O tripé da concepção de Igreja do Vaticano II: Reino-Igreja-Mundo – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com Thu, 05 Dec 2019 19:01:24 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.4 https://i0.wp.com/observatoriodaevangelizacao.com/wp-content/uploads/2024/04/cropped-logo.png?fit=32%2C32&ssl=1 O tripé da concepção de Igreja do Vaticano II: Reino-Igreja-Mundo – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com 32 32 232225030 O tripé da concepção de Igreja do Concílio Vaticano II: Reino-Igreja-Mundo (8) https://observatoriodaevangelizacao.com/o-tripe-da-concepcao-de-igreja-do-concilio-vaticano-ii-reino-igreja-mundo-8/ Thu, 05 Dec 2019 19:01:24 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=33709 [Leia mais...]]]> Uma vez abordadas cada uma das categorias do tripé da eclesiologia do Concílio Vaticano II – Reino-Igreja-Mundo, resta inter-relacionar Igreja-Reino e Igreja-Mundo.

O eclipse do Reino Deus na concepção de Igreja, bem como a postura de fuga mundi, foram superados pela renovação conciliar, em sua volta à fontes bíblicas e patrísticas.

O Concílio é claro:

… a Igreja, enriquecida com os dons de seu fundador, observando fielmente seus preceitos de caridade, de humildade e de abnegação, recebe a missão de anunciar o Reino de Cristo e de Deus, de estabelecê-lo em meio a todas as pessoas, e constitui na terra o gérmen e o princípio deste Reino” (LG5,2).

Frisa o Vaticano II que a Igreja não se identifica com o Reino de Deus, pois, é dele apenas “gérmen e princípio”. E sua missão consiste em anunciá-lo e, enquanto seu sacramento, também em torná-lo presente no Mundo.

Comecemos pela relação Igreja-Reino:

De uma Igreja absorvedora a uma Igreja servidora do Reino

Já vimos que, historicamente e, por longo tempo, a Igreja se auto-identificou com o Reino de Deus. De servidora, tornou-se absorvedora do Reino. Mas, o Vaticano II corrigiu esta anomalia. Afirmou que não é o Reino que está na Igreja, mas é a Igreja que faz parte do Reino, dado que ela é apenas seu “gérmen e princípio”. Pelo Espírito Santo, o Reino de Deus também se faz presente fora da Igreja. A justiça, a paz e o amor, não são monopólios dos cristãos. Onde quer que eles reinem e se faça a vontade de Deus, o Reino de Deus está presente. 

Além do Reino de Deus não se restringir à comunidade dos discípulos de Jesus, que é a Igreja, também não acontece somente na esfera estritamente religiosa ou na interioridade secreta da consciência.

O Reino se produz na concretude da realização do amor ao próximo, em suas objetivações empiricamente perceptíveis, apesar da ambiguidade da história. Consequentemente, história da Igreja e história da salvação não coincidem. Há salvação fora da Igreja porque há presença do Reino para além de suas fronteiras.

Assim, como sacramento do Reino, seu “gérmen e princípio”, cabe à Igreja mostrá-lo e testemunhá-lo, sem se orgulhar disso, pois é apenas depositária de um dom a ser partilhado com toda a humanidade. 

A relação Igreja-Reino está marcada por uma tensão

A relação Igreja-Reino, em virtude de a Igreja estar marcada pelos limites do humano e peregrinar na história, está caracterizada por uma tensão. Por um lado, há um abismo entre Igreja e Reino e, por outro, estreita relação. Ela se move entre infinita distância e proximidade.

Estreita relação e proximidade no sentido de que os dons do Reino, que são frutos do Espírito, já se fazem presentes na Igreja, ainda que de maneira imperfeita, misteriosa, mas real (Cl 13,2). E abismo e distância porque o Reino de Deus, enquanto plenitude e consumação da história, por mais que a Igreja o antecipe no mundo, suas realizações estarão sempre aquém do Reino definitivo, cuja plenitude se remete à meta-história.  

Esta tensão entre o que “já” chegou do Reino de Deus e o que “ainda” se espera que chegue um dia, caracteriza o ser da Igreja. Por isso, a Igreja é peregrina (2Cor 8,6). Vive ao mesmo tempo o “já” da presença do Reino, enquanto depositária dos meios de salvação e, o “ainda não” de sua plenitude, que a projeta para o futuro, a ser antecipado o máximo possível no presente.

Sempre que a Igreja elimina esta tensão, pretendendo se identificar com o Reino, deixa de ser a Igreja de Jesus e eclipsa o Reino.

 

Acolher e contribuir com a presença do Reino fora da Igreja

Finalmente, a relação Reino-Igreja conclama os cristãos a acolher e a colaborar com a edificação do Reino de Deus, presente para além das fronteiras da Igreja. Sua missão consiste, antes de tudo, em acolher a obra que Deus fez, pelo seu Espírito, também fora dela. Antes do missionário sempre chega o Espírito Santo. Tudo o que é vida, bondade, justiça, amor, paz¸ é obra do Espírito e presença do Reino de Deus, mesmo que se dê de modo implícito e fora da Igreja.

Na verdade, o Espírito Santo está presente, como dinamizador da vida, tanto na obra da Criação, como na obra da Redenção. Como dizia Santo Irineu, Jesus e o Espírito Santo são os dois braços pelos quais o Pai age e faz acontecer seu Reino no mundo.

Além de acolher a obra do Espírito que atua para além de suas fronteiras, a Igreja está chamada também a colaborar com aqueles que agem no Espírito e edificam o Reino, mas não são Igreja (GS 40). Colaborar com iniciativas de adeptos de outras religiões e de pessoas de boa vontade, é colaborar com a obra de Deus, realizada na graça de seu Espírito. O cristão, como cidadão do Reino, é companheiro de caminho de todas as pessoas de boa vontade, sejam elas pessoas de fé ou simplesmente professantes de um “humanismo aberto ao Absoluto” (Paulo VI).

Como dizia Dom Hélder Câmara, “às vezes, não apoiamos certas bandeiras, que são evangélicas, só porque estão em mãos que julgamos erradas”. O mesmo aconteceu com os apóstolos de Jesus: “Mestre, vimos um homem expulsando demônios em teu nome e procuramos impedi-lo, porque ele não era um dos nossos” (Mc 9,38). 

(os grifos são nossos)

Sobre o autor:

Agenor Brighenti

Doutor em Ciências teológicas e religiosas pela Universidade Católica de Louvain, Bélgica; professor-pesquisador da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), Curitiba; professor visitante do Instituto Teológico-Pastoral para América Latina do CELAM, em Bogotá, e membro da Equipe de Reflexão Teológica-Pastoral do CELAM. Foi um dos peritos da equipe de sistematização do Sínodo para a Amazônia.

Fonte:

www.amerindiaenlared.org

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O tripé da concepção de Igreja do Concílio Vaticano II: Reino-Igreja-Mundo (7) https://observatoriodaevangelizacao.com/o-tripe-da-concepcao-de-igreja-do-concilio-vaticano-ii-reino-igreja-mundo-7/ Tue, 03 Dec 2019 18:06:17 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=33679 [Leia mais...]]]> No artigo anterior, apresentamos a concepção de mundo no pensamento grego e na Bíblia. Agora, vejamos algumas características da concepção de mundo no itinerário da teologia, da antiguidade à época contemporânea.

Veremos que o modo como o mundo é concebido pelos cristãos e pela teologia, vai  influir diretamente na compreensão da missão da Igreja e na própria vivência da fé cristã. Veremos também que a evolução histórica da concepção de mundo permanecerá atrelada ao entendimento de Santo Agostinho, da Igreja antiga ao advento da era contemporânea, somente sendo superada com a profunda renovação do Concílio Vaticano II. 

A concepção de mundo em Santo Agostinho

Na Igreja antiga, mais precisamente no seio da teologia patrística, havia duas visões distintas de mundo: uma ligada a Santo Irineu (+ 202) e outra a Santo Agostinho (+ 430). A primeira vem da tradição bíblico-semita, fundada numa antropologia unitária, isto é, sem separação entre corpo-alma, espírito-matéria, história da salvação e história da humanidade; a segunda é oriunda da filosofia grega, mais exatamente do estoicismo, caracteriza pelos dualismos citados, com uma visão pejorativa do mundo, do corpo, da sexualidade, espiritualista.

Dada a cultura da época, marcada pelo neoplatonismo, a concepção bíblico-semita de Santo Irineu será eclipsada pela concepção dualista de Santo Agostinho, que reinará na Igreja até o advento da era contemporânea. 

Resumidamente, para Santo Agostinho, o cosmos se divide em dois reinos: a civitas terrena (a cidade dos homens) e a civitas Dei (a cidade de Deus). Pelo “pecado de Adão”, o mundo foi corrompido e tornou-se mau. E permanecerá mau até o juízo final, quando no Cristo Ressuscitado tudo será restaurado, recriado, recapitulado. Até lá, o cristão deve tomar distância do mundo – da Cidade dos homens, e refugiar-se na Cidade de Deus, no âmbito espiritual, procurando salvar sua alma. Dado que o pecado corrompeu o mundo, a oposição entre graça-pecado é entendida como oposição entre graça-natureza. O mundo passa a ser sinônimo de pecado e o corpo tido como fonte de concupiscência. Daí a atitude de Santo Agostinho de desconfiança do mundo material e as numerosas exortações para fugir do mundo (fuga mundi), desprezar o corpo, exaltando a virgindade e a vida contemplativa em relação ao casamento e à vida ativa. Segundo ele, o ser humano não encontra seu consolo no mundo; só em Deus se tranquiliza seu coração inquieto.

A concepção de mundo na Idade Média e na Modernidade

Na Idade Média, a teologia escolástica deixa para trás Platão, mostrando interesse por Aristóteles – o filósofo da natureza. É conhecido o axioma de Santo Tomás que “a graça se apoia sobre a natureza”. Entretanto, a falta de ciências que abordem as realidades terrestres a partir delas mesmas, contribuirá para que a concepção cristã de mundo continuasse atrelada ao modo como Santo Agostinho o havia entendido. 

No século XVI, com a irrupção da civilização moderna e o surgimento das ciências metodologicamente a-religiosas, culturalmente, dar-se-ia a superação da visão pejorativa e espiritualista de mundo. Mas, como a teologia não se abriu a estas ciências, continuou reproduzindo a visão de mundo de Santo Agostinho, tal como atesta a obra a “Imitação de Cristo”, de Tomás Kempis. Este livro de espiritualidade devocional, na perspectiva da “fuga mundi”, publicado em 1441, em diversos momentos, era mais lido do que a própria Bíblia.

A própria Reforma protestante, que acolhe valores da modernidade como razão individual e livre arbítrio, teologicamente, continuaria atrelada à concepção de mundo de Santo Agostinho. Para Lutero, que não podemos esquecer que quando católico era monge agostiniano, como o mundo foi corrompido pelo pecado de Adão e uma árvore má não pode dar frutos bons, o ser humano peca em tudo o que faz. Suas obras não têm mérito algum; só a fé e a confiança nos méritos de Cristo pode salvá-lo. 

A concepção de mundo na teologia contemporânea

Na época moderna, a teologia continuou antiga e medieval, apesar da mudança na compreensão do mundo operada pelas ciências da natureza e a filosofia.

Caberia à teologia contemporânea, no século XX, tanto a protestante, quanto a católica, uma vez superadas todas as tentativas de retorno à cristandade, tratar de recuperar o atraso. Isso só foi possível graças a um diálogo da teologia com as ciências naturais, em especial a teoria da relatividade, a física, a bioquímica e a astronáutica.

Vejamos alguns exemplos:

  • Para R. Bultmann, não dá para separar revelação de Deus da história, nem sua interpretação de uma consciência situada no mundo;
  • Para D. Bonhoeffer, a cruz de Cristo não nos leva a fugir do mundo, antes a assumi-lo para salvá-lo;
  • Para Teillard de Chardin, a história da humanidade, as ciências e o progresso, em meio a contradições, vão levando toda a obra da Criação a convergir para “Cristo tudo em todos”. 

A teologia, finalmente, depois de 1500 anos, através de uma releitura da Bíblia, em uma “volta às fontes” ajudada pelas ciências, foi transformando a sua compreensão do mundo e consequentemente da missão da Igreja.

Elenquemos alguns desdobramentos:

  • Que o pecado afetou a Criação, mas não a corrompeu;
  • Que o mundo, criado Deus, era bom e continua bom, ainda que marcado pelo pecado;
  • Que o plano da redenção recapitulou o plano da criação e, portanto, no Corpo Cósmico de Jesus ressuscitado, o mundo já está potencialmente redimido, desde agora, dando, assim, consistência salvífica à história da humanidade, sem ter que esperar pela escatologia final;
  • Que para continuar a obra redentora de Jesus, da qual a Igreja é sinal e instrumento, cabe aos cristãos não fugir do mundo, mas, ao contrário, é preciso se inserir nele, pois, “o que não é assumido não é redimido”;
  • Compreende-se que a Igreja está no mundo e existe para a salvação do mundo;
  • Que não é o mundo que está na Igreja, mas é a Igreja que está no mundo;
  • Que o mundo é constitutivo da Igreja, sem que ela deixe de ser santa, pois é lugar da presença de Deus, assim como a obra da Criação.

Sobre o autor

Agenor Brighenti

Doutor em Ciências teológicas e religiosas pela Universidade Católica de Louvain, Bélgica; professor-pesquisador da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), Curitiba; professor visitante do Instituto Teológico-Pastoral para América Latina do CELAM, em Bogotá, e membro da Equipe de Reflexão Teológica-Pastoral do CELAM. Foi um dos peritos da equipe de sistematização do Sínodo para a Amazônia.

(Os grifos são nossos)

Fonte:

www.amerindiaenlared.org

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O tripé da concepção de Igreja do Concílio Vaticano II: Reino-Igreja-Mundo (6) https://observatoriodaevangelizacao.com/o-tripe-da-concepcao-de-igreja-do-concilio-vaticano-ii-reino-igreja-mundo-6/ Sun, 01 Dec 2019 15:47:50 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=33649 [Leia mais...]]]> Reino-Igreja-Mundo constituem o tripé da eclesiologia do Vaticano II, em sua “volta às fontes” bíblicas e patrísticas. Nos artigos anteriores, abordamos o que se entende por Reino e por Igreja, tanto na Bíblia como no itinerário da teologia.

Vamos, agora, tratar do “mundo”, ao qual a Igreja pertence. O mundo constitui o lugar e a finalidade da missão da Igreja, que é a de tornar presente nele o Reino de Deus, do qual ela é sacramento. Vamos fazê-lo em dois momentos. Neste artigo, veremos o que se entende por mundo na filosofia grega e na Bíblia. No seguinte, como a Igreja foi compreendendo o mundo em seu itinerário histórico pela reflexão pela teologia. 

Como os gregos concebiam o mundo

Vamos, aqui, nos limitar ao pensamento clássico, anterior e contemporâneo ao nascimento do cristianismo. O termo grego para designar o mundo é “cosmos” que, originariamente, significa “ordem”, oposto a “caos”. Era utilizado somente pelos filósofos. Depois, com o estoicismo, tornou-se linguagem corrente. O que chama a atenção é que o significado do termo tem uma valoração qualitativa e positiva do mundo. Trata-se de um todo fundamentado internamente, como uma ordem harmoniosa (originariamente o termo se aplicava à ordenação jurídica e, logo, também ao ornato das mulheres; daí deriva o termo “cosméticos”). Também chama a atenção que o mundo tenha sido caracterizado com um conceito tomado da esfera humana, marcando a estreita relação entre o mundo do humano e o mundo das coisas.

Por “cosmos”, Platão designa “céu e terra, deuses e homens” (o mundo sensível é somente projeção do mundo real, só apreensível espiritualmente). Já para Aristóteles, o mundo é a natureza – uma realidade que opera incansavelmente, segundo a essência de Deus. Por isso, para ele, a ciência mais importante não é a antropologia, como para Platão, mas a cosmologia. 

Mas, a concepção de mundo, que iria preponderar e influenciar o cristianismo, viria de uma corrente filosófica e espiritual dos estoicos, à qual o apóstolo Paulo e Santo Agostinho, por exemplo, foram ligados antes da conversão. Para o estoicismo, Deus é a razão (alma) do mundo, que penetra tudo e sua providência é a lei do mundo. Entretanto, por uma forma de espírito invejoso de Deus, o cosmos está desvirtuado e nos leva a separarmo-nos de Deus. Consequentemente, a salvação não está em adaptar-se à realidade do cosmos ou à contemplação de sua beleza, mas na fuga do mundo sensível e do próprio corpo, através da gnose. Só pela gnose, uma espécie de ascese da mente, se pode caminhar em direção ao ápice supremo da alma, que é Deus. Tanto o platonismo, como o estoicismo, terão grande influência sobre o cristianismo. 

A concepção de mundo para os judeus e os cristãos

Ao contrário de Platão, para o povo de Israel, o mundo não é o espaço supremo e divino, que abarca deuses e seres humanos. Também não é, como para Aristóteles, uma realidade que opera segundo a essência de Deus. Muito menos o mundo se opõe a Deus, como para o estoicismo. Na revelação recebida por Israel, o mundo aparece como o “não-divino”, a obra boa do Deus supra-mundano.  Tanto que o mundo será logo objeto imediato de louvor ao poder de Deus e de admiração por seu sábio governo e ordem do mundo. 

Ao contrário do estoicismo, em que o mundo sensível se opõe ao espírito, para Israel, o mundo é bom, pois foi Deus quem o criou. Não foi criado, como para o gnosticismo, por uma divindade inferior, como vingança ao deus superior, aprisionando nele partículas (almas) do deus superior, fazendo do mundo uma prisão da alma. Ainda que a fé em Javé seja anterior à ideia de “criação”, entretanto, quando esta aparece, o mundo será objeto de louvor imediato ao poder criador de Javé. No Primeiro Testamento, o mundo não se opõe a Deus, nem é emanação ou prolongamento de Deus (panteísmo), mas “criação” de Deus. Deus é “Criador”, pois criou o mundo do nada – creatio ex nihilo.

No Segundo Testamento, o mundo é bom, pois foi criado por Deus e criado em Cristo – tudo foi criado por Ele e para Ele. … sem Ele, nada do que existe teria sido feito (Jo 1,10). É verdade que, “desde Adão”, o mundo está marcado pelo pecado e, portanto, é um “mundo caído”. Entretanto, continua bom e obra do Criador. Por isso, deve-se ter cuidado em distinguir, no Segundo Testamento – “mundo do pecado” e “pecado do mundo”. No mundo, há um “mundo do pecado”, que afasta cada vez mais de Deus, sinônimo de “hostilidade a Deus” e “condenado à perdição”. Mas, o “pecado do mundo” foi vencido pelo “Salvador do mundo”, que embora o mundo esteja sobre a influência do mal, em princípio, já está redimido e destinado à salvação definitiva. 

Por isso, para o Segundo Testamento, os discípulos de Cristo vivem (são) “neste” mundo (Jo 17,11), mas não vivem (são) “deste” mundo (Jo 17,14), porque em Cristo já pertencem a outro mundo celestial. Tanto que Jesus não pede que o Pai os tire do mundo (Jo 17,15), ao contrário, os envia ao mundo (Jo 17,18). E, precisamente porque eles pertencem, desde agora, a outro mundo “celestial” (redimido) (Ef 2,7), e não vivem segundo o modo deste mundo (Rm 12,2), podem usar livremente das coisas do mundo (1Cor 3,22ss).

Como se pode perceber, o Segundo Testamento nunca prega a fuga do mundo enquanto “criação”, apesar da exortação de usar as coisas do mundo como se não as usasse (1Cor 7,31). 

Sobre o autor

Agenor Brighenti

Doutor em Ciências teológicas e religiosas pela Universidade Católica de Louvain, Bélgica; professor-pesquisador da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), Curitiba; professor visitante do Instituto Teológico-Pastoral para América Latina do CELAM, em Bogotá, e membro da Equipe de Reflexão Teológica-Pastoral do CELAM. Foi um dos peritos da equipe de sistematização do Sínodo para a Amazônia.

Fonte:

www.amerindiaenlared.org

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O tripé da concepção de Igreja do Concílio Vaticano II: Reino-Igreja-Mundo (5) https://observatoriodaevangelizacao.com/o-tripe-da-concepcao-de-igreja-do-concilio-vaticano-ii-reino-igreja-mundo-5/ Thu, 28 Nov 2019 10:00:00 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=33608 [Leia mais...]]]> Vimos, na reflexão anterior, que Jesus pregou o Reino de Deus e quis a Igreja para ser seu sacramento, assim como a fundou no Espírito Santo. A Igreja, portanto, procede de Jesus e do Espírito Santo. Mas, qual é a sua razão de ser? Com que finalidade ela foi fundada e instituída por Deus? 

Tradicionalmente, a razão de ser da Igreja era atribuída à “salvação da humanidade”. Apesar de ter parte de verdade, entretanto, é uma definição simplista e ambígua, pois ainda que não exista salvação fora de Jesus Cristo, existe salvação fora da Igreja. Esta, enquanto sacramento do Reino de Deus, é uma mediação de salvação privilegiada, mas não a única. Como diz o Vaticano II, pelo Espírito, Deus salva também por outros meios que só ele conhece. Na realidade, continuam existindo maneiras de entender a razão de ser da Igreja, que o Vaticano II superou. Para não nos alongarmos, vejamos brevemente o modo como entendia a razão de ser da Igreja na eclesiologia pré-conciliar e a compreensão atual segundo o Concílio. 

I – A razão de ser da Igreja na eclesiologia pré-conciliar

Na eclesiologia tradicional, superada pelo Vaticano II, havia basicamente três maneiras insuficientes de compreender a razão de ser da Igreja:

1. A Igreja está no mundo “para tornar possível a salvação”.

Ora, a rigor, não é a Igreja que salva, mas Deus. Além do mais, a salvação oferecida por Deus a toda a humanidade não passa necessariamente pela mediação da Igreja. A graça salvadora atua na Igreja e também fora dela. Neste particular, o papel específico da Igreja consiste em “qualificar” a salvação universal oferecida a todos, dando-lhe, através da comunidade dos discípulos de Jesus, uma visibilidade particular. 

2. Ela está no mundo “para tornar mais fácil a salvação”.

É verdade que a Palavra de Deus e os sacramentos, meios dos quais a Igreja é depositária e vividos no seio de uma comunidade eclesial, são o caminho mais adequado na busca e na acolhida da salvação. Entretanto, viver segundo o Evangelho não é mais fácil. Como advertiu o próprio Jesus – “estreita é a porta e apertado é o caminho que conduz à vida” (Mt 7,14). Além disso, infelizmente, muitas vezes a Igreja, por suas infidelidades e contradições, pode tornar-se um caminho mais difícil de acesso ao Reino de Deus. 

3. Ela está no mundo para explicitar ou apontar o caminho da salvação.

Em parte é verdade, pois, quando uma pessoa de “boa vontade” se torna cristã, é tarefa da Igreja reconhecer como cristão todos os seus valores vividos e compatíveis com o Evangelho. Entretanto, a função da Igreja com relação à salvação não se reduz à sua explicitação, precisamente porque ela não é a única mediação de salvação, ainda que constitua uma forma original e especial, uma mediação privilegiada. 

II – A razão de ser da Igreja segundo o Vaticano II

Frente a estas três maneiras insuficientes de entender a razão de ser da Igreja, na ótica da renovação do Vaticano II, poderíamos evocar três maneiras satisfatórias.

1. A Igreja, enquanto sacramento do Reino, está no mundo “para permitir que Jesus Cristo perpetue na história da humanidade a forma evangélica da salvação”.

Essa forma consiste em visibilizar ou mostrar com a vida o que Jesus disse e fez. Sem testemunho e obras concretas, a Igreja é sal que perdeu sua força, que “de nada mais serve que ser pisado pelos homens” (cf. Mt 5, 13). Como sacramento do Reino, a Igreja só será sinal de salvação, na medida em que for também seu instrumento. Por isso, a missão da Igreja é continuar a obra redentora de Jesus, dizendo o que ele disse, fazendo o que ele fez, vivendo como ele viveu.

2. Ela está no mundo “para fazer com que a forma evangélica de salvação chegue a um maior número possível de pessoas”.

Esta é a missão da Igreja: “ide pelo mundo inteiro. E anunciai o Evangelho a toda criatura” (Mc 16,15). A forma evangélica de salvação, que pela Palavra revelada e os sacramentos é uma forma privilegiada, foi dada à Igreja para ser comunicada a todos os povos, de todos os tempos e lugares. Em outras palavras, esta “objetividade” não é propriedade da Igreja e nem ela pode guardar para si. Ela a recebeu, no Espírito, para ser partilhada com toda a humanidade – “recebestes de graça, dai de graça” (Mt 10,31). Por isso a Igreja é essencialmente missionária, uma “Igreja em saída”, cuja missão é “tornar presente o Reino de Deus no mundo” (EG 172). 

3. A Igreja está no mundo “para que seja comunitariamente partilhada a responsabilidade de anunciar o Evangelho do Reino”.

Enquanto realidade coletiva, o Reino de Deus só é autenticamente anunciado quando mostrado com a vida, quando respaldado pelo testemunho de uma vivência comunitária da fé. A fé cristã é inter-relação com Deus, com os irmãos e com a criação. Diz o Vaticano II que Deus quis nos salvar em comunidade, como povo. O Reino é uma realidade coletiva, a vivência fraterna da justiça, da paz e do amor. Quem acolhe o Reino inaugurado por Jesus, adere a uma comunidade de fé, de vida e missão. A Igreja é uma forma especial desta comunidade, por isso é seu sacramento, seu sinal e instrumento.

Sobre o autor:

Agenor Brighenti

Doutor em Ciências teológicas e religiosas pela Universidade Católica de Louvain, Bélgica; professor-pesquisador da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), Curitiba; professor visitante do Instituto Teológico-Pastoral para América Latina do CELAM, em Bogotá, e membro da Equipe de Reflexão Teológica-Pastoral do CELAM. Foi um dos peritos da equipe de sistematização do Sínodo para a Amazônia.

Fonte:

www.amerindiaenlared.org

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O tripé da concepção de Igreja do Concílio Vaticano II: Reino-Igreja-Mundo (4) https://observatoriodaevangelizacao.com/o-tripe-da-concepcao-de-igreja-do-concilio-vaticano-ii-reino-igreja-mundo-4/ Tue, 26 Nov 2019 02:43:47 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=33554 [Leia mais...]]]> A missão da Igreja será melhor explicitada mais adiante, ao abordar a sua relação com o Reino de Deus e o Mundo. Limitar-nos-emos aqui e no artigo seguinte, à questão da fundação e da instituição da Igreja, assim como de sua razão de ser. Comecemos com a questão de sua fundação e instituição. 

Já houve quem afirmou que Jesus pregou o Reino de Deus e, em seu lugar, os discípulos criaram a Igreja. Questões tais como se Jesus fundou a Igreja e, em que sentido ele o fez ou se realmente ele quis uma Igreja ou se, pelo menos, não a excluiu no futuro, só podem ser respondidas, abordando uma série de questões prévias. 

As origens da Igreja

Onde está o começo da Igreja? Antigamente, para falar das origens da Igreja, se recorria aos escritos do Segundo Testamento. Entretanto, são textos escritos pela Igreja e quase uma geração depois de seu nascimento. Para isso, se evocava as aparições do Ressuscitado, crendo que elas foram ocasião para que os discípulos dispersos voltassem a congregar-se. Entretanto, a expressão – “Jesus ressuscitou” – já é uma afirmação de fé, própria de uma comunidade de fiéis. Também se recorria ao texto de Mateus – “tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei minha Igreja”. Mas, é um texto tardio, uma profissão de fé de uma Igreja já atuante. As aparições legitimam a comunidade dos fiéis, mas não a criam. 

Outro caminho que se costumava usar para identificar as origens e fundação da Igreja era evocar a efusão do Espírito de Pentecostes. Argumentava-se que foi com a efusão do Espírito que os discípulos inativos se tornaram ativos e, assim, teve início a Igreja. É verdade que, segundo a concepção de Lucas, a função histórico-salvífica dos doze consiste em transmitir a possessão do Espírito recebido em Pentecostes. Entretanto, seria o Espírito de Pentecostes uma realidade desconectada do evento histórico Jesus Cristo? Neste caso, a Igreja não teria nascido de Jesus, mas do Espírito.

Jesus e o Espírito Santo são constitutivos da Igreja 

Estudos mais recentes mostram que, na realidade, a Igreja nasce nem só de Jesus e nem só do Espírito.

Para Lucas, a Igreja se faz presente sempre aonde se transmite, por tradição, o que foi recebido antes, na convivência com Jesus e na efusão do Espírito Santo que atuava em Jesus. Assim, o acontecimento de Pentecostes não é o único que constitui a fundação da Igreja, mas somente uma etapa da mesma.

Para Lucas, o acontecimento fundante da Igreja é a vocação ou a eleição dos doze (Lc 6,13), que são a Igreja em gérmen, que, pouco a pouco, vai se constituindo sob o dinamismo do Espírito.

Sem Pentecostes não haveria Igreja. O Espírito é constitutivo da Igreja. Mas também, sem Jesus, que chamou os doze como a Igreja em gérmen, tampouco ela teria nascido. Sem a obra de Jesus, por um lado, não teria havido a Igreja em gérmen no Cenáculo e, por outro lado, sem Pentecostes, os inativos não teriam se tornado ativos.

Será que Jesus quis fundar a Igreja?

Mesmo que a Igreja se remeta a Jesus de Nazaré, será que ele quis expressamente fundar a Igreja ou ela é consequência de sua obra?

Para W.G. Kumel, Jesus contava com a chegada iminente da parusia e, necessariamente, teve que excluir a intenção de fundar uma instituição para continuar sua obra.  Para Kumel, ainda que relacionada com Jesus, a Igreja é posterior à Páscoa e considerada como uma solução intermediária. Como a parusia não veio e a segunda vinda de Jesus não aconteceu, os discípulos teriam criado a Igreja para esperar sua volta. A Igreja seria, por um lado, o resultado da dilatação da parusia e, por outro, da institucionalização da possessão do Espírito. Em outras palavras, pela possessão do Espírito os discípulos criaram a Igreja, que veio substituir o Senhor que não retornou.

Entretanto, como explicar uma continuidade, quase ininterrupta, entre a missão de Jesus e a atuação de seus discípulos, sem que Jesus tivesse querido um movimento para continuar sua obra?

Crer que a Igreja seja resultado da dilatação da parusia e uma solução intermediária, esbarra no fato justamente desta continuidade ininterrupta entre a morte de Jesus e Pentecostes, quando já aparece uma Igreja atuante. 

A instituição da Igreja 

E a Igreja, como instituição – sua organização, estruturas, ministérios, os sacramentos – vem de Jesus ou a comunidade dos discípulos foi criando de acordo com as necessidades que foram se apresentando na missão?

As duas coisas. Como a Igreja nasce nem só de Jesus e nem só do Espírito, também ela é instituída por Jesus e no Espírito. Os apóstolos e discípulos escolhidos e formados por Jesus já são a Igreja em gérmen, que no Espírito vai se constituindo em seu caminhar. Tradição é a história do Espírito Santo na história do Povo de Deus. 

Da mesma forma que não há Igreja sem Jesus Cristo, também não há Igreja sem Espírito Santo. Igreja não é nem anterior e nem exterior ao Espírito Santo. Jesus e o Espírito são constitutivos da Igreja. Ela é, ao mesmo tempo, uma realidade histórica e escatológica. Como realidade histórica está referida ao mundo e como realidade escatológica está referida ao passado e ao futuro. Só desde este círculo histórico dialético-hermenêutico se pode entender a Igreja, como de fato ela é, fundada por Deus.

Sobre o autor:

Agenor Brighenti

Doutor em Ciências teológicas e religiosas pela Universidade Católica de Louvain, Bélgica; professor-pesquisador da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), Curitiba; professor visitante do Instituto Teológico-Pastoral para América Latina do CELAM, em Bogotá, e membro da Equipe de Reflexão Teológica-Pastoral do CELAM. Foi um dos peritos da equipe de sistematização do Sínodo para a Amazônia.

Fonte:

www.americanenlared.org

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O tripé da concepção de Igreja do Concílio Vaticano II: Reino-Igreja-Mundo (3) https://observatoriodaevangelizacao.com/o-tripe-da-concepcao-de-igreja-do-concilio-vaticano-ii-reino-igreja-mundo-3/ Wed, 20 Nov 2019 20:28:31 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=33341 [Leia mais...]]]> O Reino de Deus, de promessa no Primeiro Testemento, se fez realidade com Jesus de Nazaré. O Messias esperado o inaugura e o anuncia ao  povo de Israel e aos gentios. Sobretudo por meio de parábolas, o Reino ocupa um lugar central e hegemônico na pregação e na obra do Nazareno.

Entretanto, com sua morte e ressureição, a mensagem por ele propagada é colocada num novo contexto. Como se tem agora de reafirmar que Jesus era o Messias prometido e que ele vive, o pregador tende a tornar-se o pregado e o Reino passará a ser identificado com a Igreja, quando na realidade ela é seu sacramento e mediação.

Da centralidade do Reino à centralidade das virtudes

Diferente dos evangelhos sinóticos, em cujo centro da mensagem cristã está o Reino de Deus inaugurado e pregado por Jesus, particularmente em João e em Paulo, o centro tende a ser o Cristo ressuscitado e a vivência das virtudes.

Prova disso é que o Reino de Deus, colocado na boca de Jesus mais de 100 vezes nos evangelhos, em todos os escritos paulinos aparece apenas 11 vezes. Além disso, foi-se interpretando o Reino segundo a cultura dos interlocutores do anúncio. Por exemplo, além de Paulo deslocar o Reino para o “futuro último”, para além da história (1Cor 6,10), o compreende a partir de categorias “moralizantes” – segundo uma lista de virtudes e vícios, enfatizada pela filosofia popular grega, especialmente o estoicismo. Para Paulo, os que não vencerem tais vícios, “não herdarão o Reino dos céus” (1Cor 6,9).

Enquanto que para Jesus a centralidade da mensagem está no Reino de vida e felicidade para todo o gênero humano já a partir desta vida, em Paulo o centro da mensagem cristã é o pecado e a vitória sobre os vícios, acompanhados de forte apelo ao desprezo da matéria, do corpo, do amor humano e da sexualidade. Com isso, se dá o deslocamento da centralidade do Reino (tema dos evangelhos sinóticos) para a centralidade da virtude (tema da filosofia helenista). 

Isso não quer dizer que Paulo adulterou a mensagem de Jesus. Mas, a passagem do cristianismo do mundo judeu ao mundo helênico contribuiu para uma interpretação do Reino segundo o contexto dos novos interlocutores. E esta compreensão não só entrará no cristianismo, como se tornará preponderante. Isso mostra que a fé transmitida e que chegou até nós, não vem só de Jesus, mas é uma mescla de mensagem evangélica, tradições judaicas do Primeiro Testamento e de fortes doses de cultura helenista ou greco-romana. 

De uma Igreja servidora a uma Igreja absorvedora do Reino

A Igreja no Oriente, conforme atestam os escritos dos Santos Padres, ainda que tenha colocado em evidência uma compreensão do Reino de Deus com traços espiritualistas, sempre o distinguiu da Igreja. Já a Igreja no Ocidente, ao trazer o Reino para a intra-história, tenderá a identificá-lo com a Igreja.

Santo Agostinho vai falar da Igreja como regnum Christi (reino de Cristo) e regnum coelorum (reino dos céus), que neste mundo é regnum militiae (reino militante) e, portanto, aguarda sua consumação na escatologia final. Para ele, a Igreja se identifica com o reino milenário do Apocalipse (Ap 20,4), sendo a última forma da civitatis Dei peregrinans (cidade de Deus peregrinante).

Com isso, a Igreja, em lugar de “sacramento do Reino” e mediadora da salvação de Jesus, passa a ser “absorvedora” e não “servidora” do Reino de Deus. 

Na Idade Média, é a teologia de Santo Agostinho que no plano sócio-político dará suporte ao modelo de cristandade, no qual se vai fazer uma interpretação política do Reino de Deus: na Igreja, o imperador é o “novo Davi”, que toma “as rédeas do senhorio régio”; já o papa é o “novo Moisés”, cuja soberania deriva da participação na realeza de Cristo. Com isso, a Igreja, ao absorver o Reino, se torna autorreferencial, reafirmando que fora dela não há salvação.

Na Reforma protestante, a doutrina de Lutero assume a teologia de Agostinho, enfatizando a existência de dois reinos: o Reino de Deus, um reino espiritual, essencialmente invisível, no seio do qual se dá a justificação pela fé; e, o reino mundano, que é a lei, do qual o cristão deve tomar distância. Por sua vez, para a contra-Reforma, tal como concebe Inácio de Loyola, o Reino de Cristo se identifica com a Igreja, por isso, ela é santa e divina, não peca e não erra: “é sem dúvida impossível que Cristo permita alguma vez em sua Igreja um juízo propriamente errôneo sobre alguma coisa discutida” (Exercícios Espirituais, n. 35). 

Na Idade moderna, como a teologia fica atrelada à concepção de Santo Agostinho, são a cultura e as ciências, em especial a filosofia, que tentam trazer o Reino de Deus do espiritual para o concreto da história. Afirma-se que religião é alienação e que  felicidade e a vida em plenitude dependem de uma nova sociedade fundada na justiça, na paz e no amor, a qual o ser humano deve fazer acontecer com seu trabalho. Crê-se que o futuro está ao alcance da humanidade, nesta vida. O Reino não é de Deus, mas do ser humano e está ao seu alcance, por sua intervenção na história. 

Na Idade contemporânea, a teologia se renova, passa a distinguir novamente Igreja de Reino de Deus e colocar em evidência que o Reino é espiritual e concreto; tem sua plenitude na outra vida, mas começa nesta vida; tem uma dimensão transcendente, mas é também imanente; tem um “ainda não” e também um “já”. 

A teologia latino-americana dirá que o Reino é plenitude de vida e salvação, já a partir desta vida, pois  o fim que se espera, deve-se ir antecipando, o máximo possível na história, cujos destinatários privilegiados, na perspectiva das bem-aventuranças, são os pobres e os excluídos. 

Sobre o autor:

Agenor Brighenti

Doutor em Ciências teológicas e religiosas pela Universidade Católica de Louvain, Bélgica; professor-pesquisador da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), Curitiba; professor visitante do Instituto Teológico-Pastoral para América Latina do CELAM, em Bogotá, e membro da Equipe de Reflexão Teológica-Pastoral do CELAM. Foi um dos peritos da equipe de sistematização do Sínodo para a Amazônia.

Fonte:

www.amerindiaenlared.org

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O tripé da concepção de Igreja do Concílio Vaticano II: Reino-Igreja-Mundo (2) https://observatoriodaevangelizacao.com/o-tripe-da-concepcao-de-igreja-do-concilio-vaticano-ii-reino-igreja-mundo-2/ Tue, 19 Nov 2019 01:53:28 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=33259 [Leia mais...]]]> O Reino de Deus

Na abordagem do tripé da concepção de Igreja na perspectiva da renovação do Vaticano II – Reino-Igreja-Mundo – comecemos pelo Reino de Deus.

Neste primeiro momento, vamos nos limitar ao que se entende por Reino de Deus na Bíblia. O Reino está bem presente no Primeiro Testamento, desde o tempo da monarquia. Mas, é no Segundo Testamento que o Reino de Deus é apresentado de modo mais claro e consequente para a Igreja.

Nos evangelhos sinóticos, a evocação do Reino de Deus é onipresente. Aparece quase cem vezes na boca de Jesus, enquanto que a Igreja só é mencionada duas vezes e apenas em Mateus (cf. Mt 16,18; 18,17), o que mostra sua preponderância em relação à Igreja. Jesus não pregou Deus, mas o Reino de Deus. O Deus de Jesus é o Deus do Reino.

O Reino de Deus no Primeiro Testamento 

No antigo Oriente, a designação de um deus como “rei” estava muito propagada. A divindade exerce sua soberania sobre seu povo e seu território. Deus é dono do país, outorga prosperidade e bem-estar, corrige e castiga. A queda do reino terreno era a prova de que aquele deus não existia. O reino terrestre é a epifania ou manifestação do deus daquele reino.

No povo de Israel, que vivia neste contexto cultural, é somente a partir do período da monarquia que se começa a chamar Javé de “Rei”. Com a elevação de Jerusalém como sede régia, o titulo “rei” irá substituir títulos mais antigos como “Deus Pai”. Por influência da concepção cananeia, segundo a qual é com a construção de um templo que se demonstra a dignidade régia de Deus, no seio do povo de Israel logo os Salmos irão cantar a realeza de Javé (cf. Sl 47; 93; 96;99), cuja ação criadora é expressão de sua soberania sobre o mundo (cf. Sl 24, 1ss; 96, 5-10). 

Com os profetas, o Reino de Deus passa a ser compreendido como menos terreno e mais escatológico. Em lugar de templo e território, os profetas anunciam o Reino como salvação universal. Isaías alimenta a esperança do povo em um reinado de paz, de um novo Davi sobre Sião. Jeremias fala do Reino como uma nova aliança, pela qual serão transformados os corações (Jr 31,31ss). Outros descrevem o novo reinado de Javé como felicidade consumada, que através de Israel será oferecida a todos os povos (Ez 34, Miq 4; Is 9, 25). Por fim, do Reino de Javé faz parte a supressão da morte (Is 25, 6ss), pois se trata de um Reino escatológico.

No judaísmo tardio, a esperança no reinado de Deus adquire três configurações distintas:

  • a) uma escatologia nacional, em que o Messias esperado aparece como o libertador e fundador político de um Israel novo e justo, como acreditavam os zelotes;
  • b) uma realeza recebida por Israel e oferecida aos gentios, conforme a tradição rabínica;
  • c) o reino como o universo transladado ao céu, tal como apregoava a apocalíptica, em que se calculam as semanas dos anos até o “dia de Javé” (Dn 2,37-45). 

O Reino de Deus no Segundo Testamento 

No Segundo Testamento, o Reino de Deus, que “está próximo” (Mc 1,15; Mt 4,17) ou que está “no meio de nós” com a presença de Jesus, é a realização da promessa do Primeiro Testamento.

Na pregação de Jesus, a soberania de Deus não é o domínio do Criador, mas o reinado escatológico de Deus que, no seio da história, sem transformação cósmica e sem nova constituição política de Israel, já começou. Ele se destina a todos – publicanos e meretrizes, aos enfermos, crianças e pobres (cf. Mc 2,15; 10, 15-16). O Reino de Deus é salvação e não juízo, pois a alegria de Deus é perdoar os pecadores arrependidos (cf. Lc 15). A separação entre bons e maus, só terá lugar no juízo final (cf. Mt 13,24ss). 

As obras de Jesus mostram que o Reino de Deus está presente, no meio de nós. As curas e os exorcismos são sinais da presença histórica do Reino – “Ide dizer a João: os cegos veem, os coxos andam…” (Mt 11,4; Lc 14,18). Consequentemente, Jesus não só anuncia o Reino de Deus como o torna presente. Os discípulos são chamados bem-aventurados, porque ouvem e veem o que muitos profetas e reis desejaram ver e não viram (Mt 13,16). Jesus convida a acolher este Reino que, entretanto, não lhe pertence, mas ao Pai (Lc 12,32; 22,29ss). Só o Pai conhece a hora (Mt 24,36). O Reino tem um caráter consumador da história, definitivo e, como tal, as realidades históricas só podem ser dele sinais imperfeitos, ainda que dele estejam impregnadas. Nem mesmo o grupo dos discípulos e o círculo dos Doze se identificam com a grande família de Deus no Reino dos Céus, pois será integrada por gente vinda “do Oriente e do Ocidente” e que “se sentarão à mesa com Abraão, Isaac e Jacó” (Mt 8,11). 

Na pregação de Jesus, três são as características principais do Reino de Deus:

  • 1. Ele é Boa Nova de luz e vida, é uma semente, um tesouro, uma pérola, em resumo, ele é plenitude para o ser humano, felicidade, o desabrochar total prometido àqueles que viverem segundo as bem-aventuranças (cf. Mt 5), aqui e agora.
  • 2. Ainda que devamos trabalhar para construí-lo (Cl 4,11), não podemos edificá-lo com nossas próprias mãos, pois ele é sempre dom, do qual Deus tem sempre a iniciativa. Ainda que o Reino esteja no meio de nós, sua plenitude é uma realidade escatológica, que começa aqui e se consuma na outra vida.
  • 3. O Reino de Deus é uma realidade coletiva. Ainda que a conversão pessoal seja a porta de entrada, ele tem uma dimensão comunitária. Ele é “paz de Deus”, justiça e amor oferecidos a todos. É comunhão sem fronteiras – “amai vossos inimigos” (Mt 5,44). Consequentemente, nenhum grupo em particular, nem a comunidade dos discípulos, são destinatários únicos das promessas do Reino.  Ele é oferecido a todos, tanto que os que o integram – “virão do Oriente e do Ocidente, do Norte e do Sul…” (Lc 13,29). 

Sobre o autor:

Agenor Brighenti

Doutor em Ciências teológicas e religiosas pela Universidade Católica de Louvain, Bélgica; professor-pesquisador da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), Curitiba; professor visitante do Instituto Teológico-Pastoral para América Latina do CELAM, em Bogotá, e membro da Equipe de Reflexão Teológica-Pastoral do CELAM. Foi um dos peritos da equipe de sistematização do Sínodo para a Amazônia.

Fonte:

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O tripé da concepção de Igreja do Concílio Vaticano II: Reino-Igreja-Mundo (1) https://observatoriodaevangelizacao.com/o-tripe-da-concepcao-de-igreja-do-concilio-vaticano-ii-reino-igreja-mundo-1/ Sat, 16 Nov 2019 00:13:11 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=33230 [Leia mais...]]]> Em uma série de dez artigos, vamos nos debruçar sobre a concepção de Igreja (eclesiologia) do Concílio Vaticano II. É importante revisitar o Concílio, pois, como denunciaram os bispos da América Latina em Aparecida, nos dias atuais, há “algumas tentativas de voltar a um certo tipo de eclesiologia e espiritualidade contrárias à renovação do Vaticano II” (DAp 100b). É um alerta sério, pois estão ao nosso redor modelos de Igreja e modelos de pastoral esclerosados, expressão de um passado sem retorno.

O Concílio Vaticano II não mudou a Igreja, em sua volta às fontes bíblicas e patrísticas, apenas resgatou o modelo de Igreja neotestamentário, que se havia perdido de vista, desde o início da Idade Média, situando-o no tempo presente. 

Não vamos abordar, aqui, a eclesiologia do Vaticano II como um todo. Vamos nos restringir ao tripé que lhe dá fundamento, que é o trinômio Reino-Igreja-Mundo. Concretamente, faremos uma abordagem teológica e pastoral de cada uma destas categorias, para depois relacionar a Igreja com o Reino de Deus e também com o Mundo. 

A Igreja como “gérmen e princípio” do Reino

Depois do Concílio Vaticano II, já não se pode conceber o “ser” e a “missão” da Igreja, fora do trinômio Reino-Igreja-Mundo. A Igreja, em seu modelo neotestamentário, está intrinsicamente unida ao Reino de Deus e ao Mundo. Por um lado, a Igreja é sacramento do Reino e, por outro, está inserida no mundo, onde precisa torná-lo presente. Não é o Reino e o mundo que estão na Igreja, mas é a Igreja que está no Reino de Deus e no mundo.

Com relação à Igreja enquanto parte do Reino, diz o Vaticano II:

… a Igreja, enriquecida com os dons de seu fundador, observando fielmente seus preceitos de caridade, de humildade e de abnegação, recebe a missão de anunciar o Reino de Cristo e de Deus, de estabelecê-lo em meio a todas as pessoas, e constitui na terra o gérmen e o princípio deste Reino” (LG 5,2).

E, enquanto parte do mundo, afirma o Concílio:

… a Igreja existe neste mundo e com ele vive e age” […] “composta de pessoas membros da cidade terrestre, chamadas a formarem já na história do gênero humano a família dos filhos de Deus” (GS 40, 1-2). 

Assim, dado que o Reino é símbolo dos desígnios do Criador para toda a Criação, a Igreja também se remete ao mundo, para nele contribuir com a edificação de um Reino que a transcende. Da mesma forma que não há Igreja sem Reino de Deus, também não há Igreja fora do Mundo. Pretender colocar-se fora do Mundo, é continuar dentro dele de forma alienada. E mais que isso, além de não poder sair do Mundo, a Igreja existe para a “salvação do mundo”. Segundo o papa Francisco, a Igreja existe para evangelizar, que consiste em “tornar presente o Reino de Deus no mundo” (EG 72).

O eclipse do Reino de Deus e a fuga do mundo

Foi no tripé Reino-Igreja-Mundo que nasceu a Igreja de Jesus, sob o dinamismo do Espírito em Pentecostes, e deste modo se fez presente em seu caminhar histórico, até o final do século IV. Entretanto, por razões que veremos mais adiante, a partir do século V, gradativamente, deu-se na Igreja o eclipse do Reino de Deus e a fuga do mundo (fuga mundi), que se prolongou até a realização do Vaticano II.  

Com a volta às fontes bíblicas e patrísticas, o Concílio resgatou o modo de ser Igreja segundo o modelo normativo neotestamentário. De uma Igreja servidora do Reino no mundo, a Igreja tinha se tornado absorvedora do Reino e também do mundo. Tornou-se uma Igreja auto-referencial, quando na realidade ela é o sacramento histórico-salvífico de um Reino que não acontece somente na Igreja como comunidade socialmente constituída pelos batizados. Menos ainda na interioridade secreta da consciência, mas se produz na concretude da realização do amor ao próximo, já a partir deste mundo, apesar da ambiguidade da história, em suas objetivações empiricamente perceptíveis. 

Reino e mundo são constitutivos da Igreja

O Concílio Vaticano II pôs em evidência que o Reino de Deus é mais amplo do que a Igreja e está presente para além de suas fronteiras. A Igreja é uma de suas mediações, ainda que privilegiada, pois dispõe dos sacramentos e da Palavra Revelada, mas não a única. Consequentemente, enquanto servidora de um Reino que ultrapassa suas fronteiras, seu raio de atuação vai além do espaço intra-eclesial, abarca o mundo.  A Igreja existe para testemunhar e edificar o Reino de Deus no mundo, juntamente com outras Igrejas, religiões e pessoas de boa-vontade. 

Assim, como gérmen e princípio do Reino de Deus na concretude da história, a missão da Igreja não é deste mundo, mas se dá “no” mundo e “para” o mundo. O cristão não é tirado do mundo, ao contrário, é chamado e enviado para a salvação do mundo. Dado que Deus enviou seu Filho para salvar o mundo, a Igreja só é mediação da salvação de Jesus Cristo no mundo, na medida em que, com sua ação evangelizadora, o assume e contribui com sua redenção. Consequentemente, o mundo não é indiferente ao cristão, nem exterior ou separado de uma suposta “vocação celestial”, pois é no mundo que acontece a salvação. Só quando a Igreja se encarna no mundo, torna-se sacramento da salvação do mundo, que é o Reino de Deus, que começa neste mundo e encontra sua plenitude no outro mundo vindouro. 

Sobre o autor:

Agenor Brighenti

Doutor em Ciências teológicas e religiosas pela Universidade Católica de Louvain, Bélgica; professor-pesquisador da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), Curitiba; professor visitante do Instituto Teológico-Pastoral para América Latina do CELAM, em Bogotá, e membro da Equipe de Reflexão Teológica-Pastoral do CELAM. Foi um dos peritos da equipe de sistematização do Sínodo para a Amazônia.

Fonte:

www.amerindiaenlared.org

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