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O amor no matrimônio segundo a Amoris Laetitia

Geraldo De Mori, SJ*

Por séculos a finalidade do matrimônio na Igreja católica foi associada à procriação. Em parte essa leitura era determinada pelo “crescei e multiplicai-vos” de Gn 1,28, embora Gn 2,23-24 e a própria doutrina da Igreja contemplassem a dimensão unitiva ou erótica da união conjugal. A encíclica Humanae vitae, de Paulo VI, ao proibir os métodos “artificiais” de procriação, fez com que o discurso eclesial valorizasse mais as questões éticas ligadas à fecundidade ou à vida. O Papa Francisco, na Amoris Laetitia (AL), estabelece um novo equilíbrio entre essas duas dimensões, vistas mais como “evangelho”, portanto, boa notícia, e não tanto uma dimensão a manter sob suspeita.

Sabemos o quanto a dimensão afetiva e erótica é central em todas as sociedades contemporâneas, nas quais está em curso uma enorme evolução na constituição familiar. A família nuclear tradicional (pai, mãe, filhos), resultado, segundo a doutrina católica, de um vínculo indissolúvel e sacramental, convive com inúmeros outros arranjos familiares, muitos dos quais fundados no “amor romântico”, que, segundo Vinicius de Moraes, “é eterno enquanto dura”, fazendo-se e desfazendo-se segundo as mudanças que experimentam as subjetividades vulneráveis que compõem a sociedade na atualidade.

Mais que começar com um olhar negativo sobre as ameaças que sofre hoje a instituição familiar, sobretudo em sua figura tradicional, o texto papal inicia com uma aposta no amor, um amor, que de imediato, segundo uma interpretação do Sl 128/127, lido a partir de Gn 1-2, liga homem e mulher (Gn 2,24), tornando-os fecundos (Gn 1,28). O esboço do que é o amor conjugal e familiar, proposto no primeiro capítulo da AL, não ignora, porém, “a presença do sofrimento, do mal, da violência, que dilaceram a vida da família e a sua comunhão íntima de vida e de amor” (AL 19). À luz da Palavra de Deus, o Papa mostra como no meio das dificuldades se pode encontrar o remédio que cura as feridas. Fundados no amor, o casal e a família encontram no amor a via para enfrentar tudo aquilo que desfigura o amor, impossibilitando sua plena realização. Esse esboço do que é o amor familiar recebe nos capítulos IV e V uma fundamentação maior. Retomamos aqui apenas alguns elementos nucleares da reflexão do Papa no capítulo IV.

O título do capítulo IV é justamente “O amor no matrimônio”. Trata-se, segundo muitos intérpretes da AL, de uma meditação própria de Francisco, não tendo sido objeto dos debates das duas sessões dos sínodos de 2014 e 2015. O texto é em parte baseado no hino do amor, de 1Cor 13,2-3, na seguinte tradução papal: “O amor é paciente, é benfazejo; não é invejoso, não é presunçoso nem se incha de orgulho, nada faz de vergonhoso, não é interesseiro, não se encoleriza, nem leva em conta o mal sofrido; não se alegra com a injustiça, mas fica alegre com a verdade. Ele desculpa tudo, crê tudo, espera tudo, suporta tudo”. A primeira parte deste capítulo é um comentário desse texto. É importante observar que no grego existem três termos para se falar do amor: eros, amor apaixonado, que supõe atração; filia, amor de amizade, que leva as pessoas a se preocuparem pelos outros; ágape, amor desinteressado e gratuito, traduzido em geral por caridade. No texto paulino, fala-se de ágape, mas o Papa traduz o significado de ágape nas atitudes que devem permear o amor conjugal: a paciência, o serviço, a cura da inveja, arrogância e orgulho, a amabilidade, o desprendimento, a não violência, o perdão, a capacidade de alegrar-se com o outro, de desculpar, confiar, esperar e suportar.

Feito isso, na segunda parte do capítulo, Francisco afirma que o texto paulino “permite-nos avançar para a caridade conjugal […] que reúne em si a ternura da amizade e a paixão erótica, embora seja capaz de subsistir mesmo quando os sentimentos e a paixão enfraquecem” (AL 120). Nesse sentido, o amor conjugal é “ícone do amor de Deus por nós” (AL 121). Em sua natureza “existe a abertura ao definitivo”, pois “unindo o humano e o divino, esse amor leva os esposos ao livre e recíproco dom de si mesmos, que se manifesta com a ternura do afeto e com as obras, e penetra toda a sua vida” (AL 123). O Papa insiste na importância do cuidado “da alegria do amor”, que implica “aceitar que o matrimônio é uma combinação necessária de alegrias e fadigas, tensões e repouso, sofrimentos e libertações, satisfações e buscas, aborrecimentos e prazeres, sempre no caminho da amizade que impele os esposos a cuidarem um do outro” (AL 126). Francisco leva em conta as crises e as feridas que elas provocam nos cônjuges (AL 128), mas insiste na necessidade do perdão. As “palavras adequadas, diz o Papa, ditas no momento certo, protegem e alimentam o amor dia após dia” (AL 133).

A terceira parte do capítulo, dedicada ao “amor apaixonado”, recolhe o valor do amor erótico na própria relação conjugal, dizendo que “os místicos afirmaram que o amor sobrenatural e o amor celeste encontram os símbolos que procuram mais no amor matrimonial do que na amizade, no sentimento filial ou na dedicação a uma causa” (AL 142). O texto mostra o lugar dos desejos, sentimentos e emoções (as paixões) na vida conjugal. Afirma que “o amor matrimonial leva a procurar que toda a vida emotiva se torne um bem para a família e esteja a serviço da vida em comum” (AL 146). Para isso, é preciso um caminho pedagógico, que inclui renúncias, educação da emotividade e do instinto, levando a aceitar que o prazer possui outras formas de expressão. O Papa insiste que a sexualidade é “um presente maravilhoso” de Deus (AL 150), e que o “erotismo é uma manifestação especificamente humana da sexualidade”, que nele podemos encontrar o “significado esponsal do corpo e a autêntica dignidade do dom” (AL 151). O Papa não ignora as perversões ligadas à sexualidade, que pode transformar-se em fonte de violência, sofrimento e manipulação. Recorda, porém, que “um amor verdadeiro também sabe receber do outro, é capaz de se aceitar como vulnerável e necessitado, não renuncia a receber, com gratidão sincera e feliz, as expressões corporais do amor na carícia, no abraço, no beijo e na união sexual” (AL 157). A última parte do capítulo, dedicada à “transformação do amor”, recolhe brevemente o papel do tempo ou da história na vida do casal, mostrando, que “um cônjuge enamora-se pela pessoa inteira do outro, com uma identidade própria, e não apenas pelo corpo” (AL 164).

A articulação do amor erótico, com o amor de amizade e o amor gratuito faz desse capítulo da AL uma verdadeira “suma do amor”, segundo a compreensão teológica de Francisco, que recolhe toda a tradição da Igreja. No capítulo V ele mostra como esse amor se abre à fecundidade, contribuindo para isso com a obra do Criador. O texto papal é um belo convite à meditação sobre o amor conjugal nesse tempo em que se fala tanto do amor, oferecendo uma real contribuição para pensar a própria vivência do amor.

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*Geraldo De Mori, SJ, doutor em Teologia. É coordenador da Pós-graduação da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia.

Fonte:

www.domtotal.com.br

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