Milton Santos – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com Fri, 27 Aug 2021 10:29:00 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.4 https://i0.wp.com/observatoriodaevangelizacao.com/wp-content/uploads/2024/04/cropped-logo.png?fit=32%2C32&ssl=1 Milton Santos – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com 32 32 232225030 “O tempo nas cidades”, texto extraordinário do geógrafo Milton SAntos analisa temática fundamental para o discernimento da Pastoral Urbana https://observatoriodaevangelizacao.com/o-tempo-nas-cidades-texto-extraordinario-do-geografo-milton-santos-analisa-tematica-fundamental-para-o-discernimento-da-pastoral-urbana/ https://observatoriodaevangelizacao.com/o-tempo-nas-cidades-texto-extraordinario-do-geografo-milton-santos-analisa-tematica-fundamental-para-o-discernimento-da-pastoral-urbana/#comments Fri, 27 Aug 2021 10:29:00 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=40314 [Leia mais...]]]> A cidade é o palco de atores os mais diversos: homens, firmas, instituições, que nela trabalham conjuntamente. Alguns movimentam-se segundo tempos rápidos, outros, segundo tempos lentos, de tal maneira que a materialidade que possa parecer como tendo uma única indicação, na realidade não a tem, porque essa materialidade é atravessada por esses atores, por essa gente, segundo os tempos, que são lentos ou rápidos. Tempo rápido é o tempo das firmas, dos indivíduos e das instituições hegemônicas e tempo lento é o tempo das instituições, das firmas e dos homens hegemonizados.”

Confira:

Prof. dr. Milton Santos (1926-2001)
“Nós, homens, não temos o mesmo comando do tempo na cidade…”

O texto que segue é um esboço de uma velha ambição que jamais pude realizar (espero poder realizá-la ainda) que é oferecer um curso de pós-graduação sobre o tempo. Ainda que não seja filósofo, sou geógrafo, parto da ideia de que a Geografia é uma filosofia das técnicas, considerando a técnica como a possibilidade de realização da História, de mudança da História, de visibilidade dessas rupturas.

A Geografia pretende utilizar como um de seus campos de trabalho ou como uma das geografias possíveis, aquela que se preocupa com a apreensão do contexto dos atuais e diferentes momentos, o que faz dela, de alguma maneira, a história de cotidianos sucessivos. O entrosamento entre técnica e História permite o entendimento do que se passou, do que se passa e eventualmente do vai se passar, quando as técnicas se tornam um conjunto unificado e único, movidas por um motor também único, o que permite uma visibilidade do futuro.

O tempo pode ser encarado das mais diversas maneiras; eu, como não sou filósofo, repito, apenas vou tomar alguns filósofos como ponto de partida, como ajuda na minha conversa. Eu lembraria, por exemplo, o que li em Baillard, quando ele divide o tempo em três tipos: o tempo cósmico, o tempo histórico e o tempo existencial. O tempo cósmico, da natureza, objetivado, sujeito ao cálculo matemático; o tempo histórico, objetivado, pois a História o testemunha, mas no qual há cesuras, em vista de sua profunda carga humana; e o tempo existencial, tempo íntimo, interiorizado, não externado como extensão, nem objetivado, é o tempo do mundo da subjetividade e não da objetividade. Mas, esses tempos todos se comunicam entre eles, na medida em que o tempo é social. Parafraseando Heidegger, para quem sem o homem não há tempo, é desse tempo do homem, do tempo social contínuo e descontínuo, que não flui de maneira uniforme, que temos de tratar. E é por aí que se vê que esses diversos tipos de tempo convergem e divergem. Convergem na experiência humana e divergem na análise.

Do tempo matemático, tempo cósmico, tempo do relógio, ao tempo histórico, vai toda uma evolução que é assinalável ao longo da História. O relógio que é descoberto num determinado momento da História, é redescoberto neste século com o taylorismo e depois com o fordismo; um tempo que é medida do relógio, se não o enchermos dessa substância social. O tempo individual, tempo vivido, sonhado, vendido e comprado, tempo simbólico, mítico, tempo das sensações, mas com significação limitada, não é suscetível de avaliação se não referido a esse tempo histórico, tempo sucessão, tempo social, o ontem, o hoje, o amanhã. Essas sequências, que nos dão as mudanças que fazem história, criam as periodizações, isto é, as diferenças de significação.

Nesse momento, eu gostaria de me referir a um filósofo latino-americano, Sérgio Bagú, que distingue entre o tempo como sequência – o transcurso – o tempo como raio de operações – o espaço – e o tempo como rapidez de mudanças, como riqueza de operações. Aí se vê que o tempo aparece como sucessão, permitindo uma periodização; depois aparece como raio de operações, isto é, o tempo que nos é concomitante, que nos é coetâneo, ou que foi coetâneo de uma outra geração, e essas duas acepções do tempo nos permitem trabalhar não só o espaço geográfico como um todo, mas a cidade em particular. Há uma ordem do tempo que é a das periodizações, que nos permite pensar na existência de gerações urbanas, em cidades que se sucederam ao longo da História, e que foram construídas segundo diferentes maneiras, diferentes materiais e também segundo diferentes ideologias.

Na cidade atual, essa ideia de periodização é ainda presente; é presente nas cidades que encontramos ao longo da História, porque cada uma delas nasce com características próprias, ligadas às necessidades e possibilidades da época, e é presente no presente, à medida que o espaço é formado pelo menos de dois elementos: a materialidade e as relações sociais. A materialidade, que é uma adição do passado e do presente, porque está presente diante de nós, mas nos traz o passado através das formas: basta passear por uma cidade, qualquer que seja, e nos defrontaremos nela, em sua paisagem, com aspectos que foram criados, que foram estabelecidos em momentos que não estão mais presentes, que foram presentes no passado, portanto atuais naquele passado, e com o presente do presente, nos edifícios que acabam de ser concluídos, esse presente que escapa de nossas mãos. Na realidade, a paisagem é toda ela passado, porque o presente que escapa de nossas mãos, já é passado também. Então, a cidade nos traz, através de sua materialidade, que é um dado fundamental da compreensão do espaço, essa presença dos tempos que se foram e que permanecem através das formas e objetos que são também representativos de técnicas.

É nesse sentido que eu falei que a técnica é sinônimo de tempo: cada técnica representa um momento das possibilidades de realização humana e é por isso que as técnicas têm um papel tão importante na preocupação de interpretação histórica do espaço.

Ora, essas técnicas que nos trazem as periodizações, que nos permitem reconstituir como aquele palimpsesto, que é a paisagem, a acumulação de tempos desiguais, que é a paisagem urbana, como ela chega até nós, permitem-nos também passar dos tempos justapostos aos tempos superpostos. Se considerarmos a história do espaço e do tempo ao longo da História, vamos ver que ela é o passar de momentos que se propuseram justapostos, isto é, em que cada sociedade que criava o seu tempo através de suas técnicas, através do seu espaço, através das relações sociais que elaborava, através da linguagem que conjuntamente criava também, a tempos que não são mais justapostos, tempos que são superpostos, isto é, aquele momento que o capitalismo entroniza, no qual há uma tendência à internacionalização de tudo e que vai se realizar plenamente nos tempos dos quais somos nós contemporâneos, onde há uma verdadeira mundialização.

Esse momento no qual vivemos, para repetir Chesnaux, é de uma sociedade sincrônica, integral, na qual o homem vive sob a obsessão do tempo, sociedade essa que é, ao mesmo tempo, cronofágica. Nessa sociedade cronofágica, à qual o tempo cede, nós encontraremos a cidade, tal como descrita por Baillard, no seu Cronópolis: dizia ele que, no seu esplendor, essa cidade era como um organismo fantasticamente complexo. Transportar a cada dia quinze milhões de empregados de escritório, manter o serviço de eletricidade, de água, de televisão, administrar essa nossa população, tudo isso dependia de um só fator: o tempo! Esse organismo não poderia subsistir senão sincronizando estritamente cada passo, cada refeição, cada chamada telefônica. Daí, houve necessidade de descongestionar os horários, segundo a zona da cidade. Os carros tinham placas de cores diferentes, de acordo com o horário em que podiam circular, e assim o sistema se generalizou. Só se podia ligar a máquina de lavar, postar uma carta ou tomar um banho, durante uma faixa determinada de tempo.

Um sistema de cartas coloridas e uma série de quadros publicados a cada dia, assim como programas de televisão, permitiam a cada pessoa sua localização dentro daquela faixa de tempo. Caso contrário, os fusíveis saltavam e a recuperação do sistema seria muito cara. No edifício que, antigamente, era um dos maiores parlamentos do mundo, isto é, o lugar onde se faziam leis, nesse décor, de estilo gótico perpendicular, uma espécie de ministério do tempo estava pouco a pouco se constituindo, em torno de um relógio gigantesco. Os programadores eram, de fato, os senhores absolutos da cidade. E a totalidade da existência de cada um era impressa nos boletins expedidos a cada mês pelo Ministério do Tempo.

Num retrato de uma obra orientada para o futuro, vemos o retrato das cidades em que vivemos. São Paulo que conheci quando jovem tinha relógios, mas aqueles relógios eram apenas uma mostra da modernidade. São Paulo ainda não era uma grande cidade, mas imitava os grandes centros para parecer também uma grande cidade. Nesse entretempo, os relógios desapareceram de São Paulo, e reapareceram agora, quando São Paulo se torna cronópolis. São Paulo se torna cronópolis como qualquer outra grande cidade do mundo, ao mesmo tempo em que as assincronias e as dessincronias se estabelecem. O império do tempo é muito grande sobre nós, mas é, sobre nós, diferentemente estabelecido. Nós, homens, não temos o mesmo comando do tempo na cidade; as firmas não o têm, assim como as intituições também não o têm. Isso quer dizer que, paralelamente a um tempo que é sucessão, temos um tempo dentro do tempo, um tempo contido no tempo, um tempo que é comandado, aí sim, pelo espaço.

Nesse momento em que o tempo aparece como havendo dissolvido o espaço, e algumas pessoas o descreveram assim, a realidade é exatamente oposta. O espaço impede que o tempo se dissolva e o qualifica de maneira extremamente diversa para cada ator. Certo que Kant escreveu também que o espaço aparece como uma estrutura de coordenação desses tempos diversos. O espaço permite que pessoas, instituições e firmas com temporalidades diversas, funcionem na mesma cidade, não de modo harmonioso, mas de modo harmônico. Também atribui a cada indivíduo, a cada classe social, a cada firma, a cada tipo de firma, a cada instituição, a cada tipo de instituição, formas particulares de comando e de uso do tempo, formas particulares de comando e de uso do espaço. Não fosse assim, a cidade não permitiria, como São Paulo permite, a convivência de pessoas pobres com pessoas ricas, de firmas poderosas e firmas fracas, de instituições dominantes e de instituições dominadas. Isso é possível porque há um tempo dentro do tempo, quer dizer, o recorte sequencial do tempo; nós temos um outro recorte, que é aquele que aparece como espaço.

Essa temporalização, digamos assim, prática, como Althusser havia sugerido, aparece nos contextos, que é o que a nós geógrafos interessa estudar, os contextos, a sucessão de contextos, onde o tempo, à imagem de Einstein, se confunde com o espaço, é espaço. O espaço é tempo, coisa que somente é possível através desse trabalho de empiria que nos é admissível, concebendo a técnica como tempo, incluindo entre as técnicas, não apenas as técnicas da vida material, mas as técnicas da vida social, que vão nos permitir a interpretação de contextos sucessivos. De tal maneira que o espaço aparece como coordenador dessas diversas organizações do tempo, o que permite, por conseguinte, nesse espaço tão diverso, essas temporalidades que coabitam no mesmo momento histórico.

É esta a pesquisa que eu desejaria realizar, não sei se poderei fazê-la, estou trazendo para discussão aqui neste seminário de trabalho, para ver se há viabilidade. De tal maneira que não teríamos apenas, como Fernand Braudel, nosso mestre, que foi o fundador da escola de História e Geografia da USP, as noções de tempo longo e de tempo curto. Eu, modestamente, proporia que ao lado dos tempos curto e longo, falássemos de tempos rápidos e tempos lentos.

A cidade é o palco de atores os mais diversos: homens, firmas, instituições, que nela trabalham conjuntamente. Alguns movimentam-se segundo tempos rápidos, outros, segundo tempos lentos, de tal maneira que a materialidade que possa parecer como tendo uma única indicação, na realidade não a tem, porque essa materialidade é atravessada por esses atores, por essa gente, segundo os tempos, que são lentos ou rápidos. Tempo rápido é o tempo das firmas, dos indivíduos e das instituições hegemônicas e tempo lento é o tempo das instituições, das firmas e dos homens hegemonizados.

A economia pobre trabalha nas áreas onde as velocidades são lentas. Quem necessita de velocidades rápidas é a economia hegemônica, são as firmas hegemônicas. É para esta classe que tem significação uma avenida como a dos Bandeirantes, ou estradas como a dos Bandeirantes e a Anhanguera, que são estradas que sobretudo interessam aos agentes hegemônicos e às pessoas ricas que usam melhor, do seu ponto de vista, essas estradas. Do aeroporto ao centro da cidade vai-se muito depressa, criam-se condições materiais para que o tempo gasto na viagem seja curto. Já entre os bairros vai-se mais devagar, no sentido de que não há uma materialidade que favoreça o tempo rápido.

Aqui, a materialidade impõe um tempo lento. Isso quer dizer que os pobres vivem dentro da cidade sob tempos lentos. São temporalidades concomitantes e convergentes que têm como base o fato de que os objetos também têm uma temporalidade, os objetos também impõem um tempo aos homens. A partir do momento em que eu crio objetos, os deposito num lugar e eles passam a se conformar a esse lugar, a dar, digamos assim, a cara do lugar, esses objetos impõem à sociedade ritmos, formas temporais do seu uso, das quais os homens não podem se furtar e que terminam, de alguma maneira, por dominá-los. Não naquele sentido a que Maffesoli se reportou, quando disse que os objetos deixaram de ser obedientes e passaram a nos comandar. Os objetos nos comandam de alguma maneira, mas esse comando dos objetos sobre o tempo consagra, no meu modo de ver, essa união entre o espaço e o tempo, tal como nós geógrafos o vemos, mas, evidentemente não o espaço e o tempo dos filósofos tout court. Era o que eu tinha a dizer, pedindo ajuda e sugestões para o projeto de pesquisa.

Sobre o autor:

Milton Santos foi professor titular de Departamento de Geografia, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, falecido em 24 de junho de 2001.

Fonte:

Texto extraído da transcrição da conferência do autor na mesa-redonda “O tempo na Filosofia e na História”, promovida pelo Grupo de Estudos sobre o Tempo do Instituto de Estudos Avançados da USP em 29 de maio de 1989. A transcrição completa foi publicada na Coleção Documentos, série Estudos sobre o Tempo, fascículo 2, em fevereiro de 2001. Divulgado por:

www.revistaprosaversoearte.com

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“Como superar o apartheid à brasileira”, no Dia da Consciência Negra, a contundente reflexão de Milton Santos https://observatoriodaevangelizacao.com/como-superar-o-apartheid-a-brasileira-no-dia-da-consciencia-negra-a-palavra-do-prof-milton-santos/ Wed, 20 Nov 2019 10:16:51 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=33316 [Leia mais...]]]> O Evangelho, e portanto o autêntico evangelizar igualmente, provoca, desde a experiência do amor de Deus por nós, adesão a uma postura ética jesuânica (como contemplamos na práxis de Jesus e a interpretamos no horizonte de nossa cultura). Isso significa assumir o cultivo da conversão ao projeto de Deus e contínua vigilância crítica e autocrítica, deixando-se mover pela compaixão que se faz empatia, solidariedade fraterna, misericórdia e compromisso com a luta pela libertação, contra todas as formas de violência e exclusão social. Como Jesus, na contramão dos interesses dos poderosos de seu tempo, que veio “para que todos tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10, 10), o cristão, como seu discípulo ou discípula, é alguém pessoalmente empenhado, e de mãos dadas com todas as forças sociais, na construção de outra sociedade possível ou, fundamentalmente, ele não é cristão.

Para o Dia da Consciência Negra, a contundente memória de uma das provocações éticas do grande geógrafo social. Para ele, racismo em nosso país tem indecente peculiaridade: aqui, os carrascos é que são os ressentidos. Escolas podem ser contraponto — por isso, são tão temidas.

Pode-se dizer, como fazem os que se deliciam com jogos de palavras, que aqui não há racismo (à moda sul-africana ou americana) ou preconceito ou discriminação, mas não se pode esconder que há diferenças sociais e econômicas estruturais e seculares, para as quais não se buscam remédios. A naturalidade com que os responsáveis encaram tais situações é indecente, mas raramente é adjetivada dessa maneira. Trata-se, na realidade, de uma forma do apartheid à brasileira, contra a qual é urgente reagir se realmente desejamos integrar a sociedade brasileira de modo que, num futuro próximo, ser negro no Brasil seja, também, ser plenamente brasileiro no Brasil.

Confira:

Por Milton Santos

(Este texto do prof. Milton Santos foi publicado no GGN, em 13/05/2001 e quase duas décadas depois revela a sua atualidade.)

Há uma frequente indagação sobre como é ser negro em outros lugares, forma de perguntar, também, se isso é diferente de ser negro no Brasil. As peripécias da vida levaram-nos a viver em quatro continentes, Europa, Américas, África e Ásia, seja como quase transeunte, isto é, conferencista, seja como orador, na qualidade de professor e pesquisador. Desse modo, tivemos a experiência de ser negro em diversos países e de constatar algumas das manifestações dos choques culturais correspondentes. Cada uma dessas vivências foi diferente de qualquer outra, e todas elas diversas da própria experiência brasileira. As realidades não são as mesmas.

Aqui, o fato de que o trabalho do negro tenha sido, desde os inícios da história econômica, essencial à manutenção do bem-estar das classes dominantes deu-lhe um papel central na gestação e perpetuação de uma ética conservadora e desigualitária.

Os interesses cristalizados produziram convicções escravocratas arraigadas e mantêm estereótipos que ultrapassam os limites do simbólico e têm incidência sobre os demais aspectos das relações sociais. Por isso, talvez ironicamente, a ascensão, por menor que seja, dos negros na escala social sempre deu lugar a expressões veladas ou ostensivas de ressentimentos (paradoxalmente contra as vítimas). Ao mesmo tempo, a opinião pública foi, por cinco séculos, treinada para desdenhar e, mesmo, não tolerar manifestações de inconformidade, vistas como um injustificável complexo de inferioridade, já que o Brasil, segundo a doutrina oficial, jamais acolhera nenhuma forma de discriminação ou preconceito. 

500 anos de culpa

Agora, chega o ano 2000 e a necessidade de celebrar conjuntamente a construção unitária da nação. Então é ao menos preciso renovar o discurso nacional racialista. Moral da história: 500 anos de culpa, 1 ano de desculpa. Mas as desculpas vêm apenas de um ator histórico do jogo do poder, a Igreja Católica! O próprio presidente da República [Fernando Henrique Cardoso, na época] considera-se quitado porque nomeou um bravo general negro para a sua Casa Militar e uma notável mulher negra para a sua Casa Cultural. Ele se esqueceu de que falta nomear todos os negros para a grande Casa Brasileira. Por enquanto, para o ministro da Educação, basta que continuem a frequentar as piores escolas e, para o ministro da Justiça, é suficiente manter reservas negras como se criam reservas indígenas.

A questão não é tratada eticamente. Faltam muitas coisas para ultrapassar o palavrório retórico e os gestos cerimoniais e alcançar uma ação política consequente.

Ou os negros deverão esperar mais outro século para obter o direito a uma participação plena na vida nacional? Que outras reflexões podem ser feitas, quando se aproxima o aniversário da Abolição da Escravatura, uma dessas datas nas quais os negros brasileiros são autorizados a fazer, de forma pública, mas quase solitária, sua catarse anual? 

Hipocrisia permanente

No caso do Brasil, a marca predominante é a ambivalência com que a sociedade branca dominante reage, quando o tema é a existência, no país, de um problema negro. Essa equivocação é, também, duplicidade e pode ser resumida no pensamento de autores como Florestan Fernandes e Octavio Ianni, para quem, entre nós, feio não é ter preconceito de cor, mas manifestá-lo. Desse modo, toda discussão ou enfrentamento do problema torna-se uma situação escorregadia, sobretudo quando o problema social e moral é substituído por referências ao dicionário. Veja-se o tempo politicamente jogado fora nas discussões semânticas sobre o que é preconceito, discriminação, racismo e quejandos, com os inevitáveis apelos à comparação com os norte-americanos e europeus. Às vezes, até parece que o essencial é fugir à questão verdadeira: ser negro no Brasil o que é?

Talvez seja esse um dos traços marcantes dessa problemática: a hipocrisia permanente, resultado de uma ordem racial cuja definição é, desde a base, viciada. Ser negro no Brasil é frequentemente ser objeto de um olhar vesgo e ambíguo. Essa ambiguidade marca a convivência cotidiana, influi sobre o debate acadêmico e o discurso individualmente repetido é, também, utilizado por governos, partidos e instituições.

Tais refrões cansativos tornam-se irritantes, sobretudo para os que nele se encontram como parte ativa, não apenas como testemunha. Há, sempre, o risco de cair na armadilha da emoção desbragada e não tratar do assunto de maneira adequada e sistêmica.

Marcas visíveis

Que fazer? Cremos que a discussão desse problema poderia partir de três dados de base: a corporeidade, a individualidade e a cidadania.

A corporeidade implica dados objetivos, ainda que sua interpretação possa ser subjetiva; a individualidade inclui dados subjetivos, ainda que possa ser discutida objetivamente. Com a verdadeira cidadania, cada qual é o igual de todos os outros e a força do indivíduo, seja ele quem for, iguala-se à força do Estado ou de outra qualquer forma de poder: a cidadania define-se teoricamente por franquias políticas, de que se pode efetivamente dispor, acima e além da corporeidade e da individualidade, mas, na prática brasileira, ela se exerce em função da posição relativa de cada um na esfera social.

Costuma-se dizer que uma diferença entre os Estados Unidos e o Brasil é que lá existe uma linha de cor e aqui não. Em si mesma, essa distinção é pouco mais do que alegórica, pois não podemos aqui inventar essa famosa linha de cor. Mas a verdade é que, no caso brasileiro, o corpo da pessoa também se impõe como uma marca visível e é frequente privilegiar a aparência como condição primeira de objetivação e de julgamento, criando uma linha demarcatória, que identifica e separa, a despeito das pretensões de individualidade e de cidadania do outro. Então, a própria subjetividade e a dos demais esbarram no dado ostensivo da corporeidade cuja avaliação, no entanto, é preconceituosa.

A individualidade é uma conquista demorada e sofrida, formada de heranças e aquisições culturais, de atitudes aprendidas e inventadas e de formas de agir e de reagir, uma construção que, ao mesmo tempo, é social, emocional e intelectual, mas constitui um patrimônio privado, cujo valor intrínseco não muda a avaliação extrínseca, nem a valoração objetiva da pessoa, diante de outro olhar.

No Brasil, onde a cidadania é, geralmente, mutilada, o caso dos negros é emblemático. Os interesses cristalizados, que produziram convicções escravocratas arraigadas, mantêm os estereótipos, que não ficam no limite do simbólico, incidindo sobre os demais aspectos das relações sociais. Na esfera pública, o corpo acaba por ter um peso maior do que o espírito na formação da socialidade e da sociabilidade.

Peço desculpas pela deriva autobiográfica. Mas quantas vezes tive, sobretudo neste ano de comemorações, de vigorosamente recusar a participação em atos públicos e programas de mídia ao sentir que o objetivo do produtor de eventos era a utilização do meu corpo como negro – imagem fácil – e não as minhas aquisições intelectuais, após uma vida longa e produtiva. Sem dúvida, o homem é o seu corpo, a sua consciência, a sua socialidade, o que inclui sua cidadania. Mas a conquista, por cada um, da consciência não suprime a realidade social de seu corpo nem lhe amplia a efetividade da cidadania. Talvez seja essa uma das razões pelas quais, no Brasil, o debate sobre os negros é prisioneiro de uma ética enviesada. E esta seria mais uma manifestação da ambiguidade a que já nos referimos, cuja primeira consequência é esvaziar o debate de sua gravidade e de seu conteúdo nacional.

Olhar enviesado

Enfrentar a questão seria, então, em primeiro lugar, criar a possibilidade de reequacioná-la diante da opinião, e aqui entra o papel da escola e, também, certamente, muito mais, o papel frequentemente negativo da mídia, conduzida a tudo transformar em “faits-divers”, em lugar de aprofundar as análises. A coisa fica pior com a preferência atual pelos chamados temas de comportamento, o que limita, ainda mais, o enfrentamento do tema no seu âmago. E há, também, a displicência deliberada dos governos e partidos, no geral desinteressados do problema, tratado muito mais em termos eleitorais que propriamente em termos políticos. Desse modo, o assunto é empurrado para um amanhã que nunca chega.

Ser negro no Brasil é, pois, com frequência, ser objeto de um olhar enviesado. A chamada boa sociedade parece considerar que há um lugar predeterminado, lá em baixo, para os negros e assim tranquilamente se comporta. Logo, tanto é incômodo haver permanecido na base da pirâmide social quanto haver “subido na vida”.

Pode-se dizer, como fazem os que se deliciam com jogos de palavras, que aqui não há racismo (à moda sul-africana ou americana) ou preconceito ou discriminação, mas não se pode esconder que há diferenças sociais e econômicas estruturais e seculares, para as quais não se buscam remédios. A naturalidade com que os responsáveis encaram tais situações é indecente, mas raramente é adjetivada dessa maneira. Trata-se, na realidade, de uma forma do apartheid à brasileira, contra a qual é urgente reagir se realmente desejamos integrar a sociedade brasileira de modo que, num futuro próximo, ser negro no Brasil seja, também, ser plenamente brasileiro no Brasil.

(A adaptação e os grifos são nossos)

Fonte:

www.outraspalavras.net

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O papel da educação na reflexão de Milton Santos https://observatoriodaevangelizacao.com/o-papel-da-educacao-na-reflexao-de-milton-santos/ Fri, 09 Jun 2017 10:00:00 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=19450 [Leia mais...]]]> Evangelizar implicar testemunhar e anunciar a boa nova do Reino e a possibilidade de sermos seres humanos novos, ou seja, homens e mulheres transformados pela experiência gratuita do amor de Deus. Trata-se, portanto, de um compromisso com a concretização histórica do projeto de Deus, revelado na vida de Jesus, por palavras e ações. Não há evangelização sem participação na construção de “outra sociedade possível”, fundada no bem viver, na prática da justiça inclusiva e no cuidado com a casa comum. A nova sociedade não será construída sem concretizarmos uma educação capaz de formar cidadãos integrais e indivíduos fortes. Nesses tempos sombrios de (anti)reforma da Educação, vale a pena deixar-se interpelar pela reflexão de Milton Santos:

Os deficientes cívicos

Hoje, sob o pretexto de que é preciso formar os estudantes para obter um lugar num mercado de trabalho afunilado, o saber prático tende a ocupar todo o espaço da escola, enquanto o saber filosófico é considerado como residual ou mesmo desnecessário, uma prática que, a médio prazo, ameaça a democracia, a República, a cidadania e a individualidade”.

Em tempos de globalização, a discussão sobre os objetivos da educação é fundamental para a definição do modelo de país em que viverão as próximas gerações.

roda-conversa

Em cada sociedade, a educação deve ser concebida para atender, ao mesmo tempo, ao interesse social e ao interesse dos indivíduos. É da combinação desses interesses que emergem os seus princípios fundamentais e são estes que devem nortear a elaboração dos conteúdos do ensino, as práticas pedagógicas e a relação da escola com a comunidade e com o mundo.

O interesse social se inspira no papel que a educação deve jogar na manutenção da identidade nacional, na ideia de sucessão das gerações e de continuidade da nação, na vontade de progresso e na preservação da cultura. O interesse individual se revela pela parte que é devida à educação na construção da pessoa, em sua inserção afetiva e intelectual, na sua promoção pelo trabalho, levando o indivíduo a uma realização plena e a um enriquecimento permanente. Juntos, o interesse social e o interesse individual da educação devem também constituir a garantia de que a dinâmica social não será excludente.

Em todos os casos a sociedade será sempre tomada como um referente, e, como ela é sempre um processo e está sempre mudando, o contexto histórico acaba por ser determinante dos conteúdos da educação e da ênfase a atribuir aos seus diversos aspectos, mesmo se os princípios fundamentais permanecem intocados ao longo do tempo. Foi dessa forma que se deu a evolução da ideia e da prática da educação durante os últimos séculos, paralelamente à busca de formas de convivência civilizada, alicerçadas em uma solidariedade social cada vez mais sofisticada.

As modalidades sucessivas da democracia como regime político, social e econômico levaram, no após guerra, à social-democracia. A história da civilização se confundiria com a busca, sempre renovada, e o encontro das formas práticas de atingir aqueles mencionados princípios fundamentais da educação, sempre a partir de uma visão filosófica e abrangente do mundo.

Esse esforço, para o qual contribuíram filósofos, pedagogos e homens de Estado, acaba por erigir como pilares centrais do sistema educacional: o ensino universal (isto é, concebido para atingir a todas as pessoas), igualitário (como garantia de que a educação contribua a eliminar desigualdades), progressista (desencorajando preconceitos e assegurando uma visão de futuro).

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Daí, os postulados indispensáveis de um ensino público, gratuito e leigo (esta última palavra sendo usada como sinônimo de ausência de visões particularistas e segmentadas do mundo) e, dessa forma, uma escola apta a formar concomitantemente cidadãos integrais e indivíduos fortes. Aliás, foram essas as bases da educação republicana, na França e em outros países europeus, baseada na noção de solidariedade social exercida coletivamente como um anteparo, social e juridicamente estabelecido, às tentações da barbárie.

A globalização, como agora se manifesta em todas as partes do planeta, funda-se em novos sistemas de referência, em que noções clássicas, como a democracia, a república, a cidadania, a individualidade forte, constituem matéria predileta do marketing político, mas, graças a um jogo de espelhos, apenas comparecem como retórica, enquanto são outros os valores da nova ética, fundada num discurso enganoso, mas avassalador.

Em tais circunstâncias, a ideia de emulação é compulsoriamente substituída pela prática da competitividade, o individualismo como regra de ação erige o egoísmo como comportamento quase obrigatório, e a lei do interesse sem contrapartida moral supõe como corolário a fratura social e o esquecimento da solidariedade.

O mundo do pragmatismo triunfante é o mesmo mundo do “salve-se quem puder”, do “vale-tudo”, justificados pela busca apressada de resultados cada vez mais autocentrados, por meio de caminhos sempre mais estreitos, levando ao amesquinhamento dos objetivos, por meio da pobreza das metas e da ausência de finalidades. O projeto educacional atualmente em marcha é tributário dessas lógicas perversas. Para isso, sem dúvida, contribuem: a combinação atual entre a violência do dinheiro e a violência da informação, associadas na produção de uma visão embaralhada do mundo; a perplexidade diante do presente e do futuro; um impulso para ações imediatas que dispensam a reflexão, essa cegueira radical que reforça as tendências à aceitação de uma existência instrumentalizada.

É nesse campo de forças e a partir dessa caldo de cultura que se originam as novas propostas para a educação, as quais poderíamos resumir dizendo que resultam da ruptura do equilíbrio, antes existente, entre uma formação para a vida plena, com a busca do saber filosófico, e uma formação para o trabalho, com a busca do saber prático.

Esse equilíbrio, agora rompido, constituía a garantia da renovação das possibilidades de existência de indivíduos fortes e de cidadãos íntegros, ao mesmo tempo em que se preparavam as pessoas para o mercado. Hoje, sob o pretexto de que é preciso formar os estudantes para obter um lugar num mercado de trabalho afunilado, o saber prático tende a ocupar todo o espaço da escola, enquanto o saber filosófico é considerado como residual ou mesmo desnecessário, uma prática que, a médio prazo, ameaça a democracia, a República, a cidadania e a individualidade. Corremos o risco de ver o ensino reduzido a um simples processo de treinamento, a uma instrumentalização das pessoas, a um aprendizado que se exaure precocemente ao sabor das mudanças rápidas e brutais das formas técnicas e organizacionais do trabalho exigidas por uma implacável competitividade.

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Daí, a difusão acelerada de propostas que levam a uma profissionalização precoce, à fragmentação da formação e à educação oferecida segundo diferentes níveis de qualidade, situação em que a privatização do processo educativo pode constituir um modelo ideal para assegurar a anulação das conquistas sociais dos últimos séculos. A escola deixará de ser o lugar de formação de verdadeiros cidadãos e tornar-se-á um celeiro de deficientes cívicos.

É a própria realidade da globalização – tal como praticada atualmente – que está no centro desse debate, porque com ela se impuseram ideias sobre o que deve ser o destino dos povos, mediante definições ideológicas sobre o crescimento da economia, como a chamada competitividade entre os países. As propostas vigentes para a educação são uma consequência, justificando a decisão de adaptá-la para que se torne ainda mais instrumental à aceleração do processo globalitário. O debate deve ser retomado pela raiz, levando a educação a reassumir aqueles princípios fundamentais com que a civilização assegurou a sua evolução nos últimos séculos – os ideais de universalidade, igualdade e progresso -, de modo que ela possa contribuir para a construção de uma globalização mais humana, em vez de aceitarmos que a globalização perversa, tal como agora se verifica, comprometa o processo de formação das novas gerações.

(Os grifos são nossos)

Fonte

SANTOS, Milton. Deficientes Cívicos. In: RIBEIRO, Wagner Costa (Org.). O país distorcido: o Brasil, a globalização e a cidadania. São Paulo: Publifolha, 2002. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fol/brasil500/dc_3_9.htm>.

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