Padre Gegê – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com Thu, 25 Apr 2024 12:51:41 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.4 https://i0.wp.com/observatoriodaevangelizacao.com/wp-content/uploads/2024/04/cropped-logo.png?fit=32%2C32&ssl=1 Padre Gegê – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com 32 32 232225030 São Jorge e Ogum: o catolicismo carioca na encruzilhada entre o diálogo e o oportunismo https://observatoriodaevangelizacao.com/sao-jorge-e-ogum-o-catolicismo-carioca-na-encruzilhada-entre-o-dialogo-e-o-oportunismo/ Tue, 23 Apr 2024 21:38:10 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.com/?p=49770 [Leia mais...]]]>
“Papa Bento XVI escreve as mais belas palavras que li sobre o Diálogo. Ele diz que no diálogo verdadeiro nenhuma parte fica da mesma forma. Nessa perspectiva, no diálogo Jorge-Ogum, Ogum sai jorjizado e Jorge ogunizado! E isso é magnífico!” Na data de hoje, a provocante e pertinente reflexão libertadora do padre Gegê Natalino, confira:

SÃO JORGE E OGUM: O CATOLICISMO CARIOCA NA ENCRUZILHADA ENTRE O DIÁLOGO E O OPORTUNISMO

(Salve Jorge – Ogunhê!)
O intelectual das ruas e da cultura popular, Luis Antônio Simas, é personalidade indispensável para se pensar sincretismos/cruzos/encruzilhadas na cidade encantada e macumbizada do Rio de janeiro. Pensar e viver São Jorge nesta cidade implica destronar quaisquer pretensões ou ilusões de um cristianismo (católico e evangélico) virgem, casto, puritano e isento das desconcertantes africanizações e empretecimentos. Já bem escreveu o intelectual Alberto da Costa Silva ser o Brasil um país “extraordinariamente africanizado”. E essa situação irremediável de encontro entre fés constituiu, em particular para o catolicismo (ou catolicismos), um inalienável desafio para o diálogo sério e sincero no horizonte de uma “Igreja em saída”, nos termos do papa Francisco, e da sinodalidade (=caminhar juntos). Parto da afirmação de que toda fé é sincrética, como o é todo fenômeno cultural. E isso fala sobre riquezas e potencialidades humanas.
Dessa feita, pensar e celebrar São Jorge, o mais macumbeiro dos santos do catolicismo, dispensa olhares ingênuos e/ou indesculpavelmente puritanos e mentirosos. Podemos sim dizer, do ponto de vista radical, que São Jorge não é Ogum e que Ogum não é São Jorge; e tudo bem! Mas essa afirmação que alegra os que obstinadamente defendem, com unhas, dentes e catecismos, uma fé “pura”, despreza, por vezes com cinismo, o nó de relações construídas no profundo do imaginário-Brasil entre o Santo e o Orixá, entre Jorge e Ogum.
Uma coisa é a fé pensada nos manuais e gabinetes, uma outra coisa é a fé vivida e sentida na pele de um povo perito em cruz e encruzilhada. E encruzilhada não é apenas lugar geográfico, mas perspectiva de mundo, forma de ser e estar no tempo. Ser de encruzilhada é uma das mais potentes contribuições cognitivas da população preta na diáspora.
É nesse sentido que é possível falar em “pedagogia da encruzilhada”, como na obra de Luis Rufino. Escreve sugestivamente Leda Maria Martins: “A cultura negra é uma cultura das encruzilhadas”.
O mundo católico oficial é o mundo da estrada reta. O pensar reto ocidental (que forma/deforma clérigos e laicato) é pobre demais para captar dribles, sutilezas, encontros, trocas e encantamentos próprios do pensar/ser em cruzo. É preciso levar a sério quando, em cruzo, Zeca Pagodinho confessa como voz coletiva: “Eu, sincretizado na fé, sou carregado de axé… Sim, vou na igreja festejar meu protetor… Sim, vou no terreiro pra bater o meu tambor. Bato cabeça, firmo ponto, sim senhor. Eu canto pra Ogum “.
Faz lembrar “Grande sertão: veredas” de Guimarães Rosa: “Não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo Rio… Uma só pra mim é pouca, talvez não me chegue”.
Está o catolicismo oficial disposto a dialogar de forma positiva e sincera com esse forma encantada de afirmar a vida?
Como pode um catolicismo oficial com mentalidade colonizadora se abrir a outras possibilidades de ser e está no mundo?
Em “A ciência encantada das macumbas”, escrevem Luis Simas e Rufino: “Os santos que por aqui baixam praticam o cruzo, são macumbeiros, arrastam multidões em suas companhias, vadeiam nos sambas de roda, nas capoeiras, riem nos versos improvisados, bebem cerveja…”. Como retirar ou desconsiderar dos festejos de São Jorge a cerveja e a feijoada, bebida e comida votivas do Orixá Ogum?
Uma paróquia que afirma São Jorge e rechaça Ogum mas, no dia do santo, faz feijoada, com ou sem consciência, afirma o santo e orixá. Afirma ou não afirma? Se não afirma na homilia, afirma no prato!
Dizem ainda os autores Simas e Rufino: “Nos cruzos transatlânticos, porém, a morte foi dobrada por perspectivas de mundo desconhecidas das limitadas pretensões do colonialismo europeu-ocidental”.
É fato que historicamente, no Brasil, São Jorge, por conta do sincretismo com Ogum, era visto, no mínimo, com suspeita pelo catolicismo oficial. Se aproximar do Santo significava abrir as portas aos macumbeiros. Ainda hoje verificamos em muitos espaços católicos o olhar de desconfiança e até de ojeriza a tudo que lembre a presença das religiões de matriz africana.
Mas , fato é que por conta da persistência dos macumbeiros, populares, e hoje, de artistas e celebridades, o Santo está na crista da onda. E seus festejos estão cada vez mais lucrativos, sobretudo a feijoada.
E é também fato que, com ou sem bispos, com ou sem padres, com ou sem missa, com ou sem hóstia, o santo guerreiro é festivamente celebrado. Salve, Jorge! Ogunhê!
Quem sempre foi privado da hóstia aprendeu a combater com a feijoada!
Na feijoada, todos e todas comem; na missa não!
E vale dizer que o lugar de destaque que São Jorge ocupa hoje no Rio de janeiro é fruto, sobretudo, da sapiência e persistência do povo do terreiro. E no cruzo, o cristianismo, quase sempre metido a puro e a besta, foi ogunizado, aceitemos ou não. O povo do terreiro se alterou com o cristianismo, mas também macumbizou a fé cristã. São Jorge macumbiza a cidade; e a igreja também! Quem se mistura com o santo, feijoada come!
Quem pode dizer que a oração de São Jorge feita nas paróquias e pelos devotos onde quer que estejam não reedita saberes e práticas pretas para fechar o corpo?
O vermelho que toma conta da cidade e dos corpos no dia de Jorge se dá por conta da cor litúrgico-católica referida aos mártires da fé cristã ou por razões outras que ultrapassam os limites dos cânones e pensares eclesiásticos eurocentrados?
Papa Bento XVI escreve as mais belas palavras que li sobre o Diálogo. Ele diz que no diálogo verdadeiro nenhuma parte fica da mesma forma.
Nessa perspectiva, no diálogo Jorge-Ogum, Ogum sai jorjizado e Jorge ogunizado!
E isso é magnífico!
Escreve, de forma desconcertante, Luis Antônio Simas: “O Rio de janeiro começa a comemorar São Jorge e Ogum! E para dar um garrinchamento nos puristas que encaram o sincretismo mecanicamente, aqui o buraco é mais embaixo: na nossa cidade, não foi Jorge que cristianizou Ogum. Segura, malandro. Foi Ogum que empreteceu Jorge”.
O cavalo corre mais que a Igreja. Desse modo, a “Igreja em saída” não tem saída: ou rompe o olhar puritano, preconceituoso e racista e anda mais depressa para o diálogo sincero e engajado com o mundo de Jorge ou vai perder o santo de vista.
O risco está na Igreja ceder a tentação oportunista de só falar em Jorge única e exclusivamente como chamaris para tentar ganhar o povo, multiplicar curtidas e encher os cofres. São Jorge, outrora persona non grata para muitos católicos puritanos, sobretudo clérigos, se tornou muitíssimo lucrativo!
Salve, Jorge! Ogunhê! Patacori, Ogum!
*Padre Gegê Natalino é Doutor em Ciência da Religião pela Pontifícia Universidade de São Paulo.
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Brumadinho como “Lugar Teológico”: O Evangelho de um DEUS enlameado aos insepultos https://observatoriodaevangelizacao.com/brumadinho-como-lugar-teologico-o-evangelho-de-um-deus-enlameado-aos-insepultos/ https://observatoriodaevangelizacao.com/brumadinho-como-lugar-teologico-o-evangelho-de-um-deus-enlameado-aos-insepultos/#comments Tue, 12 Feb 2019 00:15:24 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=29873 [Leia mais...]]]> Vale a pena ler a desafiante e comprometedora reflexão teológica que o Pe. Gegê se desafiou fazer: contemplar, com coragem e esperança proféticas, o hediondo crime da Vale em Brumadinho aos olhos da fé e da experiência cristãs, enquanto Igreja em saída, enlameada com os enlameados e profundamente solidária com todas as vítimas da lama.

Brumadinho como “Lugar Teológico”: O Evangelho de um DEUS enlameado aos insepultos

Por Padre Gegê 

Na fileira audaciosa daqueles e daquelas que, com temor e tremor,  buscam sentir e pensar Deus (teologia) a partir das grandes dores, desgraças e perplexidades humanas (como a de Auschwitz, por exemplo), a tragédia criminosa produzida pela Empresa Vale em Brumadinho traz, como tantos outros infortúnios, interrogações à fé, que pode, inclusive, chegar ao ponto de comprometer a imagem de Deus. Uma pergunta emerge a não poucos crentes (e descrentes):

Onde estava Deus quando a lama descia?

Outra indagação pertinente aparece com legitimidade no âmago da fé cristã:

Deus (onisciente, onipresente e todo poderoso) não quis ou não pode intervir cessando o horror a céu aberto?

Pelo breve exposto, podemos dizer que se a fé cristã questiona a vida, essa mesma fé é também questionada pelos mais diversificados contextos de dor, sobretudo diante de grandes calamidades, mesmo quando são produzidas pelo desejo insano e voraz de um grupo abastado cujo único deus é o Capital. Em outros termos:

Brumadinho questiona nossa imagem sobre  Deus!

Nesse horizonte, o grito do Cristo sofredor na cruz (“Pai, Pai, por que me abandonaste?”) nos leva à compreensão de um Deus que compartilha de todos os gritos e sofrimentos humanos, inclusive do sentir-se abandonado por Ele.  Não é desse assombro que fala Castro Alves quando indaga ao “Senhor Deus dos desgraçados”? Para Ariano Suassuna a questão do sofrimento é a pergunta mais séria que um não crente pode fazer a quem crê. A propósito, não é de dentro da dor que Jó duela com Deus? Suassuna cita o rei da poesia do sertão, Leandro Gomes de Barros, que confessa: “Se eu conversasse com Deus, eu iria perguntar: Por que é que sofremos tanto quando viemos pra cá?[…] Por que existem uns felizes e outros que sofrem tanto?[…] Quem foi temperar o choro e acabou salgando o pranto?”.

No rastro das indagações do poeta, poderíamos também perguntar no contexto de Brumadinho:

Teria Deus perdido à medida? Ou mais radicalmente: Deus se compraz com o sofrimento humano? Ou ainda: É Deus sádico ou insensível?

São, pois, questionamentos que brotam da dor extrema, do assombro e do desespero ante o caos irremediável. Nessas horas escabrosas, palavras prontas, ditas inadvertidamente por muitos cristãos, do tipo: “já deu tudo certo”, “Deus já deu a vitória” ou “Deus está no controle”, constituem, no mínimo, um insulto ao sofrimento alheio. Melhor seria que tais cristãos seguissem o exemplo do sambista Paulinho da Viola que diante de um corpo estendido no chão toma respeitosa atitude. Narra o sambista na canção “Coisas do mundo, minha nega”: “Não tirei minha viola. Parei, olhei, fui-me embora. Ninguém compreenderia um samba naquela hora”.

Considerando, pois, o Cristo crucificado, podemos, pensar e sentir Deus como um Deus soterrado em Brumadinho, Deus com lama dos pés à cabeça. Essa face de Deus captada a partir dos vitimizados da história não traz a notícia de um Deus super-homem ou sempre vitorioso (como nas “missas da vitória”), mas traz, sim, o Evangelho de um Deus enlameado que grita, exige justiça e, identificado, desde as entranhas, com os sofredores, dá sua vida para salvar outras vidas; e quando a lama encobre seu corpo, esse Deus solidário sequer tem boca livre para dar o grito derradeiro… Deus está enlameado, não há sequer um José de Arimateia para pedir seu corpo; não se vê corpo…só LAMA. O céu se abriu em intraduzíveis exéquias e Deus foi quem mais trabalhou. Fez-se a um só tempo: oficiante, corpo e sepulcro.

Deus ama tão engajadamente que está onde estão os soterrados, os desgraçados pela Vale da Lama, Vale do lamaçal, Vale do Capital – Lama sujado do mal.

O Deus enlameado faz-Se, pois, protesto contra essa lama infernal. E do silêncio ensurdecedor desse Deus enlameado e “desaparecido”, desse Deus  agarrado às centenas de corpos, igualmente submergidos, transparece a face de um Deus solidário. Desse modo, por debaixo das lamas de Brumadinho aparece um Deus, desconcertante e profundamente diferente  do Deus anunciado pelo status quo. O Deus “desaparecido” redime assumindo, sem preocupação asséptica ou profilática, os enlameados da história.

Esse rosto de Deus que se esvazia de si torna-Se não só um convite mas, sobretudo, uma exigência à Igreja para que também ela, deixando uma possível compulsão à pureza, seja capaz de enlamear-se com os enlameados, chorar com os que choram, morrer com os que morrem e lutar esperançosa com os  que lutam.

Desse modo, Brumadinho, à luz da fé cristã, converte-se em “lugar teológico”, isto é, lugar/ situação a partir da qual podemos refletir em que Deus somos crentes e em que Deus somos ateus. Brumadinho teve sua sexta-feira da paixão antecipada e nela está o Cristo, enlameado e agarrado aos soterrados: homens, mulheres, águas, plantas e animais. Do Cristo, também soterrado pela Vale da lama, sequer se pode avistar os cabelos de sua cabeça. Deus “desapareceu”; desceu com os seus à mansão dos mortos. O Verbo se fez carne e a carne fez-se lama… E essa descida de Deus (“descensus ad inferos”) é EVANGELHO!

Deus não larga a mão de ninguém!!!

Mas, esse anuncio não pode ser dado pela boca de uma Igreja apática, ensimesmada, insensível e triunfalista.

Somente uma Igreja humanizada, sensível, engajada, agônica, martirial e enlameada (como o Cristo), pode, no Espírito, proferir em terra devastada uma mensagem tão cheia de consolo e esperança pascais.

Então, pensando a Páscoa, a partir de Brumadinho, podemos dizer que ela já está sendo gestada desde as profundezas da terra. Aquele que modelou no oculto, no oculto realiza a obra de resgate. E a Páscoa não se dará sem que o Cristo traga em suas mãos o último soterrado e com ele as águas ofendidas, os peixes apavorados e as árvores generosas. Nem o latido inocente do último cachorro soterrado será esquecido por Deus. Conforme crê Adélia Prado: “…nunca nada está morto. O que não parece vivo, aduba. O que parece estático, espera!”

Mas, vale dizer que

a mensagem pascal não nos tira da história, tampouco das diversificadas trincheiras que nos fazem dizer não a um tipo de Vale que não vale à pena, porque ancorada num modelo político e econômico que privatiza o “rio do doce” como o mel e socializa a lama mais amarga que o fel.

Podemos, pois, dizer, à luz da fé, que o Deus enlameado é o já ressuscitado e o já ressuscitado é o ainda enlameado no romper das sinistras barragens do capital.

Mas, no interior das contradições e atrocidades humanas (pessoais e estruturais), Deus diz em “noites traiçoeiras” aos sobreviventes de Brumadinho: “Coragem, eu venci o mundo”! E aos insepultos, o mesmo Deus revela: Lá aonde o bombeiro mais bravo não chegou, lá onde a mão humana mais solidária não alcançou, Eu (igualmente, enlameado) vos encontrei… Estarei convosco até o fim… Não vos deixarei órfãos… Hoje mesmo estareis comigo no paraíso… Eu venci a lama do mundo – Sou vossa PÁSCOA! Eis o Evangelho do Cristo enlameado!

“Humano assim só sendo Deus mesmo”. Por isso, apesar dos pesares, Brumadinho, conforme o “Credo” da afropoetisa Elisa Lucinda, é possível crer “na ressurreição da tarde e na vida bela. Amém!”

Padre Gegê é Mestre em teologia (PUC-RJ) e doutorando em ciência da religião (PUC-SP).

(Os grifos e os destaques são nossos!)

Fonte:

www.portaldascebs.org.br

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