Os pobres ainda têm lugar em nossas teologias? – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com Wed, 05 Mar 2025 00:56:00 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.7.2 https://i0.wp.com/observatoriodaevangelizacao.com/wp-content/uploads/2024/04/cropped-logo.png?fit=32%2C32&ssl=1 Os pobres ainda têm lugar em nossas teologias? – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com 32 32 232225030 Os pobres ainda têm lugar nas nossas teologias? https://observatoriodaevangelizacao.com/os-pobres-ainda-tem-lugar-nas-nossas-teologias/ https://observatoriodaevangelizacao.com/os-pobres-ainda-tem-lugar-nas-nossas-teologias/#respond Tue, 04 Mar 2025 20:16:49 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.com/?p=49900 [Leia mais...]]]> “Sem os pobres não é possível se fazer teologia autenticamente cristã… Não está na hora de revermos seriamente nosso modo de fazer teologia? Não é este um grande desafio para aquela teologia que teve como grande marca justamente a centralidade dos pobres? Será que os pobres ainda têm lugar nas nossas teologias?”.

Confira o artigo do jovem teólogo Joaquim Jocélio de Sousa Costa:

 

OS POBRES AINDA TÊM LUGAR NAS NOSSAS TEOLOGIAS?

 

Por Joaquim Jocélio de Sousa Costa[1]

 

Após o Concílio Vaticano II, houve uma grande renovação na Igreja em vários âmbitos: liturgia, catequese, pastorais, organização interna, diálogo com outras igrejas e religiões, leigos e leigas, ministério ordenado, vida religiosa consagrada etc. A teologia também recebeu um ardor diferente. O Concílio levou a Igreja a entrar em profundo diálogo com as diversas realidades humanas e para que isso fosse feito cada vez com maior seriedade e profundidade, era preciso uma teologia à altura. A coleção Mysterium Salutis surgiu com o objetivo de atualizar os grandes temas da tradição teológica, mas era necessário ir além. Havia um dado da Tradição que sempre acabava esquecido e precisava ser retomado para uma teologia que realmente falasse aos nossos dias e estivesse a serviço do Reino de Deus. Esse dado eram os pobres.

Durante o Concílio, um grupo de bispos, padres e teólogos empenhou-se para que a questão dos pobres fosse considerada central na renovação da Igreja. Dentre eles, se destacavam o cardeal belga Suenens, o bispo brasileiro Helder Camara e o cardeal italiano Lercaro. Este último fez uma intervenção no final da Primeira Sessão do Concílio pedindo justamente isso, que no centro das discussões do Concílio estivesse o mistério de Cristo presente nos pobres. Contudo, o chamado Grupo da Pobreza não teve muito sucesso. O Concílio não abraçou os pobres como questão central. Fez apenas duas menções mais relevantes (LG 8 e GS 1). Todavia, cerca de 40 bispos, um mês antes da conclusão do Concílio, assinaram o chamado Pacto das Catacumbas, após missa celebrada nas catacumbas de Santa Domitila em Roma, pacto que firmava o compromisso de viver a pobreza e o serviço aos pobres. Posteriormente, cerca de 500 bispos aderiram ao pacto, de modo que ao voltarem para as dioceses, muitos deixaram os palácios e foram morar em casas simples, fizeram reforma agrária em terras da diocese e se aproximaram mais das lutas e da vida do povo. As Conferências dos bispos da América Latina em Medellín (1968) e em Puebla (1979) confirmaram essas opções de vida e apontaram caminhos para concretizá-las cada vez mais.

Nesse contexto, surge a Teologia da Libertação, entendida como uma nova forma de fazer teologia, de pensar os grandes conteúdos da fé. “A teologia da libertação nos propõe, talvez, não tanto um novo tema para reflexão quanto uma nova maneira de fazer teologia. A teologia como reflexão crítica da práxis histórica é assim uma teologia libertadora, uma teologia da transformação libertadora da história da humanidade e, portanto, também da porção dela — reunida em ecclesia — que confessa abertamente Cristo. Uma teologia que não se limita a pensar o mundo, mas procura situar-se como um momento do processo por meio do qual o mundo é transformado” (G. Gutiérrez). Não é teologia de um assunto (política, por exemplo), mas é uma maneira de tratar todos os assuntos a partir da libertação que vem do Evangelho.  A Teologia da Libertação, portanto, se vê como ato segundo, pois, primeiro, vem a vivência da fé, entendida aqui como práxis libertadora; depois vem a reflexão dessa fé, a teologia. Nesse sentido, é preciso ter claro a partir de onde se faz teologia, a partir de onde se pensa a fé, qual o lugar teológico por excelência. Entendendo lugar teológico, como bem explicitado por Ellacuría, como: 1) lugar onde, de maneira especial, se manifesta o agir do Deus de Jesus; 2) lugar mais adequado para a vivência da fé e 3) lugar mais adequado para refletir sobre a fé. E esse lugar, olhando para os Evangelhos, é o mundo dos pobres. “Se levarmos a sério que os pobres são ‘lugar teológico’ no sentido que acabamos de assinalar, é claro que eles se tornam não apenas uma prioridade, mas, em certa medida, um absoluto, ao qual devem subordinar-se muitos outros elementos e atividades da Igreja” (I. Ellacuría). Sem os pobres, portanto, não é possível se fazer teologia autenticamente cristã.

Nessa linha, surgiu uma grande literatura nestes anos, cujo marco é considerado o livro de Gustavo Gutiérrez “Teologia da Libertação: Perspectivas” (1971). O foco inicial era muito mais a dimensão econômica e houve um profundo diálogo com as ciências sociais na busca de se compreender a sociedade (momento pré-teológico); depois, a partir da fé, refletir e agir de forma a transformá-la, construindo o mundo conforme a vontade de Deus. Posteriormente, outras abordagens importantes foram surgindo: negra, indígena, ecumênica, ecológica, feminista, cultural, queer. Todas para enriquecer o debate teológico e, assim, ajudá-lo em seu objetivo que é servir na construção do Reinado de Deus, ou seja, seu senhorio, sua vontade se realizando na história. Contudo, um problema vem crescendo nos últimos anos: Os pobres estão sumindo de nossas teologias!

Pode uma Teologia da Libertação sem os pobres? Dom Pedro Casaldáliga, grande bispo e profeta da libertação, já respondia: “à famosa pergunta, bem ou mal-intencionada, sobre ‘que resta da Teologia da Libertação’, a gente responde que restam Deus e os pobres”. Logo, sem Deus e sem os pobres, não resta teologia alguma, menos ainda uma teologia que se pretenda “da libertação”. Mas hoje, alguns teólogos e teólogas, que se identificam com essa teologia ou ao menos a admiram, passaram a tratar de outras perspectivas (sem dúvida muito boas e necessárias), mas com ausência dos pobres ou tornando eles mero apêndice/anexo. Exemplo escancarado disso foi o debate sobre sinodalidade. Havia preocupação com a participação dos leigos e leigas nas decisões da Igreja, com a ordenação de homens casados e de mulheres, a inculturação da liturgia, acolhida de pessoas homossexuais ou com matrimônios considerados “irregulares”; todas questões muito importantes, contudo, esquecendo a centralidade evangélica dos pobres. E aqui o problema aparece em dois aspectos fundamentais.

Primeiro, algumas dessas questões estão mais diretamente ligadas a vida interna da Igreja (participação das decisões, ordenação, liturgia etc.). E, portanto, é preciso tomar cuidado para não cairmos naquilo que tantas vezes denunciou o papa Francisco: a tentação de sermos uma Igreja autocentrada ou autorreferencial. O Concílio já ensinava que a missão da Igreja é ser luz do mundo, ela não existe para ela mesma, mas para construir um mundo mais justo e fraterno, sinal do Reino de Deus (Cf. LG 5). Ou, nas palavras do papa Francisco, ser uma Igreja em saída para as periferias (Cf. EG 20, 30, 49). Assim, embora seja importante a organização interna da Igreja, é preciso sempre se perguntar o “para quê” de tal organização. Para que os leigos e leigas devem participar das decisões da Igreja? Ou para que as mulheres devem estar nas funções de poder? Apenas para sermos mais democráticos? Para termos paridade de gênero na Igreja? Não, mas para que todos, assumindo sua dignidade batismal, participem das decisões que buscam tornar o Reino de Deus presente no mundo, que é nossa missão (Cf. EG 176). E nessa missão, ocupa lugar fundamental os pobres, pois o Reino é deles (Cf. Mt 5, 3; Lc 6, 20). É para ser uma Igreja pobre e para os pobres que buscamos caminhar juntos como irmãos e irmãs. A sinodalidade é para a missão. Sem os pobres, podemos até ter uma Igreja mais democrática, mas não a Igreja de Jesus.

Outro aspecto fundamental é que as diversas realidades de sofrimento e opressão precisam ser consideradas tomando sempre o aspecto econômico como fator intensificador da injustiça. Fala-se do cuidado com a criação, da acolhida da comunidade LGBTQIAPN+, dos negros, das mulheres, das outras religiões, mas se esquece que a pobreza piora toda opressão. Uma mulher sempre estará sujeita ao machismo, mas não é a mesma coisa ser uma mulher pobre da periferia e uma mulher rica da alta sociedade. O negro sempre sofrerá com o racismo estrutural, principalmente em nosso país construído a partir da escravidão do negro africano, mas não sofre com a mesma intensidade o negro pobre da favela e o negro rico. Ser homossexual numa sociedade tão preconceituosa como a nossa sempre será ocasião de discriminação, mas não é a mesma coisa ser um gay pobre e um gay rico. Com isso, queremos dizer que o pobre sempre sofrerá mais e o fator econômico sempre intensifica todas as formas de opressão e marginalização. Por isso, o pobre, economicamente falando, precisa estar em primeiro plano em nossa reflexão teológica. E o pobre num sentido dialético, como empobrecido (existem pobres porque existem ricos, a pobreza é fruto da exploração e acumulação).

São raros os artigos teológicos onde a perspectiva dos pobres é a determinante. Os pobres são hoje, na melhor das hipóteses, anexos de nossas teologias. Se fale de mil coisas e no final se fala dos pobres quase como uma obrigação a cumprir e não uma convicção de fé a assumir. Nesse sentido, é curioso como acusam o papa Francisco de ter “mania de pobre”. Claro que o papa tem mania de pobre, ele busca ser fiel seguidor de Jesus e Jesus tinha uma séria mania de pobre, tanto que nele, Deus mesmo se fez pobre! Ah se toda a Igreja tivesse mania de pobre e levasse a sério todas as consequências disso! Ah se nossas teologias tivessem mania de pobre! E tal mania deve se manifestar não apenas nos textos que publicamos, mas antes na vivência mesma da fé, chão das nossas teologias. Isso implica vencer outra grande tentação que é a “teologia de gabinete”. Como alertou o próprio papa Francisco, devemos ter “a coragem de adotar esta teologia que tem cheiro de ‘carne e de povo’”. O teólogo deve estar envolvido nas lutas do povo, estar com as comunidades que lutam por seus direitos, que constroem o Reino de Deus na história. Assim sendo, a pergunta permanece: Não está na hora de revermos seriamente nosso modo de fazer teologia? Não é este um grande desafio para aquela teologia que teve como grande marca justamente a centralidade dos pobres? Será que os pobres ainda têm lugar nas nossas teologias?

[1]  Joaquim Jocélio de Sousa Costa é teólogo

e presbítero da Diocese de Limoeiro do Norte-Ce.

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