Maria Clara Bingemer – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com Mon, 31 May 2021 12:54:13 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.4 https://i0.wp.com/observatoriodaevangelizacao.com/wp-content/uploads/2024/04/cropped-logo.png?fit=32%2C32&ssl=1 Maria Clara Bingemer – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com 32 32 232225030 Antes que termine Maio…, Com a palavra a teóloga Maria Clara Bingemer https://observatoriodaevangelizacao.com/antes-que-termine-maio-com-a-palavra-a-teologa-maria-clara-bingemer/ Mon, 31 May 2021 12:54:13 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=39612 [Leia mais...]]]>
Pintura de Gregorio Marinaro – 2007

Falamos de Maria, mãe de Jesus, de vacina, bem comum e esperança de todos. E o mês de maio já está acabando.  O Dia das Mães ficou para trás e não falamos sobre essa experiência humana fundamental que é a maternidade.  Transitando entre o mais horizontal e contingentemente biológico e o transcendente que lhe dá estatura de quase milagre, antes que termine maio, não posso deixar de escrever sobre maternidade. 

Sempre de fundamental importância, chamando a atenção das religiões, das igrejas e do pensar acadêmico, a maternidade hoje encontra uma nova e potente analogia: a terra. Nossa Mãe Terra, como diz o Papa Francisco em sua encíclica Laudato Si, de 2015.  Pacha Mama, Nana e outros muitos nomes pelos quais é venerada a terra em diversas religiões: andinas, afroameríndias e outras. 

Em um momento como o que vivemos, quando a espécie humana sente aterrorizada, pesando sobre sua cabeça, a ameaça da extinção, é importante voltar-se para a fonte da vida, que se encontra no feminino e muito concreta e tangivelmente no corpo feminino. Criado capaz da maternidade, de gerar outro corpo, carregá-lo,  trazê-lo ao mundo, alimentá-lo com o leite que sai de seu corpo e criá-lo para que a vida se multiplique, a fim de que o povo ganhe mais filhos e a fecundidade, e não a morte, tenha a última palavra. 

A experiência de que somos Terra constituiu a matriz da autocompreensão da humanidade desde que o mundo é mundo e o homo sapiens tomou consciência disso. Essa experiência matricial produziu uma espiritualidade e uma política configuradas nas instituições matriarcais.

As mulheres são os eixos organizacionais da sociedade e da cultura. Surgiram sociedades sagradas centradas e organizadas em torno da primordialidade da vida, que deveria ser cuidada, protegida e reverenciada.

A Mãe Terra carrega a memória, as origens, a nostalgia da integração e da plenitude. Rememora um passado histórico e real, que urge ser resgatado e ganhar validade hoje, aqui e agora. 

Pintura de Maya Telford

A terra é o corpo vivo da criação. E este corpo funciona como o corpo feminino. Tem ciclos, é receptivo e permeável à penetração do outro. Fertilizado, dá frutos. Quando atacado e agredido, seca e se esteriliza. É um corpo vivo, encontra sua analogia na abertura, receptividade e fecundidade que acontece no corpo da mulher, que é terra semeada e fecundada.

Como   dizem os versos inspirados de Chico Buarque e Milton Nascimento, a terra deve ser afagada, seus desejos conhecidos pelo Amante que por sua vez a deseja.  Como as fêmeas animais e humanas, ela tem ciclos, cios que são propícia estação de fecundar o chão. 

A Mãe Terra é um corpo aberto e potencialmente fecundo, pronto para gerar vida.  E nesta crise ecológica vem sendo esterilizada por sucessivas agressões e irresponsáveis ataques.  Em estreita conexão com o feminino e sua vulnerabilidade, que é potência de vida, a terra necessita ter seus clamores desesperados ouvidos e atendidos, seus desejos conhecidos e respondidos, seu corpo acariciado e protegido daqueles que veem nele apenas fonte de lucro e a exploram com ganância desmedida.

A maternidade é, hoje, inseparável da luta ecológica, como mostra a corrente de pensamento denominada Ecofeminismo.  A Mãe Terra, criação de Deus, vive hoje sugada em forças e recursos, agredida em potencialidades, diminuída em possibilidades, esmagada em força vital.  Não se respeitam seus ciclos, sua gravidez lenta e progressiva, seu útero fecundo.  Não se acaricia seu corpo para que suas sementes se abram em flores de beleza luxuriante ou em frutos turgidos de sumo. 

E, no entanto, qual mãe amorosa cuja realização é que seus filhos vivam plenamente continua a alimentá-los com o que lhe resta de vida, energia e forças.  Foi criada por Deus, que é Vida em Si mesmo, e assim sua única ciência e seu único agir é dar vida. No entanto, não é inesgotável ou eterna como Seu Criador.  Depende de nós, humanos, não esgotar seus recursos para que possa seguir sendo a mãe com seio túrgido que sacia a todos com os frutos de seu ser. 

Antes que termine maio, mas igualmente em todo tempo e em toda parte, é digno e justo louvar e reverenciar a maternidade, esse potencial biológico e natural, esse milagre transcendente e sagrado que é ser um corpo fecundado e habitado por outro que dele se alimenta e dele depende para viver. 

Sobre a autora:

Maria Clara Lucchetti Bingemer

Maria Clara Lucchetti Bingemer possui graduação em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1975), mestrado em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1985) e doutorado em Teologia Sistemática pela Pontifícia Universidade Gregoriana (1989). Atualmente é professora titular do Departamento de Teologia da PUC-Rio. Durante dez anos dirigiu o Centro Loyola de Fé e Cultura da mesma Universidade. Durante quatro anos foi avaliadora de programas de pós-graduação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Durante seis anos foi decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Tem experiência na área de Teologia, com ênfase em Teologia Sistemática, atuando principalmente nos seguintes temas: Deus, alteridade, mulher, violência, mística e espiritualidade. Tem pesquisado e publicado nos últimos anos sobre o pensamento da filósofa francesa Simone Weil. Atualmente seus estudos e pesquisas vão primordialmente na direção do pensamento e escritos de místicos contemporâneos e da interface entre Teologia e Literatura. Autora de muitos livros, dentre eles mencionamos as últimas publicações: BINGEMER, Maria Clara Lucchetti; VILAS BOAS, Alex (Org.). Teopoética: mística e poesia. 1. ed. Rio de Janeiro: PUC-Rio/ Paulinas, 2020; BINGEMER, Maria Clara Lucchetti. Love of God and love of justice. The cases of Dorothy Day and Simone Weil. 1. ed. Los Angeles: Marymount Institute Press/Tsehai publishers, 2019; Id. Santidade: chamado à humanidade. 1. ed. São Paulo: Paulinas, 2019; Id. “Mística e Testemunho em Koinonia”. São Paulo: Paulus, 2018, entre outros livros.

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“Fraternidade: a difícil construção ecumênica”, com a palavra a teóloga Maria Clara Bingemer https://observatoriodaevangelizacao.com/fraternidade-a-dificil-construcao-ecumenica-com-a-palavra-a-teologa-maria-clara-bingemer/ Mon, 01 Mar 2021 18:52:16 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=38513 [Leia mais...]]]> A Campanha da Fraternidade, lançada todos os anos pela CNBB durante o período da Quaresma, traz este ano uma bela novidade. Não apenas seu tema é o ecumenismo pensado amplamente, em termos de uma inclusão universal que conduza toda a humanidade à paz verdadeira cuja fonte é Cristo. Mas ela é ecumênica desde as origens. Seu texto-base foi pensado e preparado por uma equipe ecumênica, sob a responsabilidade do Conic (Conselho Nacional de Igrejas Cristãs)O sopro ecumênico, que busca a unidade, o diálogo e o amor, se fazem sentir ao longo de todo o texto e de suas propostas que soam como convite amoroso aos fiéis cristãos que desejam deixar para trás a divisão e construir a unidade. Uma unidade plena, universal, que só pode dar-se através da integração das diferenças, enriquecendo-se do que todos e cada um podem trazer.”

Confira:

FRATERNIDADE: A DIFÍCIL CONSTRUÇÃO ECUMÊNICA

Profª. Dra. Maria Clara Bingemer

A palavra ecumenismo encontra suas raízes na cultura grega e significa: mundo habitado. O conceito não pretendia avançar em questões demográficas ou estatísticas, mas carregava o belo sentido de povo civilizado, de cultura aberta em termos não apenas geográficos como também civilizacionais. O Cristianismo nascente adotou a ideia e o conceito, fazendo dos mesmos um ideal e uma missão: fazer habitável a obra de Deus, que é toda a criação, promovendo a unidade e a concórdia.

Desde muito cedo, a Igreja percebeu não apenas a necessidade dessa unidade como também o enorme desafio que significava construí-la a partir e por meio da diversidade. Os Concílios da Antiguidade procuraram superar propostas e doutrinas que dividiam a Igreja, e chegar a consensos que pudessem uni-la em termos de conteúdos da fé, para que fossem aceitos e praticados por todos os cristãos.

A história avançou e houve esforços de unidade, mas também ataques. Houve guerras de religião em que se matava em nome de Deus e empreendimento ideológicos e políticos unilaterais, nos quais tristemente cristãos chegaram a considerar prestar um serviço a Deus eliminando os que professavam religiões diferentes. E houve um momento em que os próprios cristãos se dividiram, permanecendo em campos opostos e considerando hereges e apóstatas os que entendiam e viviam a fé cristã em outros termos.

A partir dessa divisão entre cristãos surgiu o movimento ecumênico moderno, que fomentou o diálogo e a cooperação entre os cristãos, para fazer frente à evangelização em um mundo sempre mais secularizado e mais plural. O ecumenismo tornou-se uma iniciativa entre diversas denominações cristãs, na busca do diálogo e da unidade, de superar divergências e divisões históricas, culturais e mesmo doutrinais. Para isso, houve muito trabalho para aceitação da diversidade entre as igrejas já que todas buscam encontrar em Cristo seu ponto de unidade. Professam um só Credo, recebem um só Batismo, e veem cada vez com maior clareza que estar divididos é um escândalo e um contratestemunho.

Por parte da Igreja Católica, o Concílio Vaticano II é um marco por assumir para dentro do magistério oficial da Igreja Católica Apostólica Romana o desejo e o compromisso de aproximar-se sempre mais dos irmãos que adoram o mesmo Deus e reconhecem como Senhor o mesmo Cristo. Porém, mais longe ainda foi o Concílio, acompanhando um movimento que já se fazia sentir no campo religioso como um todo e na sociedade. Compreendeu que a caminhada ecumênica implica passar mesmo as fronteiras do cristianismo como tal e abraçar as outras religiões, que nomeiam Deus de forma diferente e organizam sua fé de outro modo.

O ecumenismo, portanto, nestas quase seis décadas que nos separam do Concílio Vaticano II, se alarga sempre mais, convertendo-se progressivamente em um macro ecumenismo. Com isso nada mais faz do que seguir fielmente o que o texto do documento mais importante do evento conciliar, a Constituição Gaudium et Spes diz: a Igreja quer ser perita em humanidade e não deseja que nada de humano lhe seja estranho. Portanto, para fazer um mundo habitado pelos filhos de Deus é preciso ampliar o horizonte além mesmo das fronteiras institucionais e religiosas e ir ao ser humano.

A Campanha da Fraternidade, lançada todos os anos pela CNBB durante o período da Quaresma, traz este ano uma bela novidade. Não apenas seu tema é o ecumenismo pensado amplamente, em termos de uma inclusão universal que conduza toda a humanidade à paz verdadeira cuja fonte é Cristo. Mas ela é ecumênica desde as origens. Seu texto-base foi pensado e preparado por uma equipe ecumênica, sob a responsabilidade do Conic (Conselho Nacional de Igrejas Cristãs).

O sopro ecumênico, que busca a unidade, o diálogo e o amor, se fazem sentir ao longo de todo o texto e de suas propostas que soam como convite amoroso aos fiéis cristãos que desejam deixar para trás a divisão e construir a unidade. Uma unidade plena, universal, que só pode dar-se através da integração das diferenças, enriquecendo-se do que todos e cada um podem trazer.

A isso aspira a Campanha da Fraternidade. Só pode haver fraternidade se for universal. E não à toa a palavra “católico” significa universal. A CNBB testemunha luminosamente seu desejo de ser plenamente universal – ou seja, católica – abrindo sua campanha, que acontece no momento de mais densa convergência de fé e testemunho, a todos os irmãos que comungam da fé em Jesus Cristo.

A CF 2021 em tempos de tanta divisão dá uma decisiva contribuição ao diálogo e uma real chance à paz. O lema da Campanha, tomado da epístola aos Efésios, diz: “Cristo é a nossa paz: do que era dividido fez uma unidade”. Superar as divisões e buscar a unidade com coragem e alegria, eis a conversão pedida a todo discípulo e discípula de Jesus Cristo nesta Quaresma.

(Os grifos são nossos!)

Sobre a autora:

Profa. dra. Maria Clara Lucchetti Bingemer

Maria Clara Lucchetti Bingemer possui graduação em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1975), mestrado em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1985) e doutorado em Teologia Sistemática pela Pontifícia Universidade Gregoriana (1989). Atualmente é professora titular do Departamento de Teologia da PUC-Rio. Durante dez anos dirigiu o Centro Loyola de Fé e Cultura da mesma Universidade. Durante quatro anos foi avaliadora de programas de pós-graduação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Durante seis anos foi decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Tem experiência na área de Teologia, com ênfase em Teologia Sistemática, atuando principalmente nos seguintes temas: Deus, alteridade, mulher, violência, mística e espiritualidade. Tem pesquisado e publicado nos últimos anos sobre o pensamento da filósofa francesa Simone Weil. Atualmente seus estudos e pesquisas vão primordialmente na direção do pensamento e escritos de místicos contemporâneos e da interface entre Teologia e Literatura. Autora de muitos livros, dentre eles mencionamos as últimas publicações: BINGEMER, Maria Clara Lucchetti; VILAS BOAS, Alex (Org.). Teopoética: mística e poesia. 1. ed. Rio de Janeiro: PUC-Rio/ Paulinas, 2020; BINGEMER, Maria Clara Lucchetti. Love of God and love of justice. The cases of Dorothy Day and Simone Weil. 1. ed. Los Angeles: Marymount Institute Press/Tsehai publishers, 2019; Id. Santidade: chamado à humanidade. 1. ed. São Paulo: Paulinas, 2019; Id. “Mística e Testemunho em Koinonia”. São Paulo: Paulus, 2018, entre outros livros.

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A marreta de Júlio, por Maria Clara Bingemer https://observatoriodaevangelizacao.com/a-marreta-de-julio-por-maria-clara-bingemer/ Sun, 21 Feb 2021 21:20:41 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=38246 [Leia mais...]]]> Muitos já ouviram falar no martelo de Nietzsche. Trata-se do penúltimo livro do famoso filósofo alemão, escrito pouco antes do perder a razão. O título remete a uma ópera de Wagner, “Crepúsculo dos ídolos”, que tem como subtítulo “Como filosofar com o martelo”.

A obra consiste em uma síntese de toda a obra do filósofo, que tem ao fundo uma declaração de guerra contra os ídolos antigos e novos do Ocidente, que obscurecem a mente humana com ilusões, tais como equívocos e tendências várias do pensar moderno e seus representantes. O martelo ou marreta nietzschiano pretende destroçar esses ídolos diversos, assim como, tocando-os e destrinchando-os com sua acurada crítica, comprovar que são ocos e vazios, carentes de consistência.

Aqui e agora, não é do martelo de Nietzsche que pretendo falar, embora a metáfora possa aplicar-se ao caso. O tema desta crônica é uma marreta empunhada não por um filósofo, mas por um sacerdote católico: o pe. Julio Lancelotti, coordenador da pastoral do povo da rua da diocese de São Paulo. Figura presente e incansável no atendimento aos moradores de rua, por ele chamados de irmãos, o padre aparece todos os dias nas redes sociais servindo misericordiosamente os pobres e ao mesmo tempo denunciando toda e qualquer instância que ameace prejudicá-los e aumentar ainda mais seu sofrimento.

Foram já inumeráveis as vezes em que o pe. Lancelotti postou fotos dos irmãos de rua, no rigor do inverno paulistano, sendo atacados com jatos de água fria, a fim de desocuparem espaços públicos; ou do rapa passando e confiscando todos os pertences com que os moradores da rua armavam sua precária habitação para passar a noite. Desta vez, a denúncia teve como personagens uma série de pedras pontiagudas que foram postas sob um viaduto situado no bairro do Tatuapé, na zona leste da cidade, e que pretendia evitar que moradores de rua colocassem colchões no local.

Pe. Julio primeiramente exibiu fotos das pedras que encheram as redes sociais deixando perplexos os internautas. Com palavras indignadas, denunciava o gesto cruel que retirava dos sem teto o único lugar onde poderiam descansar seus corpos mal alimentados e maltratados: o chão debaixo do viaduto, ao abrigo dos carros que transitam na via pública.

Em seguida, porém, resolveu fazer algo mais concreto: com uma marreta na mão passou a destruir e arrancar as pedras ali colocadas. E explicava seu gesto como pretendendo destruir as “pedras da injustiça”. Sua atitude profética e indignada inspirou fotógrafos e cartunistas vários. Os desenhos do padre com a marreta na mão derrubando as pedras encheram as redes e testemunharam como este gesto traduzia os sentimentos de muitos. O corajoso gesto do sacerdote era portador da indignação em que hoje vivemos neste país, que nos faz todos os dias acordar com vontade de empunhar uma marreta e destruir as pedras da opressão que se interpõem entre os cidadãos brasileiros, sobretudo os mais pobres, e seu direito à vida digna e plena.

O gesto e o comportamento de Júlio Lancelotti certamente não se coadunam muito com o estereótipo que se tem de um padre. Espera-se que o mesmo se atenha ao interior da igreja ou da paróquia, não se imiscuindo nos assuntos seculares ou materiais, cuidando apenas das almas dos fiéis.

Sucede que a tradição judaico-cristã, da qual o padre Lancelotti é digno representante, sempre teve entre seus quadros profetas que denunciaram em alto e bom som os dois grandes males que impediam o povo de viver plenamente a aliança com seu Deus: a injustiça e a idolatria. E inúmeras vezes aparecem na Bíblia hebraica as chamadas de atenção que esses mesmos profetas faziam contra os ídolos que tinham pés de barro e eram ocos como os que Nietzsche queria destruir com seu martelo. Na Bíblia Cristã, Jesus de Nazaré, que com tanto carinho tratava publicanos e pecadores, aparece no Templo de Jerusalém usando o chicote para repudiar o uso que fazem da casa de oração para comércio e lucro indevido.

A marreta de Júlio Lancelotti encontra-se, portanto, afinada com o melhor da tradição à qual pertence. Golpeando as pedras, chamou a atenção da opinião pública e a própria prefeitura tomou providências para retirá-las, concordando que o fato de as colocar havia sido equivocado. O espaço público voltou a abrir-se para os pobres. Se é escandaloso que não tenham lugar para viver e devam recorrer à rua para isso, que pelo menos possam ali colocar seus colchões e descansar seus corpos.

Ao Pe. Júlio vai nosso agradecimento por nos recordar constantemente que o Evangelho é um fogo que arde e queima, e não um analgésico que disfarça as dores e acalma falsamente as consciências.

(Os grifos são nossos)

Sobre a autora:

Profa. dra. Maria Clara Lucchetti Bingemer

Maria Clara Lucchetti Bingemer possui graduação em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1975), mestrado em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1985) e doutorado em Teologia Sistemática pela Pontifícia Universidade Gregoriana (1989). Atualmente é professora titular do Departamento de Teologia da PUC-Rio. Durante dez anos dirigiu o Centro Loyola de Fé e Cultura da mesma Universidade. Durante quatro anos foi avaliadora de programas de pós-graduação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Durante seis anos foi decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Tem experiência na área de Teologia, com ênfase em Teologia Sistemática, atuando principalmente nos seguintes temas: Deus, alteridade, mulher, violência, mística e espiritualidade. Tem pesquisado e publicado nos últimos anos sobre o pensamento da filósofa francesa Simone Weil. Atualmente seus estudos e pesquisas vão primordialmente na direção do pensamento e escritos de místicos contemporâneos e da interface entre Teologia e Literatura. Autora de muitos livros, dentre eles mencionamos as últimas publicações: BINGEMER, Maria Clara Lucchetti; VILAS BOAS, Alex (Org.). Teopoética: mística e poesia. 1. ed. Rio de Janeiro: PUC-Rio/ Paulinas, 2020; BINGEMER, Maria Clara Lucchetti. Love of God and love of justice. The cases of Dorothy Day and Simone Weil. 1. ed. Los Angeles: Marymount Institute Press/Tsehai publishers, 2019; Id. Santidade: chamado à humanidade. 1. ed. São Paulo: Paulinas, 2019; Id. “Mística e Testemunho em Koinonia”. São Paulo: Paulus, 2018, entre outros livros.

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Após a catástrofe, qual é a boa notícia?, com a palavra a teóloga Maria Clara Bingemer https://observatoriodaevangelizacao.com/apos-a-catastrofe-qual-e-a-boa-noticia-com-a-palavra-a-teologa-maria-clara-bingemer/ Wed, 16 Dec 2020 19:21:18 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=37088 [Leia mais...]]]> Maria Clara Lucchetti Bingemer, renomada teóloga e professora da PUC-Rio, ofereceu aos participantes de uma reunião promovida pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), no dia 25 de novembro de 2020, na qual participaram bispos, assessores das comissões episcopais e representantes de pastorais e organismos vinculados à CNBB, pistas interessantes para “um projeto de evangelização pós-pandemia, que inclua o aprendizado feito e projete para um futuro próximo o horizonte da missão que é pedida pelo Senhor a sua Igreja“. Confira o texto da teóloga brasileira:

Foto: Disponível no site da CNBB.

Após a catástrofe, qual é a boa notícia?

Maria Clara Lucchetti Bingemer

Estamos aqui para refletir tendo como horizonte o tempo que se seguirá à pandemia.  Mas estamos bem conscientes que ainda nos encontramos dentro da mesma. A pandemia não acabou e vivemos nesse momento todo um conjunto de perplexidades com seu aparente recrudescimento que leva a falarem em segunda onda e toda a disputa – por vezes imoral – sobre vacinas que muitas vezes contraria o que o papa Francisco tem repetido, que se trata de um bem comum.

Em todo caso, já temos uma suficiente experiência de estar imersos nesta pandemia, lutando contra um vírus de 5 mm que nos pôs de joelhos.  Uma humanidade que ainda guardava muito da arrogância da modernidade e da razão potente, que pensava em robótica, na transhumanidade e na pós-humanidade, de repente se vê varrida e impotente por um minúsculo vírus.

Aqui levantarei alguns pontos que me parecem pistas interessantes para eventualmente incluir em um projeto de evangelização pós-pandemia, que inclua o aprendizado feito e projete para um futuro próximo o horizonte da missão que é pedida pelo Senhor a sua Igreja.

1. Retomar o luto com olhar pascal

A primeira coisa me parece a evidencia de que não podemos fazer de conta que nada ocorreu e tudo voltará a ser como ante. Houve luto demais, dor demais, sofrimento em excesso que não pode ser ignorado, mas deve ser escutado, refletido, rezado para gerar vida.  Há que transformar a dor em sofrimento e incluir nela a dimensão da redenção. 

Para isso há que fazer, pelo menos, duas coisas:

a) a primeira é escutar as vítimas. Escutar os que perderam seres queridos e não puderam sequer enterrá-los. Escutar as mães que perderam filhos, os filhos que perderam pais, os que se despediram do marido, da amada na porta do hospital e nunca mais os puderam ver, enterrados que foram em sepultamentos coletivos, sem rituais, sem orações comunitárias, sem cânticos. É uma experiência brutalmente dolorosa essa, porque, mais do que uma experiência de luto, é uma experiência de nostalgia do luto não feito, que deixa uma ferida sangrando e um buraco aberto sem possível preenchimento.

b) a segunda, é consolar as vítimas. Como Igreja, somos chamados a ser agentes da consolação do Espírito Santo. Trazer o Consolador para perto dessas pessoas que viveram essa experiência dilacerante, ouvir as histórias de sua dor, deixa-las abrir seu coração ferido.  E talvez não tanto falar, mas rezar com elas, fazer silencio com elas. 

O querido amigo Henrique Peregrino, da Igreja da Trindade em Salvador Bahia, tem feito ao longo desta pandemia uma campanha chamada Silêncio pela dor. Em um momento onde, em alguns setores importantes do país, havia uma espécie de negação da dor, da gravidade da situação, um descaso com as mortes e com os efeitos devastadores da pandemia, esse silêncio grávido de amor e de esperança era a única resposta possível.

Henrique Peregrino.
(Foto: domínio público.)

Somos e queremos ser guardiães da esperança e por isso somos igualmente responsáveis pela esperança do povo de Deus. Essa pandemia golpeou duramente a capacidade de esperar do povo brasileiro que sempre foi dita como traço constitutivo de sua identidade. Brasileiro profissão esperança, dizia o musical que narrava a vida e obra do compositor Antonio Maria. É preciso que o brasileiro não perca o que de mais precioso tem: essa capacidade de esperar. De esperar contra toda esperança. De esperar mesmo em meio a tempestades como esta, contra vento e mar rebeldes. A Igreja tem um papel imprescindível nesse reforço da esperança, nesse cuidar da mecha que ainda fumega para que não se apague. Mas só pode fazê-lo passando pela porta estreita da dor e do luto a fim de viver plenamente a luz pascal que vem ao seu encontro.

2. Uma parceria mais estreita com a ciência

O caos que se apossou do Brasil com a chegada do coronavírus apresentou várias dimensões: sanitária, política, ideológica, econômica. No entanto, há igualmente uma outra dimensão, que eu chamaria aqui de caos do discurso pseudocientífico – em boa parte artificialmente produzido.

Enquanto os cientistas – médicos, pesquisadores, sanitaristas, técnicos em saúde – explicavam à população como se porta a doença, quais as medidas necessárias para combatê-la, outras vozes parecem interferir no processo dessa comunicação adotando uma linguagem que instaura a confusão.

A ciência é um dos motores do desenvolvimento da humanidade e da vida. Seu progresso tem sido responsável por grandes melhorias na vida humana, sobretudo no decurso do último século, ainda que os frutos desse progresso não tenham sido repartidos equitativamente pelo mundo. Por outro lado, o mau uso que muitas vezes é feito dos conhecimentos científicos foi, no mesmo século passado, causa das piores provações pelas quais a humanidade teve que passar. Por isso, ainda que o progresso da ciência que a racionalidade moderna possibilitou seja altamente positivo; ainda que se considere correta a afirmação de que a ciência é o motor do desenvolvimento em todas as frentes; os esforços feitos por muitos países e regiões do globo no domínio científico ainda permanecem muito aquém de um mínimo julgado desejável. E boa parte das razões para tal é a manipulação que interesses econômicos, políticos e ideológicos fazem contra a objetividade e a excelência que deve caracterizar toda ciência.

No momento em que explodiu a pandemia viral, a ciência – a medicina, a biologia, a infectologia e todas as áreas científicas que tratam da vida – ocuparam a linha de frente das atenções. Buscaram-se orientações, explicações, argumentos lógicos que ajudassem a administrar a tragédia que vivíamos.

Junta médica durante a pandemia da COVID-19.
(Foto: Domínio público.)

Por outro lado, competições ideológicas e embates políticos, muitas vezes se atravessaram no caminho do trabalho científico. E isso aconteceu por diversas formas: seja a do obscurantismo, que ataca retoricamente a liberdade de pesquisa científica, seja com políticas públicas retrógradas que cortam verbas e esvaziam institutos e laboratórios de pesquisa. Em um momento em que a crise ecológica atinge proporções nunca antes vistas, os impactos climáticos são minimizados, e os alertas emitidos pela comunidade científica desprezados como se não fossem evidências objetivas e sim opiniões casuais e não fundamentadas.

Com o Covid-19, a ciência voltou a ocupar seu papel de baluarte da verdade objetiva e verificável. Tornou-se um refúgio firme para uma sociedade assustada e vulnerabilizada pelo avanço descontrolado da doença e a subida dos números de vítimas fatais. A ciência é, hoje, a linha de frente no combate à pandemia. Fornece à população números, informações, percentagens que permitem ter um quadro do que se passa. E podem ser vistos ao mesmo tempo inúmeros laboratórios empenhados em encontrar remédios que tratem a doença causada pelo vírus, sequenciando o genoma do vírus em tempo recorde, buscando pelos caminhos da pesquisa apaixonada e responsável uma vacina.

Houve e há, no entanto, tentativas de travar esse trabalho, muitas delas invocando o nome de Deus. Contestaram-se os dados fornecidos pela ciência, contradisseram-se  informações precisas e objetivas e se deram orientações conflitantes à população. Afirmou-se que Deus salvará a todos do vírus, que o que os cientistas diziam é um exagero, e que o que há que fazer é orar porque Deus nos salvará do vírus. Desde sempre, em todas as religiões, mas muito concretamente nas religiões monoteístas e mais especificamente no judeu-cristianismo, Deus não se imiscui nos negócios humanos para interferir na ação da própria humanidade na resolução de seus problemas. O Espírito de Deus inspira, anima, orienta, consola, mas não toma as ferramentas das mãos da humanidade para resolver, em um passe de mágica, as dores e os problemas que essa própria humanidade está passando.

Toda tentativa ao longo da história de converter Deus em árbitro da ciência, impedindo-a de avançar, já foi suficientemente desmascarada e situada em seu devido lugar: é falsidade e embuste. Assim, governantes despóticos e irresponsáveis que buscam desautorizar os cientistas que dizem a verdade em meio a um momento grave como o que estamos vivendo terão que responder diante do tribunal da história. E também diante do tribunal divino, que fará cair os véus, desvelando suas tentativas de vendar os olhos do povo com ilusões e falácias, na sua mais atualizada forma: as fake news.

Em meio à pandemia, a comunidade científica tem construído uma rede sólida de informações, colocando a ciência na vanguarda das políticas de combate à pandemia. Assim, se pode combater o obscurantismo institucionalmente, usando de transparência e honestidade, atualizando constantemente as medidas adotadas e procurando adequar as condições da saúde às reais necessidades decorrentes da própria pandemia. E a fé não pode estar ausente dessa rede e desse diálogo.

Falar de Deus em tempos de coronavírus e nos tempos posteriores à pandemia implica dialogar com a ciência e deixar-lhe plena autonomia no campo e competência que lhe são próprios. Não misturar epistemologias ou querer tratar o que releva do campo do biológico com instrumentos falsamente espirituais que matam em vez de curar e alimentam políticas genocidas, empurrando as pessoas para o contágio e muito provavelmente para a morte.

Creio que um dos principais desafios para uma evangelização pós-pandemia será intensificar o diálogo fé e ciência, a fim de que os fieis vejam na ciência uma amiga, uma parceira com quem se devem ter uma relação equilibrada e madura e não uma ameaça a uma fé vacilante e infantil.

3. Mais espaço para a beleza

A pandemia trouxe para o cotidiano das pessoas, confinadas devido à ameaça do contágio do vírus, uma volta à linha de frente das expressões estéticas da música, da literatura, da arte e de todas as expressões da estética.  Vimos artistas tocando ou cantando nos balcões e nas praças vazias a fim de trazer beleza a pessoas exaustas e doloridas pelo confinamento e pela solidão.  Vimos grandes artistas partirem vítimas da COVID-19. O Brasil perdeu grandes artistas e escritores nesse período: Aldir Blanc, Rubem Fonseca…  Mas seu legado ficou. Seus textos, suas canções, sua lírica. Creio que são elementos preciosos para reencantar os corações das pessoas tão combalidas por esse flagelo que vivemos.

Creio que hoje a literatura e a arte são uma nova e preciosa hermenêutica para a teologia e o pensar e falar sobre Deus. Às vezes, onde os textos propriamente religiosos e pastorais não encontram pista de aterrissagem, as artes e a literatura e a poesia sim o encontram. Numa evangelização pós-pandemia portanto, somos desafiados a, além de nossos recursos tão infinitamente ricos, litúrgicos, textuais, imagéticos, lançar mão dos poetas, dos escritores, dos artistas plásticos, dos músicos, dos artistas de todas as especialidades para redescobrir o caminho ao coração das pessoas e ajudá-las a reencontrar sua jornada rumo à vida plena e à esperança.

Teologia e espiritualidade não podem dissociar-se sob pena de desvertebrar a primeira e banalizar a segunda. A teologia deve ser uma aventura espiritual concreta. Não somente uma “teopoética”, mas uma “teo-práxis” .  Mais precisamente ainda, uma “teo-poiética”.

Há, portanto, momentos e situações em que para entrar em contato com o Mistério que o habita sob a forma de desejo e sede, o ser humano recorre a linguagem poética para fazê-lo.  Se ainda restam dúvidas, basta voltar-se para a Bíblia. Ali podem ser encontrados diversos gêneros literários e o poético, o estético, o hínico, a invocação, o louvor, nos vem ao encontro em cada linha e em cada letra. É Ricoeur que nos adverte que através de todos estes gêneros e estilos, que são como um bordado multicor e complexo, passa um fio mais espesso, que é como uma medula vertebral, carregando uma revelação misteriosa e próxima: a revelação do mistério divino, personagem central do texto, a “coisa” do texto. Por trás do texto e dos gêneros –  profético, narrativo, prescritivo, sapiencial ou hínico – palpita a experiência com Alguém que se esconde e se mostra através da palavra, da música, do canto. Alguém que é mais que palavra, que é pessoa que se deixa experimentar como Mistério de encontro e amor.

Paul Ricoeur
(Foto: Domínio público.)

Assim sucede no Novo Testamento, por exemplo. As parábolas de Jesus são consideradas poéticas por mais de um autor e comentador. Ao serem analisadas, estão sujeitas a discussão sobre se a estética deve ser considerada independente do autor. Mas no caso de Jesus, essa dissociação não procede. Suas parábolas são reflexo de seu mundo interior, de sua compreensão do Reino. Segundo J. D. Crossan, “a obra de arte é a objetivação final da intuição poética, o que a obra aspira, em última instância, transmitir a alma dos outros é essa intuição poética que estava na alma do poeta”. Assim acontece com Jesus que toma elementos de seu contexto vital, com sua visão inspirada pelo Espírito Santo e transmite sua experiência de Deus aos discípulos e aos que o seguem. Assim, sua sensibilidade e sua profunda ligação e compromisso com a experiência que faz ao lado de sua criatividade e observação da realidade o levam a compreender e transmitir o que considera como mais importante: seu amor ao Pai e seu projeto do Reino. Por isso, sua fantasia criadora, sua imaginação inspirada, as parábolas que narra são determinantes para o sentido que comunica.

John Dominic Crossan
(Foto: Domínio público.)

Pensando em uma teopoética da sede de Deus que possa falar diretamente a mente e ao coração de nossos contemporâneos, importa não apenas recorrer a textos, canções, obras de arte explicitamente religiosas. Mas também e não menos, lançar mão de autores e obras que não atuam somente ou mesmo principalmente no campo da teologia, mas sim na arte, na literatura, no cinema, na imagem entendidos em seu sentido secular. Em sua arte e poética têm em comum com a teologia a sede de sentido para a vida, a sede de justiça, liberdade e vida plena e a fé na humanidade.

Tal questão pode encontrar uma provocação inicial na pergunta evangélica que os contemporâneos de Jesus fizeram sobre sua pessoa, ao ouvirem-no falar com um conhecimento e um “saber” diferente do “saber” dos filósofos e teólogos da época:  os escribas e fariseus: “De onde lhe vem o saber?” (Mt 13,54). Ao ouvir Jesus que ensinava com autoridade e que, assim fazendo, dava mostras de ser possuidor de um “saber” até então desconhecido, os sábios e doutores da época, assim como todos os que o ouviam, se questionavam sobre a origem desse saber que não conseguiam identificar.

O teólogos e os pastores são aí poetas da Palavra de Deus, seus bardos, seus cantores, que “não escolhem seu cantar, mas cantam o mundo que vêem” [1], que “ louva o que e pra ser louvado” [2] e que se se calam, cala-se a vida mesma, porque a vida, a vida mesma e todo um canto.[3] E se o cantor – o teólogo e o pastor como cantores do Mistério –  silenciarem, morrem de espanto a esperança, a luz e a alegria.  Os pobres ficam sozinhos, pois já não têm quem fale por eles.

O desgaste das fórmulas, o envelhecimento das rubricas, a rigidez dos documentos, tudo isso conclama a novas formas, novos poemas, nova teopoética que seja ao mesmo tempo teopoiética. Agora trata-se de uma teopoiética que recupere o aprendizado feito com a pandemia e ajude a humanidade a se repensar e entrar em um novo momento de sua longa história.

4. Revalorizar o espaço doméstico

O cardeal José Tolentino propõe nova configuração para a Igreja: seu deslocamento em parte do templo para a casa. E tal êxodo, em lugar de ser um problema e um obstáculo para o pleno funcionamento da comunidade eclesial, representa uma fantástica oportunidade de reencontrar sua fonte mais pura e suas origens mais genuínas.

Cardeal José Tolentino de Mendonça
(Foto: Domínio público.)

Quando o Nazareno foi morto na cruz, uma imensa desolação se apoderou dos discípulos. Muitos entraram em dispersão, não encontrando alívio para sua dor e sua perda. No entanto, a boa nova da Ressurreição deu-lhes força de recomeçar a viver. E esse recomeço, que marca o nascimento dessa comunidade chamada Igreja, foi marcado pela união de todos em situação de extrema fragilidade. Sem conseguir abertura na sinagoga, perseguida pelo poder religioso e político, a comunidade viu-se convidada a abraçar sua própria vulnerabilidade.

E que espaço encontrou para celebrar, expressar, viver profundamente essa situação de ameaça e fraqueza? As casas. Não havia lugar para a recém-nascida comunidade no templo. As casas das famílias passaram a ser esses templos. Hoje, em tempos de igrejas fechadas, ou que vão se abrindo aos poucos, às vezes desafiando o perigo da doença e do contágio, os cristãos se viram levados a ter que celebrar em suas casas. Em lugar de ir ao templo celebrar com a assembleia reunida, são convidados a conectar seus computadores ou celulares e a partir dali unir-se sem restrições de fronteiras geográficas, mas ocupando o imenso espaço virtual que a tecnologia hoje abre.

Porém, mais que isso, estão convidados a valorizar o espaço de suas casas e residências e experimentar sua sacralidade. Esse espaço onde a família se reúne, cozinha, lava e passa, come e bebe, conversa, briga, chora, pede perdão, se arrepende, ri, ouve música, vê televisão, esse é o espaço da celebração da fé, da memória subversiva e perigosa de Jesus de Nazaré.

É também o espaço de se suportar mutuamente nas dores e fragilidades nossas de cada dia, que hoje são pão cotidiano de todo mundo, no mundo inteiro, mas especialmente em nosso golpeado e ferido Brasil. Espaço de ensinar às novas gerações de filhos e netos que seus pais e avós erraram muito construindo esse mundo que legamos a eles. E esperar que eles consigam introduzir as mudanças que possam ser realmente transformadoras.

Muitas casas passaram a ser verdadeiras igrejas domésticas. Por isso, não se pode dizer que as igrejas estavam fechadas, porque as casas faziam brilhar em si as notas características de toda comunidade eclesial, listadas no final do capítulo 2 dos Atos dos Apóstolos: eram perseverantes em ouvir o ensinamento dos apóstolos, na comunhão fraterna, na fração do pão e nas orações.

A casa e a família sempre foram igrejas primeiras, domésticas, onde se mama o leite e a fé. Contudo, em tempos de secularização, muito dessas características se foi perdendo e o estilo de vida não contempla mais as possibilidades que havia antes. As pessoas estão tão apressadas, com tanto por fazer… Cada membro da família tem horários diferentes. Não existia quase a refeição em família; cada um com sua bandeja, comia o almoço ou o jantar esquentado no microondas, diante da televisão ou do computador.

O vírus nos trouxe de volta para casa e foi possível olhar nos olhos uns dos outros, ver que ali era nosso lugar eclesial, nossa igreja âncora e primeira. Como diz o cardeal Tolentino: “antes de ser templo, a Igreja foi casa. Jesus saiu do templo e entrou na casa. E aí começou a experiência cristã”.

A casa – oikia em grego – e a família são, hoje, uma grande oportunidade para que os cristãos leigos adquiram verdadeiro protagonismo pastoral no futuro que vem no horizonte pós-pandemia. No pós-pandemia haverá uma volta ao templo. Mas seria muito bom que essa não significasse um esquecimento da casa. Ambos os espaços, em fecunda e harmoniosa tensão podem se potenciar mutuamente e contribuir muito para a evangelização.

5. O cuidado da terra e a responsabilidade pela casa comum

Se algo a pandemia nos ensinou foi o fato de que somos terra e que se continuamos abusando dos recursos do planeta nós mesmos seremos destruídos. Somos terra e nosso destino está indestrutivelmente ligado ao dessa mãe terra que hoje é tão agredida. Ela respondeu com esse vírus que nos ameaçou e nos pôs de joelhos e nos confinou dentro de nossas casas, denunciando o estilo de vida mortal que estávamos vivendo. Creio que um dos pontos centrais nesta pós-pandemia é inserir de cheio na pastoral e na evangelização a consciência ecológica, inseparável  da consciência de solidariedade para com a humanidade. 

Desde o início, a Encíclica Laudato Si’, do papa Francisco, relaciona terra e humanidade. Nós somos terra, pó, barro. Nossa corporeidade é formada pelos elementos que constituem o planeta: a argila, da qual Deus formou Adão, a água que mata a sede, o ar que enche nossos pulmões e nos mantém vivos. Somos terra, argila sobre a qual é soprado o espírito divino que anima e inspira. E somos chamados a maravilhar-nos por nossa vocação de habitantes da casa comum, que dividimos com todos os outros seres.

(Foto: Domínio público.)

Porém, inseparável desta visão maravilhada diante da criação que deve ser cuidada com desvelo e atenção, está o alerta contra a atitude consumista e predatória com que o planeta é tratado pelas grandes potências e governos irresponsáveis. A principal preocupação do Papa é não separar, sob pretexto algum, o compromisso em favor do meio ambiente e o engajamento em favor dos pobres. O documento enumera sofrimentos e desgraças que a depredação do meio ambiente traz aos pobres. Há uma minuciosa reflexão: desde a poluição da água, com a qual os pobres se desalteram, da qual extraem os peixes que lhes servem de alimento, que lhes possibilita viver da agricultura e do cultivo, até as doenças que as águas poluídas trazem, provocando epidemias e morte. Igualmente se seguem na reflexão papal a exposição dos mais vulneráveis do planeta aos poluentes atmosféricos que lhes causam sérios danos à saúde, e a degradação das condições de vida dessas populações que as forçam a emigrar, instituindo um círculo vicioso que leva à destruição das famílias e a perda fatal da qualidade de vida e da sobrevivência.

O documento pontifício propõe uma nova ideia de progresso, não centrado sobre uma arrogante onipotência do ser humano, que se atribui o direito de agredir o planeta que habita, esquecendo-se de que é a casa comum de todos. Mas um progresso com um desenvolvimento holístico e ecologicamente sustentável, que seja o ato fundante de uma nova civilização. Francisco, com seu olhar inspirado pela fé, vê a humanidade como uma família, “a única família humana”. Essa visão não permite isolamento, alienação ou a globalização da indiferença diante do imenso problema que a degradação do meio ambiente representa para as futuras gerações.

Apenas o olhar e a atitude “franciscanas” – de cuidado, responsabilidade e reverência – por este planeta, que é nossa casa comum, pode levar à exclamação de plenitude vital que é o louvor ao Senhor Criador de todos os seres. Só pode exclamar “Louvado seja” com os olhos voltados para o alto quem olhou ao seu redor e curvou-se para cuidar da mais humilde criatura saída das mãos de Deus.

Parece-me imprescindível neste momento em que emergimos de uma catástrofe que atingiu a todos os habitantes do planeta voltarmos nossos olhos para o fato de que temos que aprender a conviver. Não apenas entre seres humanos, mas entre todos os seres vivos. A vida é o outro nome de Deus e o respeito e o cuidado pela vida deve ser um princípio fundamental daquele que vive a fé cristã.

6. “Fratelli tutti”: revisitar a opção pelos pobres e vivê-la mais a fundo

Se algo ficou claro nessa pandemia foi a obscena desigualdade em que vive o povo de nosso país, o Brasil. E sobre isso o papa Francisco nos dá uma bússola para orientar nosso viver nos próximos tempos. Trata-se de um legado importante de seu pontificado e que vem acenar por algo que é próprio do rosto da Igreja latino-americana e por isso também brasileira. Em sua recente encíclica Fratelli Tutti Francisco nos propõe uma solidariedade nova e tão antiga, para com todos, mas sobretudo para com aqueles que são mais necessitados.

Nesta tão esperada encíclica, o papa Francisco resgata os principais documentos e pronunciamentos de seu pontificado para falar da fraternidade humana, um projeto tão adiado e ao mesmo tempo tão urgente. Faz uma nova e inspirada síntese, onde a figura de Francisco de Assis continua a ser um farol iluminador e inspirador. Trata-se de um documento escrito sob o incentivo da colaboração anterior com um irmão de outra religião, o Grande Imame Ahmad Al-Tayyeb, com quem já havia assinado o documento sobre a fraternidade humana em favor da paz mundial e da coexistência comum, em Abu Dhabi, em 2019. Portanto, é um documento em perspectiva de diálogo: com a melhor tradição da Igreja Católica (Francisco de Assis, padres da Igreja, papas antigos e recentes), com outra religião (Mahatma Mohandas Gandhi, o Grande Imam Ahmad Al-Tayyeb), líderes cristãos de outras denominações (Martin Luther King, Desmond Tutu), pensadores renomados (Gabriel Marcel, Karl Rahner), escritores (Eloi Leclerc), poetas e compositores (Vinicius de Moraes).

Papa Francisco e o grão imame de Al-Azhar, Ahmad AlTayyeb, assinam, em Abu Dhabi, em fevereiro de 2019, histórico “documento sobre a Fraternidade Humana em prol da paz mundial e da convivência comum”, no qual reafirmam juntos que a cultura do diálogo é o caminho para viver em paz. (Foto. Domínio público.)

Francisco afirma que enquanto escrevia a encíclica, explodiu a pandemia. Segundo ele, esse fato expôs a falsa segurança em que nos encontramos, confiando em uma cultura tecnocrática que nos protegeria de qualquer ameaça. Evidenciou igualmente nossa incapacidade de agir em conjunto. Começa, assim, com a esperança de que os cristãos e todos os homens e mulheres de boa vontade redescubram a importância incontornável da fraternidade, sonho da humanidade tantas vezes adiado. Em seu diagnóstico, a Encíclica menciona os sonhos de integração que hoje fracassaram: da Europa, da América Latina etc.

 A globalização conectou os indivíduos, mas não conseguiu superar o individualismo e formar comunidade e fraternidade, impondo um modelo cultural único (n. 12) e atingindo a consciência histórica e a memória viva das culturas indígenas (n. 14). Nesse ambiente onde a única aspiração é consumir sem limites (n. 13), a política perdeu sua característica de discussão sadia sobre projetos de longo prazo para o bem comum e se tornou um conjunto de estratégias que visam a destruição do outro para obter posições que trarão benefícios ilegítimos para alguns. (n. 15) Enquanto na “Laudato Si’” o pontífice propunha uma conversão ecológica que levasse todos a se entenderem como seres vivos que vivem e cuidam de uma casa comum, agora se volta para a humanidade, desejando que ela compreenda que cuidar do mundo significa cuidar de si mesmo. É quando ele desenvolve seu triste diagnóstico de que nossa cultura é marcada pelo descarte.

Algumas categorias de pessoas surgem como grandes vítimas deste descarte: os idosos, os deficientes, os pobres, os migrantes. São descartados e eliminados de todas as previsões e mapas porque não são mais úteis, não lubrificam mais a roda de uma sociedade baseada no sucesso e no consumo e não na fecundidade (n. 193 ss). A partir do n. 56, o Papa parece deixar claro que o Evangelho tem algo a dizer nesta situação. É quando começa a expor e comentar a parábola do Bom Samaritano em Lucas 10,25-37. Anuncia a responsabilidade universal de uns para com os outros, única via para a fraternidade. A atitude do samaritano diante do estrangeiro ferido à beira da estrada é a verdadeira atitude humana. Não importa se o ferido é daqui ou dali. Está ferido, e isso é o que importa, o que obriga à compaixão (n. 62). Assim deve ser a humanidade, não composta de sócios que usam os relacionamentos para obter lucro, mas de irmãos que amam e servem livremente (n. 101-105).

Para isso, mudanças estruturais devem ser feitas, além da conversão pessoal, diz o Papa. E uma delas é voltar a propor a função social da propriedade. Isso se aplicaria igualmente aos povos. Se o destino dos bens da terra é comum a todos, deve valer igualmente para todos os países. Cada país é do estrangeiro, assim como do cidadão (n. 124). E o bispo de Roma reafirma continuamente a sua convicção de que os migrantes são uma bênção e uma riqueza que convida uma sociedade a crescer e, por isso, devem ser ajudados a integrar-se (n. 135). O texto não permanece em nível intersubjetivo, chega ao coletivo falando diretamente da política. E o faz denunciando tanto as “formas populistas”, como as “formas liberais”, que fazem uso do povo ou servem aos poderosos (n. 155). Defende a legitimidade da noção de “povo” e a aplica à fraternidade e à amizade social. A boa política é chamada a ser uma das formas mais preciosas de caridade, porque visa ao bem comum (n. 180). A caridade assim vista é mais do que um sentimento subjetivo. Trata-se de um compromisso com a verdade e com a construção de processos de desenvolvimento humano de alcance universal. (n.184). Implica sempre um amor preferencial pelo mais pobre, que envolve muito mais do que obras de caridade.

E aqui Francisco torna cada vez mais clara sua convicção de que só assim, num esforço que começa “por baixo”, pelos mais pobres, nas margens, é possível construir uma fraternidade verdadeiramente universal que não deixa ninguém de fora. “Se há que recomeçar, que seja sempre a partir dos últimos ” (n. 235). O consenso deve ser buscado em um ambiente de diálogo e escuta da diferença do outro, incluindo todos e garantindo os direitos de todos (n. 215-221). E para que isso aconteça, o ateu tem que estar junto com o crente e com os fiéis de outra religião; os segmentos da sociedade abertos à escuta mútua em um pacto social e cultural (n. 215-221); e a justiça e a misericórdia devem dar-se as mãos.

Com esta encíclica, o papa Francisco dá as pautas para uma evangelização após a pandemia do novo Coronavirus que é muito mais eloquente do que qualquer coisa que pudéssemos nós dizer. 

Nunca estivemos tão inseguros, portanto mais do que nunca devemos estar juntos e darmo-nos as mãos.  Ser solidários uns com os outros.  Passar de sócios a irmãos, na gratuidade, no serviço gratuito, na entrega solidária e sem preconceitos e obstáculos. 

E essa é a boa notícia depois de tanto luto e tanta dor.  Estamos vivos e temos um objetivo e um sentido em nossa vida: anunciar a Boa Notícia da salvação em Jesus Cristo.

(Os grifos são nossos)

Sobre a autora:

Profa. dra. Maria Clara Lucchetti Bingemer

Maria Clara Lucchetti Bingemer possui graduação em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1975), mestrado em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1985) e doutorado em Teologia Sistemática pela Pontifícia Universidade Gregoriana (1989). Atualmente é professora titular do Departamento de Teologia da PUC-Rio. Durante dez anos dirigiu o Centro Loyola de Fé e Cultura da mesma Universidade. Durante quatro anos foi avaliadora de programas de pós-graduação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Durante seis anos foi decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Tem experiência na área de Teologia, com ênfase em Teologia Sistemática, atuando principalmente nos seguintes temas: Deus, alteridade, mulher, violência, mística e espiritualidade. Tem pesquisado e publicado nos últimos anos sobre o pensamento da filósofa francesa Simone Weil. Atualmente seus estudos e pesquisas vão primordialmente na direção do pensamento e escritos de místicos contemporâneos e da interface entre Teologia e Literatura. Autora de muitos livros, dentre eles mencionamos as últimas publicações: BINGEMER, Maria Clara Lucchetti; VILAS BOAS, Alex (Org.). Teopoética: mística e poesia. 1. ed. Rio de Janeiro: PUC-Rio/ Paulinas, 2020; BINGEMER, Maria Clara Lucchetti. Love of God and love of justice. The cases of Dorothy Day and Simone Weil. 1. ed. Los Angeles: Marymount Institute Press/Tsehai publishers, 2019; BINGEMER, Maria Clara Lucchetti. Santidade: chamado à humanidade. 1. ed. São Paulo: Paulinas, 2019.


[1] Cf. a musica de Geraldo Vandre:  cantador, so sei cantar/ ai eu canto a dor/ canto a vida e a morte canto o amor;

[2] Louvação: louvando o que bem merece, deixando o ruim de lado;

[3] Mercedes Sosa: Si se calla el cantor, calla la vida/porque la vida, la vida misma es todo un canto.

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Júlio Lancelotti e a Igreja Samaritana https://observatoriodaevangelizacao.com/julio-lancelotti-e-a-igreja-samaritana/ Mon, 28 Sep 2020 14:08:39 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=35736 [Leia mais...]]]> Já lá se vão mais de seis meses desde que a pandemia foi reconhecida como flagelo universal que ameaçava a humanidade e o planeta. Todos desde então foram instruídos a ficar em casa, sobretudo os idosos, por serem grupo de risco. No entanto, em São Paulo, pelas ruas e praças onde os moradores de rua vivem e sofrem em meio à intempérie, um senhor de 71 anos circula sem parar. Todos os dias, a cada momento, dia útil, santo ou feriado.

Pe. Júlio Lancelotti servido pão aos irmãos em situação de rua.

Trata-se do padre Júlio Lancelotti, da arquidiocese de São Paulo. Entrou já adulto no seminário. Após os estudos, ordenou-se e recebeu como missão do então cardeal dom Paulo Evaristo Arns ser vigário episcopal do povo de rua da arquidiocese. Desde então, assimilou plenamente em sua vida todo o significado da palavra vigário. Oriunda do latim vicariu, seu primeiro e principal significado é: aquele que faz as vezes de outro. Vigário episcopal, padre Júlio passou a ser e representar a Igreja de São Paulo, na pessoa de seu bispo, junto àqueles e àquelas que vivem nas ruas.

Ele não os chama moradores de rua, mas sim “irmãos” de rua. Não diz tampouco que trabalha com eles, pois não são objetos. Diz que convive com eles, como os irmãos convivem uns com os outros. Diante das infinitas necessidades que apresentam os que fazem da rua sua casa, o sacerdote atende desde a fome, o frio, a nudez, até a carência afetiva, o medo, o desespero, a solidão. Olha nos olhos de todos e ali, segundo ele, vê Jesus que disse que tudo que se fizesse ao menor de seus irmãos, a ele mesmo se faria.

Sem nenhum medo do contágio que o vírus pode trazer, padre Júlio toca a cada um, abraça, acaricia, examina suas feridas e os abençoa, impondo as mãos sobre suas cabeças. Cuida de todos, conseguindo bicas de água para que possam higienizar as mãos, dando-lhes máscaras e encaminhando-os aos serviços de saúde quando apresentam febre ou sintomas de doença.

Mas o sacerdote, ao mesmo tempo em que é só ternura e cuidado para com o povo da rua, sabe falar forte e assumir sua vocação de profeta quando se trata de denunciar injustiças e expor as feridas da desigualdade obscena de uma sociedade que descarta pessoas. De uma lucidez impressionante, padre Júlio sabe ler a realidade com olhos críticos, enxergando e denunciando a raiz das injustiças e incriminando os responsáveis pelas mesmas.

Pe. Júlio Lancelotti e o cuidado com os irmãos e irmãs em situação de rua.

Sempre foi criticado e discriminado por aqueles a quem seu discurso, mas sobretudo sua prática incomodava. Recentemente passou a receber ameaças, insultos e agressões mais pesadas. Isso fez com que o cardeal dom Odilo Scherer, pastor de São Paulo, se solidarizasse publicamente com ele relembrando o Evangelho pelo qual ambos empenham a vida. “Eu estou com ele… quem cuida dos pobres, vai sofrer junto com os pobres também. Sempre foi assim”.

O prefeito Bruno Covas também é seu admirador e agradece que o religioso constantemente denuncie as injustiças na cidade, para que sua administração possa recordar que deve prioritariamente aos mais vulneráveis. Foi oferecida escolta policial ao padre, que delicadamente a recusou, em coerência com a solidariedade aos irmãos de rua. “Então eu fico com a escolta e os moradores de rua ficam com o cassetete, com a tortura? ”

Uma rede de auxílio foi montada ao redor de Júlio Lancelotti. Voluntários o auxiliam em seu trabalho, seja transportando a ele ou aos irmãos de rua pelo trânsito engarrafado da cidade, seja providenciando alimentos, cobertores, roupas e calçados para os que se enfileiram às centenas às portas de sua paróquia, pedindo e esperando. Diante das ameaças por ele recebidas, listas foram passadas e receberam milhares de assinaturas.

Padre Júlio não está sozinho. Tem com ele o povo a quem serve, a Igreja à qual pertence, todos aqueles que hoje lutam por um mundo mais justo e assumem com ele os conflitos a isso inerentes. Sua fidelidade inquebrantável é a Jesus Cristo e ao povo da rua. E para ser fiel a esse compromisso maior, sua energia chega a ser impressionante. Parece uma fonte que nunca seca e faz com que a cada dia, de manhã à noite, se repita a cansativa rotina de estar perto dos últimos e dos vencidos, levando seu serviço e seu cuidado. Poucos jovens suportariam o ritmo que o sacerdote já idoso impõe a sua vida.

Pe. Júlio Lancelotti servindo um café aos irmãos em situação de rua.

A caridade de Cristo o constrange, como disse Paulo de Tarso de si mesmo e dos cristãos de Corinto. Nesses tempos de pandemia e em todos os tempos onde a justiça for pisoteada e os pobres estiverem sofrendo será assim. Pois, como diz o papa Francisco, a Igreja deve ser samaritana. Tal como o samaritano da parábola do evangelho de Lucas 10, 25-37, há que cuidar do ferido à beira do caminho. É preciso curar as feridas, abraçar os sofredores, aquecer os corações, estar próximo… É necessário começar de baixo. Júlio Lancelotti, em nosso país e em nossos dias, é certamente uma testemunha luminosa dessa Igreja que Francisco deseja ardentemente que se faça realidade.

Sobre a autora:

Maria Clara Bingemer

Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “Mística e Testemunho em Koinonia” (Editora Paulus), entre muitos outros livros.

Fonte:

www.jb.com.br

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O Sínodo para a Amazônia e o futuro de toda a criação https://observatoriodaevangelizacao.com/o-sinodo-para-a-amazonia-e-o-futuro-de-toda-a-criacao/ Wed, 06 Nov 2019 10:00:00 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=32991 [Leia mais...]]]> “Sínodo” é uma palavra antiga muito reverenciada pela Tradição da Igreja, cujo significado está associado ao conteúdo mais profundo da Revelação. Palavra grega, é composta pela preposição (syn – com, em conjunto) e pelo substantivo (odos – caminho). Indica, pois, o caminho tomado pelos membros do Povo de Deus no seguimento de Jesus. Refere-se diretamente ao Senhor Jesus, que se apresenta como “o caminho, a verdade e a vida”, e o fato de que os cristãos, seus seguidores, eram originalmente chamados “os discípulos” do Caminho ”.

Aplica-se, portanto, aos cristãos, discípulos de Jesus convocados em assembleia e, às vezes, aparece nos textos como sinônimo da própria comunidade eclesial. Como esta é concebida como Povo de Deus a caminho, a sinodalidade não é algo pontual e acessório na Igreja, mas sim seu estado permanente. A Igreja quer ser sinodal, estar sempre em caminho unida no seguimento de Jesus Cristo. O papa Francisco tem valorizado muito esta nota e este modo de a Igreja ser. E nesse espírito convocou o Sínodo da Amazônia, acontecido há pouco em Roma.

O documento final dá conta da motivação que levou a convocar o Sínodo e o fruto daqueles dias de caminho. Na origem está a situação de destruição que afeta a Amazônia e com ela toda a terra e a humanidade. Se continuar o processo agora vigente, o resultado pode ser a destruição do território amazônico e de seus habitantes, sendo os mais afetados os povos indígenas. E isso impactará em todo o planeta, já que a desaparição do bioma amazônico será catastrófica.

A nota característica do Sínodo foi o desejo e a demanda de integração da voz da Amazônia com a voz e o sentir dos bispos participantes, pastores da Igreja. Foi, no dizer da assembleia reunida sinodalmente, uma nova experiência de escuta para discernir os novos caminhos pelos quais o Espírito deseja conduzir a Igreja. Assim, o Sínodo, mais que um evento eclesial, foi um compromisso de abraçar, assumir e praticar o novo paradigma da ecologia integral, o cuidado da “casa comum” e a defesa da Amazônia.

Vimos todos nas mídias mais variadas a presença dos povos originários dentro do Vaticano. Seus símbolos povoaram nosso raio visual com cocares, que inclusive foram usados pelo próprio Papa e por bispos presentes. Tudo isso é a valorização das culturas autóctones indígenas, algo sem precedentes. O documento final declara ser indispensável uma conversão ecológica para uma vida sóbria. Isso implicará mudanças de mentalidade, estilo de vida, modos de produção e práticas relativas ao uso e distribuição dos bens.

O documento diz ainda que a Igreja é chamada a assumir seu papel profético de denunciar a violação dos direitos humanos das comunidades indígenas e a destruição do território amazônico. Para isso, deve ser uma igreja pobre, inculturada e samaritana. Pronta para a solidariedade e a partilha com os povos que habitam a Amazônia e dela vivem, e pedem ao mundo atenção e participação ativa na luta por sua sobrevivência.

Durante a celebração do Sínodo um grupo de bispos renovou o Pacto das Catacumbas. Mais de 40 participantes, sob a liderança do cardeal Cláudio Hummes, relator do Sínodo, assumiu o compromisso de defesa dos pobres, dos territórios e da conservação socioambiental da Amazônia. O texto do pacto – que recebeu o nome de Pacto das Catacumbas pela Casa Comum – se apoia na Encíclica Laudato Si‘ do papa Francisco.

Algumas questões importantes quanto à organização da Igreja também foram debatidas, tais como a ordenação de homens casados e a criação de um diaconato feminino para atender a região amazônica, onde o clero é muito escasso e demanda ministros afinados com a cultura local. Estes pontos, assim como todos os outros, devem ser cuidadosamente examinados pelo papa, que então entregará um documento oficial e definitivo em alguns meses.

Em todo caso, segundo o próprio papa, em vídeo amplamente difundido, no momento o principal é assimilar bem o diagnóstico que o Sínodo faz da situação da Amazônia e as urgências que dele decorrem. Este é o encargo mais importante a ser completado neste momento não apenas à Igreja, mas a toda a sociedade.

Sobre a autora:

Maria Clara Bingemer

Maria Clara Bingemer é teóloga, leiga, casada, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “Mística e Testemunho em Koinonia” (Editora Paulus), entre outros livros.

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Dom Moacyr Grechi: representante de uma geração https://observatoriodaevangelizacao.com/dom-moacyr-grecchi-representante-de-uma-geracao/ Mon, 22 Jul 2019 10:00:00 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=30874 [Leia mais...]]]> A notícia da morte do grande Dom Moacyr Grechi (17/06/2019), arcebispo emérito de Porto Velho, traz a todos que vivemos e amamos a conferência episcopal brasileira dos anos 1970 e 1980 uma sensação ao mesmo tempo de gratidão e tristeza. Foram tempos em que os bispos do Brasil se destacavam por seu profetismo, denunciando a ditadura e as torturas, e promovendo todas as iniciativas sociais que prometiam um futuro melhor para os mais pobres.

Hoje, celebrando a Páscoa deste grande homem, sentimo-nos movidos a fazer dele memória. Não apenas recordar um passado que se foi, mas crer em um passado que se torna motivação para bem viver o presente e abre um futuro prenhe de esperanças.

Nasceu em 1936 esse catarinense que já bem jovem entrou na Ordem dos Servos de Maria, seguindo toda a formação na mesma ordem e sendo ordenado sacerdote em 1961. Com uma formação de alta qualidade dentro da ordem religiosa à qual pertencia, Dom Moacyr fez mestrado em teologia em Roma e era, reconhecidamente, pessoa de grande erudição. Lia muito e em diversos idiomas. E estava sempre informado e antenado com tudo o que se passava no Brasil e no mundo.

Em 1972, foi nomeado bispo da diocese de Rio Branco, durante o pontificado do papa Paulo VI, hoje canonizado pelo papa Francisco. Em 1998, foi nomeado arcebispo de Porto Velho, Rondônia, diocese onde passou longos anos. Aposentou-se e recebeu o título de emérito em 2012. Sua atuação na igreja local, pela qual era responsável, foi sempre dedicada, aberta e próxima de todas as lutas dos pobres.

Entusiasta da Teologia da Libertação, apresentou-a não apenas dentro dos limites da Igreja, mas também fora dela. Os sindicalistas e ativistas sociais, como Chico Mendes e Marina Silva, estiveram entre os que pertenciam ao círculo de companheiros de luta e amigos do arcebispo. Apoiou todas as lutas populares que aconteciam na Amazônia.

Na CNBB, foi um dos criadores de importantíssimos órgãos que até hoje perduram e fizeram a conferência brasileira uma das mais respeitadas no mundo inteiro. Entre esses órgãos, estão o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e a Comissão Pastoral da Terra (CPT), da qual foi presidente por oito anos. Destacou-se pela defesa de todas as categorias oprimidas dentro da realidade onde se situava sua diocese. Indígenas, seringueiros e trabalhadores rurais sempre encontraram nele um valente defensor e advogado.

Graças à sua atuação e seu testemunho, o ex-deputado Hildebrando Pascoal, um chefão do tráfico de drogas na região amazônica, teve seu mandato cassado. Enfrentou obstáculos de todos os tipos, arriscou até mesmo sua vida, conversou com autoridades e deu testemunho, até que finalmente Pascoal foi cassado. O bispo participou igualmente do movimento que desbaratou uma quadrilha, a maioria formada por ex-policiais militares.

Quando Chico Mendes foi assassinado, Dom Moacyr lutou bravamente pela punição de seus algozes. Conhecia o seringueiro pela atuação em defesa da floresta e participação nas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Era entusiasta apoiador das comunidades que nasciam a partir da leitura da Bíblia aplicada à realidade, gerando resistência e iniciativas transformadoras. Era um grande promotor da leitura popular da Bíblia e a partir dela deu grande impulso às CEBs, que se estruturam a partir da centralidade da Palavra de Deus.

Como arcebispo de Porto Velho, contribuiu para a criação da Faculdade Católica de Rondônia, da Comissão Justiça e Paz do estado e para o fortalecimento dos Centros Sociais da Arquidiocese. Foi membro delegado, pela CNBB, da 5ª Quinta Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e Caribenho (Conferência de Aparecida), que aconteceu em maio de 2007. Aí teve bem próximo contato com Jorge Mario Bergoglio, então arcebispo de Buenos Aires, que futuramente seria o papa Francisco.

Sobre ele, dizem pessoas que o conheciam bem de perto: tinha senso de humor apuradíssimo, era exímio orador, capaz de entusiasmar a audiência desde as primeiras palavras. Destacava-se pela lealdade às pessoas, amigo dos pobres, que defendeu por toda a vida.

Seu lema enquanto bispo era “o último de todos e o servo de todos”. O próprio Dom Moacyr declarou, em entrevista à revista “Família Cristã, acreditar “que a principal tarefa da Igreja é formar os seus cristãos. E nessa formação estão a Palavra de Deus, a oração, os sacramentos, a solidariedade e a luta pela justiça. A Igreja do Acre, por exemplo, foi praticamente a mãe de todos os movimentos populares desse estado. Eu diria que só é cristão de verdade aquele que se empenha na luta pela justiça para os seus irmãos, pelo bem-estar do povo. Mas nós nunca devemos misturar as coisas, a comunidade com os partidos políticos.

Sua morte deixa saudade e nostalgia de tempos em que a Igreja brasileira se destacou no combate à injustiça e na defesa dos direitos humanos como elementos intrínsecos à sua missão evangelizadora. Dom Moacyr era um dos últimos que restavam desta luminosa geração episcopal. Descanse em paz, servo bom e fiel. Entra no gozo do teu Senhor!

(Os grifos são nossos)

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Profª Dra. Maria Clara Bingemer

Membro da diretoria da Sociedade de Teologia e Ciências da Religião e é professora do Departamento de teologia da PUC-Rio. É autora de muitos livros, entre os quais “Mística e Testemunho em Koinonia” (Editora Paulus) e “Santidade: chamado à humanidade. Reflexões sobre a Exortação Apostólica Gaudete et Exsultate” (Editora Paulinas).

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Fazer a diferença https://observatoriodaevangelizacao.com/fazer-a-diferenca/ Sat, 16 Feb 2019 17:42:40 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=29920 [Leia mais...]]]> Por Maria Clara Lucchetti Bingemer

Se alguém se destaca em determinada área e altera uma situação de fato em um sentido melhor ou mais justo, se diz que “faz a diferença”. Tudo aquilo que muda situações, circunstâncias, vidas, para melhor faz a diferença. Toda atitude, posicionamento, discurso, comportamento que conduz a história a girar em direção contrária àquela previamente estabelecida, é reconhecida como algo que faz a diferença.

Fazer a diferença, portanto, é transformar, redimir, redirecionar a humanidade em outro sentido do que aquele que parece pré-determinado e banhado pela lama da fatalidade. É abrir caminhos novos e com ações às vezes muito humildes e pequenas fazer brotar grandes mudanças. É dar identidade e dignidade aos vulneráveis e vencidos, a partir de uma solidariedade que lhes permite ser sujeitos e atores de seu próprio processo de libertação.

À luz dessas afirmações, continuo estupefata com a entrevista do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, no programa Roda Viva, da TV Cultura. Ao referir-se ao seringueiro e ambientalista Chico Mendes, comentou com um despectivo dar de ombros: “Que diferença faz quem é Chico Mendes?” Suspeito que a resposta do ministro é fruto de seu profundo desconhecimento da figura do seringueiro, sindicalista, ativista político e ambientalista brasileiro, que lutou incansavelmente em favor dos povos da Bacia Amazônica, e defendeu com a própria vida a floresta que era a fonte de sua subsistência. 

No dia seguinte ao programa, ainda sob o impacto da repercussão que sua fala tivera sobre a opinião pública que considera Chico Mendes um mártir da Amazônia, o ministro permaneceu firme em sua posição. Em entrevista ao jornalista Bernardo de Mello Franco, afirmou: “O pessoal do agro, que conhece a região, diz que ele era grileiro.” Talvez tenha sido o mesmo pessoal que informou ao ministro que Chico Mendes “usava os seringueiros para se beneficiar”. É difícil imaginar que benefício extraiu o seringueiro de sua atuação em favor do meio ambiente, que o fez enfrentar os latifundiários poderosos da região e acabou causando sua morte violenta. Deixou, porém, um legado que até hoje inspira a luta pelo meio ambiente no Brasil e internacionalmente. Graças a Deus, em seguida à entrevista do ministro, o vice-presidente Hamilton Mourão reafirmou a importância de Chico Mendes, declarando que ele é parte da história do Brasil. 

Desconstruir a memória de um líder, de um mártir, é matá-lo pela segunda vez. Assim parece o pessoal do agro estar fazendo com a memória de Chico Mendes. Assim outros fazem igualmente com a morte da irmã Dorothy Stang, religiosa católica assassinada enquanto ia a uma reunião com a Bíblia na mão. Seria a Irmã Dorothy, cuja morte completa agora 12 anos, alguém que se beneficiava dos seringueiros e do povo da floresta? 

À pergunta do ministro sobre que diferença faz quem é Chico Mendes nesse momento, portanto, a resposta parece ser: faz toda a diferença. A história do Brasil seria outra se não houvesse Chico Mendes. O panorama da Amazônia brasileira seria muito mais frágil sem sua atuação corajosa e o movimento que criou.

Assim também, enquanto a Igreja Católica prepara o sínodo da Amazônia a ser realizado no Vaticano no próximo mês de outubro, o testemunho de Dorothy Stang e Chico Mendes faz toda a diferença. Por quê? Porque dão a carne e o sangue às palavras da encíclica Laudato Si, do papa Francisco, que afirma ser a luta pela natureza e a criação inseparável da luta pela justiça e os direitos humanos. 

Quem entende isso faz a diferença. Esperemos que o ministro, após sua primeira viagem à Amazônia, se sinta mais reconciliado com essas grandes figuras que, desde o seu lugar aparentemente pequeno e insignificante, vão virando a história em outra direção e deixando atrás de si o rastro luminoso da sacralidade de todas as formas de vida. 

Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão” (Edusc), entre outros livros.

Fonte:

www.jb.com.br, acesso em 14/ 02/ 2019

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Mães e avós: sustento e garantia da sociedade https://observatoriodaevangelizacao.com/maes-e-avos-sustento-e-garantia-da-sociedade/ Sat, 29 Sep 2018 03:45:59 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=29036 [Leia mais...]]]> Por Maria Clara Bingemer

Em meio ao conjunto de contrassensos em que se transformou o cenário brasileiro às vésperas das eleições, o universo das mulheres atrai a atenção. São potencial eleitoral respeitável e inimigas a temer.

É fato que em muitos países a participação política feminina tem sido decisiva para mudar contextos, transformar mentalidades e, inclusive, obter vitórias importantes. Não seria demais lembrar o grande movimento das mães da Praça de Maio que, caminhando em círculos silenciosamente, todos os dias, com um pano branco sobre a cabeça, ajudaram a desestabilizar a cruel ditadura argentina.

Entre nós, neste momento, a atitude de alguns candidatos com mulheres tem sido particularmente eivada de machismo e preconceito. Algumas vezes têm chegado às raias do insulto. Como o candidato que disse a uma colega do Congresso que não a estupraria porque ela não o merecia. O (mesmo) candidato atalhou com particular impaciência e grosseria outras mulheres que o entrevistaram ou apartearam, ou dele discordaram. Igualmente foram feitos comentários em discursos ou entrevistas de que era muito normal e até mesmo desejável que a mulher ganhasse um salário menor do que o do homem.

Tudo isso provocou a indignação das mulheres que, em tempos de feminismo já para além da terceira onda e numa sociedade onde a questão do gênero é central, não admitem mais ouvir semelhantes barbaridades. Porém, o que mais tem provocado estupefação e indignação são as recentes declarações de um candidato a vice-presidente.

Declarou o candidato que famílias onde falta a presença masculina e paterna, e onde as crianças são criadas pelas mães e avós, produzem-se filhos e netos desajustados, que se tornam presa fácil para o tráfico e a criminalidade. Questionado posteriormente o candidato reafirmou suas declarações, desta vez acrescentando que sua intenção não era depreciar as mulheres, mas defendê-las, devido às duras condições em que são obrigadas a viver.

Parece-me muito positivo que o candidato se preocupe com a situação das mulheres que não recebem do Estado creches e condições adequadas para deixar seus filhos a fim de poderem trabalhar. Em sua análise, porém, falta um detalhe: a solidariedade dessas mulheres entre si. Ao partir para o trabalho, são ajudadas pelas vizinhas, amigas e conhecidas, que tomam conta de seus filhos pequenos.

Ao chegar em casa, as mulheres que trabalharam o dia inteiro resgatam seus filhos da casa onde se encontram, lhes dão de comer e à noite ainda participam de reuniões de comunidade, de igreja ou clubes de mães. Por sua vez, aquelas que se responsabilizaram pelas crianças durante a jornada de trabalho das mães continuarão prontas a ajudar sempre que necessário. E assim se forma a rede de solidariedade feminina, condição fundamental para que a sociedade – e em termos maiores, a humanidade – possa crescer e desenvolver-se sem estar condenada a uma extinção prematura.

Até o presente momento, caro candidato, os homens têm, sim, sido ativos na reprodução da espécie, mas não em sua conservação. Muitas vezes engravidam as mulheres e se vão, em busca de outras experiências, sobretudo mais novas. As mães permanecem. E criam os filhos, enfrentando todas as dificuldades, dispostas a defender as crias e tirar o pão da boca para alimentá-las.

Nessa tarefa têm sido muito ajudadas. Por quem? Pelos homens? Não exatamente. Por outras mulheres, mais velhas, que foram as que as criaram e jamais delas desistiram. É a cadeia imortal e milenar da maternidade, que se mantém ativa e dinâmica, gerando, nutrindo e protegendo a vida.

Perdi meu pai com nove anos de idade, fui criada por minha mãe e minha avó. Juntas formaram o marco de ternura e vigor que me constituiu como pessoa. Ambas foram meus exemplos e guias na vida. Embora sentindo, sim, muita falta de meu pai, não resultei desajustada e disfuncional.

A razão pela qual as famílias mais pobres hoje em dia perdem tantas vezes seus filhos para o tráfico não é o fato de terem mulheres como chefes e cabeças. E sim a pobreza e a injustiça em si mesmas. É um contexto opressor que não deixa saídas aos jovens, que não lhes apresenta oportunidades, que lhes rouba a esperança. Dentro desse quadro sombrio, muitas vezes o tráfico e a criminalidade conseguem lançar sua mão mortal sobre eles. Mas outras vezes não. E quando não conseguem, é quase sempre porque houve em suas origens uma mãe e uma avó para dar carinho, para estar presente, para dar vida ao preço da própria vida.

Não culpe, por favor, as mulheres pela violência que vitima cruel e maciçamente nossa juventude. Culpe as estruturas injustas que geram miséria e violência, e que a política teria a obrigação de ajudar a transformar. Nessa missão, sempre poderá contar com o concurso das mulheres. São elas as primeiras interessadas em construir um mundo mais humano para as novas gerações que gestaram em seus ventres.
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Teóloga, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “Mística e testemunho em Koinonia” (Editora Paulus), sua mais recente obra, entre outros livros

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Santidade ao alcance de todos https://observatoriodaevangelizacao.com/santidade-ao-alcance-de-todos/ Fri, 13 Apr 2018 02:45:42 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=27797 [Leia mais...]]]> 30652323_1853591624662746_4374784055261148233_n-2

Em meio ao tenebroso momento que vivemos no país chega-nos a exortação apostólica do Papa falando de santidade. Tema abstrato e distante da realidade? perguntarão alguns. Alienação perigosa que remete a claustros, vitrais e fuga do mundo com seus conflitos? indagarão outros. Na verdade, não. O que propõe o pontífice em sua exortação é uma compreensão mais realista e humana do que seja o ideal de ser santo em um mundo fragmentado e dividido.

Acostumamo-nos a pensar nos santos como aqueles homens e mulheres que vemos retratados em quadros ou vitrais, em geral ajoelhados e em extática contemplação; ou em ascéticos exercícios de piedade que os faz vencerem o mundo e suas ambiguidades e contradições. Imaginamos tratar-se de pessoas que nada têm a ver com a profanidade das coisas e as limitações das pessoas e buscam a perfeição em uma ascensão ininterrupta a um estado de vida quase angélico e pouco humano.

O que propõe Francisco é, na verdade, o inverso disso. A santidade não é uma subida, mas sim uma descida ao encontro dos outros. Por aí passa o ponto de cruzamento entre a espiritualidade e a ética cristãs. Não se trata de um apelo para alguns poucos escolhidos que se distinguem do resto da humanidade, a qual se debate em dúvidas, tentações e imperfeições. Pelo contrário, é a radicalização do ser humano como caminho para o encontro com o verdadeiro Deus.

O caminho da santidade é, segundo Francisco, transfigurar o cotidiano, resgatar em meio ao ordinário o extraordinário. É também vigiar constantemente e estar atento às armadilhas que aparecem a cada momento da vida e superá-las inspirados pela experiência de amar e as opções fundamentais que daí decorrem. É discernir constantemente não entre o bem e o mal, mas entre o bom e o melhor. Assim as escolhas vitais qualificarão a existência, não deixando que esta seja arrastada por ideologias que a apequenam e lhe diluem a nobreza.

Na verdade, o que o Papa afirma, ousadamente, é que a santidade é um chamado para todos e não somente para os padres, as freiras, os religiosos. É um caminho para todo ser humano que não se conforma com este mundo e entende que deve fazer o possível para transformá-lo e humanizá-lo. É uma vocação para todo aquele ou aquela que não aceita que sua vida tenha que resumir-se a satisfazer pulsões, buscar sensações sofregamente e contentar-se com gratificações superficiais que se desvanecem rapidamente deixando gosto amargo e frustrante na boca e no coração.

Francisco adverte: “Não podemos propor-nos um ideal de santidade que ignore a injustiça deste mundo, onde alguns festejam, gastam folgadamente e reduzem a sua vida às novidades do consumo, ao mesmo tempo que outros se limitam a olhar de fora, enquanto a sua vida passa e termina miseravelmente.” A santidade não é apenas uma maneira de comportar-se religiosamente ou um estilo de rezar, mas uma maneira de conceber a própria existência enquanto serviço oferecido ao outro. E este serviço se deseja ao mesmo tempo fiel a Deus e às realidades humanas. E essas realidades humanas têm alcance maior do que simplesmente as relações interpessoais ou micro comunitárias. Mas alcançam as próprias estruturas que condicionam a vida dos outros homens e mulheres e podem favorecer ou contrariar a justiça, a paz e a vida plena para todos.

Neste sentido, santidade não é apenas uma “performance” sempre mais acurada de ascese e crescimento individual, mas um compromisso pela vida, sobretudo a dos outros e dentre estes dos mais vulneráveis e frágeis. Francisco diz explicitamente que “a defesa do inocente nascituro, por exemplo, deve ser clara, firme e apaixonada, porque neste caso está em jogo a dignidade da vida humana, sempre sagrada, e exige-o o amor por toda a pessoa, independentemente do seu desenvolvimento. Mas igualmente sagrada é a vida dos pobres que já nasceram e se debatem na miséria, no abandono, na exclusão, no tráfico de pessoas, na eutanásia encoberta de doentes e idosos privados de cuidados, nas novas formas de escravatura, e em todas as formas de descarte. “

É assim que a santidade está ao alcance de todos aqueles e aquelas que reconhecem sua própria finitude e desejam ser transformados pelo amor que é maior e os faz plenamente humanos. Ser santo não é para campeões de perfeição, mas para pecadores que se reconhecem como tais, mas se deixam configurar pela graça de Deus e pelo apelo que vem da alteridade desfigurada de todo aquele que sofre e necessita cuidado e atenção.

Como diz o grande filósofo católico francês Jean Luc Marion: “Pecadores e traidores é o que mais existe na Igreja. O extraordinário, o surpreendente, é que esta mesma Igreja ainda seja capaz de produzir santos.“ Francisco parece acreditar nesta capacidade. E não a restringe apenas a um seleto grupo de especialistas, mas a estende ampla e universalmente a todo aquele ou aquela que desejar viver plena e radicalmente sua condição humana criada e redimida pelo Deus da vida.
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*Maria Clara Bingemer é teóloga, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, autora de Testemunho: profecia, política e sabedoria, Editora PUC-Rio e Reflexão Editorial, entre outros livros.

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