Pe. Adroaldo Palaoro sj – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com Sun, 30 May 2021 13:10:29 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.4 https://i0.wp.com/observatoriodaevangelizacao.com/wp-content/uploads/2024/04/cropped-logo.png?fit=32%2C32&ssl=1 Pe. Adroaldo Palaoro sj – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com 32 32 232225030 “Trindade: Uma dança de vida”, com a palavra pe. Adroaldo Palaoro, SJ https://observatoriodaevangelizacao.com/trindade-uma-danca-de-vida-com-a-palavra-pe-adroaldo-palaoro-sj/ https://observatoriodaevangelizacao.com/trindade-uma-danca-de-vida-com-a-palavra-pe-adroaldo-palaoro-sj/#comments Sun, 30 May 2021 13:10:29 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=39581 [Leia mais...]]]>
Ícone da Trindade: Andrei Rublev

“…batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo” (Mt 28,19)

“Não há dois sem três”, diz a sabedoria popular; toda a realidade humana tem um componente trinitário. Do amor de um homem e uma mulher brota um terceiro ser humano, o filho. Da união de dois ângulos surge o triângulo. Do negócio de dois empreendedores nasce uma expressa. Da relação entre o artista e a matéria (palavra, cor, som, barro ou mármore) aparece a obra de arte. A “trindade visível” e cotidiana é parte da estrutura da vida. Mas, e a “Trindade invisível”? Falamos do “mistério da Santíssima Trindade”. Ninguém viu e ninguém sabe como é Deus. Ele não cabe em nossa cabeça, em nossos conceitos; por isso dizemos que é um “mistério”.

A Trindade é Mistério para nós na medida em que nunca conseguiremos compreendê-lo e apreendê-lo pela razão. É o desconhecido que nos fascina e nos atrai para conhecê-lo mais e mais, e, ao mesmo tempo, desperta o assombro e a reverência. A Trindade é o mistério que liga e religa tudo, que deixa transbordar seu Amor criativo no coração de toda a humanidade e no universo inteiro.

O Mistério da Trindade sempre está aí (vivemos submergidos n’Ele), permanentemente nos esbarramos n’Ele (dentro de nós e na realidade) e buscamos conhecê-lo; mas ao tentar conhecê-lo percebemos que nossa sede e fome de conhecer nunca se sacia. Por isso, diante da presença do Mistério Trinitário, afogam-se as palavras, desfalecem as imagens e morrem as referências. Só nos restam o silêncio, a adoração e a contemplação. “O ser humano que não tem os olhos abertos ao Mistério passará pela vida sem nunca ver nada”  (Einstein)

Quê diz o Evangelho a respeito da Trindade? De maneira muito simples nos revela que o Pai amou tanto o mundo que enviou seu Filho para que, através do amor, pelo envio do Espírito, nós alcançássemos a vida em plenitude; esta consiste em deixar transparecer em nossas relações o mesmo Amor trinitário, expansivo, aberto, acolhedor e integrador de tudo e de todos; só esse Amor é força capaz de nos transformar e, desta maneira, transformar o nosso mundo.

Paulo expressa essa realidade na saudação presente no início de toda celebração eucarística: “a graça de nosso Senhor Jesus Cristo, o amor do Pai e a comunhão do Espírito Santo estejam sempre convosco (2Cor. 13,13). 

A Trindade é, antes de tudo, amor recíproco entre as três Pessoas. Os antigos padres da Igreja entendiam o mistério da Trindade não de uma forma estática como nós, cristãos ocidentais, mas de uma forma ativa, como uma dança. E eles fizeram uso de um termo inspirador para descrever esta Dança Trinitária: “perichoresis”. A principal característica é a reciprocidade no dançar: um dança ao redor do outro, o outro dança ao redor do primeiro, em um constante e recíproco circundar-se. A imagem da dança expressa bem a contínua interação recíproca que caracteriza o dinamismo intra-trinitário.

O termo “perichoresis” foi fixado pela primeira vez na igreja antiga pelos Padres Capadócios (Basílio, Gregória de Nissa e Gregório Nazianzeno). Trata-se de um termo grego construído com duas palavras: uma é “peri” (ao redor) e outra “chôreô” (dançar) e significa “intercambiar lugares”, “dançar em torno”. Isso significa que Deus não é só “diá-logo” (comunicação verbal, palavra compartilhada), mas comunhão e comunicação total: cada pessoa existe somente na medida em que “dança” (avança) para a outra, ocupando seu lugar e habitando nela.

“Pericorese” descreve as inter-relações das pessoas da Trindade. Em tudo o que a Trindade é e faz, cada uma das Pessoas se relaciona e se envolve com cada uma das outras Pessoas divinas. Como uma dança eterna, a “coreografia” do nosso Deus é singular em sua diversidade e em sua unidade. É a dança do Deus-Amor. Em outras palavras, a Trindade é uma dança divina de três pessoas que se amam umas às outras e se acolhem de maneira tão plena que cada uma delas se torna “uma” com as outras. Portanto, o mais profundo da reflexão teológica sobre o mistério da Trindade é a experiência de uma dança, imagem confirmada pelos grandes teólogos e místicos cristãos, os dançantes de Deus. Para eles, uma bela maneira de entender a salvação é sermos convidados a entrar nessa dança, no belo movimento coreográfico da grande Dança da Vida. A participação na dança divina da Trindade é o coração da vida cristã.

Dançamos juntos enquanto deixamos Deus nos tomar pela mão, nos conduzir pelo seu Espírito para ir ao encontro do seu Filho. A grande dignidade do ser humano está aqui: estamos no centro do “círculo dançante de Deus”. Fazemos parte da “dança” do Deus Trindade.

Deus dança e existe dançando, em movimento de amor que é princípio de todas as coisas.

Imagem provocativa: “pericorese” não revela só uma dança entre as três pessoas divinas. A Trindade “dança” na Criação, gerando um grande movimento de vida; em outras palavras, a Criação é o grande palco da dança das Pessoas divinas. Mais ainda, nosso interior também é cenário onde a Trindade dança, ativando e mobilizando nossas energias e forças mais criativas e que se manifestam como amor e cuidado na relação com os outros e com todas as criaturas. Amar é entrar no ritmo da dança trinitária.

Segundo isso, a “pericorese” é uma forma de entender o convite que Deus oferece à humanidade, para que os homens e mulheres entrem na dança do Amor íntimo da Trindade, dirigindo-se uns aos outros em amor, de maneira que todos se despertem para esta interconexão fundamental de uns com os outros.

Certamente, Deus nos convida continuamente a participar nesta dança divina; mas, muitas vezes, não sabemos se queremos ou não queremos “aceitar a mão” de Deus para dançar com Ele. 

A dança é um símbolo instigante para falar de Deus, um símbolo também usado de maneiras diferentes em outras tradições religiosas; nelas existe uma maneira de expressar a  como convite para “dançar com Deus”. As comunidades judaicas festejam o Dia do Perdão, o Ano Novo, a Festa das Tendas e a Festa da Alegria da Lei. Nesse dia, em Israel, os rabinos saem pelas ruas, tendo nas mãos os pergaminhos sagrados e dançando com fervor. Toda a comunidade canta, bate palmas e dança em roda, até experimentar a união íntima com Deus. Também os muçulmanos têm movimentos que buscam a comunhão com Alá através da dança. As comunidades do candomblé, em cada festa, dançam sem parar.

Uma das imagens que também podem nos ajudar é a visão que teve S. Inácio de Loyola (estamos celebrando o Ano Inaciano) que era muito devoto da Trindade. Ele viu como três teclas de um piano. Três teclas distintas que, tocadas ao mesmo tempo, produzem um só acorde.

Este “som” é o que nos interessa para viver: o Amor. Se Deus é Deus, Ele “abraça e abrasa” tudo, também a dimensão comunitária. Quando somos solidários, compassivos, amorosos… revela-se o rosto da Trindade. “Só corações solidários adoram um Deus Trinitário”. 

Texto bíblico:  Mt 28,16-20 

Na oração: No interior de cada um, a Trindade está atuando, está convidando a que ponha em movimento toda a capacidade de admiração e quer ensinar a ler e interpretar Sua presença em todas as coisas.

– Como você deixa transparecer no seu cotidiano o amor fontal da Trindade?

Pe. Adroaldo Palaoro sj

27.05.2021

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Um reflexão pertinente para o dia de todos os santos e santas de Deus, “Bem-aventuranças: rosto visível da santidade”, com a palavra Pe. Adroaldo Palaoro, SJ https://observatoriodaevangelizacao.com/um-reflexao-pertinente-para-o-dia-de-todos-os-santos-bem-aventurancas-rosto-visivel-da-santidade-com-a-palavra-pe-adroaldo-palaoro-sj/ Fri, 01 Nov 2019 13:09:18 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=32860 [Leia mais...]]]> “Jesus explicou, com toda a simplicidade, o que é ser santo; fê-lo quando nos deixou as bem-aventuranças. Estas são como que o bilhete de identidade do cristão. Assim, se um de nós se questionar sobre «como fazer para chegar a ser um bom cristão», a resposta é simples: é necessário fazer – cada qual a seu modo – aquilo que Jesus disse no sermão das bem-aventuranças. Nelas está delineado o rosto do Mestre, que somos chamados a deixar transparecer no dia-a-dia da nossa vida”.

“A palavra «feliz» ou «bem-aventurado» torna-se sinônimo de «santo», porque expressa que a pessoa fiel a Deus e que vive a sua Palavra alcança, na doação de si mesma, a verdadeira felicidade”

(Papa Francisco, GE n. 63-64).

“Sejam santos, porque eu sou SANTO” (Lev. 11,45)

Esta é a vocação fundamental à qual todos somos chamados. A santidade de Deus é a vocação universal de todos os seres humanos, cada um à sua maneira.

Deus colocou no coração de cada pessoa a busca da santidade. Uma busca que se experimenta como impulso vital, sopro do Espírito, aqui e agora, nas circunstâncias concretas da vida.

Nesse sentido, santos e santas são os portadores de vida, homens e mulheres que buscam viver intensa-mente; que acolhem a vida e a expandem, que bebem do prazer da vida e que ajudam os outros também a beberem, sabendo que a vida é dom, presente que compartilhamos, todos, no mundo. São pessoas em cujo entorno se desatam correntes de vida, esperança, alegria de viver, reconciliação e amor. “Os(as) santos(as), como os poetas, vivem de encantamentos…”, encantados com a vida, com a beleza, com a verdade…

Os santos e as santas são as testemunhas (martyria) da vida, ou seja, aqueles(as) que, inspirados na santidade de Jesus, são presenças inspiradoras no mundo, portadores(as) de valores humanos e que constroem suas vidas sobre a rocha firme do amor incondicional e generoso; homens e mulheres que “vivem um caso de amor com a vida”.  

A santidade é nossa verdade mais íntima e universal.

Por isso, falamos de “santidade primordial”, ou seja, a força radical da vida, o anseio de viver, a decisão de viver mais intensamente, o impulso expansivo que move a pessoa a sair de si mesma e a entrar em sintonia com os outros, com a criação e com Aquele que “é três vezes Santo”. É a “faísca da santidade de Deus” presente no mais profundo do seu ser e que se deixa transparecer no seu modo de viver. Para muitas pessoas, é sua forma habitual de vida; a “santidade primordial” vai se fazendo conatural ao longo da existência.

Queremos com isso dizer que santa é a vida e santo(a) é defendê-la; fascinante é ver grandes esforços para protegê-la e potenciá-la. Ao defender e propiciar a vida, a santidade primordial se revela como “humana”, pois santo(a) é “ser humano(a)” por excelência.

Nessa santidade primordial tornam-se presentes as “virtudes” admiráveis, tanto as tradicionais como as novas, em tempos de compromisso e libertação: solidariedade, serviço, simplicidade, disponibilidade para acolher o dom de Deus, força no sofrimento, compromisso até o martírio, perdão ao ofensor…

Somos santos(as). Não somos santos(as) porque sejamos irrepreensíveis, senão simplesmente porque somos, e vivemos, nos movemos e somos sempre em Deus e Deus em nós, também quando nos sentimos medíocres e inclusive fracassados. Somos um tesouro em vasos de barro em formação, e Deus é o paciente oleiro na sombra mais profunda de nosso barro. 

 “Viver a partir da santidade de Deus” representa a melhor definição da santidade cristã: reconhecer-nos como quem recebe tudo de Deus, deixar-nos amar e guiar por Ele, assemelhar-nos a Ele para tornar visível, em nós, os sentimentos de compaixão e misericórdia que Ele tem para com todas as pessoas.

Em outras palavras, a santidade significa viver o divino que há em nós.

Só descobrindo o que há de Deus em nós, poderemos cair na conta da nossa verdadeira identidade.

Todos somos santos(as), porque nosso verdadeiro ser é o que há de Deus em nós; embora a imensa maioria

das pessoas não tem consciência disso ainda, não podemos deixar de manifestar o que somos. Somos santos(as) pelo que Deus é em nós, não pelo que nós somos para Deus. É santa a pessoa que descobre o amor que chega até ela sem mérito algum de sua parte, mas deixa-se envolver por este amor expansivo e passa a viver uma presença amorosa.

Os(as) santos(as) foram e são humanos por excelência. E a plenitude do humano só se alcança no divino, que já está presente em todos nós. 

Nesse sentido, podemos dizer que as bem-aventuranças são a plenificação daquilo que é o mais humano em nós; elas são a quinta-essência da vivência da santidade, no caminho do seguimento e identificação com Jesus, a presença visível da santidade do Pai.

As bem-aventuranças não são leis para simplesmente evitar o mal, mas o potencial humano que, quando ativado, espalha criativamente, por todos os lugares, a Santidade, a Bondade e a Beleza divinas.  Expressam, de modo conciso e explícito, o coração mesmo de Jesus e seu desejo ardente de contagiar a todos os que se encontravam com Ele.

Todos sabemos que, em muitos ambientes cristãos, quando se fala de santidade enfatiza-se muito mais a renúncia, a mortificação, o sofrimento, a austeridade, o sacrifício, a resignação…, ao passo que não é comum encontrar pessoas que, espontaneamente, associem santidade à alegria de viver e, em geral, a tudo aquilo que nos faz sentir melhores, sentir-nos bem e sermos mais felizes.

Jesus propõe a ventura sem limites, a felicidade plena para seus(suas) seguidores(as). Deus não quer a dor, a tristeza, o sofrimento; Deus quer precisamente o contrário: que o ser humano se realize plenamente, que viva feliz… Jesus acreditava na vida, e queria que todos vivessem intensamente.

Jesus anuncia as Bem-aventuranças como um programa para viver a santidade; e o motivo primeiro é porque todas elas são, na verdade, o caminho da santidade universal (acima e além de toda religião, pois elas são simples e profundamente humanas). As Bem-aventuranças são como o mapa de navegação para nossa vida; são o horizonte de sentido e o ambiente favorável para nossa santificação, entendida como empenho para viver com mais plenitude, segundo o querer de Deus.

Dizer que são felizes os pobres, os que choram, os mansos, os misericordiosos, os que tem fome e sede de justiça, os perseguidos… é um contrassenso para o nosso contexto social, onde ditoso é aquele que mais acumula bens, que tem mais poder, mais prestígio…, sem se preocupar com a situação dos outros.

As bem-aventuranças se visibilizam no pequeno, no cotidiano, no próximo mais próximo, e nos impulsionam a proclamar: a paz é possível, a alegria é uma realidade, a justiça não é um luxo, a mansidão está ao alcance da mão… Elas nos dizem que nascemos para a bondade, a beleza, a compaixão…

As bem-aventuranças devem ser escutadas e acolhidas como uma mensagem que brota do mais profundo da vida e que tem como finalidade apresentar, a qualquer pessoa, o mais humano que existe em nós.

Ser feliz é deixar viver a criatura livre, alegre e simples presente dentro de cada um de nós. A santidade é, assim, o livre curso da vida, o fluxo contínuo da Vida em nós que se “entre-tece” com a vida dos outros.

Texto bíblico:  Mt 5,1-11

Na oração: A chave da felicidade está em permitir que se revele o sentido da luminosidade presente nas profundezas de nosso ser. O que nos tira a energia e nos torna estéreis é afastar-nos desse princípio vital que é o Divino em cada ser.

A santidade é luz expansiva do divino que se faz visível no “modo contemplativo” de viver.

– Sua presença junto às pessoas é transparência da santidade de Deus?

Pe. Adroaldo Palaoro SJ

Fonte:

www.catequesehoje.org.br

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Ser pão que ativa e sustenta a vida https://observatoriodaevangelizacao.com/ser-pao-que-ativa-e-sustenta-a-vida/ https://observatoriodaevangelizacao.com/ser-pao-que-ativa-e-sustenta-a-vida/#comments Sat, 04 Aug 2018 10:00:05 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=28643 [Leia mais...]]]>

“Quem vem a mim não terá mais fome…” (Jo 6,35)

 

Continuamos seguindo o cap. 6 do evangelho de S. João. No texto deste domingo Jesus entra diretamente em discussão com os judeus e o v. 59 diz expressamente que este encontro conflituoso teve lugar na sinagoga de Cafarnaum. Estamos no início de uma discussão longa e dura, na qual Jesus vai aprofundando as exigências do seguimento. E, à medida que Ele vai radicalizando o discurso, aumenta a distância dos seus ouvintes. O processo será esse: entusiasmo, dúvida, desencanto, desilusão, oposição, rejeição, abandono.

O diálogo tenso desvela a real motivação daqueles que O buscavam, não porque tinham visto sinais, mas porque comeram pão até ficarem saciados. O “sinal” tinha sido um convite a compartilhar. Mas eles se fixaram só na satisfação da própria necessidade. Esvaziaram o sinal de seu conteúdo. Essa busca de Jesus é vazia, porque eles só estavam atrás da segurança alimentar. Jesus vai diretamente ao ponto e desmascara tal intenção. Não buscavam a Ele, mas o pão que Ele lhes deu. Não O buscavam porque Ele abriu as portas de um futuro mais humano, mas se fixaram nos seus próprios interesses.

 

“Eu sou o pão da Vida”

Em todos os grandes discursos que encontramos no 4º. Evangelho, há uma referência explícita à Vida, com maiúscula. Trata-se de uma realidade que não podemos explicar com palavras, nem enquadrá-la em conceitos humanos. Somente através de símbolos e metáforas podemos indicar o caminho de uma vivência que é o único que nos levará a descobrir de quê se está falando.

A Vida que Jesus promete não vem de fora e de maneira espetacular, como o maná no deserto. Ela está presente em cada um e se manifesta no cotidiano, como amor descentrado, como partilha dos dons, como preocupação pelo outro. Esta Vida interior é ativada pela adesão e identificação com a pessoa de Jesus. Daí a necessidade de trabalhar pelo alimento que dura dando Vida definitiva. Este apelo de trabalhar em favor da Vida, é o resume de toda a mensagem do evangelho deste domingo.

Jesus salva e alimenta porque é pão. Ele é o alimento que gera vida nova no mundo, vida oferecida e compartilhada. Devemos unir a imagem de Jesus/pão com a imagem Jesus/grão de trigo que é triturado para ser alimento e fecundar a vida. Um alimento “subversivo” porque subverte a tradicional “ordem” das coisas. Antes de partir o pão, Jesus parte-se a si mesmo, faz-se alimento. Toda sua vida foi entrega. Sua vida inteira dá significado ao partir, compartilhar e repartir o pão da vida.

E é isso que, no nível mais profundo, somos todos. Todos somos Vida, todos somos “pão de vida”. Somos pão quando alimentamos o outro na esperança, no perdão, na acolhida, na compaixão, no compromisso… Sim, podemos multiplicar o pão da festa, da alegria, o pão da justiça, o pão da ajuda fraterna… Quanto pão para ser dividido! Em nosso interior há uma reserva de nutrientes, de pão substancioso, que corre o risco de perder a validade, se não é compartilhado. O centro da vida é “pão”, e (como Jesus), só somos pão na medida em que partilhamos o que somos e temos.

Tal como Jesus, todo(a) seguidor(a) é chamado(a) a ter vida e a ser vida. E vida expansiva. A vida não deve ser corroída pela tirania do egoísmo mesquinho. Vida é encontro, interação, comunhão. Vida é solidariedade. Vidas são olhares que se cruzam, são mãos que se estendem e se estreitam, são passos que rompem distancias e se interligam. Somos chamados a ser “biófilos”, amigos e defensores da vida.

 “É entre nossas mãos que está a vida” (Bloch). Nossas mãos não podem jogar fora a vida. Nossas mãos precisam manter, nutrir e proteger a vida. Nossas mãos devem ser protagonistas para sustentar a vida, precisam dignificar a vida. Nosso compromisso é preservar a vida que dança em nossas mãos. Nas raízes profundas do nosso ser, reside a Biofilia, o amor à vida.

“Eu sou o pão da vida”. O encontro com a Vida que se faz Pão nos move a buscar o sentido de nossa própria existência; e quem encontra o sentido se torna dinâmico, persegue um horizonte, abre-se a uma causa mobilizadora. Para isso é necessário outro ritmo de vida, que nos permita vivê-la com mais sabor, com mais autenticidade.

A vida é vivida intensamente quando a força do “Pão da Vida” atua, impulsionando a abrir, a avançar, a progredir. Porque a vida autêntica é a vida movida, iluminada, impulsionada pelo amor. É este dinamismo de amor que somos chamados a contemplar no mistério do Pão da Vida, do qual cada pessoa é uma pequena, mas preciosa imagem. O(a) seguidor(a) de Jesus deixa refletir esta imagem em sua vida concreta de cada dia quando vive esse dinamismo do “pão partilhado”, numa relação cordial, aberta e receptiva à originalidade do outro, entrando num verdadeiro dinamismo de vida. Um dinamismo de amor.

A adesão a Jesus, portanto, não fica na exterioridade. Ele não é modelo exterior a ser imitado, e sim, é presença interiorizada. Essa comunhão íntima muda o interior do(a) discípulo(a), possibilita a sintonia com Jesus e faz viver a identificação com Ele. Fazendo-se alimento, Jesus nos ajuda a conhecer nossa própria interioridade, desperta nossa vida, arrancando-a de seus limites estreitos e constituindo-a como vida expansiva em direção a novos horizontes.

E Jesus não somente vai conosco, mas nos precede, nos sustenta e, na liberdade de seu amor, nos impele a ampliar nossa vida a serviço. Toda peregrinação, em clima de admiração e assombro, se revela rica em descobertas e surpresas, e desperta o coração para dimensões maiores que a rotina de cada dia. Nesse sentido, a vida tem a dimensão do milagre e até na morte anuncia o início de algo novo; ela carrega no seu interior o destino da ressurreição.

Jesus se revela, assim, como autoridade de amor, porque ofereceu seu “corpo”, isto é, sua vida, para que outros pudessem viver. Na multiplicação dos pães, nas refeições com pecadores e sobretudo na Última Ceia, Ele oferece aquilo que não pode ser comprado nem vendido: o pão do próprio corpo carregado de humanidade, o vinho de sua vida portador das energias alegres e criativas.

Comungar o pão e o vinho não é só aderir a Jesus, à sua pessoa e à sua mensagem; não é só experimentar sua intimidade, deixando-se transformar por Ele. Implica estar dispostos a comungar com todos, porque Jesus nunca vem só: “traz” com ele toda a realidade. “Não nos devemos envergonhar, não devemos ter medo, não devemos sentir repugnância de tocar a carne de Cristo” (papa Francisco).

Todo ser humano carrega “outras fomes” em seu interior. Jesus procura despertar nas pessoas uma fome diferente: Ele lhes fala de um pão que não sacia a fome de um dia, mas a fome e sede de vida plena. Ou seja, ser seu seguidor é associar-se à Sua Fome: aliviar o sofrimento humano. Trata-se de uma “fome humanizadora”: fome de comunhão, de cuidado, de compaixão…, fome de novas relações, de um mundo novo… Fome de vida! Jesus quer oferecer-lhes um alimento que pode saciar esta fome de vida.

 

Texto bíblico:  Jo 6,24-35

Na oração: Jesus é Aquele que sabe a arte de despertar fomes. Estamos saturados de “coisas”, mas carentes de fome. Quem tem fome, busca, cria, constrói… Quem não tem fome cai numa apatia paralisante.

Experimentamos fome quando saímos de nós mesmos, quando nos consumimos no trabalho pelo Reino, quando nos empenhamos por abrir caminhos de humanização…

  • Quais são minhas fomes existenciais?
  • Vivo faminto de sabedoria? Ou me contento com alimentos que não saciam?
  • Em quê circunstâncias experimento ser “pão de vida”?
  • Quê pão me sacia existencialmente? De quê tenho fome?

Adropescador

Pe. Adroaldo Palaoro sj

Fonte:

www.centroloyola.org. br

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Para inspirar a Celebração do Domingo de Ramos… https://observatoriodaevangelizacao.com/para-inspirar-a-celebracao-do-domingo-de-ramos/ Sun, 25 Mar 2018 14:30:08 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=27673 [Leia mais...]]]>

Ramos: descobrir o Deus en-coberto nas cidades

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“… quando se aproximaram de Jerusalém” (Mc 11,1)

A experiência espiritual da Quaresma implica a travessia do deserto: tempo de despojamento, de pobreza, de confiança em Deus, de esperança e horizontes abertos… O deserto quaresmal desemboca na cidade. E todos sabemos que a cidade é o contrário do deserto: autossuficiência, segurança, limitação de horizontes, acomodação, conflitos… Cidade moderna, globalizada pela tecnologia fria e sem alma, amordaçada pela funcionalidade e pela utilidade, com uma política submetida ao mercado, à produção e consumo, cidade estendida e sem muros de contorno, mas com horizonte atrofiado, aparentemente sem Reino de Deus à vista…

Hoje temos esvaziado a dimensão do deserto em nossas vidas e nos adaptamos de tal maneira à cidade e às suas exigências técnicas, produtivas, aos seus programas e solicitações… que acabamos nos sentindo passivos diante dela. O tempo quaresmal nos possibilita manter aberto o acesso ao deserto, que cria um espaço interior vazio, onde se faz realidade um encontro surpreendente com Deus; a partir daí, mesmo em nossa atribulada vida na cidade, podemos recuperar a liberdade do chamado profundo e redescobrir o caminho do Seguimento de Jesus, que começa e termina nos “aforas” da cidade.

Jesus entrou na cidade de Jerusalém com seus(suas) seguidores(as) e não foi uma decisão fácil porque implicava o alto risco de ser incompreendido e rejeitado. Como bom judeu, Jesus subiu a Jerusalém, cidade de Davi (do Messias) em nome dos pobres, com um grupo de galileus, para anunciar e preparar o Reino. Subiu na Páscoa, porque era o momento propício (hora do Reino), tempo para que os homens e as mulheres pudessem se encontrar a se comunicar, em gesto de paz, a partir dos mais pobres. Subiu a Jerusalém porque estava convencido de que sua mensagem era de Deus e porque Deus lhe havia confiado a missão de instaurar, com sua palavra e com sua vida, o novo Reino dos pobres, que já havia começado na Galileia e que devia estender-se, desde Jerusalém, passando de novo por Galileia, para todos os homens e mulheres da terra.

Jesus tinha a certeza de que Deus falaria através do que fizessem (ou não fizessem) com Ele em Jerusalém, pois esta era a última oportunidade para a cidade da promessa e do templo. Entrou na cidade santa para que finalmente ela se transformasse na “cidade de Deus”, o lugar de encontro do ser humano com Deus, de Deus com todos os seres humanos, e estes como irmãos.

E pela primeira vez Jesus se deixa aclamar: “Hosana ao filho de Davi”. Desta vez não recusou o papel de liderança, mas deu um outro sentido, porque não se valeu disso para conquistar o poder e sim para desmascará-lo. Não fez pactos militares ou políticos, porque Deus não atua por meio do poder, mas de um modo gratuito. Dessa forma entrou na cidade de Jerusalém, desarmado e cheio de esperança, renunciando todo poder sobre ela, todo domínio, toda força, sem espadas, sem exército… Não entrou montado a cavalo como os grandes, mas num jumentinho; não entrou rodeado das grandes autoridades religiosas e políticas  pois Jesus se sentia muito melhor acompanhado das pessoas simples do povo;  não usou traje de gala, mas as vestes rudes de um peregrino; não lhe fizeram nenhum arco de flores pois a Ele lhe bastavam os mantos do povo e os ramos cortados das árvores; entrou provocativamente como mensageiro da concórdia e da paz em meio a aplausos e hosanas do povo peregrino que veio à festa. Jerusalém inteira fica alvoroçada. Os donos do poder, político e religioso, sentem-se ameaçados.

Não devemos perder o deserto que carregamos dentro de nós; por isso, só podemos “entrar na cidade” seguindo a Jesus Cristo que é fiel à causa do Reino, com o risco da Cruz (Semana Santa), porque a Cruz assume, radicaliza e eleva o deserto. Jesus vai morrer nos “aforas” da cidade, nesse limite fronteiriço entre o deserto e Jerusalém, nesse espaço que só Deus pode preencher e onde podemos enraizar nossa confiança n’Ele.. A Cruz se eleva e abraça ambas realidades.

O(a) seguidor(a) de Jesus é um(a) apaixonado(a) do deserto e que nunca se “encaixa” nas estruturas da cidade; sua presença sempre rompe com as muralhas, alargando espaços e acolhendo o diferente. Se carregamos o deserto dentro de nós, estaremos vazios de nós mesmos, de nosso ego, de nossas visões fechadas, de nosso monopólio da verdade. Só assim nossa presença na cidade vai se revelar inspiradora e provocativa, como a presença de Jesus em Jerusalém.

Embora muitas realidades urbanas nos queiram impedir o encontro com Deus, devemos reconhecer na cidade a presença d’Ele, muitas vezes de um modo imperceptível, como o sol está presente nos dias nublados. Deus está sempre presente na histórica e na cultura de nosso tempo. Ele continuamente vem ao nosso encontro. O cristianismo é a religião do Deus com rosto humano e urbano que nos busca apaixonadamente em Cristo. Por isso, não é necessário que levemos Deus para a cidade; Ele já está ali presente, em meio às alegrias e dores, esperanças e sofrimentos nela.

A presença de Deus não é percebida à plena luz do dia; uma pessoa pode viver na cidade e perfeitamente ignorar, negar, desmentir ou simplesmente desconhecer a presença divina nela. É preciso buscar a Deus, “descobrir Deus na cidade”, como se estivesse encoberto, oculto, escondido no espaço urbano. Uma aguda sensibilidade religiosa capta a presença de Deus também nos sinais de sua ausência. O “Deus escondido” se apresenta onde é marginalizado. Deus acompanha a todos em seu aparente ocultamento; pronuncia sua voz em seu silêncio; revela sua onipotência em seu despojamento; mostra sua máxima bondade em sua mínima expressão, do presépio à Cruz.

Este é um dos grandes desafios na grande cidade. Romper com o individualismo e o poder que marcam as relações entre os homens e as mulheres, para criar um marco novo, humanizador e aberto a Deus Pai, através de pequenas comunidades. Comunidades daqueles que confessam o seu amor comum pelas mesmas coisas – as mesmas esperanças, os mesmos sonhos, a mesma utopia do Reino.

É, sobretudo, em torno da mesa que as comunidades se constituem; com o gesto do “re-partir”, estabelece-se uma rede de relações entre as pessoas que aceitam conspirar, co-inspirar, em tôrno do fascínio da proposta de Jesus. Na verdade, a Eucaristia vivida é o sal, o fermento, a luz e a alma da cidade. Assim é a cidade que Deus deseja: uma praça de encontro e uma mesa celebrativa para todos.

Texto bíblico:  Mc 11,1-10

Na oração: As cidades não são pessoas, mas tem sua identidade e personalidade próprias; algumas tem múltiplas personalidades. Elas existem no espaço e no tempo.

Há cidades acolhedoras, que dão as boas-vindas, que parecem se preocupar com cada habitante, alegram-se com o fato de que os moradores ali se sintam bem; são cidades humanizadoras…

Há cidades indiferentes, aquelas que dá no mesmo que as pessoas estejam ou não nelas; cidades que seguem seu rumo, que ignoram seus habitantes…

Há cidades que são más, violentas, que parecem perdidas, que dão a sensação de que seriam mais felizes em outro lugar… Algumas grandes cidades se propagam como um câncer que devoram tudo em sua passagem, absorvem cidades pequenas e povoados, destroem culturas e hábitos de vida, esvaziam regiões que em outros tempos eram prósperas… Cidades desumanizadoras.

Mas somos nós que damos uma feição às cidades; cada cidade revela o rosto e o coração de seus moradores… Como é sua cidade? É espaço de encontro, de comunhão, de qualidade de vida?

Diante dos dramas de sua cidade (violência, exclusão, divisão…), qual a sua reação? acomodação, alienação? indiferença? ou compromisso? envolvimento em projetos humanizadores? presença inspiradora e facilitadora de encontros?…

Pe. Adroaldo Palaoro sj

 

Fonte:

www.catequesehoje.org.br

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Uma fé que protesta https://observatoriodaevangelizacao.com/uma-fe-que-protesta/ Fri, 14 Oct 2016 16:05:15 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=11527 [Leia mais...]]]> Mas o Filho do homem, quando vier, será que ainda vai encontrar fé sobre a terra?” Lc 18,8)

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A reflexão bíblica de padre Adroaldo Palaoro, SJ, sobre o evangelho do 29º Domingo do Tempo Comum (16/10/2016) que corresponde ao texto de Lc 18,1-8.

Na parábola de hoje, dois personagens ocupam a cena. De um lado, um juiz que “não teme a Deus” e “não respeita as pessoas”; é um homem surdo à voz de Deus e indiferente aos sofrimentos dos oprimidos. De outro, a parábola fala de uma viúva que tem fé e que protesta, pedindo justiça, apesar da insensibilidade do juiz. Quê ressonâncias pode encontrar hoje em nós este relato dramático que nos lembra tantas vítimas abandonadas injustamente à própria sorte?

Na tradição bíblica, a viúva é, junto com o órfão e o estrangeiro, o símbolo por excelência da pessoa indefesa que vive desamparada, a mais pobre dos pobres. A “viúva” é uma mulher sozinha, sem a proteção de um esposo e sem apoio social algum. Só tem adversários que abusam dela. A pobre viúva, no evangelho de hoje, longe de resignar-se, clama por justiça; ela não tem outra coisa a não ser sua voz para gritar e reivindicar seus direitos. Toda sua vida se transforma num grito de protesto: “faze-me justiça!”. Seu pedido é o de todos os oprimidos injustamente. Um grito que vai ao encontro daquilo que Jesus dizia aos seus seguidores: “Buscai o Reino de Deus e sua justiça”.

De fato, se observarmos bem o conteúdo do relato e a conclusão do mesmo Jesus, vemos que a chave da parábola é a “sede de justiça”. A expressão “fazer justiça” é repetida quatro vezes. A viúva do relato é exemplo admirável de uma mulher corajosa que luta pela justiça em meio a uma sociedade corrupta que explora os mais fracos.

Contrariamente àqueles que pensam que não vale a pena sair às ruas e gritar (no plano social e religioso, político e eclesial), o evangelho de hoje nos coloca diante do exemplo da fé e do grito de protesto da viúva, capaz de alterar a ordem injusta do sistema social. Muitas vezes resta só um grito, mas um grito que é mais profundo e eficaz que todas as vozes opressoras, ocas, prepotentes… daqueles que corrompem e exploram os mais pobres.

O problema está em que a maioria se cala ou se dobra diante da realidade injusta, pedindo míseras migalhas, subsídios, esmolas… para que tudo continue igual. No fundo, querem que os enganem, e assim compactuam com a submissão alienante. O que acontece é que, muitas vezes, aqueles que deveriam protestar, como a viúva, preferem ajustar-se ao sistema “por um prato de lentilhas”: preferem fazer pacto com o juiz, com o opressor. Essa tem sido a atitude de grande parte das comunidades cristãs, daqueles que dizem que nada podem mudar. No fundo, é a atitude daqueles que não creem em Deus.

Pois bem, contrariamente a isso, esta viúva grita, em gesto de manifestação radical. Não se resigna, não se curva. Com indignação, eleva-se diante do juiz, que representa todos os “podres poderes” deste mundo. Ela, a viúva do grito, é mais forte que os próprios juízes.

Certamente tem razão o teólogo J. B. Metz quando denuncia que na vivência cristã há demasiados cânticos e poucos gritos de indignação, demasiada complacência e pouca aspiração por um mundo mais humano, demasiado consolo e pouca fome de justiça. É preciso somar gritos!

Esta parábola não trata de uma situação particular, mas recolhe a experiência mais profunda da Bíblia, desde os hebreus no Egito que gritam e Deus os escuta. Para que a realidade se transforme, continua sendo necessário o grito das viúvas, a voz de todos os oprimidos do mundo, que clamam diante de Deus e diante dos homens.

Esta é a fé fundamental, a fé da viúva que grita e pede justiça. Esta é a fé na força do protesto. Esta é a fé que se eleva e se opõe ao sistema injusto.

A fé não é “algo” que alguns possuem e outros não; da mesma forma, a fé não se reduz a uma aceitação doutrinal, prática de obrigações religiosas e obediência e uma disciplina. A fé é uma vida que se desperta, cresce, se expande…, vai se renovando a cada dia e tem implicações na construção de um mundo mais justo.

A constância e a insistência de uma pobre viúva põe em cheque a um autossuficiente juiz que se considera mais valente. A constância é como a gota de água que pouco a pouco vai perfurando a pedra; a constância é capaz de dobrar o mais duro coração. A viúva “crê” (tem fé) na força de sua insistência pedindo justiça. Numa dimensão mais profunda, o grito dos marginalizados e das viúvas ressoa na mente daqueles que se beneficiam do sistema social injusto. Trata-se não de resignar-se, de não aceitar simplesmente o mundo como está, mas de protestar… Esta viúva é o símbolo das vozes de todos aqueles que gritam e protestam.

Se todas as viúvas do mundo gritassem, se todos os pobres gritassem, se todos os que se sentem enganados por esta sociedade elevassem a voz, o sistema social tremeria diante do grito da vida. O resultado final não estaria no triunfo dos mais fortes e poderosos, nem no poder do dinheiro, mas no grito incessante, de não-violência ativa. O grito dos que clamam diante de Deus e diante dos homens tem uma força infinita; trata-se da onipotência daqueles que gritam.

Vivemos em um mundo que parece dominado pela voz daqueles que vivem para se impor, pela propaganda de um sistema que quer silenciar todos os gritos e enganar-nos a todos com o circo midiático das mentiras organizadas. Pois bem, contra tudo isso, temos que nos comprometer a elevar nossa voz profética, como tantos homens e mulheres de nosso tempo.

Humanamente falando, essa voz parece muito fraca. Como comparar-se com as potentes vozes do império da mídia ou com a injustiça organizada dos “juízes” do mundo?Externamente o grito da viúva parece muito pouco; não é nada e, no entanto, essa voz foi e continua sendo mais poderosa que todas as armas e dinheiro do sistema. Esta é a pressão popular, esta é a revolução de todas as viúvas do mundo, ou seja, de todos os injustiçados, uma revolução que tem que começar, a partir do Evangelho.

Assim foi a voz de Jesus que gritou contra as injustiças, a favor da justiça do Reino, mas foi assassinado. É evidente que não conseguiram calar sua voz, pois esta continua ressonando e perturbando a vida de muitos acomodados.

Assim deve ser nossa voz, nosso grito, contra a ordem econômica injusta, contra uma sociedade que engana para manter privilégios, e inclusive contra as religiões que nos obrigam a ficar em silêncio.

Para meditar na oração:

  • É nossa oração um grito a Deus, mobilizando-nos a lutar pela justiça em favor dos pobres deste mundo, ou será que a substituímos por outra, onde o centro está ocupado pelos interesses do nosso “ego”?
  • Por que nossa comunicação com Deus não nos torna sensíveis para escutar o clamor daqueles que sofrem injustamente?
  • Muitas vezes, alimentamos nossas devoções particulares, esquecendo os que vivem sofrendo. Continuamos orando a Deus para pô-lo a serviço de nossos interesses, sem nos importar muito com as injustiças que há no mundo.
  • Muitas vezes, em nossas comunidades cristãs, o centro de nossas preocupações não é o sofrimento dos últimos, e sim a vida moral e religiosa dos cristãos.
  • Em nossas liturgias ressoa a voz daqueles que clamam por justiça ou elas são ritos vazios de vida que nos mantém anestesiados e alienados frente aos dramas da humanidade?

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Pe. Adroaldo Palaoro, SJ

Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana – CEI

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