, visam contribuir com estas questões. A presente obra traz alguns textos elaborados pelos que fizeram Conferências, atuaram em Painéis ou apresentaram conteúdos em Seminários.

Quanto às Conferências:

1) No texto “Discernir a pastoral em tempos de crise” (p. 27-53), Dr. Agenor Brighenti aborda a temática, desmembrando-a em três perguntas, procurando respondê-las brevemente: a) que crise é essa que  estamos vivendo e que atinge  todos e a tudo inclusive a pastoral? (p. 28-33); b) o que se passa na pastoral nestes tempos de crise? (p. 33-40); que tipo e pastoral para assumir a crise e superá-la? (p. 41-46). Esclarece que “ crise é uma das marcas fundantes da situação atual, seja do que vive a sociedade, seja do que se experimenta no cotidiano da Igreja ou na esfera da experiência religiosa como um todo. Há a crise recente, provocada pela pandemia, que particularmente em nosso país não é pequena, mas conjuntural. Contudo, ela se insere no seio de uma crise maior e anterior a ela, uma crise estrutural, que vem de pelo menos quatro décadas” (p. 28). Diante disso, os que “reagem à crise atual com uma visão retrospectiva da realidade estão na pastoral de conservação (modelo da cristandade medieval) ou em um pastoral apologética (modelo da Igreja da neocristandade), e muitas vezes se mesclam os dois modelos. As três décadas de ‘involução eclesial’ em relação à renovação do Vaticano II, que se estendeu durante os dois pontificados que antecederam o atual, propiciaram o refluxo desses modelos e, curiosamente, sobretudo através do clero mais jovem” (p. 34-35). Uma pastoral consequente com o tempo atual é uma “pastoral de conversão missionária” (p. 42), conversão esta que abarca quatro âmbitos: da consciência, das ações, das relações de igualdade e autoridade, das estruturas (p. 43-46).

2) Dom Leonardo Ulrich Stneiner, Arcebispo de Manaus reflete sobre “os desafios e perspectivas para a Igreja do Brasil, hoje” (p. 55-90). O referido autor faz suas “matutações” (p. 56), em cinco pontos: a) sondando a palavra fé (p. 56-57); b) sondando as palavras evangelização e pastoral (p. 57-62); 3) atendo-se nos desafios e perspectivas das Diretrizes para a Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil (p. 62-64); 4) escutando os desafios (p. 64-74); 5) escutando as perspectivas (p. 74-86). Especificamente, Steiner elenca estes desafios: a) o pensamento calculante e dominador (p. 65-67), b) figuras de Deus (p. 67-69), c) a morte de Deus (p. 69-70), d) o desafio de anunciar Jesus e seu Reino (p. 71), e) os meios de comunicação de inspiração católica (p. 71-), f) diálogo (p. 72), g) sinodalidade (p. 72-73), h) meio ambiente (p. 73), i) formação (p. 73-). As perspectivas: a) a Palavra de Deus (p. 74-76), b) celebração da Palavra de Deus (p. 76-), c) iniciação à vida cristã (p. 77), d) as comunidades (p. 77-78), e) os leigos (p. 78-79), f) a fé que deseja encarnar-se na cultura (p. 79-80), g) escuta permanente (p. 80-81). Concluindo, salienta ser fundamental permanecer na cercania da misericórdia uma vez que ela é a essência do ser cristão (p. 81-84), e na iluminação do encontro (p. 84-86).

Capa do livro com as contribuições do 1º Congresso Brasileiro de Teologia Pastoral – Publicado em 2022.

Quanto aos Painéis, estes estão subdivididos em:

1) Aprendizados pastorais na pandemia (p. 93-114), Vanildo de Paiva em sua reflexão tendo em conta as experiências do Êxodo e do Exílio na Babilônia coo experiências fundantes de um novo modo de compreender a relação com Deus e consequentemente o modo de se organizar socialmente e eclesialmente, no cenário trazido pela pandemia procura acenar alguns aspectos que no ajudam a pensar melhor a tão desejada e necessária reinvenção ou renascimento pastoral como: a) o protagonismo dos leigos (p. 97-99), b) uma Igreja samaritana a serviço da vida (p. 99-101), c) a centralidade do essencial (p. 101-103), d) o lugar preferencial dos pobres (p. 103-105), e) a força transformadora da liturgia (p. 105-107), f) a sacramentalidade da Palavra de Deus (p. 107-108), g) a missionaridade e a Igreja em saída (p. 108-110), h) a importância das novas mídias na vida da igreja (p. 110-112).

2) Pentecostalidade e mística (p. 115-155), Luana Martins Golin e Marcial Maçaneiro  buscam refletir sobre o significado do pentecostalismo e da mística para a ação pastoral da Igreja. Golin na sua reflexão Encontros entre a pentecostalidade e a mística (p. 117-129) esclarece em primeiro lugar como é possível pensar acerca de uma mística pentecostal (p. 117-120), trazendo para a discussão e o diálogo algumas premissas da mística ortodoxa oriental (p. 120-125), que possibilita resgatar o mistério e a experiência do absoluto como possibilidades para uma espiritualidade menos institucional e eclesiocêntrica e mais pneumática, livre como Espírito Santo (p. 125-126). Por sua vez, Maçaneiro nota que o nexo mais direto entre mística e pentecostalidade é o Espírito Santo, presente tanto ao místico quanto ao carismático. Isto se dá ao nível da experiência, não só subjetiva, mas eclesial. Porém, a interpretação e a sistematização dessa experiência por parte da teologia e mesmo da história, nem sempre evidenciam os nexos pneumatológicos ali postos (p. 131-151).

3) Igreja, pandemia e periferias existenciais (p. 157-177), Luís Corrêa Lima ressalta que um dos sinais mais notáveis do mundo atual é a ampla visibilidade da população LGBT+.  (p. 159-162). Os LGBT+ se situam nas periferias existenciais e a solicitude pastoral da igreja também deve contemplá-los. Com a devida compreensão da sua realidade, eles podem ser ajudados na busca de Deus e de sentido para a vida, no cultivo da vida espiritual e da autoestima, na cura de feridas exteriores e interiores, no fomento do apoio mútuo, da vida eclesial, do apostolado e a ação do mundo (p. 162-175).

4) A Igreja na Amazônia pós-sínodo/ Ecologia Integral (p. 179-205), João Gutemberg Sampaio e dom Mario Antônio da Silva descrevem o Sínodo da Amazônia como sinal da presença de Deus na caminhada da Igreja na Amazônia e na história de liberdade dos povos da Amazônia (p. 181-182). Frente a isso, observam que os povos da Amazônia são desafiados pelo impacto da pandemia da Covid-19 e pela manutenção e até o aumento das invasões dos seus territórios para a exploração ilegal de bens naturais (p. 182-183). Destacam que acolher a Exortação Pós-Sinodal Querida Amazônia significa sonhar junto com os povos da Amazônia (p. 183-184), assumindo também os compromissos aí propostos (p. 184-188). Márcia Maria de Oliveira apresenta algumas propostas de reflexão para a ecologia integral (p. 189-205), dentre outros aspectos destaca ser urgente/fundamental a ruptura com pensamento neocolonial para repensar a Amazônia e os novos caminhos da Igreja, fazendo-se necessário nos deixarmos “amazonizar”, com a participação ativa de todo o povo na construção do bem-viver, na defesa da Amazônia, de seu bioma e dos povos ameaçados em seus territórios (p. 196-202).

5) A Igreja e os desafios da comunicação (p. 207-232), Luís Miguel Modino apresenta 10 desafios para a comunicação da Igreja: 120 uma comunicação desde a escuta; 2) uma comunicação com uma linguagem compreensível, 3) uma comunicação que mostra a vida escondida, 4) uma comunicação desde as periferias, 5) uma comunicação profética, 6) Uma comunicação para a transformação social, 7) uma comunicação em rede, 8) uma comunicação sinodal, 9) uma comunicação que evangeliza, 10) uma comunicação que gera a esperança (p. 209-217). Em seguida, dom Joaquim Giovani Mol Guimarães observa que a Igreja  é desafiada pela comunicação (p. 219-232), concretamente: a) o desafio da comunicação que não se confunde com informação, b) o desafio de um Plano Estratégico de Comunicação, c) o desafio da prática de novas e múltiplas linguagens, d) o desafio da disparidade e do despautério na comunicação da Igreja, e) o desafio da comunicação sempre libertadora sob pena de ser alienadora (p. 221-232).

 6) O significado da sinodalidade para a pastoral (p. 233-254), Antônio Manzatto chama a atenção para experiências de sinodalidade (p. 235-243), como a experimentada no Concílio Vaticano II, nas Conferências Gerais do CELAM, nas assembleias da CNBB, nas Assembleias Pastorais, no Sínodo da Amazônia. Rosana Manzini oferece uma reflexão sobre o significado da sinodalidade para a pastoral pós-pandemia (p. 245-254), ressaltando que tempos pós-pandêmicos exigiram: a) superar o clericalismo, b) recuperar a dignidade do laicato, c) reanimar a vida eclesial nas pequenas comunidades, d) a formação para os agentes eclesiais, e) uma Igreja sinodal que escuta e cura (p. 248-254).

Quanto aos Seminários:

1) Manoel José Godoy e Matheus da Silva Bernardes apresentam uma reflexão sobre a paróquia em uma Igreja em saída (p. 257-276), recolhendo/resgatando, para isso, ideias centrais do que já foi dito sobre a paróquia , porém num horizonte muito próprio: a da Igreja em saída. Apresentando uma breve contextualização da paróquia em tempos de pandemia (p. 258-261), para em seguida apresentar uma reflexão eclesiológica de três autores: H. Küng, J. Moltmamm e J. Sobrino – estes estabeleceram a relação entre missão e cada uma das notas da Igreja e, por isso, ajudam a sustentar a ideia de uma Igreja em saída (p. 261-265), para chegarmos à conversão paroquial sonhada por Francisco (p. 265-276), propondo, para isso pistas/caminhos, que devem ser discernidos em comunidade.

2) Valéria Andrade Leal explora como propor a fé aos jovens a partir da Christus vivit (p. 277-297). A autora defende que na evangelização querigmática encontra-se o núcleo central da Exortação Apostólica Christus vivit (p. 279-283). Ressalta que o texto pontifício expõe, não teoricamente, as na prática, por assim dizer, a evangelização juvenil a partir do anúncio de Jesus Cristo Ressuscitado, que traz vida nova aos que nele creem. Este anúncio se faz na realidade do jovem, dentre a qual a da imigração, parece como paradigma, pois supõe o empenho em cultivar as raízes, ou seja, as referências centrais da vida do jovem em seu desenvolvimento (p.283-288). Dessa forma a evangelização pode favorecer o crescimento integral de cada pessoa, ao mesmo tempo em que a torna consciente e comprometida com o seu entorno. Nesse contexto se insere a proposta de uma pastoral juvenil vocacional, popular (p. 289-291), baseada em dois processos fundamentais, segundo a proposta do Papa: busca e discernimento (p. 291-294).

3) Marina Paula Oliveira à luz do atual pontificado examina quais são os desafios socioambientais a serem promovidos na evangelização/na dinâmica pastoral (p. 299-311). Observa que o papa Francisco nos convida, principalmente a partir de suas encíclicas, exortações e documento, a trilhar um caminho de conversão, em direção ao Reino de Deus. Esse caminho tem sido construído a partir de diferentes perspectivas pastoras, envolvendo temáticas variadas, que sempre apontam para o que a autora chama de “conversão” (p. 300), podendo-se identificar pelo menos cinco conversões fundamentais propostas por Francisco: 1) conversão eclesial, 2) conversão ecológica, 3) conversão econômica, 4) conversão cultural, 5) conversão pedagógica (p. 301-306). Em seguida, Oliveira a partir das motivações da Palavra de Deus e do Magistério de Francisco elenca dez desafios para o desenvolvimento de um trabalho pastoral que esteja atento às realidades socioambientais de nossos territórios: 1) promover o protagonismo dos leigos, com ênfase na atuação das mulheres, 2) fomentar o ecumenismo e a sinodalidade da Igreja, 3) lutar pelas políticas públicas como testemunho concreto pela opção pelos pobres, 4) valorizar as realidades locais, formando redes de comunidades, 5) fortalecer uma comunidade popular e libertadora, 6) promover a formação dos leigos com ênfase na catequese inicial e permanente, 7) defender um projeto de educação popular com foco nas novas gerações, 8) promover o diálogo entre liturgia e devoção popular, 9) construir e defender um projeto popular de sociedade, 10) compreender que a Igreja, enquanto Povo de Deus está em construção (p. 316-311).

4) Robson Sávio Reis dos Santos aborda a temática fé, política e cidadania como o campo de ação sociopolítica e pastoral (p. 313-336), fazendo três recortes: 1) o primeiro, um breve histórico do que vem a ser um amplo movimento eclesial denominado “fé e política”, que se identifica com uma ética cristã comprometida com valores de igualdade, justiça social, combate a todas as formas de preconceitos, descriminalização da politica no ambiente eclesial, inserção dos cristãos em vários âmbitos da atividade política, entre ações teórico-práticas (p. 314-324); 2) o segundo recorte é uma análise de como esse campo de fé e política está organizado no Brasil atualmente, considerando também, 3) quais são os desafios que a realidade sociopolítica contemporânea demanda nesse campo de ação protagonizado por leigos/as católicos/as atuantes em movimentos, grupos e outros movimentos sociais e eclesiais, as que conta também com a participação de religiosos e ministros ordenados (p. 325-336).

5) Ediméia Maria Ribeiro de Mello, em “A economia de Francisco e Clara: uma perspectiva para os tempos pós-pandemia?” (p. 337-361), pretende, a partir da leitura de publicações da Igreja católica e á luz de algumas interpretações das ciências econômicas, especialmente da economia política, contribuir para a compreensão desse movimento, contribuir para a compreensão desse movimento, que propõe correções profundas no padrão civilizatório implementado pela humanidade. Em primeiro lugar, a autora faz uma análise dos antecedentes dessa proposta, registrados ao longo do tempo  desde o Concílio Vaticano II, que deliberou a aproximação da Igreja Católica da realidade social do mundo (p. 339-350). Em seguida, considerando a proposição papal de “realmar” (p. 338) a economia, o texto busca discutir as crises inerentes à economia capitalista hegemônica, para apresentar os clamores da terra e dos pobres aos quais se pretende acudir (p. 342-344).  Mello conclui, apresentando as proposições do Papa Francisco de uma nova economia “realmada”, a economia de Francisco e de Clara, e sua contextualização no período de crise sanitária, que desvela valores de solidariedade e fraternidade (p. 350-361).

Na quarta parte “Releituras” (p. 363-383):

1) Edward Guimarães na busca de uma primeira leitura do 1º Congresso Brasileiro de Teologia Pastoral (p. 365-371), faz notar que discernir, à luz do Espírito Santo, o que foi decisivo, os desafios e urgências, bem como as pistas que foram oferecidas neste evento não é uma tarefa fácil, uma vez que reclama, antes, maior escuta uns dos outros, processos dialógicos coletivos, com aquela sabedoria paciente dos artesãos que trabalham a pedra, a madeira, o barro (p. 365). Assim sendo, Guimarães enfatiza alguns elementos estruturantes, para posteriormente delinear os horizontes abertos pelo Congresso:

I) para a dimensão interna da igreja Católica: a) um primeiro elemento a nos desafiar, e que se situa no nível da conversão ao Evangelho do Reino e à práxis de Jesus, seria o de concretizar a passagem de uma “fé ideia” para uma “fé que se faz concretamente relação” (p. 366-367); b) um segundo elemento a nos desafiar se situa no nível do discernimento dos sinais dos tempos: somos interpelados a nos comprometer com a ressignificação dos mecanismos já existentes e com a criação de mecanismos novos, em vista da concretização da sinodalidade na Igreja (p. 367-368), c) um terceiro elemento a nos desafiar se situa no nível do magistério, mas também no da própria teologia pastoral e da formação. Trata-se do compromisso coletivo de juntos, inspirados pelo magistério de Francisco e com os desafios de pensar novos caminhos para a Igreja na cidade, concretizarmos uma segunda recepção criativa do Concílio Vaticano II, uma espécie de “novo Medellín”(p. 368-369);

II) para a dimensão social e a presença pública da Igreja na sociedade: a) um primeiro grande desafio que emergiu forte foi o da necessidade urgente de reconhecer e promover a necessária solidariedade emergencial diante da grave crise sociopolítica, econômica, ambiental e religiosa, explicitada na longa pandemia da Covid -19 (p. 369-370), um segundo grande desafio via na mesma direção: trata-se de colocar-se ao lado e em defesa dos povos originários, que hoje estão entre as maiores vítimas da deteriorização das políticas públicas, dos órgãos de fiscalização e da responsabilidade social do estado (p. 370-371), um terceiro grande desafio é o de que, diante da desigualdade socioeconômica e seu lastro de exclusão e da hegemonia do capital financeiro neoliberal especulativo, urge retomar bandeiras como a da reforma agrária e do acesso à educação de qualidade para todos (p. 371).         

2) Geraldo De Mori apresenta alguns horizontes pastorais do 1º Congresso Brasileiro de Teologia Pastoral (p. 373-383).Salienta que as palavras: companhia, memória e profecia trazem algumas ideias para a releitura do que foi vivido no Congresso (p. 373). É companhia de fé, ou seja, o que a move enquanto discurso, é a inteligência da fé: o Congresso colocou a todos no coração do tempo presente, no qual a teologia pastoral busca ser presença da alegria do evangelho (p. 374). A teologia enquanto presença não só ausculta o lugar e o tempo e que se exerce sua função de presença de alegria do Evangelho, como também a respostas dos discípulos e discípulas de Cristo aos desafios que enfrentam para ser testemunhas de esperança, fé e amor e neste sentido, vários seminários, painéis e comunicações e experiências significativas mostraram as muitas facetas da presença eclesial no momento presente (p. 375-378). A teologia é também memória – o fazer memória, próprio da teologia, deve levar a inteligência da fé a se debruçar sobre as respostas que ela deu às grandes questões de cada tempo e de cada lugar. A teologia enquanto memória esteve presente no decorrer do Congresso, sobretudo como recordação da tradição teológica e eclesial latino-americana na perspectiva aberta pelo Concílio Vaticano II (p. 378-381). Enquanto profecia, essa dimensão responde á pergunta como fazer teologia hoje – e em termos de horizonte aberto pelo Congresso, duas questões parecem demandar hoje a profecia da igreja: 1) as ameaças à democracia do atual governo, com o apoio de muitos grupos que se dizem cristãos e católicos; 2) o fosso entre ricos e pobres, que a atual pandemia só fez aumentar. A opção preferencial pelos pobres, dita e redita de tantas maneiras em muitos textos eclesiais, precisa de novo sair do papel, deixar de ser apenas uma palavra, para tornar-se carne em ações e iniciativas concretas (p. 381-383).

***

Certamente “a pastoral dá o que pensar” (p. 16) e os textos reunidos em Discernir a pastoral em tempos de crise: realidade, desafios, tarefas: contribuições do 1º Congresso Brasileiro de Teologia Pastoral  oferecem ao público em geral subsídios importantes para pensar e discernir a pastoral em nosso contexto atual marcado por profundas mudanças.  Tendo-se em conta que “todo compromisso pastoral brota de um discernimento da realidade” (p. 46), os temas abordados por diferentes especialistas nesta coletânea colocam-nos diante de desafios que nos desinstalam, renovam e revigoram tanto a teologia como a ação evangelizadora. Por outro lado, as temáticas abrem inúmeras perspectivas pastorais.

Os horizontes são interpelantes… e, “neste sentido, vários dos seminários, painéis, comunicações e experiências significativas mostraram as muitas facetas da presença eclesial no momento presente: na animação bíblica da pastoral, nas paróquias, junto às juventude, ante os desafios socioambientais, na articulação entre fé e política, na iniciação á fé, no mundo do trabalho e da economia, nas periferias existenciais, com atenção especial aos moradores de rua e as populações LGBTQ+, na Amazônia, nas novas mídias digitais. Muito inspiradoras as reflexões e provocações trazidas nos espaços propostos pelo Congresso. Seguramente, as pistas apontadas e as experiências compartilhadas já apontam saídas para a crise na qual o Brasil está imerso. Alguns temas, como o dos novos ministérios e a mulher, o da pentecostalidade e mística, o da sinodalidade, merecem uma atenção muito maior no futuro” (p. 375).

Ao Prefaciar (p. 13-17) esta substanciosa obra – Francisco de Aquino Júnior ressalta que a fé/pastoral é constitutiva do estatuto teórico da teologia, ou seja,  “enquanto intellectus fidei, a teologia é inseparável da fé. É o desenvolvimento da dimensão intelectual da fé que se dá tanto de modo simbólico-narrativo quanto de modo teórico-conceitual. É um esforço intelectivo de apreensão, explicitação e elaboração da fé. E um esforço que está a serviço da vivência e da eficácia da fé na comunidade eclesial e no conjunto da sociedade. De uma forma ou de outra, a teologia é inseparável da fé: é um momento da fé (dimensão intelectual) e está a serviço da fé (dimensão socioeclesial), tanto no que se refere à vivência pessoal e cotidiana da fé quanto no que se refere à ação pastoral-evangelizadora da Igreja” (p. 13).

Nesta perspectiva “a teologia é um serviço à Igreja é um serviço à Igreja e a Igreja existe para evangelizar. Por isso, ela deve ser uma Teologia pastoral. Mais do que a academia, seu lugar são os espaços, os processos eclesiais. Sem esse chão eclesial, ela perde seu sentido (…). Portanto, a teologia pastoral busca entender o presente no qual vivem e agem os que creem em Jesus Cristo, para que suas vidas correspondam ao que dizem ser” (p. 374).

Somos gratos ao Grupo de Pesquisa “Teologia e Pastoral” que reúne pesquisadores /as e estudantes da FAJE, PUC-Minas, ISTA, Centro Loyola e outras instituições de ensino e pesquisa em Teologia no Brasil pela organização do Congresso, aos autores e autoras que produziram seus textos a partir de suas conferências e ao Pe. Geraldo De Mori pela organização desta obra que em muito contribuirá para a reflexão teológica e pastoral: “que o conteúdo aqui proposto ajude a Igreja a ‘discernir’ sua ‘pastoral’ em ‘tempos de crise’” (p. 23), e, além disso, “que estas reflexões ajudem nossa Igreja a sentir e a enfrentar os dramas e desafios de nossa sociedade, discernindo os ‘sinais dos tempos’, ungindo as feridas, consolando os aflitos, socorrendo os necessitados, reafirmando a dignidade fundamental de todo ser humano, denunciando injustiças e preconceitos, participando das lutas populares por direitos, cuidando da nossa casa comum, alimentando uma esperança ativa e militante. Que elas desinstalem, renovem e revigorem nossa teologia em um movimento constante de ‘saída para as periferias’ sociais, existenciais e religiosas, assumindo, a seu modo e com os meios que lhes são próprios, a missão comum de toda a Igreja, que é ‘anunciar e tornar presente o Reino de Deus no mundo’. Os pobres e marginalizados deste mundo são, nele, senhores e juízes de nossa pastoral e de nossa teologia” (p. 17).


* MORI,Geraldo De (Org.) Discernir a pastoral em tempos de crise: realidade, desafios, tarefas: Contribuições do 1º Congresso de Teologia Pastoral. São Paulo: Paulinas, 2022, 480 p. ISBN 9786558081449 (Coleção Faculdade Jesuíta).

** Presbítero da Congregação da Missão (padres vicentinos), Província do Sul, e mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR).

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“A propósito dos 50 anos de Teologia da libertação, um ‘clássico’ da teologia latino-americana”, com a palavra o prof. Geraldo de Mori https://observatoriodaevangelizacao.com/a-proposito-dos-50-anos-de-teologia-da-libertacao-um-classico-da-teologia-latino-americana-com-a-palavra-o-prof-geraldo-de-mori/ Fri, 26 Nov 2021 13:16:48 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=42935 [Leia mais...]]]> Todo escriba que se torna discípulo do Reino dos céus é semelhante a um pai de família que do seu tesouro tira coisas novas e velhas” (MT 13,52).
Geraldo De Mori SJ

David Tracy, teólogo norte-americano, na obra A imaginação analógica. A teologia cristã e a cultura do pluralismo, propõe uma reflexão sobre os clássicos em geral e os clássicos religiosos em particular, aplicada por ele ao cristianismo, que vale a pena ser retomada por ocasião dos 50 anos da publicação de Teología de la liberación, livro de Gustavo Gutierrez tido como inaugurador dessa corrente teológica que tanto marcou o cristianismo latino-americano e reverberou no conjunto da teologia cristã pelo mundo.

A ideia de clássico, em geral, é muito utilizada no âmbito das artes e da literatura. Fala-se de obra clássica, seja da pintura, da música, da escultura, da arquitetura, da literatura, do cinema. Não só obras são tidas por clássicos, mas também autores e suas contribuições. Em geral, um clássico, qualquer que seja sua procedência, é uma espécie de paradigma, que se torna referência para aquele campo artístico, literário ou aquela área do saber. Muitos clássicos traduzem o espírito de uma época, embora sempre a ultrapassem, sendo vistos como imortais ou perenes, por aquilo que revelam do mundo, do ser humano e, no campo religioso, da relação que aquele grupo específico considera como tradução de uma experiência de revelação do sagrado, do sentido radical, de Deus.

Segundo Tracy, existem não somente obras clássicas, mas também pessoas que podem ser tidas como clássicos. No caso do cristianismo, ele identifica o evento Jesus de Nazaré, confessado como Cristo, Senhor, Filho do Homem e Filho de Deus como o clássico da fé cristã, e, por extensão, os textos que buscam dizer esse clássico, a saber os escritos do Novo Testamento e muitas das obras que se esforçaram por interpretá-los em cada grande época da era cristã, como, entre tantos:

  •  a Apologia, de Justino;
  • as Confissões, de Santo Agostinho;
  • a Suma Teológica, de Santo Tomás;
  • o Itinerário da mente para Deus, de São Boaventura;
  • os textos de Lutero;
  • o Comentário da carta aos Romanos, de Karl Barth;
  • o Curso fundamental da fé, de Karl Rahner;
  • a Teologia sistemática, de Paul Tillich.

Curiosamente, quando fala da teologia da libertação, o teólogo norte-americano não consegue identificar nenhuma obra que poderia ocupar o lugar de um clássico. Segundo ele, nessa corrente teológica, mais que uma obra tida como clássica, haveria que identificar as próprias iniciativas que o evento Jesus Cristo suscita em ambientes de injustiça e violência, que se traduzem em solidariedade, denúncia profética e serviço.

O livro de Tracy, publicado em 1981, não possuía a distância necessária para identificar, dentre as publicações da teologia da libertação, aquela que poderia ocupar o lugar de um clássico. Os historiadores recentes dessa corrente da reflexão latino-americana identificam suas origens em autores e obras anteriores ao livro de Gutierrez, como a tese doutoral de Rubem Alves, defendida nos USA, Towards a theology of liberation, publicada com o título A theology of human hope, em 1969, ou os livros de Juan Luis SegundoTeología abierta para el laico adulto, publicados entre 1969-1971, ou a obra La liberación: la hora de la acción, de Rafael Ávila, de 1969, ou ainda a obra Diálogos de liberación, de Arturo Paoli, de 1969, ou, enfim, a obra Opresión-liberación: desafío a los cristianos, de Hugo Assmann, publicado em 1971, em Montevidéu. Nos últimos anos, o pontificado de Francisco trouxe à luz toda a contribuição da corrente argentina da teologia da libertação, conhecida como teologia do povo, embaralhando, sob certo ponto de vista, os dados sobre o período inicial da teologia latino-americana.

Embora pareça desprestigiar a teologia da libertação, ao dizer que ela não contava, até o início dos anos 1980, com um “clássico” que a representasse, a questão levantada por Tracy é importante. Para ele, as grandes contribuições da teologia cristã são marcadas, sobretudo, por duas grandes perspectivas, a da manifestação, que tem origem na revelação de Deus como sagrado ou santo, expressas, sobretudo, nas teologias da encarnação, de caráter mais sacramental; a da proclamação, cuja origem é a pregação profética, expressa, sobretudo, nas teologias da Palavra. Uma terceira perspectiva, posta em evidência, sobretudo, pelas teologias políticas e da libertação, é a que privilegia a práxis, propondo um agir que desmascara tanto as leituras individualistas e burguesas da manifestação, quanto as tendências pessimistas de uma proclamação que não consegue ver nenhuma irrupção da presença de Deus no mundo.

Toda teologia quer dar conta da experiência da fé, mostrando sua razoabilidade frente aos vários públicos diante dos quais quem crê se encontra:

  • 1. os membros da própria comunidade eclesial, e suas diferentes percepções de Deus, do mundo, dos demais, mostrando o caminho de plenitude que brota da experiência de fé;
  • 2. a sociedade e suas diferentes estruturas, com as quais a pessoa que crê interage, buscando perpassá-las da seiva renovadora e transformadora do Evangelho;
  • 3. o mundo acadêmico, que de muitas maneiras questiona o crer e as instituições que dele derivam.

Ao identificar o “clássico” da teologia da libertação com uma práxis que denuncia o que no mundo e na comunidade cristã impedem a irrupção do reinado de Deus (o pecado entendido como injustiça e atentado à dignidade humana), e, ao mesmo tempo, inspira experiências de solidariedade, serviço samaritano e construção de um mundo mais reconciliado, Tracy amplia certamente a noção de clássico. Na verdade, ao dizer que o evento Jesus Cristo é o clássico por antonomásia do cristianismo, ele já apontava para essa ampliação, uma vez que, segundo ele, esse clássico é reapresentado no hoje dos que nele creem e se inspiram, tornando a salvação que ele inaugurou com sua vida, morte e ressurreição, algo atual na vida de seus seguidores e seguidoras.

Gustavo Gutiérrez

Dito isso, talvez, 30 anos depois da afirmação de Tracy, que coincide com os 50 anos da publicação de Teología de la liberación, é possível pensar a revisão do parecer que então o teólogo norte-americano havia dado sobre o livro tido por grande parte da teologia como inaugurador da teologia da libertação. De fato, o texto de Gutierrez é tido como referência de uma maneira de “dar as razões da esperança” (1Pd 3,15) que não se contenta em refletir sobre o Deus que se manifesta ou sobre a Palavra que é proclamada como denúncia das tentações idolátricas do sujeito, pois a fé que não se traduz em práxis concreta, que faz advir o mundo novo, reconciliado, no qual reinam a harmonia do ser humano com a criação, com os seus semelhantes e com Deus, não é fé verdadeira. E a teologia que não se interessa pelo “reino que está próximo”, que necessita da conversão de quem crê nesse anúncio como Boa Nova, tampouco é digna desse nome. Nesse sentido, ao rememorar os 50 anos dessa obra inaugural, mais que simplesmente colocá-la de novo sob os holofotes, é necessário, como diante de todos os clássicos, relê-la, descobrindo o que a geração atual ainda não percebeu de seu horizonte de sentido.

Sobre o autor:

Pe. Geraldo De Mori, SJ

Geraldo De Mori SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE.

Fonte:

https://faculdadejesuita.edu.br/fajeonline/palavra-presenca/ler-os-classicos-a-proposito-dos-50-anos-de-teologia-da-libertacao-um-classico-da-teologia-latino-americana/
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“A banalidade do mal”, com a palavra pe. Geraldo De Mori, SJ https://observatoriodaevangelizacao.com/a-banalidade-do-mal-com-a-palavra-pe-geraldo-de-mori-sj/ Wed, 10 Nov 2021 00:55:10 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=42589 [Leia mais...]]]> Não matarás!” (Ex 20,13)

O dia 2 de novembro, dedicado, segundo a liturgia católica, à memória dos “fiéis defuntos”, foi marcado, em 2021, por acontecimentos que deveriam interrogar a consciência que se diz inspirada e formada pela fé e tradição cristãs: o início, no dia 31 de outubro, da COP 26; a obrigação de honrar os mais de 608 mil mortos pela pandemia no país; a operação das polícias civil, militar e rodoviária de Minas Gerais, que matou 26 homens envolvidos no assim chamado “novo cangaço”, quadrilhas de assalto a bancos.

Imagem: Rubem Grilo, gravurista brasileiro. Utilizada em Outras Palavras em 16/07/2021.

A COP 26, organizada pela ONU, reúne, entre 31/10 e 15/11/2021, líderes de 196 países em Glasgow, Escócia, para discutir os avanços no enfrentamento do aquecimento global. O principal objetivo dessa Conferência é avaliar os acordos de Paris, assinados em 2015, com várias decisões, relacionadas, sobretudo, à mudança na matriz energética, que prevê, entre outras ações, a redução do uso de combustíveis fósseis. A expressão “blá, blá, blá”, utilizada pelo Primeiro Ministro britânico, Boris Johnson, na abertura da COP 26, chamando os países a efetivamente honrarem os compromissos assumidos, e reverberada por Greta Thunberg, deveria fazer pensar. Em geral, essa expressão remete a palavras que não têm nenhum efeito na prática, ou seja, à dissociação entre o que se diz e o que se faz. No caso das mudanças climáticas, não só se tem falado muito, mas também várias decisões foram tomadas, mas não se traduziram em ações efetivas. Em alguns casos, como no Brasil, a atual política governamental promove o desmonte de instituições, como o IBAMA, o incentivo da exploração dos recursos florestais e minerais da Amazônia, ou a liberação de agrotóxicos proibidos em outros lugares do mundo. O país, que, por sua política ambiental, tinha se destacado como ator importante no cenário internacional, perdeu seu protagonismo, como o demonstra o aumento, em plena pandemia, da emissão de gases efeito estufa em 9,5%. O presidente brasileiro nem se dignou ir à COP 26, numa clara demonstração de desconexão com uma das questões mais cruciais para o futuro da vida no planeta. O que é mais dramático, contudo, é o silêncio conivente das elites que se beneficiam de sua política, numa clara demonstração de que o que é decidido nessa iniciativa internacional é só “blá, blá, blá”.

No dia 2 de novembro, quase dois anos após o início da pandemia, o Brasil contabilizava 608 mil mortos, sendo superado, em número de mortos, somente pelos USA. Durante meses a assim chamada “CPI da Covid” fez um enorme trabalho de investigação sobre a responsabilidade da política adotada pelo governo federal para o enfrentamento da pandemia, responsabilizando o próprio presidente e várias instâncias de seu governo por diversos crimes. Segundo alguns analistas, mais da metade dessas mortes poderia ter sido evitada se outras decisões tivessem sido adotadas. Muito se falou, durante todo esse período, sobre o caráter necropolítico do atual governo, mas, o que mais chama a atenção, na forma como o enfrentamento da pandemia foi conduzido, é uma aparente conivência com essa política por parte de setores importantes da elite econômica nacional, apoiada por faixas significativas da classe média e de grupos religiosos do meio popular de perfil fundamentalista, tanto católicos quanto evangélicos.

Charge do Duke sobre a postura de descaso do presidente em relação ao número de mortes pela COVID – 19 no Brasil.

Na madrugada do domingo (31/10) para a segunda (01/11), em Varginha, no interior de Minas Gerais, numa operação realizada pelas polícias civil, militar e rodoviária, foram mortos 26 homens, pertencentes a um pretenso “novo cangaço”, que tem amedrontado cidades do interior do país, com assaltos a bancos. Segundo algumas informações, os bandidos, que dispunham de um arsenal enorme de armas e munições, reagiram e a polícia revidou. O que mais chama a atenção, porém, é que não houve nenhuma baixa entre os agentes da ordem e que todos os bandidos tenham sido eliminados, numa clara mensagem de que “bandido bom é bandido morto”. A pouca reação na imprensa e no seio da população, sinaliza, por outro lado, a aprovação desse tipo de operação pela opinião pública, que, sem se dar conta, vai assimilando a adoção da pena de morte na prática, não percebendo que a política que aprovou a venda de armas, e que beneficia os fabricantes de armamentos, é a responsável por esse tipo de organização criminosa. Num dos países que possui a maior população carcerária do mundo, a morte vai sendo banalizada e naturalizada, atingindo principalmente os pobres.

Hanna Arendt, em Eichmann em Jerusalém, faz um relato sobre a banalidade do mal, e mostra que o holocausto foi não só planejado nas altas esferas do regime nazista, mas contou com a adesão de pessoas comuns, habituadas pelo regime a “não pensar”. De certa maneira, esse “não pensar” parece ter se instalado em parcelas expressivas da população brasileira. A isso, de fato, acena a conivência da opinião pública com a pena de morte, para a qual “bandido bom é bandido morto”, numa nação cuja Carta Magna não a admite, mas a adota como sua política prática. Algo parecido se pode deduzir dos que, mesmo após uma investigação ampla sobre a responsabilidade das instâncias máximas do executivo na condução criminosa da pandemia, insistem em não pensar, fiéis a um pretenso mito que os torna incapazes de discernir entre bem e mal. E o que dizer, enfim, dos que sacrificam as políticas de defesa do meio ambiente em benefício de interesses insensíveis para com os ciclos, ritmos e recursos de uma natureza limitada?

A Oração Eucarística VI-D, “Jesus que passa fazendo o bem”, traz uma súplica muito importante, que mais do que nunca deveria ser rezada nesse tempo em que, de tantas maneiras, não só a liturgia nos convida a rezar pelos “fiéis defuntos”, mas a morte de tantas pessoas, mesmo a de “bandidos” e do mundo da vida, se tornou banal:

Dai-nos olhos para ver as necessidades e os sofrimentos dos nossos irmãos e irmãs; inspirai-nos palavras e ações para confortar os desanimados e oprimidos; fazei que, a exemplo de Cristo e seguindo o seu mandamento, nos empenhemos lealmente no serviço a eles. Vossa Igreja seja testemunha viva da verdade e da liberdade, da justiça e da paz, para que toda a humanidade se abra à esperança de um mundo novo”.

Oração Eucarística VI-D

Para entrar no Reino de Deus, é necessária a conversão, como convida Jesus em Mc 1, 1: “O reino de Deus está próximo! Convertei-vos. Crede no Evangelho”. E a conversão não é só uma experiência espiritual, mas se traduz numa existência ética e muda o modo de ver o mundo, a vida, as demais pessoas, o sentido radical da existência. Que saibamos sair do “blá, blá, blá”, que satura a religião e a espiritualidade, para viver de verdade o evangelho do Nazareno.

Sobre o autor:

Pe. Geraldo De Mori, SJ

Geraldo De Mori SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE.

Fonte:

https://faculdadejesuita.edu.br/fajeonline/palavra-presenca/a-banalidade-do-mal/
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“Respeito é bom e eu gosto!”, com a palavra o prof. Geraldo De Mori, SJ https://observatoriodaevangelizacao.com/respeito-e-bom-e-eu-gosto-com-a-palavra-o-prof-geraldo-de-mori-sj/ Thu, 28 Oct 2021 18:43:08 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=42354 [Leia mais...]]]> Muitas pessoas se escandalizaram com as declarações desrespeitosas do Deputado Frederico d’Avila com relação a Dom Orlando Brandes, à CNBB e ao papa Francisco. Poucas, porém, atentaram ao fato de que sua fala visava a Via Campesina e o MST, ou seja, movimentos populares que lutam pela dignidade humana dos empobrecidos do Brasil. Retomando o termo que aqui está em discussão, tratava-se da humanidade dos que historicamente são desrespeitados.”

Confira, a seguir, toda a reflexão do prof. dr. pe. Geraldo De Mori, SJ:

Respeito é bom e eu gosto!

O presidente da República Socialista Democrática do Sri Lanka, Maithripala Sirisena, recebendo em seu país o papa Francisco. Janeiro de 2015. Foto: AP.

“Bem-aventurados sereis, quando vos injuriarem e vos perseguirem e, mentindo, disserem todo o mal contra vós por causa de mim” (Mt 5,11)

A expressão “Respeito é bom e eu gosto!”, recorrente na linguagem popular de Salvador, Bahia, e, sob outras formulações, na educação familiar e para a civilidade, merece ser revisitada nesses dias, como reação ao discurso pronunciado no dia 14/10/2021 pelo Deputado estadual de São Paulo, Frederico d’Avila. O termo “respeito”, originado do latim “respectus”, significa “olhar outra vez”, indicando que algo ou alguém é digno de apreço, de deferência, de consideração, e, em alguns casos, até de veneração.

Segundo Bruno Cunha, no Dicionário de cultura de paz, publicado em 2021, na linguagem comum, respeito é uma das palavras cotidianas que aparece em múltiplos contextos, podendo ser definido como o “reconhecimento do valor e da dignidade de algo, do qual decorre um conjunto de comportamentos e estados de ânimo como resposta” (CUNHA, 2021b, p. 407). O conceito de respeito, continua o autor, implica sempre uma relação responsiva entre um sujeito e um objeto, o qual, chama a atenção, é conhecido, julgado, valorizado. Pode-se respeitar coisas, como objetos físicos ou animais, convenções e regras estabelecidas, mas o que aparece como maior objeto de respeito e veneração é o próprio ser humano. De fato, uma pessoa pode ser respeitada pelos traços de seu caráter, pelo status que ocupa na sociedade, por suas habilidades.  

Na história da filosofia, observa Bruno Cunha, o conceito de respeito tem sua origem em dois termos gregos e seus derivados: aidõs (= vergonha, modéstia, decência, veneração) e timé (= honra, valor, preço). No uso comum, timé é o reconhecimento da honra alheia e aidõs é a vergonha pela perda da honra. Aidõs foi importante na formação da cultura grega, seja como algo externo, seja como algo interno, indicando reverência diante dos superiores ou respeito, no contexto de pessoas próximas (CUNHA, 2021b, p. 409). Aristóteles associa aidõs ao pathos (afeto) e por isso não lhe confere o status de virtude. No cristianismo, santo Agostinho faz a transição da cultura da vergonha para a cultura da culpa, ao localizar o sentimento de vergonha não nas convenções sociais, mas na dinâmica interna da vontade do sujeito. Na compreensão do respeito passa então a entrar em jogo a dignidade do ser humano reconhecida em sua capacidade interna e pessoal de se construir à imagem de Deus, de querer ou não querer segundo a lei divina.

Registro da superlotação em presídios brasileiros.

Na época moderna, Kant, seguindo Aristóteles, pensa a noção de respeito como um sentimento especial, e seguindo Agostinho, admite que ele é inerente à consciência interna e à dinâmica da vontade. Para o filósofo alemão, o respeito é o único sentimento moral possível, sendo provocado pela representação da lei moral, que, “como fundamento de determinação da vontade, nos humilha em nossa autoconsciência (CrPr., AA, v. 74). A exigência incondicionada da lei moral limita a “arrogância” e restringe “a estima da própria pessoa” (CrPr. AA, v. 78), produzindo “um efeito sobre o sentimento” (CrPr. AA, v. 78), e, com isso, a lei moral torna-se um móbil para a ação na medida em que nos coage a “adotar essa lei em si mesma como máxima” (CrPr. AA, v. 76). O respeito torna-se assim a base do imperativo categórico, sendo dirigido às pessoas e não às coisas (CrPr. AA, v. 76). Nesse sentido, diz Kant, a “moralidade, e a humanidade enquanto capaz de moralidade, são as únicas coisas que têm dignidade” (Fund. AA, IV, 435). O ser humano, como autolegislador, é um fim em si mesmo e a lei moral que se dá a si mesmo o torna digno de respeito incondicional. Essa ideia nos obriga a tratar todas as pessoas sempre como fim, nunca como meios. Ela é o fundamento da própria ética e dos âmbitos da política e do direito, tendo se substancializado na ideia dos direitos humanos, assumida por toda nação democrática (CUNHA, 2021b, p. 410).

Muitas pessoas se escandalizaram com as declarações desrespeitosas do Deputado Frederico d’Avila com relação a Dom Orlando Brandes, à CNBB e ao papa Francisco. Poucas, porém, atentaram ao fato de que sua fala visava a Via Campesina e o MST, ou seja, movimentos populares que lutam pela dignidade humana dos empobrecidos do Brasil. Retomando o termo que aqui está em discussão, tratava-se da humanidade dos que historicamente são desrespeitados. Ao defender o armamento e ao criminalizar os grupos comprometidos com a promoção dos direitos de quem luta por terra e trabalho, além de uma relação mais harmoniosa com o meio ambiente, o Deputado esquece-se de algo que é constitutivo da moral das sociedades modernas, fundadas em princípios democráticos e na defesa dos direitos humanos, ou seja, no respeito à dignidade de todos/as como fim e não como meios. Na verdade, não só as pessoas “eminentes”, sejam elas membros da Igreja ou de qualquer instância social, merecem respeito, mas todas. Se se esquece isso, não é mais possível a convivência civilizada e abre-se o espaço para a luta de todos contra todos, geradora de mais violência e morte, que, infelizmente, atingirá sobretudo os mais vulneráveis e pobres.

Do ponto de vista teológico, a noção de respeito diante de todo ser humano, tem, sem dúvida, suas raízes em Gn 1,27, que afirma que Deus criou o ser humano, homem e mulher, à “sua imagem e semelhança”. Esta perspectiva, relida em chave cristológica (Rm 8,v29; Cl 1,v15) e trinitária, deu origem à noção de pessoa, vista em sua unicidade e dignidade absolutas. Nada mais contrário a esta noção do que qualquer defesa de eliminação do outro, por sua condição social, étnica, de gênero ou religiosa.

Nos tempos polarizados em que vivemos, não nos damos conta do caminho já feito pela humanidade. A afirmação kantiana do respeito devido a todo ser humano, que nunca pode ser visto como meio, mas sempre como fim, tem, sem dúvida, uma de suas fontes na compreensão bíblica que o vê como imagem de Deus, pessoa, digna de respeito, por aquilo que é, enquanto dom único dado ao mundo e à humanidade. A sensibilidade católica brasileira sentiu-se certamente afetada pelo desrespeito do Deputado com figuras importantes de sua hierarquia, e isso se expressou de diversas maneiras desde sua declaração. Porém, se tal declaração não tocar a todos/as por seu teor, ou seja, por esquecer aquilo que é a base mesma de qualquer sociedade civilizada, que é o respeito devido a cada pessoa humana, sobretudo daquela que tem sido mais violentada ao longo da história do país, então não podemos dizer que somos cristãos, e muito menos humanos, pois não vemos o outro como um igual, mas como alguém que pode ser eliminado. Esse inclusive foi o teor da fala do Deputado: “arma e bala”. Infelizmente, esse também tem sido o discurso da autoridade máxima do Brasil, com o qual muitos que se dizem cristãos estão de acordo. Quando se esquece a humanidade de qualquer pessoa, abre-se a porta para todo tipo de política que se baseia na morte.

Quanto às instâncias hierárquicas da Igreja, insultadas pelo Deputado, mais que indignar-se pela falta de respeito, talvez devessem experimentar a verdadeira alegria do Sermão da montanha que diz: Bem-aventurados sereis, quando vos injuriarem e vos perseguirem e, mentindo, disserem todo o mal contra vós por causa de mim” (Mt 5,11).

Referências

CUNHA, Bruno. Respeito. In SÍVERES, Luis; NODARI, Paulo Cesar. Dicionário de cultura de paz. CRV, 2021, p. 407-411.

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes (=Fund.) São Paulo, 2009.

KANT, Immanuel. Crítica da razão prática (=CrPr.). Petrópolis: Vozes, 2016.

Sobre o autor:

Pe. Geraldo De Mori, SJ

Geraldo De Mori SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE

Fonte:

www.faculdadejesuita.edu.br

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A escuta como origem da beleza, da bondade e da verdade do mundo https://observatoriodaevangelizacao.com/a-escuta-como-origem-da-beleza-da-bondade-e-da-verdade-do-mundo/ Sat, 25 Sep 2021 13:19:44 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=41536 [Leia mais...]]]>

“Escuta, Israel!” (Dt 6,4)
“A fé vem pelo ouvir, e o ouvir, pela palavra de Cristo” (Rm 10,17)

Geraldo De Mori SJ

Embora os sentidos sejam as portas e as janelas de acesso ao mundo, nem todas as culturas lhes conferem o mesmo significado. A tradição filosófica grega, por exemplo, uma das fontes do mundo ocidental, confere a primazia, sobretudo, ao olhar. É o caso de Platão, um dos maiores expoentes da filosofia antiga, para o qual é pela contemplação, exercida principalmente pelo olhar, que se chega ao “mundo das ideias”, fonte da beleza, da bondade e da verdade do ser. Tudo o que os demais sentidos captam pertence ao mundo das “sombras”, privado de qualquer significado relevante. Essa perspectiva marcou a tradição espiritual do cristianismo, que em alguns de seus itinerários místicos é atraída pela contemplação, e a teologia cristã, que em suas formulações sistemáticas vê na “visão beatífica” a plenitude da realização do ser humano.

O mundo judaico, apesar de não desvalorizar o olhar, como se percebe no poema da criação de Gn 1,1-2,4a, no qual Deus “vê” as diversas obras e as qualifica como “belas” ou “boas”, confere a primazia do acesso ao mundo à escuta. De fato, a saga do Egito começa com uma contemplação e uma audição do próprio Deus. Segundo Ex 3,7, Deus viu “a humilhação” de seu povo no Egito e ouviu “seu clamor”, ou, ainda no mesmo capítulo, “o clamor dos israelitas” chegou até ele, que viu a “opressão que os egípcios” faziam pesar sobre eles (Ex 3,9). O conhecimento dado pela visão e pela audição faz com que Deus “desça” para livrar seu povo das mãos do opressor (Ex 3,8), enviando para isso Moisés, através do qual ele irá conduzir os hebreus para a terra da promessa (Ex 3,10).

A capacidade de escuta, que suscita o movimento da “descida” divina, se torna injunção à escuta num dos “Credos” do povo da aliança, o que se encontra em Dt 6. É interessante notar que o “objeto” da escuta diz respeito inicialmente a duas afirmações sobre Deus: “o Senhor é nosso Deus, o Senhor é um” (Dt 6,4). Por um lado, a escuta diz que o Senhor “é” o Deus de Israel, e por outro, afirma que ele é “um”. Em seguida, vem o apelo a amá-lo, de todo o coração, de toda alma e com toda a força (Dt 6,5), guardando no coração suas palavras (Dt 6,6), ensinando-as aos filhos e tendo-as diante de si todo o dia, tomando-as como sinal e colocando-as nos umbrais das portas e portões (Dt 6,7-9).

O papel desempenhado pela escuta no seio do povo eleito explica, em grande parte, a interdição de criar imagens, que eram acessíveis aos olhos e passíveis de se tornarem “ídolos”, mas que exigiam “sacrifícios” e tornavam os que deles participavam insensíveis às injustiças. O próprio nome de Deus era impronunciável e o conjunto da fé judaica tem a convicção de que ver a Deus significava morrer. Nesse sentido, apesar de algumas “teofanias” explorarem a visão, como a de Is 6,1.5, elas são indissociáveis de uma palavra dirigida por Deus a quem ele chamava para uma missão: “ouvi então a voz do Senhor” (Is 6,8). O conjunto da ação profética em Israel se desenvolve ao redor de uma palavra escutada, que se tornava palavra pronunciada. Em geral, tratava-se de um apelo à conversão, feito muitas vezes com ameaças, uma vez que Israel tinha se desviado da Lei, deixando-se seduzir pelos ídolos e ignorando os apelos éticos da Torah.

O cristianismo herdou do judaísmo essa primazia da escuta, não só porque Jesus se fez arauto do anúncio da proximidade de um Reino em advento, convocando à conversão, mas também porque, após sua morte e ressurreição, o coração da pregação cristã se resumiu no anúncio de que no mistério pascal Deus havia dito sua palavra definitiva à humanidade, convidando-a a deixar-se reconciliar por Deus em seu Filho (2Cor 5,19-20). O apóstolo Paulo, em Rm 10,17, reitera a convicção central do judaísmo de que a fé vem pelo ouvir, e o conteúdo do ouvir não é mais os preceitos da Torah, por mais santos que sejam, mas a vida, os ensinamentos, a morte e a ressurreição de Cristo. A escuta desse anúncio deve suscitar no coração o apelo à fé, traduzindo-se em uma vida que doravante buscará estar à escuta do que diz a existência de Jesus Cristo para o fiel quando se encontra diante de situações parecidas com as que encontrou o Mestre.

Alguns pensadores contrapõem o “mundo segundo o olhar” ao “mundo segundo o escutar”. Segundo eles, a visão, que está na origem da filosofia grega e perpassa toda a racionalidade científica do mundo ocidental, é determinada pelo cosmos e tende a “objetivar” e manipular tudo o que é passível de apreensão do olhar. Essa racionalidade está na origem da dominação do mundo pela técnica, que levanta tantas questões nas últimas décadas, sobretudo por causa das ameaças que a objetivação e a exploração representam para o futuro da vida no planeta. Por sua vez, a escuta, que é central no mundo bíblico, mais que pelo cosmos, está fundada nas relações, que estão na origem da ética e da fé. Não por acaso o resumo da Torah, que são os “dez mandamentos”, apela ao amor a Deus, seguido das interdições de nomeá-lo, e em seguida, de todas as injunções relacionadas ao respeito aos demais humanos, sobretudo os mais vulneráveis.

A contraposição entre o mundo como cosmos e o mundo como relação é interessante, embora deva ser matizada, uma vez que todos os sentidos participam da apreensão do real. As diferenças podem, contudo, ajudar a perceber o que mais conta no acesso de cada pessoa ao mundo e que define sua percepção da própria experiência religiosa e espiritual. De fato, muitos fiéis buscam na religião o maravilhoso, o milagroso, que provoca “temor e tremor”, segundo a clássica definição do sagrado de Rudolf Otto. Contudo, esse tipo de relação com o transcendente não muda necessariamente a existência de quem o experimenta e promove, pois muitas vezes é definido pelo desejo de manipulação, que transforma Deus em ídolo ou busca convencê-lo dos próprios méritos. Diferente é a experiência de relação com Deus segundo a revelação bíblica, para a qual, mais que sagrado, Deus é santo e chama à santidade. Esta, diferente da sacralidade, supõe relação, que por sua vez, demanda a escuta, a capacidade de deixar-se afetar pela alteridade, seja a do ser humano, qualquer que seja a sua condição, seja a de Deus, que ama e convida a amá-lo. Essa dupla dinâmica deve “mover as entranhas”, levando à compaixão, ao cuidado e à defesa do outro em situação de vulnerabilidade, ou ao agradecimento e ao louvor, entendendo-se fruto de um dom gratuito e imerecido.

Sobre o autor:

Pe. Geraldo De Mori, SJ

Geraldo De Mori SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE

Fonte:

www.faculdadejesuita.edu.br

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