Liturgia – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com Fri, 01 Jul 2022 12:30:00 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.4 https://i0.wp.com/observatoriodaevangelizacao.com/wp-content/uploads/2024/04/cropped-logo.png?fit=32%2C32&ssl=1 Liturgia – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com 32 32 232225030 Um olhar sobre “Desiderio desideravi” a carta apostólica de Francisco sobre a formação litúrgica do povo de Deus https://observatoriodaevangelizacao.com/um-olhar-sobre-desiderio-desideravi-a-carta-apostolica-de-francisco-sobre-a-formacao-liturgica-do-povo-de-deus/ Fri, 01 Jul 2022 12:30:00 +0000 https://atomic-temporary-74025290.wpcomstaging.com/?p=45329 [Leia mais...]]]>  No dia de são Pedro e são Paulo, o papa Francisco presenteou a Igreja com uma carta apostólica em que, como de costume, demonstra seu grande tato pastoral no cuidado de um dos temas mais sensíveis entre grupos católicos desde o Concílio Vaticano II: a Liturgia.

Na verdade, a carta Desiderio desideravi (desejei ardentemente, em tradução livre), para além de uma verdadeira ode ao sentido pleno da liturgia cristã, é também mais um movimento claro do magistério de Francisco em vista do resgate e da confirmação das percepções e definições dos padres conciliares em 1963, quando aprovada a primeira constituição do Vaticano II, a  Sacrosanctum Concilium.

O centro da mensagem do papa é a necessária e contínua formação de todos os fiéis, incluindo os ministros ordenados, no que ele chama de sentido teológico da liturgia e sua importância na vida da Igreja, redescobertos pelo Concílio. Francisco afirma que “com esta carta gostaria simplesmente de convidar a toda a Igreja a redescobrir, cuidar e viver a verdade e a força da celebração cristã. Gostaria que a beleza da celebração cristã e de suas necessárias consequências na vida da Igreja não pareçam desfiguradas por uma compreensão superficial e redutiva de seu valor, ou pior ainda, por sua instrumentalização a serviço de alguma visão ideológica, seja qual for.” (DD 16)

Neste sentido, a carta apostólica está em continuidade com o motu próprio Traditionis custodes através do qual Francisco estabeleceu que “os livros litúrgicos promulgados pelos santos Pontífices Paulo VI e João Paulo II, em conformidade com os decretos do Concílio Vaticano II, são a única expressão da lex orandi do Rito Romano” (TC Art. 1). O próprio papa assinala essa continuidade já no início de sua carta. Não é para menos: o documento, que completará um ano em julho próximo, foi provavelmente um dos mais enfáticos sinais de desacordo do Papa Francisco com grupos eclesiais que, sob a permissão do uso da liturgia romana anterior à reforma de 1970, muitas vezes, favoreciam discursos e práticas abertamente anticonciliares. Às querelas levantadas por grupos neoconservadores em torno do motu próprio, o papa Francisco oferece agora, em sua carta apostólica, um pedido direto: “abandonemos as polêmicas para escutar juntos o que o Espírito diz à Igreja, mantenhamos a comunhão, sigamos fascinando-nos pela beleza da liturgia.” (DD 65)

Mas Desiderio desideravi não se presta a ser apenas uma chamada aos desconfiados ou claramente dissidentes do Vaticano II. Sobretudo, trata-se de um reconhecimento e incentivo do magistério à teologia da liturgia contemporânea, abandonando definitivamente tensões que se mantiveram presentes ao longo dos pontificados anteriores. Nesse sentido, seu ponto alto talvez seja o convite ao resgate da linguagem simbólica. Francisco, aqui, serve-se da obra do teólogo Romano Guardini (aliás, único teólogo referenciado pelo papa em toda carta em meio a documentos pontifícios e padres da Igreja) na afirmação de que a primeira tarefa do trabalho de formação litúrgica é fazer o homem voltar a ser capaz de símbolos. (DD 44)

Francisco atribui a duas realidades já mencionadas em seu programa de governo, a Evangelii gaudium, a perda da capacidade simbólica do homem contemporâneo: o gnosticismo e o neopelagianismo. O primeiro, subjetivismo reducionista que encerra o indivíduo em sua razão ou sentimento e o segundo uma concepção que anula o valor da graça, atribuindo o crescimento espiritual a um esforço meramente pessoal, que redunda em narcisismo e elitismo. (EG 94) Além disso, o papa critica o “espiritualismo abstrato” que, segundo ele, contraria a própria natureza humana que é espírito encarnado. (DD 28)

Como processo, portanto, para uma plena vivência litúrgica, Francisco sugere recuperar o “caminho da Encarnação”, que rejeita qualquer dicotomia entre matéria e espírito e que enxerga nas coisas da criação a semente da graça santificante dos sacramentos. Além disso, há que se educar para uma atitude interior que assimile a força dos gestos e palavras que compõe a vida sacramental, assim como a criança aprende de seu pai a traçar o sinal da cruz e, a partir deste momento, se apropria da força vital deste sinal. (DD 47)

Em outras palavras, o papa nos indica em sua carta apostólica um caminho da experiência litúrgica que exige sim o cuidado com as rubricas e todos os demais elementos da celebração, mas que não se encerra em uma postura funcional, mas reconhece que a celebração é uma forma de arte e, como todo trabalho artístico, exige técnica, mas sobretudo inspiração. Esta inspiração dá-se, no entanto, não por afetações de excessiva criatividade, mas uma profunda comunhão com a ação do Espírito através do seu dinamismo atuante de modo especial na eficácia simbólica da celebração. (DD 48-49)

Embora se dirija a todo o povo de Deus, Francisco não deixa de fazer um aparte aos ministros ordenados, indicando-lhes que seu serviço à comunidade exige uma viva consciência de ser uma presença do Ressuscitado e que, por isso, cumpre que não roubem da celebração a centralidade do altar, cuidando com as tendências de exagerado personalismo que expressam uma “mal dissimulada mania de protagonismo”. (DD 54)

Do ponto de vista dos processos de evangelização, Desiderio desideravi nos aponta um caminho fundamental seja para a catequese de iniciação cristã, seja para a ação pastoral: um maior cuidado da vida litúrgica em nossas comunidades. Este cuidado, ao contrário do que reina em muitos espaços, não é um esteticismo cosmético, um ensaio teatral ou uma ânsia por dar contornos de inovação e atratividade à celebração litúrgica. É preciso confiar no Concílio e, sobretudo, na vida que pulsa dos próprios elementos sacramentais: o pão, o vinho, o fogo, a água, o óleo, etc… Relacionar-se com o gesto, com o corpo, com a luz e o espaço. Relembrar o caminho da Encarnação/Ressurreição que não é o das manifestações apoteóticas, mas do andar junto, do partir do pão.

Francisco, como sempre, recorda-nos que precisamos ser gente e que celebrar em comunidade é encontrarmo-nos, não para uma bela apresentação ou um jantar de gala, mas para a refeição cotidiana: simples, porém vital. Dessa nossa capacidade, de celebrar, depende toda nossa vida cristã, nosso olhar ao próximo, ao mundo e a nós mesmos. Um olhar verdadeiramente sacramental, capaz de enxergar Deus em todas as coisas e todas as coisas em Deus.

A carta ainda não tem tradução oficial para o português, mas pode ser acessada em outras línguas clicando aqui.     

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Matheus Cedric Godinho
É  integrante da equipe executiva do Observatório da Evangelização da PUC Minas. Além disso, é professor de Filosofia e Ensino Religioso e autor de material didático para Educação Básica nas mesmas áreas. Leigo católico, é cofundador da Oficina de Nazaré e membro do Conselho Editorial da Revista de Pastoral da ANEC. 

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CATEQUESE E LITURGIA em tempos de distanciamento social e pós-pandemia, confira a reflexão teológico-pastoral do pe. Vanildo de Paiva https://observatoriodaevangelizacao.com/catequese-e-liturgia-em-tempos-de-distanciamento-social-e-pos-pandemia-confira-a-reflexao-teologico-pastoral-do-pe-vanildo-de-paiva/ Sat, 11 Jul 2020 12:41:14 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=35051 [Leia mais...]]]>  Para o autor, “a nossa espiritualidade alimenta-se da “mística da recomeço” e, sobretudo, da vitória. No centro da nossa fé está aquele que pareceu fracassar aos olhos humanos, mas está vivo e ressuscitado no meio de nós: Jesus Cristo!”. Ele assume como epígrafe a afirmação do papa Francisco, que em carta à revista Vida Nova diz: “Se pudemos aprender algo em todo este tempo, é que ninguém se salva sozinho (…) É o sopro do Espírito que abre horizontes, desperta a fraternidade para dizer ‘presente’ perante a enorme e inadiável tarefa que nos espera. É urgente discernir e encontrar a pulsação do Espírito para dar impulso, juntamente com outros, a dinâmicas que possam testemunhar e canalizar a nova vida que o Senhor quer gerar neste momento concreto da história (…) Este é o momento propício para encontrar a coragem de uma nova imaginação possível, com o realismo que só o Evangelho nos pode oferecer.” 

Confira a instigante e pertinente reflexão do pe. Vanildo de Paiva:

O SENHOR FOI GRANDE CONOSCO. POR ISSO, ESTAMOS ALEGRES! (1) 

Pistas para reflexão sobre CATEQUESE E LITURGIA, em tempos de distanciamento social e pós-pandemia(2) 

Pe. Vanildo de Paiva(3) 

“Se pudemos aprender algo em todo este tempo, é que ninguém se salva sozinho (…) É o sopro do Espírito que abre horizontes, desperta a fraternidade para dizer ‘presente’ perante a enorme e inadiável tarefa que nos espera. É urgente discernir e encontrar a pulsação do Espírito para dar impulso, juntamente com outros, a dinâmicas que possam testemunhar e canalizar a nova vida que o Senhor quer gerar neste momento concreto da história (…) Este é o momento propício para encontrar a coragem de uma nova imaginação possível, com o realismo que só o Evangelho nos pode oferecer.” 

Papa Francisco 

Carta à Revista Vida Nova, publicada no dia 17.04.2020 

I. INTRODUÇÃO 

01. Caminhamos na fé e na esperança. Maria nos ensinou que podemos até interrogar a Deus: “Mas como isso será possível?” (Lc 1, 4), já que precisamos sempre dar as razões da nossa esperança a todos quantos as pedem a nós (cf. 1Pd 3,15), mas não nos cabe a desesperança. A nossa espiritualidade alimenta-se da “mística da recomeço” e, sobretudo, da vitória. No centro da nossa fé está aquele que pareceu fracassar aos olhos humanos, mas está vivo e ressuscitado no meio de nós: Jesus Cristo! Certamente essa mística não escapou a Paulo, outro que teve que recomeçar depois de “cair por terra” (At 9,4), ao nos deixar, como testamento espiritual, a mais bela síntese da luta cristã: “Todavia, esse tesouro nós o levamos em vasos de barro, para que todos reconheçam que esse incomparável poder pertence a Deus e não é propriedade nossa. Somos atribulados por todos os lados, mas não desanimamos; somos postos em extrema dificuldade, mas não somos vencidos por nenhum obstáculo; somos perseguidos, mas não abandonados; prostrados por terra, mas não aniquilados. Animados pelo mesmo espírito de fé, sobre o qual está escrito: ‘Acreditei, por isso falei’, também nós acreditamos e por isso falamos. Pois sabemos que aquele que ressuscitou o Senhor Jesus, também nos ressuscitará com Jesus e nos colocará ao lado dele juntamente com vocês. E tudo isso se realiza em favor de vocês, para que a graça, multiplicando-se entre muitos, faça transbordar a ação de graças para a glória de Deus” (1Cor 4, 7-9.13-15). 

02. O título desta reflexão nos remete a outra experiência de recomeço. Trata-se da volta dos judeus do trágico exílio na Babilônia (sec. VI a.C.), vivência de provação e sofrimento, dentre tantos “Egitos” a que foram submetidos. Privados de sua terra, da sua liberdade e do exercício público de sua religião, só lhes restaram o lamento: “Como cantar a Deus em terra estranha?” (Sl 137,4), e a memória, que alimentava o sonho do retorno: “Que minha língua se cole ao céu da boca, se de ti, Jerusalém, eu me esquecer” (Sl 137,6). Mas o tempo dos salgueiros babilônicos, enfim, ficou para trás, e qual não foi o júbilo, quando puderam retornar! “Quando o Senhor mudou a sorte de Sião, a nossa boca se encheu de riso, e a nossa língua de canções. Até entre as nações se comentava: ‘o Senhor foi grande com eles!’. Sim, o Senhor foi grande conosco, e por isso estamos alegres” (Sl 126, 1-3). Sabiam que a reconstrução não seria fácil, mas a certeza do protagonismo do Deus do êxodo, daquele que tirara o povo das garras do faraó naquela terrível e libertadora noite no Egito, nunca mais fora esquecida. Outra vez – e quantas fossem necessárias! – não se cansariam de testemunhar: “Clamamos então ao Deus dos nossos antepassados, e ele ouviu a nossa voz. Ele viu nossa miséria, nosso sofrimento e nossa opressão. E o Senhor nos tirou do Egito com mão forte e braço estendido, em meio a grande terror, com sinais e prodígios. E nos trouxe a este lugar, dando-nos esta terra: uma terra onde corre leite e mel” (Dt 26,7-9). 

03. “Também sou teu povo, Senhor, e estou nessa estrada” … Assim gostamos de cantar, reafirmando nossa identidade de povo de Deus, continuador da história da salvação, que, em Cristo, chegou à sua plenitude. Também seguimos, rumo à definitiva terra prometida, convictos da nossa condição de peregrinos na fé, até que cheguem as “coisas que os olhos não viram, nem os ouvidos ouviram, nem o coração humano imaginou, tais são os bens que Deus tem preparado para aqueles que o amam” (1Cor 2,9). E, do mesmo modo que o povo da Antiga Aliança nunca abandonou a sua certeza de que Deus sempre o acompanhou pelos caminhos da história, nós também, filhos de Deus na Nova Aliança, podemos continuar cantando: “somente a tua graça me basta, e mais nada”. 

04. Quem diria que experimentaríamos um pouco do sabor do exílio ou da longa noite amarga do Egito, com essa pandemia do coronavírus? Obviamente as condições são outras! No entanto, os cenários mundial e brasileiro que se descortinam diante de nós, nos quais nós mesmos desenrolamos o drama da nossa existência, também cheiram a sofrimento, dor e morte. Para a maioria de nós, nunca a morte trágica esteve tão perto de nossas portas, mesmo daquelas “marcadas com o sangue do cordeiro” (Ex 12,7)! Quem contava com a necessidade de mudar drasticamente o ritmo de vida, distanciar-se socialmente do trabalho e do convívio com os familiares e amigos, para preservar a sua vida e de seus semelhantes? Quem ao menos suspeitava ter que acompanhar, de perto ou à distância, a agonia e a morte de tantos irmãos e irmãs, que partiram sem ao menos darem o seu adeus? Quem sonhava assistir, tomado por uma ira santa, a ingerência de uma situação gravíssima por parte do Estado, cujos chefes, versões medíocres dos antigos faraós, brincam com a vida humana e fazem dela objeto de trocas espúrias? Quem chegou a pensar, um dia, em ver as portas das igrejas fechadas e suas celebrações transferidas para a Igreja doméstica da família, na medida do possível, ou mediada pelas tecnologias de comunicação e redes sociais? Quem diria que, de um momento para o outro, os encontros catequéticos e demais atividades pastorais seriam suspensos na sua modalidade presencial, exigindo dos catequistas e demais lideranças criatividade e empenho redobrados, para descobrirem outras possibilidades de fazer ecoar a Boa-nova de Jesus Cristo? Quem diria! 

II. OLHANDO OS IMPACTOS DA PANDEMIA NA VIDA CRISTÃ E NAS SUAS ATIVIDADES PASTORAIS 

05. Tudo isso é muito real e nos desafia! Os impactos causados por essa pandemia ainda não podem ser calculados ou medidos, mas sabemos que são e serão muito grandes. Nem o mundo nem nós seremos os mesmos, depois desse primeiro semestre de 2020. Vou me abster de uma análise mais sociológica ou política da situação por questões óbvias: há excelentes analistas por aí, que podem nos ajudar, e não pretendo me alongar nessa reflexão. No entanto, entendo ser importante, ao menos, apontar alguns desses impactos na nossa vida cristã e nas atividades evangelizadoras e pastorais de nossa Igreja. 

06. O primeiro olhar é para dentro de nós mesmos. “De repente, não mais do que de repente”, tivemos que nos confrontar com nossa fragilidade e débil condição de criaturas. Quando tudo parecia estável e nossos planos bem seguros, tivemos de abandoná-los ou postergá-los, já que o momento apontava para sua inviabilidade. Sentimo-nos como se a vida tivesse “puxando nosso tapete”. E como é difícil ficar, ainda que momentaneamente, sem horizontes! A impossibilidade de planejar o futuro talvez seja uma das experiências que mais impacte nossas emoções, pois nos traz a sensação da não continuidade da existência. Rouba-nos o senhorio que julgamos ter dos nossos destinos. E, inevitavelmente, surge a pergunta: “O Senhor está no meio de nós, ou não?” (Ex 17,7). Isso toca profundamente na questão da nossa fé. Afirmar a presença de Deus na bonança é muito tranquilo. Reafirmá-la, no entanto, no meio do furacão ou da tempestade, eis o desafio! Como bem ressaltou o Papa Francisco, na memorável Bênção Urbi et Orbi, na Praça de São Pedro(4), atualizando o clamor dos discípulos de Jesus: “Avançamos, destemidos, pensando que continuaríamos sempre saudáveis num mundo doente. Agora, nós, sentindo-nos em mar agitado, imploramos-te: ‘Acorda, Senhor!’”. 

07. A Palavra nos ensina que “a fé é um modo de já possuir aquilo que se espera, é um meio de conhecer realidades que não se veem” (Hb 11,1). Diria que é colocar o pé na estrada antes mesmo de Deus colocar o caminho. Trata-se de uma entrega de nossa vida nas mãos daquele que pode conduzi-la a um porto seguro. É con-fiança, isto é, dar nossos passos seguros de que Deus é o fiador que garante nossa caminhada, se a fazemos de acordo com sua vontade. E, mais uma vez, é de Maria, mãe de Jesus, que aprendemos a lição do “faça-se em mim segundo tua Palavra” (Lc 1,38), mesmo compreendendo muito pouco do que estava por vir. Mas não é uma experiência fácil de se fazer. Nossa espiritualidade não se desvincula do turbilhão de nossas emoções agitadas pelos ventos do medo e da angústia. Somos uma pessoa só, e tudo está muito integrado ou desintegrado dentro de nós! Por isso mesmo, o medo convive com a fé, e isso não consiste em pecado, absolutamente. Como nos recordou o Papa, na ocasião acima citada: “O início da fé é reconhecer-se necessitado de salvação. Não somos autossuficientes, sozinhos afundamos: precisamos do Senhor como os antigos navegadores, das estrelas. Convidemos Jesus a subir para o barco da nossa vida”. Desse modo, nossa fé cristã nos faz entender que não podemos atribuir a Deus uma pandemia como esta, como se ele estivesse à espreita para castigar a humanidade, mas também, em extrema posição, não podemos querer que ele resolva tudo para nós. Nós lhe entregamos nosso obséquio de fé e nossa disposição para fazer sua vontade. E ele nos dá a sua graça, como concluiu o Santo Padre: “Confiemos-lhe os nossos medos, para que ele os vença. Com ele a bordo, experimentaremos – como os discípulos – que não há naufrágio. Porque esta é a força de Deus: fazer resultar em bem tudo o que nos acontece, mesmo as coisas ruins. Ele serena as nossas tempestades, porque, com Deus, a vida jamais morre”. 

08. Outro olhar dirige-se à nova rotina que tivemos que estabelecer, na maioria dos casos, junto de nossos familiares. Isso tem a ver com a vivência da virtude da caridade. Forçosamente, tivemos que permanecer mais tempo dentro dos nossos lares, conviver com aqueles que, possivelmente, há tempos não convivíamos por conta da correria ou dos desafetos. Tivemos que nos apertar em casas estreitas, sentar à mesma mesa no horário das refeições, dividir as tarefas domésticas, batalhar pelo pão de cada dia, nos enquadrar em regras de boa convivência e olhar nos olhos daqueles que deveriam ser os mais importantes para nós para, ali, sondar-lhes os vestígios do medo e da angústia a pedirem amor, solidariedade, cuidado. E como lhes temos respondido? 

09. Um terceiro olhar volta-se para fora de nossos lares, para a sociedade e, de modo muito especial, para nossas comunidades eclesiais. E, aqui, podemos questionar que impacto sofreu nossa esperança. Certamente, choramos ao ver tantos irmãos nossos sendo acometidos pela COVID-19 e morrendo, não raras vezes, desamparados e privados de dignidade. Vimos famílias inteiras perdendo, subitamente, o pouco que lhes garantia o sustento e a vida. Constatamos, com sentimento de impotência e vergonha, o descaso do poder público pela vida do cidadão e seus mais sórdidos deboches frente à dura realidade enfrentada por toda a população, sacrificando especialmente os mais empobrecidos. É possível que o desespero ou a indignação tenham questionado nossa esperança cristã. E tivemos que ser fortes, para reafirmar: “Se Deus é por nós, quem será contra nós?” (Rm 8,31). 

10. Com que dor no coração vimos nossas igrejas fecharem as portas para as celebrações presenciais, e as chaves serem passadas nos cadeados dos salões paroquiais e centros pastorais! “Catequese suspensa por tempo indeterminado”, esse era o cartaz afixado nas portas das salas de catequese ou o recadinho enviado no grupo de WhatsApp dos catequizandos ou de seus pais…Padres, catequistas, cristãos em geral, suspiravam pelos cantos da casa: “nunca imaginei que isso pudesse acontecer. Nem semana santa teremos!”. Nem faltou o descrente a zombar: “Gritem mais alto; pode ser que seu deus esteja ocupado. Quem sabe teve que se ausentar ou então está viajando. Talvez esteja dormindo e seja preciso acordá-lo” (1Rs 18,27). 

III. O QUE PODEMOS APRENDER COM ESSE MOMENTO HISTÓRICO? 

11. Voltemos ao salmo 126: “os que semeiam com lágrimas, ceifarão em meio a canções. Vão andando e chorando ao levar a semente. Ao regressar, voltam cantando, trazendo seus feixes” (vv. 5-6). Nós, os cristãos, teimamos em acreditar na vitória da vida. O mistério pascal nos mobiliza a jamais acreditar que a cruz e a morte sejam as últimas respostas para a peregrinação humana. Se Cristo está vivo, nossa fé não é vã e ilusória (cf. 1Cor 15,14), e a certeza de sua ressurreição é o suficiente para alimentar em nós a “mística do recomeço”. Sabemos que tudo isso vai passar. Mais um ciclo da história será encerrado, para abrirmos um outro, que esperamos seja melhor. Mas, para isso, é preciso que aprendamos algo com esse momento difícil, mas fecundo, de pandemia e recolhimento social. Ele não pode ser visto apenas como tragédia, mas também, e principalmente, como oportunidade de revisão de nossas vidas, em todas as suas dimensões. Seria terrível se disséssemos, no pós-pandemia: “sou um sobrevivente”. Nada mais deplorável que isso! Não fomos criados por Deus para arrastar a vida como sobreviventes de catástrofes. Se “foi para a liberdade que Cristo nos libertou” (Gl 5,1) e se ele veio para que tivéssemos vida em plenitude (cf. Jo 10,10), é para frente que devemos seguir, e de cabeça erguida. Somos viventes, e como tais protagonizaremos um novo tempo. Os impactos sofridos nos farão responder com criatividade, coragem, esperança em Deus, “fé na vida, fé no homem, fé no que virá”(5)… Para tanto, retomemos os três olhares lançados sobre os impactos causados por essa pandemia, perguntando pelos aprendizados que eles podem nos trazer. 

12. É certo que cada um de nós está fazendo e deverá fazer leituras próprias do caminho percorrido, durante esse período de duração da pandemia. Prejuízos e saldos serão contabilizados não somente agora, mas na trajetória a seguir. No entanto, de modo objetivo, podemos acenar para três aspectos pessoais que merecem reflexão: 1) A superação do egoísmo: mais do que nunca sentimos o quanto dependemos uns dos outros. Ficar em casa e usar máscaras quando saímos, por exemplo, foi fundamental para garantir a nossa saúde, mas também a dos nossos semelhantes. Saber que algum excesso poderia colocar em risco a vida alheia nos fez ver que todos estamos interligados e somos igualmente responsáveis uns pelos outros. A falta de alguns serviços essenciais também nos fez pensar que nenhum de nós é autossuficiente. Entendemos melhor que, se muito dessa pandemia se deve a ações irresponsáveis de alguns, as soluções para uma maior qualidade de vida para todos dependerão da união de todos e não apenas do esforço de poucos. 2) A pergunta pelo essencial da vida: a triste realidade do contágio do coronavírus e a realidade de tantas mortes trágicas nos fizeram enxergar que de nada adianta poder ou dinheiro nessa hora. Todos somos vítimas em potencial. E a iminência do fim pediu de nós uma revisão do que realmente consideramos essencial em nossas vidas. De repente, todos tivemos que deixar tudo e ficar dentro de casa, contentando-nos com o mínimo. Vale a pena a correria da vida, no esforço de alimentar os monstros do acúmulo de coisas e do consumismo? Isso pode nos salvar? 3) O reforço das virtudes da fé, da esperança e da caridade: essas virtudes, ensina-nos a Igreja, são dons de Deus. No entanto, exigem nossa acolhida e nossa resposta diária. Fiquemos atentos ao modo como nutrimos a nossa vida cristã, para que sempre estejamos prontos a responder com coragem aos desafios tantos que a vida nos traz! 

13. A intensificação do convívio familiar foi de grande importância para muitos de nós, no momento em que o núcleo familiar sofre grandes abalos e fragmentações. Conviver mais intensamente com aqueles que deveriam ser os mais próximos a nós pode levar-nos a pensar na família como comunidade de amor e cuidado, imprescindíveis em nossas vidas. “A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”, já dizia o grande poeta Vinícius de Moraes. E cessando, ainda que por um tempo, o nosso corre-corre, pudemos nos encontrar (ou desencontrar!) com a realidade de alegrias e tristezas de nossos familiares, inclusive tendo a chance de superar alguns bloqueios e desafetos. Acredito que poderemos reaprender a diferença entre ter uma casa e ter um lar; que há valores preciosos bem mais perto de nós do que pensamos; e que relações mais saudáveis com os familiares farão de nossa família o lugar da acolhida, da ajuda mútua, do cultivo da vida feliz e da experiência da presença de Deus. 

14. No que se refere à nossa vida social, também podemos afirmar que a pandemia está sendo uma escola de valores humanos e cristãos, para quem seriamente se permite fazer as perguntas fundamentais sobre suas experiências. Olhar para uma sociedade à beira do caos, levanta questões que nos comprometem: quem é responsável por tudo isso? Por que nos faltam as mínimas condições para a superação dessa crise? Se tudo está interligado, como poderemos nos articular, fraternalmente, para encontrar as saídas? O que justificaria tanta fragmentação, competição e ódio entre grupos e pessoas? De que modo temos cuidado da nossa casa comum, dom precioso de Deus para todos, e não apenas para alguns? Que atitudes proféticas precisamos assumir frente ao descaso público pela vida do ser humano e da natureza? Talvez tenhamos mais perguntas do que respostas. Mas já são meio caminho andado! Penso que a experiência da própria vulnerabilidade nos pode tornar mais sensíveis à vida dos nossos irmãos. Quantas iniciativas solidárias e assistenciais emergiram, como reflexos da compaixão, hóspede eterna dos corações humanos, mesmo daqueles embrutecidos pelas amarguras ou decepções da vida! 

IV. CATEQUESE E LITURGIA EM TEMPOS DE PANDEMIA 

15. Apurando o foco dessa reflexão, olhemos mais de perto o contexto eclesial, especialmente as questões que envolvem as duas dimensões fundamentais da vida cristã: catequese e liturgia. Acredito ser impossível falar de uma sem me referir à outra. Aliás, por si mesmas, elas se referem mutuamente. A liturgia, enquanto celebração do Mistério Pascal, exige a catequese como iniciação, e a catequese, explicitação desse mesmo Mistério, só se liberta da mera transmissão de conteúdos e do risco da relação teórica com Deus se, no seu processo, a dimensão orante e celebrativa encontrar seu devido espaço. São dimensões que nasceram juntas na história da nossa fé cristã, ainda que, historicamente, tenham sido separadas por muito tempo. Hoje, busca-se uma interação entre elas, para que se faça valer o que a Igreja sempre se propôs, ao menos teoricamente: lex credendi, lex orandi, lex vivendi (crer o que se reza, rezar o que se crê e viver o que se crê e o que se reza). Já acenei, acima, para os impactos que a pandemia e o consequente recolhimento social trouxeram para nossa fé e prática cristãs. Pretendo, agora, apontar algumas questões que merecem nossa atenção, já que exigirão de nós uma séria reflexão e até novas posturas daqui para frente. 

16. A pandemia nos cobrou criatividade e até quebra de resistências, em alguns aspectos. Também nos fez pensar em resgates e ampliação de concepções. Refiro-me, mesmo, às tradicionais respostas conceituais do que seja catequese e liturgia. Não digo que o que compreendíamos a respeito delas não tenha mais valor. Obviamente, temos um rico depósito teológico e prático que ilumina as duas dimensões e precisa ser cada vez melhor compreendido. Isso não nos impede, entretanto, de perceber os desdobramentos que as novas realidades nos sugerem. Em outras palavras: a Igreja sempre se atualiza, ou, como preferem os mais clássicos, é semper reformanda, sem deixar de ser fiel à sua vocação primeira. Exemplificando: quando pensávamos que poderia haver uma catequese à distância, via mídias sociais? Celebrar em casa, com os familiares, para a maioria de nós, parecia coisa somente dos primeiros tempos do cristianismo…ainda mais, sem a figura do padre. Perguntas, as mais variadas, logo começaram a aparecer: catequese por WhatsApp vale? É possível ao catequista fazer-se presente na vida do catequizando, não estando fisicamente perto dele, mas virtualmente? Na internet há afeto? E uma parcela significativa de catequizandos que não tem acesso às mídias sociais, como atingi-la? Missa pela TV ou mídias sociais vale? Existe mesmo essa tal de “comunhão espiritual”? Dá para ficar tanto tempo sem a comunhão eucarística? Mas, o leigo pode presidir celebrações e até dar bênçãos? Isso não é “coisa de padre”? Mais uma vez, temos mais perguntas do que respostas. 

17. O Papa Francisco tem insistido na necessidade de buscarmos novas linguagens e meios para a evangelização e a catequese. Ele diz: “É preciso ter a coragem de encontrar os novos sinais, os novos símbolos, uma nova carne para a transmissão da Palavra, as diversas formas de beleza que se manifestam em diversos âmbitos culturais, incluindo aquelas modalidades não convencionais de beleza que podem ser pouco significativas para os evangelizadores, mas tornaram-se particularmente atraentes para os outros”(6). Nova carne. Expressão estranha, mas provocativa, pois nos remete à maravilhosa pedagogia de Deus, que se encarnou, tornou-se gente, para ficar mais próximo de nós! Esse é o paradigma para o evangelizador, e a pandemia nos fez olhar de novo para ele. 

18. Aqui entra uma rápida chamada de atenção para o papel que os meios de comunicação (rádio, tv etc.) e as novas mídias sociais podem cumprir em nossos itinerários evangelizadores e celebrativos. Esse papel, obviamente, não será de suplência. Nada dispensa a figura do catequista junto a seu grupo de catequizandos, nos encontros “presenciais” ou da assembleia reunida para as celebrações litúrgicas. No entanto, faz-nos pensar com mais seriedade no quanto podem ser usados a nosso favor e incluídos como parte metodológica de nossos processos, ao invés de serem exorcizados, como ocorre na prática de alguns. O conceito de “virtual”, sabemos, não equivale ao de irreal. As mídias sociais podem ser consideradas uma extensão dos nossos sentidos, uma continuidade do sujeito e garantem, de outra forma, uma presença, especialmente quando já existe uma vinculação afetiva das partes envolvidas. Em algumas circunstâncias, seu poder de atingir o coração e a consciência das pessoas pode ser até maior do que o discurso ou as estratégias usadas dentro dos templos ou salas de catequese. Os recursos midiáticos têm a mesma natureza da arte e primam pela via da beleza e, por isso mesmo, têm forte poder de mobilização psíquica e espiritual. Veiculam informações, mas também afetos e encantamentos. 

19. Um cuidado, no entanto, deve ser tomado, especialmente no campo das celebrações sacramentais. Por mais interessantes e bonitas que sejam as celebrações transmitidas pelos meios de comunicação e mídias sociais, eles têm seus limites. A liturgia não é só performance. Para além da engenhosidade das formas e roupagens, há um conteúdo que só realiza no fato real, na experiência, na presença física e no contato direto com o sinal, transfigurado pela ação de Deus e pela fé do fiel, experiência que a distância virtual não dá conta de reproduzir. Assim, por exemplo, a missa pela TV pode ser uma forma de oração, de nutrição pela Palavra ouvida, de avivamento do amor pela Eucaristia, mas não equivale à participação “presencial” na missa da comunidade. Do mesmo modo, a chamada “comunhão espiritual” só pode ter sentido quando entendida como intimidade com Deus na oração e entrega de vida, mas não substitui a comunhão nas espécies consagradas do pão e do vinho, corpo e sangue do Senhor. O mesmo equivale para a adoração ao Santíssimo à distância. É preciso cuidar para que a tela da TV não se transforme em um amuleto ou simulador da presença real de Jesus na hóstia consagrada! Seria o máximo da banalização e do empobrecimento do sacramento da Eucaristia! 

20. A impossibilidade da nossa presença física nos templos para as celebrações ou nos espaços onde a catequese acontece provocou um deslocamento não só geográfico, mas teológico e pastoral, muito interessante: para o núcleo familiar. Sem planejamento algum, tivemos de devolver às famílias, especialmente aos pais, o que sempre lhes coube cumprir: a educação da fé de seus filhos. É fato que isso tem seus problemas, visto que grande parte deles não se sente apta para tal função, o que denuncia, mais uma vez, o descuido da Igreja quanto à iniciação dos adultos e à catequese permanente. Mas até isso pode ter seu lado bom: muitos pais tiveram que se mobilizar, reaprender as orações básicas do cristão, reencontrar-se com a Palavra de Deus, pesquisar etc. “Essa pandemia deveria oportunizar a redescoberta da Igreja doméstica, da liturgia familiar e do templo que nossas casas e nós mesmos somos. Tempo de redescobrir nosso sacerdócio batismal, valorizando a força da Palavra de Deus que também é alimento e goza de sacramentalidade. Se por hora não é prudente que celebremos a Eucaristia em nossa comunidade eclesial, celebremos o Mistério Pascal de Cristo em nossa comunidade doméstica, por meio de outras possibilidades como, por exemplo, a celebração da Palavra de Deus, da Liturgia das Horas ou do Ofício Divino das Comunidades, das celebrações de bênçãos, como por exemplo a da mesa, dentre outras”(7). Dois apelos, ao menos, permanecem: como fazer da família o epicentro do kerigma, devolvendo-lhe de vez seu protagonismo na educação dos seus filhos? Como envolver as famílias em nossos itinerários catequéticos e celebrativos no dia a dia da catequese? 

21. Outro elemento importante a se considerar, talvez o primeiro em ordem de importância, diz respeito ao ponto de partida da catequese e, quiçá, da liturgia: a vida das pessoas. Esta é o conteúdo básico da evangelização e da celebração. Sem a vida e a realidade do povo, a catequese se transforma em instrução abstrata e distante da realidade, e a liturgia se reduz a ritualismo vazio de significado. Não tenho dúvida de que o Mistério Pascal sempre será o centro da vida cristã e que, de algum modo, ele é o mesmo, independente dos homens. No entanto, Deus tudo fez por nós e pela nossa salvação. E esta só se atualiza na vida e a partir da vida muito peculiar de cada um de seus filhos. A pandemia nos fez individualizar os interlocutores da mensagem e da oração cristã. Vimos que os fiéis que compõem a assembleia litúrgica têm rosto e nome, casa e endereço (para muitos, infelizmente, a rua!), e tivemos que nos dirigir pessoalmente a cada um deles, procurando envolvê-los em nossas atividades e propostas. No dizer do catequeta mexicano De La Cruz,“a pandemia, bem entendida como uma oportunidade, veio impulsionar o catequista a migrar de uma catequese somente centrada em conteúdos doutrinais e celebrações sacramentais para aprender a assumir as angústias e esperanças do homem de hoje como parte essencial do conteúdo da catequese, e não levá-las em conta somente como uma referência metodológica por implementar. O catequista teve que aprender a deixar de falar de Cristo Jesus, para aprender a viver como Cristo Jesus em relação íntima com as pessoas e comunidades”(8). Fica a questão: no princípio de interação fé-vida, que lugar estamos dando a cada uma das pessoas em nossa catequese e nas celebrações litúrgicas? 

V. COMO SERÁ AMANHÃ? O PÓS-PANDEMIA 

22. “Como será o amanhã? Responda quem puder. O que irá me acontecer? O meu destino será como Deus quiser”, já cantava Simone. Talvez seja melhor que nos perguntemos, então: o que será que Deus quer de nós e da nossa Igreja, passada essa pandemia? Aqui, carecemos de discernimento para saber ler os sinais dos tempos e da sabedoria do Espírito, para não desperdiçarmos tantas lições que esse momento nos trouxe e ainda trará. A título de provocação, cito algumas questões que entendo que deverão fazer parte, com urgência, das nossas pautas de revisão e ajustes na caminhada da catequese e da liturgia: 

a) Espírito de muita acolhida aos catequistas e catequizandos, bem como às nossas assembleias litúrgicas, pois muitos retornarão com feridas expostas, merecendo nossos cuidados e ansiosos por encontrar em nós o coração do Bom Pastor. 

b) Para quem ainda não se convenceu que catequista não é mero instrutor e transmissor de doutrinas, fica a dica: catequese é vida, e a mensagem cristã só poderá ser acolhida quando de fato fizer coincidir a boa-nova de Jesus e a boa notícia que cada irmão ou irmã necessita escutar: a boa noticia do amor, da justiça, da fraternidade, da solidariedade etc. Isso requer começar sempre pela vida e não pelo livro. 

c) Ainda que estivéssemos ligados em rede, questiono se estávamos em comunidade. E como nos fez falta o calor humano dos irmãos e irmãs de caminhada! Cuidemos para que, na ânsia de colocar em dia nossas agendas, a burocracia não sufoque os afetos e vínculos fraternos. Penso que já entendemos que a pressa não pode nos levar a deixar para trás as pessoas a quem nos propomos servir. 

d) O retorno será momento de sínteses e releituras da caminhada feita. Que a preocupação com os conteúdos deixados para trás não seja desculpa para desprezarmos a riqueza das experiências vividas durante a pandemia. Na verdade, estas são conteúdos de primeira importância, tanto para a reflexão quanto para as celebrações. 

e) O pós-pandemia servirá também para aprimorarmos as vivências familiares e, doravante, entender a família como parceira na evangelização dos catequizandos, isto é, sujeito e, ao mesmo tempo, destinatária de nossos melhores esforços pastorais. Aqui, começa a se concretizar a tão propalada “Igreja em saída”, vislumbrada pelo Papa Francisco e se realiza a dimensão missionária da catequese e da liturgia. É a chance de abandonar um modelo de Igreja que se coloca como autorreferência, partindo para uma Igreja aberta ao mundo e realizando-se, enquanto tal, em todos os ambientes, de modo particular, em cada lar cristão. 

f) A iniciação cristã com adultos só ganha força depois de termos passado por tudo isso que a pandemia nos trouxe. Precisamos de uma Igreja adulta e madura na fé, na esperança e na caridade, para o enfrentamento dos embates que, sem previsões, a vida nos traz, e garantidora da continuidade do testemunho do Evangelho para as atuais e futuras gerações. 

g) Os meios de comunicação e as mídias sociais precisam ganhar mais espaço em nossa catequese e na liturgia. Eles mostraram sua importância e relevância. Mas, precisamos nos capacitar e conscientizar nosso povo, para que saibamos o seu devido lugar, sem as distorções tão acentuadas no período da pandemia. 

h) Precisamos de uma Igreja mais profética, que não admita o aviltamento da vida e da dignidade humana, bem como a destruição da nossa Casa Comum. Que a catequese e a liturgia não caiam na alienação e eduquem para o profetismo e o protagonismo cristão na sociedade. Depois do que vivenciamos, vendo ou participando de tantas ações solidárias de socorro aos mais necessitados e serviços gratuitos em defesa da vida, catequese e liturgia não poderão abrir mão de sua dimensão sociotransformadora, dimensão que lhes dá legitimidade. 

i) A formação continuada é fundamental para toda a liderança cristã, especialmente para os catequistas. Mas uma formação integral, e não apenas conteudista. 

j) A valorização do sacerdócio comum dos fiéis constitui outro aspecto de relevância para futuro da Igreja e a catequese e a liturgia poderão contribuir muito para isto. Vencer uma visão ainda clericalista, sobretudo no campo da liturgia, é mais do que necessário. Isso, não apenas porque faltem padres em várias partes do mundo para presidir as liturgias, mas porque a iniciação cristã faz do cristão leigo e leiga participantes do sacerdócio do Cristo, chamados a oferecer suas vidas como sacrifício agradável a Deus (cf. R, 12, 1) e capazes de promover, em seus lares e em outros ambientes, o louvor de Deus que lhes santifica a vida. 

k) Primemos pelo afeto e por relações verdadeiramente humanas! Afinal de contas, a vida é breve, e o que conta mesmo é o bem que fazemos às pessoas e o quanto podemos ser felizes no cultivo da fraternidade, da ternura e do amor! 

VI. CONCLUSÃO 

23. “O Senhor foi grande conosco, e por isso estamos alegres!” (Sl 126, 3). Não obstante tanto sofrimento que enfrentamos, teremos a graça de recomeçar. Fala-se do retorno como um “novo normal”. Gostaria que assim não fosse, pois o antigo “normal” provou sua insuficiência. Prefiro o desafio da renovação, do aprendizado, do amadurecimento, do mistério da semente que morre para gerar novo rebento. Será o tempo da criatividade suscitada pelo Espírito ou, como disse o Papa Francisco, este é o momento propício para encontrar a coragem de uma nova imaginação possível, com o realismo que só o Evangelho nos pode oferecer”(9). Como cantava o salmista, “o Senhor mudou a sorte de Sião” (Sl 126,1). Os rumos serão outros e espero que melhores! A “mística do recomeço” propõe que não esqueçamos as lágrimas da semeadura, das quais depende a fartura da colheita. Nossa fé nos pede que voltemos cantando, trazendo os feixes nos braços (cf. Sl 126,6). Afinal, mais uma noite de Egito ou de exílio ficará para trás. Agora é tempo da reconstrução, na certeza de que o Senhor sempre esteve no meio de nós e sempre nos dará a sua bênção: “Que o Senhor abençoe você desde Sião, e você veja a prosperidade de Jerusalém todos os dias de sua vida. Que você veja os filhos de seus filhos. Paz sobre Israel!” (Salmo 128 [127]). 

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA 

BÍBLIA. Edição Pastoral. São Paulo: Paulus. 2019. 

FRANCISCO, Papa. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium (A Alegria do Evangelho). São Paulo: Paulus & Loyola. 2013 

TEJO, Díaz Javier (org.). Después de la pandemia, ¿qué catequesis? Ediciones Universidad Finis Terrae, 2020 

Notas:

  • 1 Salmo 126(127), 3.
  • 2 Texto provisório. Toda contribuição será bem-vinda.
  • 3 Contato do autor: vanildopaiva@hotmail.com.  
  • 4 27 de março de 2020.  
  • 5 Trecho da música “Sementes do Amanhã”, de Gonzaguinha  
  • 6 Papa Francisco. A Alegria do Evangelho (Evangelii Gaudium), n. 168).  
  • 7 Daniel Reis. Campanha “Devolvam-nos a Missa”: novos coríntios. O mesmo erro. https://domtotal.com/noticia/1442123/2020/05/a-campanha-devolva-no-a-missa-novos-corintios-o-mesmo-erro, acessado em 21.06.2020. 
  • 8 José Flores de la Cruz. Intuiciones. La pandemia, bien entendida como una oportunidad, vino a impulsar al catequista a migrar de una catequeses solamente centrada en contenidos doctrinales y celebraciones sacramentales hacia un aprender a asumir las angustias y esperanzas del hombre de hoy como parte esencial del contenido de la catequesis, y no a tomarles en cuenta tan solo como una referencia metodológica por implementar. El catequista tuvo que aprender a dejar de hablar de Cristo Jesús para aprender a vivir como Cristo Jesús em relación íntima con las personas y comunidades. In Después de la pandemia, ¿qué catequesis? Ediciones Universidad Finis Terrae, 2020.  
  • 9 Conferir epígrafe deste texto.  

Sobre o autor:

Pe. Vanildo de Paiva

Possui mestrado em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (2014), pesquisando a ideia chave de “cuidado” em Winnicott, possui graduação em Psicologia – FAAT – Faculdades Atibaia (2011), em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1992) e em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (1989). Foi vice presidente da fundação educacional da Faculdade Católica de Pouso Alegre (FEJAN) e coordenador da extensão da Faculdade Católica de Pouso Alegre. É professor titular da Faculdade Católica de Pouso Alegre, nas áreas de Introdução ao exercício do filosofar e demais disciplinas filosóficas, bem como Psicologia Geral. Atua principalmente nos seguintes temas: cuidado religioso, desenvolvimento humano e espiritualidade, sexualidade e fé, relações humanas em ambientes religiosos, formação de educadores/as e catequistas etc. Entre seus livros publicados destacamos: Catequese e Liturgia: duas faces do mesmo Mistério. São Paulo: Paulus, 2008. Contato do autor: vanildopaiva@hotmail.com  

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É possível cristãos de igrejas diferentes compartilhar da mesma ceia do Senhor? Com a palavra o teólogo Andrea Grillo https://observatoriodaevangelizacao.com/e-possivel-cristaos-de-igrejas-diferentes-compartilhar-da-mesma-ceia-do-senhor-com-a-palavra-o-teologo-andrea-grillo/ Thu, 19 Sep 2019 15:20:26 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=31713 [Leia mais...]]]> Há tradições diferentes, todas as quais se referem à ceia do Senhor e à fração do pão, e que vivem essa celebração, embora de modo diferenciado, como fonte e ápice da comunhão eclesial. O paradoxo é que, justamente no coração da comunhão, os cristãos experimentam a divisão e a hostilidade… Não é nada escandaloso que a busca da comunhão queira ter uma relação com a celebração da santa ceia, da sagrada liturgia… Pode ser verdade que tradições diferentes, linguagens diferentes, imaginários diferentes, que se reconhecem todos reciprocamente no batismo em nome de Jesus Cristo, podem relançar a sua comunhão a partir da ceia do Senhor. O fato de que a missa e a liturgia possam se situar não no fim, mas no início, deveria ser uma possibilidade a ser redescoberta e valorizada. Como um modo de iniciar, e de se deixar iniciar, e não como um modo de terminar… O verdadeiro divisor de águas não é um prévio acordo doutrinal, que seria capaz de habilitar uma práxis litúrgica comum. Em vez disso, como preâmbulo singular, deveria amadurecer nas diversas confissões a disponibilidade de ler as diferenças não como falta de comunhão, mas como diferenças na comunhão.

Confira o artigo do teólogo italiano Andrea Grillo:

É possível compartilhar a ceia do Senhor?

“Para nós, que comemos e bebemos com Jesus, depois que Ele ressuscitou dos mortos.” (At 10, 41b)

1. Premissas

Há tradições diferentes, todas as quais se referem à “ceia do Senhor” e à “fração do pão”, e que vivem essa celebração, embora de modo diferenciado, como fonte e ápice da comunhão eclesial. O paradoxo é que, justamente no coração da comunhão, os cristãos experimentam a divisão e a hostilidade.

Sabemos bem que as diversas tradições cristãs, depois de incompreensões, lutas, divisões até mesmo sangrentas, silêncios e indiferenças, há algumas décadas, trabalham também para recuperar a comunhão perdida. Não é nada escandaloso que a busca da comunhão queira ter uma relação com a celebração da santa ceia, da sagrada liturgia. E esta não deve ser considerada apenas como a “máxima ambição”: não é verdade, de fato, que a “comunhão eucarística” se coloque apenas no fim do percurso, como o prêmio final da comunhão reconstruída. Não, o contrário também deve ser verdadeiro. Pode ser verdade que tradições diferentes, linguagens diferentes, imaginários diferentes, que se reconhecem todos reciprocamente no batismo em nome de Jesus Cristo, podem relançar a sua comunhão “a partir da” ceia do Senhor. O fato de que a missa e a liturgia possam se situar não no fim, mas no início, deveria ser uma possibilidade a ser redescoberta e valorizada. Como um modo de iniciar, e de se deixar iniciar, e não como um modo de terminar.

Isso não descarta, no entanto, que o esclarecimento necessário – eu digo não para chegar, mas ao menos para prosseguir – diga respeito, pelo menos, a três níveis de experiência da liturgia eucarística, sobre os quais as tradições se diferenciaram altamente e que eu gostaria de esquematizar assim:

  • o Corpo de Cristo – sacramental e eclesial – do modo como é compreendido e vivido;
  • a estrutura da celebração e a sua relação com o “sacrifício de Cristo”;
  • os ministérios dotados de autoridade e o seu reconhecimento recíproco entre as diversas confissões.

O que podemos identificar como problemático, ou como inaceitável, nesses três níveis não deveria ser absolutamente resolvido antecipadamente, quase como uma condicio sine qua non: o verdadeiro divisor de águas não é esse “prévio acordo doutrinal”, que seria capaz de habilitar uma práxis litúrgica comum. Em vez disso, como “preâmbulo” singular, deveria amadurecer nas diversas confissões a disponibilidade de ler as diferenças não como “falta de comunhão”, mas como “diferenças na comunhão”. Diversas teorias sobre a presença, diversas compreensões da relação com o sacrifício e diversos modos de exercer a autoridade foram percebidos, na história, como graves motivos de “ruptura da comunhão”. Cada um se sentiu negado pelo outro. Hoje – na disponibilidade recíproca, que sempre custa muito a todas as partes envolvidas – essas mesmas diferenças podem se tornar motivos de “riqueza na comunhão”.

O que muda é, acima de tudo, a percepção do outro e do seu mundo. Para entrar em sintonia, para perceber o outro na sua riqueza, para construir percursos reais de comunhão, não devemos apenas nos preocupar em traduzir as tradições alheias nas nossas categorias, e as nossas nas alheias, mas em “aprender a sua língua, com todas as suas regras”. Para usar a bela imagem proposta por George Lindbeck: faz-se ecumenismo não “traduzindo pensamentos e conceitos diferentes”, mas “aprendendo a falar línguas diferentes”. Para fazer isso, não devemos apenas estudá-las, mas também devemos praticá-las. A prática comum – da oração e da liturgia, da fé e da caridade – é uma das condições para esperar e para fazer a comunhão. Não se trata, portanto, de inventar uma “missa ecumênica”, mas de reconhecer que a eucaristia, a santa ceia, a santa liturgia é, em si mesma, visceralmente uma questão de unidade, uma questão ecumênica.

2. Uma autorreflexão católica, entre Ocidente e Oriente

Gostaria de aprofundar, em particular, alguns aspectos decisivos do desenvolvimento pós-conciliar. Evidenciando, acima de tudo, a profunda mudança da compreensão da “ação ritual” – como linguagem comum para toda a Igreja – e da forma de “participação” (actuosa participatio) que transforma a compreensão da liturgia e da eucaristia, recuperando o perfil eclesiológico do sacramento. Isso determina as seguintes consequências preciosas, estabelecidas com autoridade pela constituição litúrgica do Concílio Vaticano II:

  • A recuperação das múltiplas formas da “presença” de Cristo na liturgia (SC 7)

Não só a “presença real”, mas também a presença no ministro da eucaristia, presença na Palavra proclamada, presença nos sacramentos, presença na assembleia reunida para o louvor e para a oração. Essa ampliação de “formas” torna a comunhão mais ampla e articulada.

  • A reestruturação e requalificação da “liturgia da palavra” (SC 24, 35)

Entre essas formas, a experiência da “palavra proclamada” é posta novamente no centro da tradição litúrgica católica. Esse grande enriquecimento de textos e de sequências rituais requer uma profunda conversão pastoral e espiritual, que tem um impacto muito significativo também sobre a “inteligência teológica” da comunhão eucarística.

  • A contextualização da “consagração” no centro da oração eucarística

O “fazer memória” da eucaristia não se limita apenas às “palavras da consagração”, não é apenas repetição pontual de um ato, mas é retomada abrangente de uma “ação” do Senhor. Possibilitada pela “Palavra proclamada”, restituída como Palavra rezada na anáfora eucarística, em cujo interior são repetidas como narrativa instituinte as palavras da última ceia, e realizada com o rito da comunhão, que é fração de pão e participação no único pão partido e no único cálice compartilhado. Às “palavras” da instituição não corresponde apenas a “consagração”, mas sim a sequência “anáfora-comunhão”.

  • A sequência “oração-rito” como sucessão entre “anáfora-comunhão”

Essa recompreensão mais ampla da ação eucarística – que passa da lógica essencial da relação seca de um ato entendido como relação seca entre forma-matéria-ministro à sequência ritual entendida como “ação de Cristo e da Igreja” entre palavra, oração e rito – desloca a atenção da exclusividade da consagração, com a inevitável marginalização da comunhão e da Palavra proclamada, à correlação entre palavra e ação, entre anáfora e comunhão.

  • A recuperação da “participação mais perfeita” mediante a comunhão do pão e do cálice (mais do que “sob as duas espécies”).

No âmbito dos “pedidos de reforma” que o Concílio Vaticano II explicita acerca da eucaristia (SC 50-57), deseja-se, na SC 55, a recuperação da comunhão do único pão partido e do único cálice compartilhado. A relação entre pão, vinho, corpo e sangue pode ser pensada com o conceito de “espécie”, mas, para ser celebrado, precisa de categorias menos essencialistas. O sinal, para determinar uma “participação mais perfeita”, precisa de categorias conceituais menos limitadas. O contato ritual não é idêntico ao conceito teológico: certamente pode ser mais pobre, mas também pode se revelar mais rico.

3. Consequências sobre os três pontos considerados

a) A presença do Corpo de Cristo na eucaristia é, ao mesmo tempo, sacramental e eclesial. Ou, melhor, precisamente o reconhecimento de Tomás de Aquino do significado de “unidade da Igreja” como “efeito principal” da eucaristia continua sendo um marco da tradição, também no momento em que a própria tradição se enrijecia em uma leitura da “consagração” como essência, em relação à qual todo o resto seria redutivamente apenas “usus” do sacramento. Hoje, nós temos a tarefa de interpretar de modo mais amplo essa relação entre sacramento e Igreja, que a tradição atesta com argumentações às vezes frágeis demais.

b) Essa recuperação da “unidade da Igreja” como conteúdo da eucaristia leva a uma recompreensão da “sequência abrangente” – comunhão-anáfora-comunhão – que substitui a centralidade “essencial” da consagração. Poderíamos dizer que a eucaristia tem (e deve ter) uma lógica “mais do que necessária” e “supraessencial”. A distinção entre “essência/uso”, que volta a atenção apenas à fórmula, matéria, ministro, é substituída pela articulação entre forma ritual, matéria simbólica e relação entre presidência/ministérios/assembleia. A “ação de Jesus” não pode ser reduzida a um único “ato”.

c) A mudança de perspectiva determina e, de certo modo, pressupõe uma mudança na concepção do ministério. Se a liturgia é, acima de tudo, ação de Cristo e da Igreja, que liturgicamente envolve uma “actuosa participatio” de todo o povo de Deus, tal recompreensão relê o papel do presbítero/bispo como “presidência de uma celebração da assembleia” e não como “celebrante”. Tirando das costas do presidente a responsabilidade da celebração, essa leitura pode possibilitar, imediatamente, também no campo católico, o caminho rumo ao reconhecimento da “comunhão nas diferenças”, em vez da “excomunhão das diferenças”.

4. Apartheid a ser superado e tolerância alegre/fatigante das diferenças

Se ampliarmos o olhar, acredito que podemos reconhecer que a raiz mais fecunda da tolerância tardo-moderna não é indiferença às diferenças, mas a não indiferença às diferenças. Como também reconheceu Paolo Ricca, no seu livro sobre a última ceia que é a primeira, no momento em que a “hospitalidade eucarística” puder ser formalmente permitida, deveremos exercer, de modo novo, uma forma de tolerância que eu chamaria de interessada. Gostaria de dar um exemplo sobre a compreensão diferente da “presença do Senhor crucificado e ressuscitado” na comunidade eucarística. Não quero falar aqui das “diversas doutrinas”, mas das “diversas práticas” que surgiram – ou que, talvez, inspiraram – diversas doutrinas.

O que acontece, em particular, com o pão “consagrado” depois do fim da ceia? Aqui, precisamente no nível da prática diferente, serão postas à prova as nossas compreensões e as nossas tolerâncias. Tento fazer uma descrição disso em “âmbitos confessionais”:

  • cristão católico certamente poderá continuar “guardando” as partículas consagradas e poderá continuar repondo-as no sacrário, fazer delas objeto de adoração e até mesmo participar das 40 horas, da adoração noturna… mas deverá respeitar a possibilidade de que outros cristãos, em um caminho de verdadeira comunhão, possam se abster de realizar esses atos, sem, por isso, negar a presença do Senhor na eucaristia.
  • cristão evangélico certamente poderá continuar habitando a santa ceia com o canto e com a pregação, com o sermão e com a caridade, e poderá reconhecer o Senhor presente no momento em que o pão partido e o cálice compartilhado são participados por cada um membro da assembleia. Mas deverá respeitar como uma possibilidade diferente que outros cristãos possam habitar a sala eucarística mesmo na ausência de celebração, para parar em oração ou para adorar o Santíssimo Sacramento.

Uma Igreja verdadeiramente hospitaleira – ou seja, que vive a consciência de “ser hospedada” pelo seu Senhor – poderá descobrir nessas diferenças uma grande riqueza recíproca. Sem que um prejudique os outros e sem que ninguém se sinta desqualificado pelo juízo de uma experiência e de uma tradição diferente. A unidade fundamental no Senhor que vem em meio aos seus na Palavra e no Sacramento pode ser o princípio radical de uma fecunda e recíproca hospitalidade. Para continuar “comendo e bebendo com ele, por ele e nele”.

Ou, parafraseando Agostinho, para reconhecer que, na comunhão eucarística, todos fazemos a experiência tocante em que o Senhor “reza por nós, reza em nós e é rezado por nós”, como único Sacerdote, como Cabeça do Corpo e como Filho de Deus. Se soubermos nos mover nessa direção, exigente mas promissora, não tardaremos a nos encontrar em torno da mesma mesa, com o mesmo Senhor, no mesmo Espírito, rumo ao mesmo Pai.

Apêndice: sete teses sobre a “hospitalidade eucarística”

Sobre o tema que abordamos, Paolo Ricca lembrou um importante documento de 2003 [disponível aqui, em italiano], fruto do trabalho ecumênico de três institutos alemães, evangélicos e católicos.

Publico aqui as sete teses elaboradas pelo documento, omitido a ampla explicação que se segue a cada tese e que pode ser lida na versão completa do documento. Parece-me decisiva a primeira tese, que, invertendo o ônus da prova, muda o horizonte da argumentação teológica clássica, amadurecida em um contexto de radical conflito.

Tese 1: É preciso justificar não a admissão dos cristãos batizados na ceia/eucaristia comum, mas sim a sua rejeição;

Tese 2: A comunhão ecumênica vivida localmente e a falta de comunhão na ceia/eucaristia são realidades contraditórias. Isso enfraquece o testemunho confiado às Igrejas e as torna não credíveis diante dos desafios levantados pela sociedade;

Tese 3: Em muitos casos excepcionais, a comunhão eucarística já é permitida aos indivíduos hoje;

Tese 4: O batismo é a porta de entrada para a comunhão da Igreja, para o corpo de Cristo, que se reconstitui continuamente na ceia/eucaristia;

Tese 5: Jesus Cristo convida para a ceia/eucaristia. Ele é doador e dom. A Igreja dirige o convite apenas no seu nome e pelo seu encargo. Isso não pode ocorrer de modo indiscriminado, mas deve corresponder à vontade de Jesus;

Tese 6: A comunhão eucarística ultrapassa a comunhão eclesial;

Tese 7: A Igreja vive como comunidade no anúncio, no culto e no serviço ao mundo. A comunhão eclesial pressupõe essas ações e uma concepção comum de fundo, mas não uma determinada configuração histórica;

  • Tese 7.1: Comunhão na fé: as diversas representações do testemunho eclesial e da interpretação normativa da fé comum em Jesus Cristo como salvação do mundo não são necessariamente tais a ponto de dividir a Igreja;
  • Tese 7.2: Comunhão na compreensão da ceia/eucaristia: os diálogos ecumênicos chegaram a um profundo acordo sobre os temas tradicionalmente controversos em matéria de compreensão da ceia/eucaristia. Por isso, as diferenças que ainda permanecem não impedem uma celebração comum da ceia/eucaristia;
  • Tese 7.3: Comunhão na compreensão do ministério: apesar das diferenças que ainda existem sobre a questão do ministério, hoje se realizou, sobre os elementos fundamentais, uma convergência que torna possível a hospitalidade eucarística;
  • Tese 7.4: Comunhão no serviço ao mundo: diaconia, comunhão e eucaristia se condicionam mutuamente.

(Os grifos são nossos)

P.S.: Em Milão, em novembro de 2017, ocorreu um encontro sobre o tema “É possível compartilhar a ceia do Senhor? Esperanças e expectativas para uma mesa compartilhada no ‘fazer memória’ e testemunhar juntos o Evangelho”, organizado por diversas associações eclesiais, que contou com a participação do teólogo e pastor valdense Paolo Ricca e do teólogo italiano Andrea Grillo. A conferência de Grillo, revisada pelo autor, foi publicada por Come Se Non, 27-11-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Fonte:

IHU

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Para iluminar… a liturgia da Páscoa https://observatoriodaevangelizacao.com/para-iluminar-a-liturgia-da-pascoa/ Sun, 01 Apr 2018 12:49:44 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=27726 [Leia mais...]]]> Cristo vive para sempre

DOMINGO, 1º DE ABRIL DE 2018: PÁSCOA DA RESSURREIÇÃO – ANO B

Neste dia, Aleluias se espalham por toda parte; pois a vida é mais forte do que a morte e o amor, mais forte do que o ódio. Hoje é dia de luz e de alegria, porque mulheres e homens O encontraram Vivo. Cristo ressuscitou! Está vivo, entre nós e para nós.

TEXTOS DESTE DOMINGO

1ª leitura: “Nós que comemos e bebemos com ele, depois que ressuscitou dos mortos” (Atos 10,34.37-43).

Salmo: Sl. 117(118) – R/ Este é o dia que o Senhor fez para nós: alegremo-nos e nele exultemos!

2ª leitura: “Esforçai-vos por alcançar as coisas do alto, onde está Cristo” (Colossenses 3,1-4).
Sequência: Cantai, cristãos, afinal: “Salve, ó vítima Pascal!”

Evangelho: “Será que o Cristo não devia sofrer tudo isso para entrar na sua glória?” (João 20,1-9)

CRER SEM VER

Aqui estamos novamente no centro da nossa fé, diante da sua prova definitiva, do núcleo de onde jorra a única luz capaz de iluminar as trevas que a vida nos dá para atravessar. Deus, fundamento e fonte de tudo o que existe, veio esposar a nossa morte. Ou melhor, veio esposar-nos em nossa morte. Do leito nupcial da Cruz, nasceu uma vida nova. Vida que, primeiro, manifestou-se por uma ausência. Para que tudo se mantivesse em ordem, teria sido preciso que o cadáver de Jesus tivesse permanecido enterrado em seu lugar, num dos túmulos de nossos cemitérios. Mas eis que Maria Madalena, Pedro e João não encontraram senão um túmulo vazio. Vazio e aberto! Como se, daí em diante, a morte se comunicasse com a vida sem mais nenhum obstáculo. A primeira explicação foi de que haviam levado o corpo, para colocá-lo em outro lugar. «Alguém». Mas, quem? Os discípulos, como se mostra em seguida, estavam aterrorizados demais, para terem feito tal proeza (ver João 20,19). Esta remoção haveria de ter sido clandestina. Como, então, na pressa, arrumarem-se meticulosamente as faixas de linho e o pano que lhe envolveu a cabeça? Os detalhes da versão segundo João tendem a colocar-nos em presença de um túmulo que jamais fora usado, como se a Ressurreição tivesse sido contemporânea à morte. De fato, tudo se passara na invisibilidade, num «universo» que escapa à nossa temporalidade. Ninguém viu Jesus levantar-se nem sair do túmulo. Por isso, com exceção deste evangelho que diz ter João «visto e acreditado», os outros textos todos insistem na dificuldade de crer, com referência aos discípulos. E a maior parte de nós segue por este mesmo caminho.

 

A PROVA E A PLENITUDE DA FÉ

O evangelho não diz o que João viu, nem sequer no que acreditou. De fato, ele não viu nada. Viu que ali onde deveria ver um cadáver não havia nada. «Por que procurais entre os mortos aquele que vive?» (Lucas 24,5). Daí em diante, Jesus vai se encontrar onde se encontram os vivos. Sua visibilidade agora se passou para todos os humanos, e nos tornamos a sua morada, quando unidos pela fé. Com efeito, a fé nos faz ver o que os olhos não podem enxergar. E, todavia, é este invisível que faz existir tudo o que se vê, e o que o salva da insignificância, da sua ausência de sentido. Pois, o que pode significar de fato uma vida que acaba por se dissolver no nada? Não podemos imaginar que, dia após dia, estamos caminhando para a morte. A morte não é um termo; é sim uma via, uma passagem. Para a fé e pela fé, seguimos para a vida. A morte tem somente a antepenúltima palavra. Confessemos que a Ressurreição de Cristo e os relatos que a anunciam são uma verdadeira prova para a fé. De fato, é aí que a fé encontra a sua verdade: o que significaria uma fé que não chegasse até à vitória da vida? O que significaria um poder de Deus que fosse posto em cheque pela morte? O que seria este «Amor», se nos deixasse perecer? Recapitulada e fundada na Ressurreição de Cristo, a nossa ressurreição é necessária para que Deus seja Deus. Este é o fundamento da nossa fé, e também a sua comprovação, através deste «mistério» do qual, no entanto, só podemos tomar conhecimento por meio dela.

 

“NÃO TENHAIS MEDO”

A menção ao medo aparece duas vezes no evangelho da Vigília pascal. E de que é preciso não ter medo? Da morte, com certeza, mas o fim do medo da morte só virá mais tarde. Neste texto, para Maria Madalena e Salomé trata-se do medo da vida, desta vida nova, que fez da morte, um segundo parto. Assim como nós, também elas estão habituadas a ver na morte o contrário da vida; e eis que estes dois «adversários» entram agora em conivência. A morte, dali em diante, está condenada a produzir a vida, uma vida para além da nossa experiência. Conforme João, esta Maria, que a Tradição sempre assimilou a Maria Madalena, já havia testemunhado a ressurreição de seu irmão Lázaro, assim, este sinal a encontrara crente. Mas, mesmo que, no texto, a ressurreição de Lázaro não tenha sido da mesma natureza que a de Cristo, manifestou-se Ele como senhor da vida e vitorioso sobre a morte, mantendo-se então fora e acima do combate a que ambas se entregavam. Agora, no entanto, mostra-se como parte interessada, imerso em seu afrontamento. Eis aí, agora, a revelação de um mundo que não se havia suspeitado. As duas mulheres permanecem mudas. Estamos acostumados de tal forma à proclamação da Ressurreição de Cristo que não nos deixamos abalar por ela. Pois acostumemo-nos antes de tudo a buscar e a experimentar o medo e a estupefação das primeiras testemunhas. Para, só em seguida, buscarmos a fé, fonte de uma alegria que está à prova da perspectiva da morte.

Marcel Domergue, jesuíta (tradução livre de www.croire.com pelos irmãos Lara)

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Conversas sobre o Ofício Divino das Comunidades – Ir. Bruno da Comunidade de Taizé https://observatoriodaevangelizacao.com/conversas-sobre-o-oficio-divino-das-comunidades-ir-bruno-da-comunidade-de-taize/ Mon, 05 Mar 2018 18:23:40 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=27495 [Leia mais...]]]> A contribuição da Comunidade de Taizé

Nossa conversa sobre o Oficio Divino das Comunidades vai agora focar a atenção sobre a experiência de Taizé, comunidade ecumênica que tem participação fundamental na sua elaboração. As primeiras experiências de um ofício popular, realizadas no Brasil, pelo Pe. Geraldo Leite, teve nela sua inspiração. Pe. Geraldo passou nove meses convivendo com a simplicidade e a beleza dos ofícios na comunidade de Taizé (França), e foi esta experiência que o animou a começar, no Brasil, precisamente em Ponte dos Carvalhos, um Ofício Divino com o povo.

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O Irmão Michel da Comunidade de Taizé, que viveu no Brasil e fundou uma comunidade, em Alagoinhas (BA), com sua longa trajetória de celebrar o ofício com o povo, participou do processo de elaboração do Ofício Divino das Comunidades, dando sua colaboração bem precisa e muito valiosa. Ambos já fizeram sua páscoa e participam do incessante louvor na casa do Pai, mas suas contribuições continuam vivas no Ofício Divino das Comunidades e são transmitidas, agora, pelo Irmão Bruno, da mesma comunidade de Alagoinhas. De modo muito sincero, ele diz: “não falo muito”. Mas suas respostas curtas dão o que pensar… Ousamos, comentá-las, para aprofundarmos a contribuição que ele oferece neste bate-papo. Em nossos comentários não queremos repetir simplesmente o que ele diz em suas breves respostas, mas refletir com ele alguns aspectos importantes sobre a prática do Ofício Divino das Comunidades.

(Para fins de distinção, transcrevemos as respostas de Irmão Bruno, seguida pelo comentário, em itálico).

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Irmão Bruno, da comunidade de Taizé de Alagoinhas – BA

1. Qual a contribuição da liturgia de Taizé na elaboração do Ofício Divino das Comunidades (ODC)?

Irmão Bruno: Como toda liturgia, o Ofício Divino é um corpo vivo. Veicula verdades perenes e circunstanciais. Necessita adaptar gênero literário e vocabulário para que as mentalidades do tempo presente possam se situar como realidade viva, corpo orante. Ir. Michel passou esta intuição.

— A intuição do Irmão Michel, segundo as palavras de Irmão Bruno, não se refere a um livro apenas, e ao que ele contém. Está falando da celebração, dos cantos, dos gestos, dos símbolos como o incenso, a música e o espaço com todos os elementos. Está falando das pessoas: as histórias que elas carregam, as situações que vivem, os sonhos que nutrem. O Ofício Divino das Comunidades como corpo vivo tem a ver com a Igreja, que é Corpo orante de Cristo ressuscitado, o vivente, que continua o seu louvor nas expressões particulares do Brasil com sua diversidade regional e traz para a celebração as suas feições mais próprias. Por sua qualidade de corpo, está ligado ao restante dos membros (ao nosso país com toda sua riqueza humana e à Igreja universal que abraça tudo o que traduz a fé).

2. Os refrãos meditativos no Ofício Divino das Comunidades são amplamente utilizados. Como você avalia esta utilização?

Irmão Bruno: O Ofício Divino das Comunidades existe em várias versões: há a edição básica e edições menores também para jovens, adolescentes e crianças, nas quais os mantras são muito valorizados… Estes refrãos meditativos cantados são da ordem da oração do coração. A contribuição de Taizé virou patrimônio de toda a Igreja. Taizé escolheu letras da Bíblia ou dos santos. Taizé não tem primazia, porém tem grande aceitação.

— “A ordem do coração” sobressai no texto do Irmão Bruno… Os mantras talvez exprimam esse segredo da comunidade de Taizé: pequenos textos cantados repetidamente, sem o muito falar das nossas celebrações. A circularidade do canto, a cadência, a palavra ressoada e o clima orante que se estabelece, conduz o corpo-Igreja para o coração do Mistério e para o íntimo das pessoas, fazendo todos e cada um experimentar a verdade da fé, na comunhão dos irmãos e irmãs e na própria experiência de Deus. Taizé aponta a direção do coração, lá onde os segredos se escondem e o mistério faz livre e gratuita morada. A ordem do coração supera as lógicas do raciocínio, da presunção, da oração orgulhosa que não agrada a Deus. A ordem do coração permanece na soleira do templo, onde o humilde se esvazia de si mesmo diante do mistério (Lc 18,9-14). A lógica do coração admite a ritualidade dos humildes, as palavras dos santos, pequenos trechos da Bíblia, em busca da “serena alegria”… É patrimônio da Igreja! Taizé deu ao Ofício Divino das Comunidades o que tinha de melhor: mais que os mantras e os seus cantos, deu o espírito de gratuidade na oração.

3. Quais as semelhanças e diferenças entre os ofícios de Taizé e as celebrações do Ofício Divino das Comunidades?

Irmão Bruno: Pela sua natureza ecumênica, ladainhas e introduções, os dois ofícios são reflexo de catolicidade. Embora a estrutura seja, grosso modo, a mesma, Taizé não coloca a memória do dia, porque salienta mais o lado da contemplação. Taizé privilegia o silêncio após a Palavra.

— Irmão Bruno indica outra maneira de entender a catolicidade: universalidade. O que é universal é de todos e não é propriedade de ninguém. No Ofício Divino das Comunidades, assim como nos ofícios de Taizé, o componente ecumênico da oração abraça o que é universal e o que escapa dos rótulos e partidarismos. As ladainhas e introduções (aberturas), por sua repetição e popularidade são acessíveis e encantam muito! O silêncio após a Palavra tem a primazia: espaço para deixar falar Aquele que é inominável. A memória do dia cede lugar à contemplação, com ênfase na oração pessoal dentro da oração comunitária. Não nega a importância da recordação da vida, tão valorizada no Ofício Divino das Comunidades, mas talvez mostra um lado desconhecido e temido pela nossa mentalidade religiosa ocidental. Em tempos de pós-modernidade, que tanto valoriza o sentir e o experimentar, é preciso redescobrir o caminho certo da experiência subjetiva como oportunidade de conduzir ao mistério de Cristo, enquanto experiência objetiva da fé.

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Irmão Bruno

4. Qual a contribuição do ODC para a Igreja do Brasil

Irmão Bruno: Após o Concílio Vaticano II e a redescoberta da participação ativa do povo de Deus na liturgia, vejo o Ofício Divino das Comunidades como a resposta mais ajustada, principalmente pelos salmos e músicas (mérito de Jocy Rodrigues, Geraldo Leite, Reginaldo Veloso e outros).

— A participação dos fiéis, fruto do Movimento litúrgico que se afirma no Concílio, rompeu com séculos de separação e distanciamento entre o povo e a liturgia da Igreja. Embora estejamos longe de mensurar o seu alcance, poder participar das ações litúrgicas, ativamente e com conhecimento de causa, representa grande avanço. No Ofício Divino das Comunidades todos(as) cantam, todos(as) se elevam a Deus, todos(as) têm acesso à liturgia, o que faz dele uma resposta mais ajustada ao nosso mundo plural e com tanta diversidade…

5. Quais elementos ecumênicos você destaca no ODC?

Irmão Bruno: O Ofício Divino das Comunidades não cuidou apenas dos aspectos ecumênicos, mas incorporou elementos que se referem ao macro-ecumenismo, como por exemplo, preces de outras tradições e religiões.

— De fato, no Ofício Divino das Comunidades os elementos ecumênicos se fazem presentes: a oração do Senhor em versão ecumênica, o sentido cristológico, trinitário e bíblico da oração, a inclusão de hinos de outras tradições cristãs e denominações, o cuidado e a opção pela linguagem inclusiva e popular. O Irmão Bruno volta a atenção para o aspecto macro-ecumênico, também chamado hoje de “inter-religioso”. O Ofício Divino das Comunidades incorpora elementos religiosos de outras tradições; basta tomarmos como exemplo os ofícios para circunstâncias especiais, quando, diante de situações de fronteira e de limite, falam menos as diferenças e mais a busca pela vida, pela paz e pela sobrevivência. Tudo isso depõe a favor do Ofício Divino das Comunidades como oração de todos(as) e aberta a todos(as).

6. A tradição monástica contribuiu para a liturgia do Ofício Divino das Comunidades? Como?

Irmão Bruno: As comunidades monásticas foram guardiãs desta tradição da Igreja ao longo dos séculos e mantiveram a forma mais primitiva da oração comunitária. O Ofício Divino das Comunidades não propõe ao povo todos os ofícios dos monges, mas as duas horas principais, como acontecia nas comunidades eclesiais dos primeiros séculos.

— O Irmão Bruno nos remete aos primórdios dos ofícios da Igreja: os ofícios monásticos e os ofícios de catedral. Os primeiros, com suas diversas horas, organizados para as comunidades de homens e mulheres com a vida dedicada e consagrada à oração. A segunda forma, os ofícios de catedral ou de paróquia, eram especialmente marcada pela oração da manhã e da tarde, com a presença de todo o povo de Deus: famílias, jovens e crianças, também os monges e monjas, presbíteros e bispo… Infelizmente, o segundo modelo praticamente se perdeu na Igreja ocidental, mas está renascendo com iniciativas como as de Taizé, desde o movimento litúrgico, e a Liturgia das Horas do Concílio Vaticano II, que em nossas comunidades chega na forma do Ofício Divino das Comunidades, onde o povo toma parte na oração em momentos especiais do dia, do ano litúrgico e de circunstâncias especiais.

Fonte: Revista de Liturgia – 220 – Ano 37, entrevista organizada e publicada pelo Pe. Renato, SJ, em seu blog Caminhos de Formação.

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