Leonardo Boff – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com Tue, 01 Mar 2022 12:00:00 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.7.2 https://i0.wp.com/observatoriodaevangelizacao.com/wp-content/uploads/2024/04/cropped-logo.png?fit=32%2C32&ssl=1 Leonardo Boff – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com 32 32 232225030 O perdão: a grandeza e a dignidade das vítimas de extrema violência. Artigo de Leonardo Boff https://observatoriodaevangelizacao.com/o-perdao-a-grandeza-e-a-dignidade-das-vitimas-de-extrema-violencia-artigo-de-leonardo-boff/ Tue, 01 Mar 2022 12:00:00 +0000 https://atomic-temporary-74025290.wpcomstaging.com/?p=43994 [Leia mais...]]]>

O perdão é um tema urgente em nosso tempo! Os horizontes do perdão se configuram em processos de elaboração de traumas causados por crimes, tragédias, exclusões sociais ou por elementos que, simplesmente, fazem parte das dores da vida de toda e qualquer pessoa. É preciso, por isso, atestar que ocorreu uma ferida e entender a sua trajetória, os seus efeitos e impactos sociais, humanitários e pessoais. Podemos apenas pensar em horizontes de perdão, por isso mesmo, quando temos possibilidades hermenêuticas, propiciadas por sociedades democráticas ou grupos de resistência, que não aceitam pagar violência com violência. É possível alcançar um estado de harmonia e de paz, quando buscamos caminhos para a ressignificação. Para tanto, torna-se imprescindível elementos como a tolerância, a justiça e a reconciliação. Como afirma o filósofo francês Paul Ricoeur, o perdão é difícil, mas possível. Perdoar não é uma obrigação, não é casual, mas extraordinário, um transbordamento, um dom, expressão do divino no humano, profundamente humano! Cremos que, participantes de uma tradição cristã, em várias abordagens corre, como um rio de água viva, a possibilidade de um perdão maior. Daquela fonte que de tanto amor, torna-se vítima que perdoa, matando a própria inimizade. A história de Cristo mesmo como antecipação escatológica de um novo reino no qual todos são irmãos. No artigo a seguir, Leonardo Boff faz uma apresentação profunda do tema, tomando como inspiração o livro “Horizontes de Perdão” (Ideias e Letras, 2020) organizado por Dom Vicente Ferreira e pelo professor René Dentz (membro da equipe executiva do Observatório):

Por iniciativa do bispo Dom Vicente Ferreira, pastor da região da tragédia de Brumadinho-MG e do professor e psicanalista René Dentz, foi organizado um livro que recolhe excelentes estudos sobre o perdão: “Horizontes de Perdão” (Editora Ideias & Letras 2020, pp.180). Sua singularidade reside no fato de terem sido escolhidos exemplos de perdão de diferentes países com suas culturas e tradições próprias.

 Queremos comentar esta obra por sua alta qualidade e por abordar um tema de grande atualidade, também largamente abordada pelo Papa Francisco na sua encíclica social Fratelli tutti (2020).

O livro “Horizontes de Perdão” tem como foco pensar o perdão a partir do sofrimento concreto e terrível, suportado por vítimas humanas inocentes ou por todo um povo vitimado durante séculos. Aqui reside sua grande força e também o seu poder de convencimento.

 Um exemplo, descrito e analisado pelo bispo Dom Vicente Ferreira e de René Dentz, também organizador desta obra, vem do Brasil, das tragédias criminosas do rompimento de duas barragens da mineradora Vale, em Mariana-MG no dia 05 de novembro de 2015, matando 19 pessoas e destruindo a bacia do Rio Doce, com 55 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério, e Brumadinho-MG, no dia 25 de janeiro de 2019, com a ruptura da barragem da mesma mineradora Vale, vitimando 272 pessoas, soterradas sob 12,7 milhões de metros cúbicos de lama e detritos.

O livro abre com um minucioso estudo do bispo Dom Vicente Ferreira, pastor, poeta, músico e profeta: “Brumadinho: o perdão a partir das vítimas de crimes socioambientais”. Precede-o uma pertinente análise de conjuntura global, sob a hegemonia do capital, uma máquina de fazer vítimas no mundo inteiro. A mineradora Vale representa a lógica do capital que prefere o lucro à vida, aceitando o risco de dizimar centenas de pessoas e de danificar profundamente a natureza. Mesmo consciente dos danos perpetrados, reluta em compensar com justiça e equidade as famílias e pessoas afetadas.

Dom Vicente procura entender o processo vitimatório da globalização do capital com as categorias do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos e a compreensão da violência com a psicanálise de Sigmund Freud que, face à nossa capacidade de superar a violência, se mostra, de certa forma, cético e resignado.

Dom Vicente supera esta resignação com a contribuição da mensagem cristã bem no espírito da Fratelli tutti do Papa Francisco. Esta testemunha o sacrifício da vítima inocente, do Crucificado que rompeu o círculo da vingança e do ressentimento com o perdão a seus algozes. Esta visão foi bem desenvolvida pelo pensador René Girard, referido no estudo. Este pensador francês emerge como um dos que melhor estudou a dinâmica da violência que se origina pelo desejo mimético excludente (alguém quer só para si um objeto excluindo a terceiros), mas que a proposta cristã mostrou que este desejo mimético pode ser transformado em includente (desejamos juntos e compartilhamos o mesmo objeto) pelo perdão incondicional.

 Mas esse perdão coloca a exigência de justiça a ser praticada por aqueles que provocaram o desastre criminoso, no caso os responsáveis da mineradora Vale. Essa luta, o bispo a leva com determinação e ternura, com canto, poesia e oração junto com a comunidade dos sofredores que ele incansavelmente, com uma generosa equipe, acompanha. Cabe citar novamente o que diz a Fratelli tutti: “Não se trata de propor um perdão renunciando aos próprios direitos perante um poderoso corrupto… Quem sofre injustiça tem de defender vigorosamente os seus direitos e os da sua família, precisamente porque deve guardar a dignidade que lhes foi dada, uma dignidade que Deus ama” (n. 241).

Para entender melhor a dinâmica da violência e do perdão, alguns autores foram seminais: o filósofo francês Paul Ricoeur com seu livro “La mémoire, l’histoire, l’oubli” (Paris, Seuil 2000) e Franz Fanon, “Os condenados da Terra” (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira 1968).

A reconciliação e o perdão não terminam em si mesmos. Novamente a Fratelli tutti é inspiradora:

 “Como ensinaram os bispos da África do Sul, a verdadeira reconciliação alcança-se de maneira proativa, ‘formando uma nova sociedade baseada no serviço aos outros, e não no desejo de dominar; uma sociedade baseada na partilha do que se possui com os outros, e não na luta egoísta de cada um pela maior riqueza possível; uma sociedade na qual o valor de estar juntos como seres humanos é, em última análise, mais importante do que qualquer grupo menor, seja ele a família, a nação, a etnia ou a cultura’ (n. 213). E os bispos da Coreia do Sul destacaram que uma verdadeira paz ‘só se pode alcançar quando lutamos pela justiça através do diálogo, buscando a reconciliação e o desenvolvimento mútuo'” (n. 229).

Releva enfatizar: cada povo e cada grupo encontraram caminhos próprios para chegar ao perdão. Assim, por exemplo, para os afrodescendentes brasileiros é imprescindível para um perdão real que os brancos que os vitimizaram pela escravidão reconheçam a desumanidade que cometeram, reforcem a identidade africana e os restaurem na sua dignidade ofendida. Bem se disse: “o perdão é mais que uma justa justiça, antes é da ordem da doação – doação aos outros”.

 No Congo Brazzaville, país marcado por sangrentas guerras civis, o conceito chave foi “palaver”, recorrente nos países do sul do Saara.

 “Palaver” implica buscar a verdade pelo diálogo, pela liberdade de todos falarem, independentemente de seu lugar social e de gênero, até se elaborar um consenso em função da paz social; todos se perdoam mutuamente, sem penalizar ninguém, mas todos se propõem corrigir os erros. O texto mostra como esse pacto pela ganância do poder de grupos e pela vasta corrupção que assola o país não conseguiu prevalecer e ter sua sustentabilidade garantida. Mas vale a tentativa.

Na África do Sul, o conceito-chave no processo de reconciliação e de perdão, conduzido pelo arcebispo anglicano Desmond Tutu, foi a categoria “Ubuntu”. Ela fundamentalmente expressa essa profunda verdade antropológica: “eu só sou eu através de você”. Todos se sentem interligados. A estratégia era: o vitimador confessa seu crime com toda sinceridade; a vítima escuta atentamente e narra a sua dor; restaura-se a justiça reparadora e restaurativa, eventualmente aceita-se uma punição curativa, exceto para os crimes mais hediondos de lesa-humanidade, que são encaminhados ao tribunal competente.

 Outra contribuição trabalha estudos avançados de mereologia (como as partes se relacionam com outras partes, como elas se situam no todo e como dentro dele se movem). Os dois autores articulam os dados numa certa harmonia, base para o perdão, assim definido por eles:

 “A superação do afeto negativo e do julgamento em relação ao ofensor, não negando a nós mesmos o direito a tal afeto e julgamento, mas se esforçar em ver o ofensor com compaixão, benevolência e amor”.

 O pressuposto antropológico é que por mais criminoso que alguém seja, nunca é só criminoso, jamais deixa de ser humano com muitas outras virtualidades também positivas. Da mesma forma, por mais que a população trazida violentamente da África para ser escrava no Brasil, nunca os senhores de escravos conseguiram matar-lhes a liberdade. Eles resistiram e procuraram sempre conservar sua identidade cultural e religiosa. O quilombolismo é disso uma prova ainda hoje visível nas centenas de quilombos existentes, onde se vive uma vida mais comunitária, igualitária, na linha do “Ubuntu”.

 Entretanto, enquanto não se parar de dar um download do ressentimento e do espírito de vendetta, nunca se rasgará o caminho para um verdadeiro perdão. Não se trata de esquecimento, mas de não deixar de ser refém de um interminável ciclo de amargura e de mágoa.

 Nesse ponto do perdão generoso, o cristianismo mostrou seu capital humanístico. Como o texto de Dom Vicente o mostra e especialmente o da Colômbia que assim o expressa: perdoar o imperdoável não é só uma amostra como o espírito humano pode revelar a sua transcendência, a sua capacidade de estar para além de qualquer situação por mais desumana que se apresente, mas é acima de tudo o dom da graça divina. Perdoamos porque fomos perdoados por Deus e por Cristo cuja misericórdia não sofre nenhuma limitação.

A justiça é irrenunciável. Mas não é ela que escreve a última página da história humana. Excelentemente respondeu o filósofo Roger Icar a Wiesenthal, aquele que buscava no mundo todo criminosos nazistas: “O perdão sem justiça revela fraqueza, mas uma justiça sem perdão representa uma força desumana”.

 Estes textos revelam a excelência das reflexões sobre o perdão, dos melhores publicados nos últimos tempos. A parte desumana no ser humano pode, pelo perdão e pela reconciliação, ser resgatada e transformada. Essa é a grande lição que esta notável obra “Horizontes de Perdão” nos quer transmitir, tão bem organizada pelo bispo-pastor Dom Vicente de Brumadinho e pelo erudito psicanalista René Dentz.

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Leonardo Boff
Teólogo, filósofo, escritor, professor e membro da Iniciativa Internacional da Carta da Terra.

Fonte: https://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/609602-o-perdao-a-grandeza-e-a-dignidade-das-vitimas-de-extrema-violencia-artigo-de-leonardo-boff

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“Como enfrentar o fundamentalismo”, com a palavra Leonardo Boff https://observatoriodaevangelizacao.com/como-enfrentar-o-fundamentalismo-com-a-palavra-leonardo-boff/ Fri, 19 Nov 2021 20:01:52 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=42835 [Leia mais...]]]> O fundamentalista está convencido de que a sua verdade é a única; o fascismo começa com esse modo de ver as coisas… A ilusão do Ocidente, dos USA e da Europa é de imaginarem que a única janela que dá acesso à verdade, à religião verdadeira, à autêntica cultura e ao saber crítico é o seu modo de ver e de viver. As demais janelas apenas mostram paisagens distorcidas. Cada um é portador de verdade, mas ninguém pode ter o monopólio dela, nem uma religião, nem uma filosofia, nem um partido politico, nem uma ciência. Todos, de alguma forma, participam da verdade. Mas podem crescer para uma compreensão mais plena da verdade, na medida em que se relacionam. Bem dizia o poeta espanhol António Machado: “Não a tua verdade. A verdade. Vem comigo buscá-la. A tua, guarde-a”. Se a buscarmos juntos, no diálogo e na recíproca relacionalidade, então mais e mais desaparece a minha verdade para dar lugar à nossa Verdade, comungada por todos.

Confira na íntegra a reflexão do teólogo Leonardo Boff:

Como vamos enfrentar esse tipo de radicalismo? Creio que uma delas consiste no resgate do conceito bom do relativismo, palavra que muitos nem querem ouvir. Mas nele há muita verdade – Foto: Leandro Taques/Jornalistas Livres

Com enfrentar o fundamentalismo

Atualmente, em todo mundo, se verifica um aumento crescente do conservadorismo e de fenômenos fundamentalistas que se expressam pela homofobia, xenofobia, anti-feminismo, racismo e toda sorte de discriminações.

O fundamentalista está convencido de que a sua verdade é a única, e que todos os demais ou são desviantes ou fora da verdade. Isso é recorrente nos programas televisivos das várias igrejas pentecostais, incluindo setores da Igreja Católica. Mas também no pensamento único de setores políticos. Pensam que só a verdade tem direito, a deles. O erro deve ser combatido. Eis a origem dos conflitos religiosos e políticos. O fascismo começa com esse modo fechado de ver as coisas.

Como vamos enfrentar esse tipo de radicalismo? Além de muitas outras formas, creio que uma delas consiste no resgate do conceito bom do relativismo, palavra que muitos nem querem ouvir. Mas nele há muita verdade.

Ele deve ser pensado em duas direções: Em primeiro lugar, o relativo quer expressar o fato de que todos estão de alguma forma relacionados. Na esteira da física quântica, insiste a encíclica do papa Francisco “sobre como cuidar da Casa Comum”: “tudo está intimamente relacionado; todas as criaturas existem na dependência uma das outras” (n.137; 86). Por esta inter-relação todos são portadores da mesma humanidade. Somos uma espécie entre tantas, uma família. Em segundo lugar,  importa compreender que cada um é diferente e possui um valor em si mesmo. Mas está sempre em relação com outros e seus modos de ser. Dai ser importante relativizar todos os modos de ser; nenhum deles é absoluto a ponto de invalidar os demais; impõe-se também a atitude de respeito e de acolhida da diferença porque, pelo simples fato de estar-aí, goza de direito de existir e de co-existir.

Quer dizer, nosso modo de ser, de habitar o mundo, de pensar, de valorar e de comer não é absoluto. Há mil outras formas diferentes de sermos humanos, desde a forma dos esquimós siberianos, passando pelos yanomamis do Brasil, até chegarmos aos moradores das comunidades da periferia e aos moradores de sofisticados Alphavilles, onde moram as elites opulentas e amedrontadas. O mesmo vale para as diferenças de cultura, de língua, de religião, de ética e de lazer.

Devemos alargar a compreensão do humano para além de nossa concretização. Vivemos na fase da geo-sociedade, sociedade mundial, una, múltipla e diferente. Todas estas manifestações humanas são portadoras de valor e de verdade. Mas são um valor e uma verdade relativos, vale dizer, relacionados uns aos outros, inter-relacionados, sendo que nenhum deles, tomado em si, é absoluto.

Então não há verdade absoluta? Vale o “everything goes” de alguns pós-modernos? Traduzindo: “vale tudo”? Não há o vale tudo. Tudo vale na medida em que mantém relação com os outros, respeitando-os em sua diferença e não prejudicando-os.

Cada um é portador de verdade, mas ninguém pode ter o monopólio dela, nem uma religião, nem uma filosofia, nem um partido politico, nem uma ciência. Todos, de alguma forma, participam da verdade. Mas podem crescer para uma compreensão mais plena da verdade, na medida em que se relacionam.

Bem dizia o poeta espanhol António Machado: “Não a tua verdade. A verdade. Vem comigo buscá-la. A tua, guarde-a”. Se a buscarmos juntos, no diálogo e na recíproca relacionalidade, então mais e mais desaparece a minha verdade para dar lugar à nossa Verdade, comungada por todos.

A ilusão do Ocidente, dos USA e da Europa é de imaginarem que a única janela que dá acesso à verdade, à religião verdadeira, à autêntica cultura e ao saber crítico é o seu modo de ver e de viver. As demais janelas apenas mostram paisagens distorcidas.

Pensando assim, se condenam a um fundamentalismo visceral que os fez, outrora, organizar massacres ao impor a sua religião na América Latina e na África e, hoje, fazendo guerras com grande mortandade de civis, para impor a democracia no Iraque, no Afeganistão, na Síria e em todo o Norte da África. Aqui se dá também o fundamentalismo, de tipo ocidental.

Devemos fazer o bom uso do relativismo, inspirados, por exemplo, na culinária. Há uma só culinária, a que prepara os alimentos humanos. Mas ela se concretiza em muitas formas e as várias cozinhas: a mineira, a nordestina, a japonesa, a chinesa, a mexicana e outras. Ninguém pode dizer que só uma é a verdadeira e gostosa, por exemplo, a mineira ou a francesa, e as outras não. Todas são gostosas do seu jeito e todas mostram a extraordinária versatilidade da arte culinária.

Por que com a verdade deveria ser diferente? A base do fundamentalismo é essa arrogância que de que o seu modo de ser, sua ideia, a sua religião e a sua forma de governo é a melhor e a única válida no mundo.

* Leonardo Boff é filósofo, teólogo, professor emérito de Ética da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e escritor.

Fonte:

https://www.brasildefato.com.br/2016/08/24/leonardo-boff-como-enfrentar-o-fundamentalismo

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“Uma espantosa revelacão, vivida por poucos e recusada por muitos (I)”, com a palavra Leonardo Boff https://observatoriodaevangelizacao.com/uma-espantosa-revelacao-vivida-por-poucos-e-recusada-por-muitos-i-com-a-palavra-leonardo-boff/ Wed, 15 Sep 2021 01:05:37 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=40885 [Leia mais...]]]>

Nas religiões, os seres humanos buscam a Deus. Na Tradição de Jesus é Deus que busca os seres humanos.

Na primeira, o fazem pela oração oral, pela meditação silenciosa, pela observância dos preceitos religiosos e éticos, pela participação das festas e dos ritos e pela memória das tradições. Quanto mais reta e fiel for a pessoa, mais meritoriamente chega a Deus.

Na Tradição de Jesus ocorre o contrário: É Deus que busca o ser humano, especialmente aquele que se sente perdido, que não leva uma vida virtuosa e que julga ter sido abandonado por Deus. Logicamente nesta Tradição também se reza e se conservam as tradições religiosas, se vive eticamente e se frequentam os cultos e as festas. Englobando tudo: observa-se a Lei. Mas não é aqui que reside a novidade. E não é por esses meios que acolhemos a singularidade trazida por Jesus.

A experiência originária de Jesus: a proximidade de Deus

Num obscuro vilarejo, Nazaré, tão insignificante que nunca ocorre nas Escrituras do Antigo Testamento, vive um homem desconhecido cujo nome nunca constou na crônica profana da época, seja de Jerusalém, seja de Roma. Ele pertence ao grupo dos chamados “os pobres de Javé” que são os humildes e invisíveis, mas cuja característica consiste em viver uma profunda fé no Deus dos pais, Abraão, Isaac e Jacó e uma inabalável confiança em Deus de que vai realizar o que os profetas anunciaram: a justiça para os pobres, a proteção das viúvas e a elevação dos humilhados e ofendidos. Esse homem é Jesus de Nazaré.

De profissão é um artesão-carpinteiro como seu pai José. Até a idade adulta viveu na família a espiritualidade dos pobres de Javé. Era conhecido no vilarejo como “o filho de José, de quem conhecemos o pai e a mãe” (Jo 6, 42) ou simplesmente “o carpinteiro, filho de Maria” (Mt 5, 3) ou “o filho de José” (Lc 4, 22).

Mas ele mostrava uma singularidade que deixou perplexos os pais. Não chamava a Deus como se costumava, mas de uma forma bem própria: de Abba o diminutivo infantil de “meu querido paizinho”. Isso ficou claro quando aos 12 anos participou, com os pais, da romaria anual a Jerusalém e por lá ficou perdido. Encontrado, sob a angústia dos pais, diz: “Não sabíeis que eu devia ficar na casa do meu Pai” (Lc 2, 50)? Perplexos, seus pais não entenderam esta linguagem inaudita (Lc 2, 5). Maria, no entanto, guardava-o em seu coração (Lc 2, 51). E tudo morreu aí. Não se sabe nada de sua vida oculta, profissional e familiar. Apenas o evangelista Lucas observa tardiamente pelos anos 80 dC: “Jesus progredia em idade, em sabedoria e graça diante de Deus e dos homens” (Lc 2, 52).

Abstraindo os evangelhos da infância de Mateus e de Lucas, carregados de significação teológica posterior, todos os evangelistas começam suas narrativas pelo batismo de Jesus por João Batista. Foi então, testemunham os relatos, que ocorreu uma grande transformação na vida do ignoto Nazareno. Quando ele ouviu a fama de João Batista, vindo do deserto, que batizava junto ao rio Jordão, não por curiosidade mas por seu espírito profundamente piedoso, se uniu à multidão e foi também ver João e o que estava acontecendo por lá. Multidões acorriam de toda a Palestina, pois o Batista pregava a iminente vinda do Reino (a nova ordem querida por Deus) e cobrava do povo penitências em vista desta irrupção. Provavelmente Jesus tenha conversado com ele e com seus discípulos. 

Mas chegou o momento em que junto com a multidão e não sozinho como mostram as gravuras, Jesus entrou na água. A um sinal do Batista, ele mergulhou na água e assim se deixou batizar, como faziam todos.

Mas eis que ocorreu nele algo especialíssimo. Depois de batizado, enquanto rezava, diz o texto de Lucas (3, 21), sentiu um tremendo frêmito interior. Foi invadido por uma onda de ternura tão avassaladora que comoveu todo seu interior: “Tu és meu filho amado, em ti pus meu agrado” (Mc 1, 10-11). Lucas é mais explícito e diz o que Jesus ouviu: “Tu és meu Filho amado, eu hoje te gerei” (Lc 3, 21-22).

A linguagem bíblica expressa a experiência interior usando expressões pictóricas e simbólicas: o céu se abriu e se viu o Espírito descer sobre ele em forma corpórea de pomba.

Trata-se de uma encenação plástica para expressar uma radical e originalíssima experiência espiritual, vivida por Jesus, impossível de ser expressa por palavras. A partir daí ocorreu uma verdadeira revolução em sua vida: sente-se filho amado pelo Deus-Paizinho querido. É invadido por uma paixão de amor divino que transtornou sua vida. Experimentou uma absoluta e direta proximidade de Deus. Não é mais ele que busca Deus. É Deus que o buscou e o assumiu como seu filho querido.

A espantosa revolução: a proximidade amorosa do Deus-Abba

Como em todas as coisas tudo conhece um processo. Com Jesus não foi diferente. Foi lentamente se dando conta da proximidade de Deus, consoante a idade, até irromper em plena consciência ao se batizar no rio Jordão na idade de 30 anos. Uma coisa é ser objetivamente o Filho bem amado de Deus e outro é subjetivamente dar-se conta deste fato. No batismo no rio Jordão, ocorreu esse salto da consciência por ocasião dessa visitação concretíssima do Deus-Abba.

Aqui se encontra a grande singularidade relatada pelos evangelistas: testemunhar a proximidade de Deus, do Deus que busca intimidade com o ser humano, com Jesus de Nazaré. Essa proximidade é com todos os seres humanos, independentemente de sua condição moral e situação de vida. Trata-se do transbordamento gratuito do amor de Deus para com os seus filhos e filhas.

Com isso se inaugura um novo caminho, diverso daquele da observância da Lei e das distinções que se fazem entre bons e maus, justos e injustos. Estas coisas têm lá sua razão de ser na convivência humana. Mas não é por ai que Deus vê e julga os seres humanos. Seu olhar e sua lógica é totalmente outra como se revelou em Jesus, membro grupo dos pobres de Javé. Nele irrompe um amor divino ilimitado a começar por aquele que nunca falam, que não frequentaram alguma escola de teologia, no máximo, a escolinha bíblica junto à sinagoga. O Nazareno veio deste meio. Não pertence ao mundo dos letrados, dos juristas, da casta sacerdotal e de algum status social. É um anônimo, mais afeito ao trabalho das mãos do que ao uso da palavra.

De repente tudo mudou: inundado pela proximidade amorosa de Deus põe-se a pregar com tal entusiasmo e sabedoria a ponto de os ouvintes comentarem: “Donde lhe vem tal sabedoria? Não é ele o filho do carpinteiro (Mc 6, 23, Mt 13, 54-55)? Seus privilegiados são os pobres, sempre covardemente desprezados, come com os pecadores, aproxima-se dos cobradores de impostos, odiados pelo povo, pois são aliados das forças de ocupação romana (Mc 2, 16). Chamam-no até de comilão e beberão porque aceita o convite de comer na casa de pecadores (Mt 11,19). Rompe os tabus religiosos da época ao conversar com uma mulher samaritana, ao defender outra mulher pega em adultério e deixar que seus pés sejam ungidos com raro perfume, beijados e com os cabelos enxugando as lágrimas de Maria Madalena, tida de má fama.

Frequentando gente de má fama Jesus lhes mostra a proximidade de Deus

Por que faz isso? Porque quer levar a todos, especialmente a estes socialmente desqualificados, os hansenianos, os paralíticos, os cegos, mas também os pecadores públicos, os desesperados, a novidade de que Deus se aproximou de todos eles. Jesus, transbordando de amor do Deus-Abba vai a seus irmãos e irmãs e lhes anuncia essa novidade da proximidade incondicional de Deus que se fez para todos o “paizinho amoroso”.

O decisivo não é a Lei e as tradições cuidadosamente observadas, mas aceitar aquilo que Deus-Abba disse a Jesus e que agora o repete para eles: pouco importa o que fazem na vida, como é sua condição religiosa e moral. Apenas lhes diz: “vós sois meus filhos e filhas amados em vós encontro meu regozijo”. Isso soa primeiramente como um espanto e depois como uma inaudita alegria e libertação. Dizem: eis a boa nova, eis o evangelho. Esta surpreendente proposta precisava e precisa de uma resposta. Exige mudar a mente e o coração. E o foi? Eis a questão (segue).

(Os grifos são nossos.)

Leonardo Boff é teólogo e escreveu Jesus Cristo Libertador, Vozes, (1972/2012); Paixão de Cristo-paixão do mundo, Vozes (2012): A nossa ressurreição na morte, Vozes (2010).

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A Fratelli tutti, um novo paradigma de sociedade mundial: de senhor (dominus) a irmão (frater). https://observatoriodaevangelizacao.com/a-fratelli-tutti-um-novo-paradigma-de-sociedade-mundial-de-senhor-dominus-a-irmao-frater/ Mon, 16 Nov 2020 14:07:18 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=36390 [Leia mais...]]]> Não é difícil de perceber que o papa Francisco com a encíclica social Fratelli tutti rejeita o atual modo de viver na Casa Comum, pois afirma “Se alguém pensa que se trata apenas de fazer funcionar o que já fazíamos, ou que a única lição a tirar é que devemos melhorar os sistemas e regras já existentes, está negando a realidade” (n. 7).

Diretamente afirma “que é uma ilusão enganadora, pensar que podemos ser onipotentes e esquecer que nos encontramos todos no mesmo barco” (n. 30). Em função disso adverte: “ninguém se salva sozinho, só é possível salvar-nos juntos” (n. 32).) Num twitter em fins de outubro declarou: “Ou nos salvamos todos ou ninguém se salva”.

1. A rejeição do paradigma dominante

Como se depreende, rejeita o atual sistema mundialmente integrado. Em vários outros lugares faz afirmações semelhantes. Não se trata mais de melhorar mas de realmente de “sonhar e de pensar numa humanidade diferente” (n. 127). Urge construir “um novo vínculo social” (n. 66).

Ataca diretamente as quatro pilastras que sustentam a atual ordem mundial: o mercado em termos de economia, o neoliberalismo em termos de política, o individualismo em termos de cultura e a devastação da natureza, em termos de ecologia: “O mercado, por si só, não resolve tudo, embora às vezes nos queiram fazer crer neste dogma de fé neoliberal. Trata-se dum pensamento pobre, repetitivo, que propõe sempre as mesmas receitas perante qualquer desafio que surja. O neoliberalismo reproduz-se sempre igual a si mesmo… como única via para resolver os problemas sociais” (n. 168). O individualismo é apresentado “como o vírus mais difícil de vencer; não é capaz de gerar um mundo melhor para toda a humanidade… como se, acumulando ambições e seguranças individuais, pudéssemos construir o bem comum” (n. 105). Em termos de ecologia, inagurou o antropoceno e o necroceno.

Conclusão: encontramo-nos atualmente num mundo “sem um projeto para todos”(n. 15; n. 31). Sem um projeto para todos ficamos reféns do projeto privado dos mais fortes que instauram uma perversa opressão econômica, social e cultural sobre todas as sociedades humanas.

2. Um paradigma que nega o humano em nós

Este sistema é perverso, pois, nega o humano em nós; não tem sensibilidade e empatia para com as grandes maiorias empobrecidas e condenadas à altíssima taxa de iniquidade social, consequência da perda da soberania alimentar expressa na fome ou na subnutrição endêmicas e da escassez de água potável. Poucos grupos se apropriam individual ou corporativamente de grande parte dos bens e serviços naturais.

Esse sistema não se afina com a natureza humana que é essencialmente cooperativa e solidária, como nos ensinam as neurociências. O ser humano, de verdade, emerge como um ser de relação, voltado em todas as direções. Esse modo de habitar a Casa Comum nega uma das constantes cosmológicas, que preside o universo, que sustenta todos os seres, das galáxias mais distantes, das estrelas, da nossa Terra e até de cada um nós, comprovando que tudo está relacionado com tudo e que ninguém existe fora da relação (Laudato Si’, n. 86; 117). Tudo isso é rejeitado, prática e teoricamente, por este sistema perverso que chegou a introduzir uma nova era geológica, o antropoceno e o necroceno. Vale dizer, ele é o grande Satã da Terra ao invés de ser seu anjo bom e cuidador. Fez-se o meteoro rasante que mata e assassina vidas da humanidade e da natureza.

3. Os fundamentos da alternativa da Fratelli tutti

É neste contexto de um sistema à deriva, com um futuro sem futuro, que o papa Francisco propõe uma alternativa, fundada em princípios e valores ausentes na atual ordem, em plena crise sistêmica. Onde ele busca os valores e princípios, capazes de lançar as bases para um modo de habitar a Casa Comum, novo e alternativo? Busca-o naquilo que é o mais humano nos humanos, pois só aí se encontra uma base sólida, sustentável e universalizável. Esses valores, pelo fato de serem essencialmente humanos, estão presentes em todos os homens e mulheres das mais diferentes culturas.

Esses valores não estavam ausentes no paradigma vigente. Mas eram vividos apenas subjetivamente, nas relações curtas e na privacidade da vida. A novidade do Papa foi generalizar e universalizar o que era subjetivo e individual.

Então, o amor deixa de ser uma experiência somente entre dois seres que mutuamente se atraem, para emergir como amor social. Da mesma forma, a amizade ganha uma expressão social, “pois não exclui ninguém” (n. 94) a fraternidade entre todos os humanos é sem fronteiras, incluindo, no espírito de São Francisco, os demais seres da natureza; a cooperação aberta a todos os países e a todos os seres; o cuidado, começando por si mesmo (n. 117) e expandindo-se para tudo que existe e vive; da mesma forma, a compaixão, a justiça social e a capacidade de perdão. Todo esse mundo de excelências está presente no ser humano.

No paradigma dominante, eram vividos nas relações interpessoais ou em pequenos grupos; na encíclica ganharam agora uma dimensão social, política e universal. Onde encontraríamos uma saída para a nossa crise paradigmática senão na própria realidade essencial do ser humano e na teia de relações que enlaça todos os seres?

4. A dimensão social e universal da fraternidade e do amor

Essa dimensão social e universal da fraternidade supera o antigo modo de ser individualista e reducionista. Inaugura o novo nunca antes ensaiado na sua dimensão social e planetária, a não ser em pequenas comunidades de religiosos e de religiosas e em geral entre povos originários. Sua ausência no paradigma da modernidade se revela como um vazio doloroso, uma cultura geral entregue ao individualismo solipsista, uma vida sem enraizamento e uma terrível solidão.

A sociedade mundial tem graves carências estruturais que não se resolvem com remendos ou soluções rápidas meramente ocasionais. Há coisas que devem ser mudadas com reajustamentos profundos e transformações importantes” (n. 179). O seu propósito era acumular sem limites, no pressuposto de que os recursos naturais também seriam sem limites. Tal pressuposição se revela falsa. A Laudato Si’ a denuncia como “uma mentira” (n. 161).

O motor é a competição, com a apropriação privada dos benefícios, excluindo os demais, mostrando-se excludente, com gritantes desigualdades em todo os campos. No entanto, sustenta a encíclica, “a interdependência entre todos nos obriga a pensar um único mundo”(n.164), “capaz de assegurar a alimentação e a paz, de garantir a salvaguarda do ambiente, de regulamentar o fluxo migratório; para isso urge a presença de uma verdadeira autoridade política mundial” (LS n. 175), superando os soberanismos ultrapassados, como reafirma na Fratelli Tutti: “Se a sociedade se reger primariamente pelos critérios da liberdade de mercado e da eficiência, não há lugar para as pessoas, e a fraternidade não passará duma palavra romântica” (n. 109)

Essa forma de construir a sociedade nacional e internacional devastou a natureza a ponto de termos encostado nos limites intransponíveis e superado aquelas nove fronteiras planetárias que, que segundo um documento da ONU, sustentam a vida e que, se violadas, podem produzir o colapso da civilização. Verificou-se também, cientificamente, a assim chamada Sobrecarga da Terra (The Earth Overshoot), vale dizer, os bens naturais básicos para reproduzir a vida se esgotaram. Se continuamos a cobrar-lhe o que já não pode oferecer, responde com mais aquecimento global, com eventos extremos, com desertificação dos solos e outras calamidades. A Terra entrou no vermelho e no cheque especial. Um planeta limitado não suporta um projeto ilimitado.

Esse sistema contradiz o princípio cosmológico e o axioma básico da física quântica e da nova antropologia de que todos os seres se encontram intra-retro-relacionados, todos dependem uns dos outros, se entreajudam e incorporam elementos novos por um processo permanente de simbiose. Tudo vem construído de redes de relações, de energias e de informações que estão permanentemente interagindo entre si. Não existe nenhum gene egoísta ou um ser desgarrado da teia das relações universais.

Lamentavelmente, não há consciência disso tudo, no sistema produtivista, devastador da natureza e cruel face ao destino dos demais semelhantes. Hoje atingiu tal grau de contradições internas que não encontra em seu arsenal, instrumentos próprios para dar conta de seus problemas. É refém de si mesmo. Ao levar avante a sua lógica interna poderá conhecer uma tragédia de proporções nunca dantes vistas, com a possibilidade de pôr fim ao processo civilizatório humano e talvez a nossa própria espécie.

Não se pode negar que, junto aos grandes benefícios que tal projeto da tecnociência aportou às comodidades da vida, produziu também o princípio de autodestruição com armas químicas, biológicas e nucleares. Por várias formas diferentes pode destruir a vida humana sobre a Terra e afetar gravemente a biosfera.

Mais e mais se impõe a convicção de que o mundo assim como está não pode ser levado a diante. Chegamos à beira do abismo que nos poderá tragar.

Neste contexto de ausência de alternativas intrassistêmicas, a humanidade busca freneticamente um caminho que permita sua continuidade neste planeta. Nesse ponto, se antecipa a Fratelli tutti com uma proposta a arrojada.

Ou voltamos à nossa humanidade essencial e aí encontramos os fundamentos seguros para um novo ensaio civilizatório, ou, como diz a Carta da Terra “arriscaremos a nossa destruição e a destruição da diversidade da vida” (Preâmbulo).

A proposta do Papa é uma atitude de confiança no ser humano e em suas potencialidades. Ele foi feito para o amor, para a amizade, para a solidariedade, para a compaixão, para o cuidado da Mãe Terra e de tudo o que existe e vive. A pandemia de covid-19 que, pela primeira vez atingiu toda a espécie humana e somente ela (não os gatos e cães domésticos e outros) representa um inequívoco sinal de que a Mãe Terra-Gaia deu uma resposta ao antropoceno, aquela prática humana dizimadora de vidas em massa: necroceno, seja no reino da natureza seja no âmbito humano.

Encontramo-nos numa encruzilhada: “ou fazemos uma aliança global de cuidar da Terra e de uns e de outros, ou enfrentaremos situações, que nas palavras de Sigmunt Baumann “podem nos levar a engrossar o cortejo daqueles que rumam em direção de sua própria sepultura”.

Se bem observamos, o que nos ajudou a enfrentar a Covid-19 não foram os mantras do capitalismo e do neoliberalismo, mas a centralidade da vida, a interdependência de todos com todos, a solidariedade e a cooperação entre os povos, para além dos soberanismos ultrapassados, o cuidado de uns com os outros, com a natureza e a Mãe Terra.

Se nos tivéssemos regido pela cultura do capital com a ausência de valores humanitários, todos teríamos uma sorte trágica.

Aqui reside a alternativa do papa Francisco que, para salvar a Terra, a vida e a humanidade, se põe a desentranhar o humano de nossa humanidade. O destino comum nos conclama a um novo começo, o que requer um novo coração, uma nova consciência, uma nova relação, terna e fraterna, entre os seres humanos e com os demais irmãos e irmãs da natureza.

5. A proposta alternativa do Papa na forma de um sonho

O Papa apresenta seu projeto alternativo como “uma humilde contribuição” em forma de um “novo sonho” (n. 6). Sonho deve ser entendido não como algo irreal, meramente onírico, mas segundo a Bíblia como uma manifestação de Deus ou como entre os gregos, como uma mensagem divina ou segundo o discurso psicanalítico em C. G. Jung “uma antecipação de realizações futuras, uma concretização prévia de possibilidades”.

Esta é a formulação da alternativa: “um novo sonho de fraternidade e amizade social …que se abre ao diálogo com todas as pessoas de boa vontade” (n. 6). Fraternidade e amizade social com todas as suas ressonâncias: amor social, solidariedade, cooperação, cuidado, cultura do encontro e do diálogo, o mundo sem fronteiras e sem muros, política com ternura e gentileza. Repetindo: a fraternidade e o amor social serão os eixos estruturadores de toda a sua proposta assinalada no título Fratelli tutti: irmãos, todos. O Papa se dá conta do inusitado da proposta, reconhecendo: “parece uma utopia ingênua, mas não podemos renunciar a este sublime objetivo” (n. 190).

6. Contraposição de dois paradigmas: senhor & irmão

Para entender melhor a novidade desta proposta paradigmática, seria esclarecedor se a compararmos com o paradigma subjacente ao atual sistema global e imperante já há mais de dois séculos: o dos tempos modernos.

É assente entre pensadores, filósofos, cientistas sociais e de outras áreas do pensamento que o ideal a ser perseguido e gerador dos tempos modernos, já projetado pelos pais fundadores do século XVI e XVII (Descartes, Galileo Galilei, Newton, Francis Bacon, Copérnico e outros) é o saber como poder e a vontade de poder: poder entendido como dominação do outro, das classes, dos povos, das culturas da África, da Ásia e das Américas, da natureza, das ínfimas partes da matéria (bóson de Higgs) e da própria vida (código genético). Para conferir eficácia ao saber e ao poder foi criada a tecno-ciência. Ela está preponderantemente a serviço do poder econômico, político e ideológico, ao mercado, e somente em seguida à vida. Na Laudato Si’ o Papa a submete à rigorosa crítica (nn. 106-114). Na Fratelli tutti afirma com severidade: “a política não deve submeter-se à economia e esta não deve submeter-se aos ditames e ao paradigma eficientista da tecnocracia” (n. 177). A ciência deve ser feita com consciência e a técnica com critérios éticos em vista do bem comum.

O poder como dominação significou historicamente uma devastação das culturas como aquelas mesoamericanas e dos povos originários, uma tentativa de homogeneização dos hábitos de pensar, de agir e das diversas culturas, liquidando com as suas diferenças. Tal projeto perturbador ocasionou guerras que dizimaram mais de 200 milhões de pessoas e que encontrou sua máxima expressão na Shoah, “símbolo dos extremos aonde pode chegar a malvadez humana” (n. 247): os seis milhões de judeus e outros condenados às câmaras de gás pelo nazismo. Pesarosamente constata “no nosso mundo vive-se uma guerra mundial aos pedaços” (n. 259).

A figura é do ser humano como dominus, senhor e dono (maître et possesseur) de tudo. A natureza e a própria Terra (mera res extensa) não possuem valor algum em em si mesmas, apenas na medida em que se ordenam ao ser humano. Ele está acima da natureza e não se entende como parte dela ou ao pé dela. Nas palavras da Fratelli tutti: “é a pretensão de sermos senhores absolutos da própria vida e de tudo o que existe” (n. 34).

Em contraposição a este paradigma do dominus, a Fratelli tutti apresenta o paradigma do frater, do irmão (e da irmã, soror) donde se deriva a fraternidade universal (a sororidade universal). Incluindo os dois gêneros, seria a irmandade universal, todos, homens e mulheres, irmãos e irmãs.

Dito numa linguagem pedestre: o paradigma do dominus, do senhor e dono é representado pelo punho cerrado para submeter, enquanto o frater é a mão aberta e estendida para a carícia essencial e para se entrelaçar com outras mãos.

Aqui reside a grande virada paradigmática proposta pela Fratelli tutti. Não é mera projeção sonhática. Capta as tendências de nossa época e afirma que existe “um anseio mundial de fraternidade” (n. 8). Belamente sustenta que “aqui está um ótimo segredo para sonhar e tornar a nossa vida uma bela aventura… é juntos que se constroem os sonhos. Sonhemos como uma única humanidade, como caminhantes da mesma carne humana, como filhos e filhas desta mesma Terra…todos irmãos e irmãs” (n. 8).

Explicitamente assevera o Francisco de Roma que se inspirou em Francisco de Assis “o santo do amor fraterno…que se sentia irmão do sol, do mar e do vento…que andou junto dos pobres, abandonados, doentes, descartados, dos últimos” (n. 2). Consequentemente Francisco de Assis “suscitou o sonho de uma sociedade fraterna…; libertou-se de todo o desejo de domínio sobre os outros” (n. 4).

Esse sonho de um medieval, chamado de “o primeiro depois do Único (Jesus de Nazaré)” “o melhor dos homens que o Ocidente gerou” (Toymbee), é que a Fratelli tutti procura traduzir para os dias atuais.

É importante enfatizar esta contraposição de paradigmas. Urge fazer a transição do dominus para o frater se quisermos enfrentar com sucesso as ameaças que pesam sobre o sistema-Terra e o sistema-vida, assinaladas no primeiro capítulo “as sombras de um mundo fechado” (nn.9-55). Na epidemia de Covid-19 “ficou evidente a incapacidade de agir em conjunto”(n.7); “a sociedade cada vez mais globalizada torna-nos vizinhos, mas não nos faz irmãos” (n. 12); pode fazer-nos sócios, “aquele que é associado para determinados interesses” (n. 102) mas não próximos no sentido da parábola do bom samaritano (n. 102) detalhadamente analisada pelo Papa (nn. 63-86).

7. As ressonâncias da fraternidade e do amor social

O Papa apela para o princípio da esperança (Ernst Bloch) que é mais que uma virtude pois é ela “que nos fala duma realidade que está enraizada no mais fundo do ser humano, independentemente das circunstâncias concretas e dos condicionamentos históricos em que vive…; ela nos abre aos grandes ideais” (n. 55). Como tem afirmado com frequência aos movimentos sociais: “não esperem nada de cima, pois vem sempre mais do mesmo ou ainda pior”. Assinala que “É possível começar por baixo, caso a caso, lutar pelo mais concreto e local, até ao último rincão da pátria e do mundo” (n. 78). Mas “não façamos sozinhos, individualmente…; nós estamos chamados a convidar outros e a encontrar-nos num «nós» mais forte do que a soma de pequenas individualidades” (n. 78).

A fraternidade se funda no fato ”de que todos os seres humanos foram criados iguais nos direitos, nos deveres e na dignidade e chamados a conviver entre si como irmãos” (n. 5). O amor fraterno “abre-se a uma dimensão universal” (n. 6). Possui um vínculo essencial com todos os seres vivos com os quais o ser humano comunga do mesmo código genético, o que o torna parente, primo, irmão e irmã com todos os seres da natureza: “a vida subsiste onde há vínculos, comunhão e fraternidade” (n. 87)

Só haverá “a fraternidade conscientemente cultivada, quando há uma vontade política de fraternidade, traduzida numa educação para a fraternidade, para o diálogo e para a descoberta da reciprocidade e enriquecimento mútuo” (n.103). Com ênfase diz a Fratelli tutti “enquanto houver uma pessoa descartada não poderá haver a festa da fraternidade” (n. 110).

Nesse ponto o papa Francisco faz uma severa advertência, de uma provável bifurcação da humanidade, de “um cisma” (n. 31), coisa que já foi aventada por notáveis sociólogos que analisam a condição atual do mundo. “Nunca se dirá que não sejam humanos, menos importantes e menos humanos” (n. 39).

Para obviar esta terrível possibilidade da bifucação, confere um lugar especial à amizade social que “se estende para além das fronteiras” (n. 99). É a amizade social que “torna possível o desenvolvimento de uma comunidade mundial, capaz de realizar a fraternidade a partir de povos e nações que vivam a a amizade social; ela torna necessária uma política melhor, a política colocada ao serviço do verdadeiro bem comum” (n. 154).

Mas o acento maior é conferido ao ao amor, “condição para possibilitar uma verdadeira abertura universal” (n. 99). Releva enfatizar, que “pela sua própria dinâmica, o amor exige uma progressiva abertura, maior capacidade de acolher os outros, numa aventura sem fim, que faz convergir todas as periferias rumo a um sentido pleno de mútua pertença” (n. 95) porquanto “ela implica um caminho eficaz de transformação da história que exige incorporar tudo: instituições, direito, técnica, experiência, contribuições profissionais, análise científica, procedimentos administrativos” (n. 164).

Tal afirmação é carregada de significado: “Esta caridade política supõe ter maturado um sentido social que supere toda a mentalidade individualista: “A caridade social leva-nos a amar o bem comum e a buscar efetivamente o bem de todas as pessoas, consideradas não só individualmente, mas também na dimensão social que as une”(182). E coloca sua marca registrada na centralidade do amor: “Esta caridade, coração do espírito da política, é sempre um amor preferencial pelos últimos, que subjaz a todas as ações realizadas em seu favor (187). Esse amor faz do distante um próximo e do próximo um irmão e uma irmã.

O novo paradigma da fraternidade e do amor social se desdobra no amor em sua concretização pública, no cuidado dos mais frágeis, na cultura do encontro e do diálogo, na política como ternura e amabilidade.

Quanto à cultura do encontro, toma a liberdade de citar o poeta brasileiro Vinicius de Moraes em seu Samba da Bênção de 1962, onde diz: “A vida é a arte do encontro embora haja tantos desencontros na vida” (n.215).

A política não se reduz à conquista do poder de estado nem à divisão dos poderes. Afirma de forma surpreendente: “Também na política há lugar para o amor com ternura: aos mais pequenos, aos mais débeis, aos mais pobres; eles devem enternecer-nos e têm o ‘direito’ de nos encher a alma e o coração; sim, são nossos irmãos e como tais temos que amá-los e assim tratá-los” (n.194) E se pergunta que é a ternura e responde: “é o amor que se faz próximo e concreto; é um movimento que procede do coração e chega aos olhos, aos ouvidos, às mãos” (n.196). Isso nos faz recordar a frase de Gandhi, uma das inspirações do Papa, ao lado de São Francisco, Luther King, Desmond Tutu: “a política é um gesto de amor para com povo, o cuidado das coisas comuns”.

Junto com a ternura comparece a amabilidade que nós traduziríamos por gentileza, virtude específica de São Francisco de Assis. Assim define a amabilidade: “um estado de ânimo que não é áspero, rude, duro, senão afável, suave, que sustenta e fortalece; uma pessoa que possui esta qualidade ajuda aos demais para que sua existência seja mais suportável” (n.223). Eis um desafio aos políticos, feito também aos bispos e padres: fazer a revolução da ternura.

A solidariedade que outrora nos fez dar o salto da animalidade para a humanidade, é, por isso, uma das notas essenciais do humano e do social. Ela “se expressa concretamente no serviço que pode assumir formas muito diversas e de tomar para si o peso dos outros; em grande parte é cuidar da fragilidade humana” (n.115). Essa solidariedade se mostrou ausente e só depois eficaz no combate à covid-19. Ela impede a divisão da humanidade entre o ‘meu mundo’, os ‘outros’ e ‘eles’, pois “muitos deixam de ser considerados seres humanos com uma dignidade inalienável e passam a ser apenas “eles” (n.27). E conclui com um grande desejo: “Oxalá no final não haja “os outros” mas apenas um “nós” (n.35).

8. Passos para a transição do “senhor” para o “irmão”

Como fazer essa travessia do senhor para o irmão? O texto abre com uma frase rica de consequências: “O mundo existe para todos, porque todos nós, seres humanos, nascemos nesta Terra com a mesma dignidade (n.118). Todos somos filhos e filhas da Mãe Terra, mais ainda, segundo a Laudato Si’, somos todos Terra (n.2).

Em seguida assinala um processo: “o bem, o amor, a justiça e a solidariedade não se alcançam de uma vez para sempre; hão de ser conquistados cada dia” (n.11).

Neste particular a encíclica não oferece grandes detalhes e com razão. Muitos são os ecossistemas nos vários continentes e países e não existe uma fórmula comum. Cada ecorregião possui suas singularidades face à quais devem-se definir os passos para uma transição efetiva. Isso é deixado, deliberadamente, para a iniciativa dos cidadãos.

Mas decididamente encoraja: “é possível começar por baixo e caso a caso, lutar pelo mais concreto e local, até ao último rincão da pátria e do mundo” (n.78). Entretanto, remete-se a dois temas, um constante na doutrina social da Igreja e o outro representa a ponta da discussão ecológica atual, a subsidiariedade, e a região e o biorregionalismo.

A Fratelli tutti recolhe “o princípio de subsidiariedade que abrange a participação e a ação das comunidades, a organização de nível menor” (n.175) e para apoiar os movimentos que nascem de baixo: tudo que uma instância inferior puder fazer, não o faça a instância superior. Com isso, abre caminho para iniciativas de pequenos grupos, à agricultura familiar e comunitária, à economia circular, à agroecologia e à uma democracia participativa e não apenas delegatícia.

A outra categoria à qual dedica vários parágrafos é o cultivo da região ou do biorregionalismo, pois é “o local, que nos faz caminhar com os pés por terra” (n.142). Aprofunda a ideia e sustenta que “temos de assumir intimamente o local, pois tem algo que o global não possui: ser fermento, enriquecer, colocar em marcha mecanismos de subsidiariedade. Portanto, a fraternidade universal e a amizade social dentro de cada sociedade são dois polos inseparáveis e ambos essenciais (n.142). Há que se articular sempre o local com o global para ter uma experiência integradora nesta fase nova da humanidade: “Não é possível ser saudavelmente local sem uma sincera e cordial abertura ao universal, sem se deixar interpelar pelo que acontece noutras partes, sem se deixar enriquecer por outras culturas, nem se solidarizar com os dramas dos outros povos”(146).

Esta articulação entre o local com o global permite o surgimento da comunidade mundial que não é o resultado da soma os vários países, mas sim, a própria comunhão que existe entre eles e a mútua inclusão (n.137).

Para dar corpo ao sonho de uma fraternidade universal e de amor social, convoca todas as religiões pois “elas oferecem uma contribuição valiosa na construção da fraternidade e para a defesa da justiça na sociedade” (n.271).

No final evoca a figura do irmãozinho de Jesus, Charles de Foucauld, que no deserto do norte da África junto à população muçulmana queria ser “definitivamente o irmão universal” (n.287). Fazendo seu este propósito o papa Francisco observa: “Só identificando-se com os últimos chegou a ser o irmão de todos; que Deus inspire esse sonho em cada um de nós. Amém” (n.288).

Conclusão: homem universal, um irmão entre irmãos

Estamos inequivocamente diante de um grande sonho, na linha das grandes utopias humanas. Face à gravidade da situação atual, parece, não termos outra alternativa senão consultar o que há de melhor em nossa humanidade e dela extrair um projeto comum que nos poderá salvar.

De todos os modos, estamos diante de um homem, o papa Francisco, que por seu exemplo e palavra se alçou à altura de um dos maiores líderes espirituais e políticos da humanidade, senão o maior de todos. Despojou-se dos títulos inerentes à sua alta função como Papa e fez-se irmão de todos para falar como irmão entre irmãos. A exemplo de seu patrono Francisco de Assis, transformou-se também num homem universal, acolhendo a todos e se identificando com os mais vulneráveis e invisíveis de nosso mundo, cruel e sem piedade. Ele suscita a esperança de que podemos e devemos alimentar o sonho da fraternidade sem fronteiras e do amor universal. Move-o a fé de que “Deus criou tudo por amor e que é o apaixonado amante da vida” (Sab 11, 26). Espera que Ele não permitirá que a humanidade, já entronizada no Reino da Trindade pela ressurreição e ascensão de um irmão nosso, Jesus de Nazaré, desapareça assim tão miseravelmente. Iremos ainda viver e brilhar.

Ele fez a sua parte. Compete a nós não deixar que o sonho seja apenas sonho, mas seja aquilo que ele significa, o antecipador de realidades futuras e possíveis: o começo seminal de uma nova forma de habitar juntos, como irmãos e irmãs e com a natureza, na mesma Casa Comum. Teremos tempo e sabedoria para esse salto? O tempo o dirá. Seguramente continuarão as “sombras vastas”. Mas temos uma lâmpada na Fratelli tutti. Ela não dissipa todas as “vastas sombras”. Apenas nos ilumina o caminho a ser percorrido por todos. E isto nos basta.

Sobre o autor:

Leonardo Boff

Leonardo Boff é ecoteólogo, filósofo e escritor e autor de “Francisco de Assis e Francisco de Roma” (Editora Mar de Ideias, Rio 2015), dentre tantos outros livros.

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FratelLi tutti: a revolução paradigmática do “dominus”(dono) ao “frater”(irmão) https://observatoriodaevangelizacao.com/fratelli-tutti-a-revolucao-paradigmatica-do-dominusdono-ao-fraterirmao/ Tue, 06 Oct 2020 18:58:19 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=35908 [Leia mais...]]]> A nova encíclica do papa Francisco, assinada sobre a sepultura de Francisco de Assis, na cidade de Assis, no dia 3 de outubro, será um marco na doutrina social da Igreja. Ela é vasta e detalhada em sua temática, sempre procurando somar valores, até do liberalismo que ele fortemente critica. Certamente será analisada em detalhe por cristãos e não cristãos pois se dirige a todas as pessoas de boa vontade. Ressaltarei neste espaço aquilo que considero inovador face ao magistério anterior  dos Papas.

Em primeiro lugar tem que ficar claro que o Papa apresenta uma alternativa paradigmática à nossa forma de habitar a Casa Comum, submetida a muitas ameaças. Faz uma descrição das “sombras densas” que equivalem, como ele mesmo afirmou em vários pronunciamentos, “a uma terceira guerra mundial em pedaços”. Atualmente não há um projeto comum para a humanidade (n.18). Mas um fio condutor passa por toda a encíclica: “a consciência de que ou nos salvamos todos ou ninguém se salva” (n32). Esse é o projeto novo, expresso nestas palavras: “Entrego esta encíclica social como uma humilde contribuição à reflexão para que frente às diversas formas de eliminar ou de ignorar os outros, sejamos capazes de reagir com um novo sonho de fraternidade e de amizade social” (n.6).

Devemos compreender bem esta alternativa. Viemos e estamos ainda dentro de um paradigma que está na base da modernidade. É antropocêntrico. É o reino do dominus: o ser humano como senhor e dono da natureza e da Terra que só possuem sentido na medida em que se ordenam a ele. Mudou a face da Terra, trouxe muitas vantagens, mas também criou um princípio de autodestruição. É o impasse atual das “sombras densas”. Face a esta cosmovisão, a encíclica Fratelli tutti propõe um novo paradigma: o do frater, o do irmão, a fraternidade universal e da amizade social. Desloca o centro: de uma civilização técnico-industrialista e individualista à uma civilização solidária, da preservação e do cuidado de toda a vida. Essa é a intenção originária do Papa. Nessa viragem está nossa salvação; superaremos a visão apocalíptica da ameaça do fim da espécie por uma visão de esperança de que podemos e devemos mudar de rumo.

Para isso precisamos alimentar a esperança. Diz o Papa: “convido-os à esperança que nos fala de uma realidade enraizada no profundo do ser humano, independentemente das circunstâncias concretas e dos condicionamentos históricos em que vive” (n.55). Aqui ressoa o princípio esperança, que é mais que a virtude da esperança, mas um princípio, motor interior para projetar sonhos e visões novas, tão bem formulado por Ernst Bloch. Enfatiza: “a afirmação de que os seres humanos somos irmãos e irmãs, que não é uma abstração senão que se faz carne e se torna concreta, nos coloca uma série de desafios que nos deslocam, nos obrigam a assumir novas perspectivas e a desenvolver novas reações” (n.128). Como se depreende, se trata de um rumo novo, de uma viragem paradigmática.

Por onde começar? Aqui o Papa revela sua atitude de base, com frequência repetida aos movimentos sociais: “Não esperem nada de cima pois vem sempre mais do mesmo ou pior; comecem por vocês mesmos”. Por isso sugere: ”É possível começar de baixo, de cada um, lutar pelo mais concreto e local, até o último rincão da pátria e do mundo” (n.78). O Papa sugere o que hoje é a ponta da discussão ecológica: trabalhar a região, o bioregionalismo que possibilita a verdadeira sustentabilidade e a humanização das comunidades e articula o local com a universal (n.147).

Tem longas reflexões sobre a economia e a política, mas realça: ”a política não deve submeter-se à economia e esta não deve submeter-se aos ditames e ao paradigma eficientista da tecnocracia” (n.177). Faz um crítica contundente ao mercado: “O mercado sozinho não resolve tudo como nos querem fazer crer no dogma de fé neoliberal; trata-se de um pensamento pobre, repetitivo que propõe sempre as mesmas receitas para qualquer desafio que se apresente; o neoliberalismo se reproduz a si mesmo como o único caminho para resolver os problemas sociais” (n.168). A globalização nos fez mais próximos mas não mais irmãos (n.12). Cria apenas sócios mas não irmãos (n.101).

À mão da parábola do bom samaritano procede a uma análise rigorosa dos vários personagens que entram em cena e os aplica à economia política culminando com a pergunta: ”com quem você se identifica (com o ferido na estrada, com o sacerdote, o levita ou com o forasteiro, o samaritano, desprezado pelos judeus)? Esta pergunta é crua, direta e determinante. Com qual deles você se parece” (n.64)? O bom samaritano é  feito modelo do amor social e político (n.66).

O novo paradigma da fraternidade e do amor social se desdobra no amor em sua concretização pública, no cuidado dos mais frágeis, na cultura do encontro e do diálogo, na
política como ternura e amabilidade. Quanto à cultura do encontro, toma-se a liberdade de
citar o poeta brasileiro Vinicius de Moraes em seu Samba da Bênção na faixa  “Encontro Au bon Gourmet” de 1962 onde diz: ”A vida é a arte do encontro embora haja tantos desencontros na vida” (n.215). A política não se reduz à disputa pelo poder e à divisão dos poderes. Afirma de forma surpreendente: ”Também na política há lugar para o amor com ternura: aos mais pequenos, aos mais débeis, aos mais pobres; eles devem enternecer-nos e tem o ‘direito’ de nos encher a alma e o coração; sim, são nossos irmãos e como tais temos que amá-los e assim tratá-los” (194) E se pergunta que é a ternura e responde: ”é o amor que se faz próximo e concreto; é um movimento que procede do coração e chega aos olhos, aos ouvidos, às mãos” (n.196). Isso nos faz recordar a frase de Gandhi, uma das inspirações do Papa, ao lado de São Francisco, Luther King, Desmond Tutu: a política é um gesto de amor ao povo, o cuidado das coisas comuns.

Junto com a ternura vem a amabilidade que nós traduziríamos por gentileza, lembrando profeta Gentileza que nas ruas do Rio de Janeiro proclamava a todos os passantes ”Gentileza gera gentileza” e “Deus é gentileza” bem no estilo de São Francisco. Assim define a amabilidade: ”um estado de ânimo que não é áspero, rude, duro, senão afável, suave, que sustenta e fortalece; uma pessoa que possui esta qualidade ajuda aos demais para que sua existência seja mais suportável” (n.223). Eis um desafio aos políticos, feito também
aos bispos e padres: fazer a revolução da ternura. A solidariedade é um dos fundamentos do humano e do social. Ela “se expressa concretamente no serviço que pode assumir formas muito diversas e de tomar para si o peso dos outros; em grande parte é cuidar da fragilidade humana” (n.115). Essa solidariedade se mostrou ausente e só depois, eficaz no combate ao Covid-19. Ela impede a bifurcação da humanidade entre o ‘meu mundo’ e os ‘outros’, ‘eles’, pois “muitos deixam de ser considerados seres humanos com uma dignidade inalienável e passam a ser apenas “eles” (n.27). E conclui com um grande desejo: ”Oxalá no final  não haja ‘os outros’ mas apenas um ‘nós’” (n.35).

Para esse desafio de dar corpo ao sonho de uma fraternidade universal e de amor social convoca todas as religiões pois “elas oferecem uma contribuição valiosa na construção da fraternidade e para a defesa da justiça na sociedade” (n.271).

No final evoca a figura do irmãozinho de Jesus Charles de Foucauld que no deserto do norte da África junto à população muçulmana queria ser “definitivamente o irmão universal” (n.287). Fazendo seu este propósito o papa Francisco observa: ”Só identificando-se com os últimos chegou a ser o irmão de todos; que Deus inspire esse sonho em cada um de nós. Amém” (n.288).

Estamos diante de um homem, o papa Francisco, que no seguimento de sua fonte inspiradora, Francisco de Assis, se fez também um homem universal, acolhendo a todos e se identificando com os mais vulneráveis e invisíveis de nosso mundo cruel e sem humanidade. Ele suscita a esperança de que podemos e devemos alimentar o sonho da fraternidade sem fronteiras e do amor universal.

Ele fez a sua parte. Compete a nós não deixar que o sonho seja apenas sonho, mas seja o começo seminal de uma nova forma de habitar juntos, como irmãos e irmãs e mais a natureza, na mesma Casa Comum. Teremos tempo e sabedoria para esse salto? Seguramente continuarão as “sombras densas”. Mas temos uma lâmpada nesta encíclica de esperança do papa Francisco. Ela não dissipa todas as sombras. Mas basta para vislumbrar o caminho a ser percorrido por todos.

Leonardo Boff

Leonardo Boff é ecoteólogo, filósofo e escritor brasileiro e escreveu, dentre dezenas de livros e de artigos : “Francisco de Assis e Francisco de Roma”, Editora Mar de ideias, Rio 2015.

(Os grifos no texto são nossos)

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Dentro de um inferno, algo do paraíso não se perdeu, com a palavra o ecoteólogo Leonardo boff https://observatoriodaevangelizacao.com/dentro-de-um-inferno-algo-do-paraiso-nao-se-perdeu-com-a-palavra-o-ecoteologo-leonardo-boff/ Thu, 06 Aug 2020 10:00:00 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=35314 [Leia mais...]]]> Se olharmos os cenários mundiais, temos a impressão de que a dimensão de sombra, o impulso de morte e a porção demente tomaram conta das mentes e dos corações de muitas pessoas.

Particularmente em nosso país, criou-se até o “gabinete do ódio” onde grupos maus maquinam maldades, calúnias, distorções e todo tipo de perversidades contra seus adversários políticos, feitos inimigos que devem ser liquidados senão fisicamente, pelo menos simbolicamente. Várias janelas do inferno se abriram e suas labaredas incineraram celebridades, alimentaram as fake news e destroçaram porções do Estado Democrático de Direito e em seu lugar introduziram um Estado sem lei e post-democrático e, no caso do Brasil, em sua cabeça, um chefe de Estado demente, cruel e sem compaixão.

Historiadores nos asseguram que há momentos na história de uma nação ou de um povo nos quais o dia-bólico (o que divide) inunda a consciência coletiva. Tenta afogar o sim-bólico (o que une) no intento de fazer regredir toda uma história aos tempos sombrios, já superados pela civilização. Então surgem ideologias de exclusão, mecanismos de ódio, conflitos e genocídios de inteiras etnias.

Conhecemos a Shoah, fruto do inferno criado pelo nazifascismo de extermínio em massa de judeus e de outros. Na América Latina por ocasião da invasão/ocupação dos europeus, ocorreu talvez o maior genocídio da história. No México, em 1519, com a chegada de Hernán Cortez, viviam 22 milhões de aztecas; depois de 70 anos restaram somente 1,2 milhões. Foram católicos anticristãos que perpetraram  extermínios em massa. Os gritos das vítimas clamam ao céu contra a “Destruição das Índias”(Las Casas) e têm o direito de reclamar até o juízo final. Nunca se viu algum ato de reconhecimento deste genocídio por parte das potências colonialistas nem se dispuseram a fazer a mínima compensação aos sobreviventes destes massacres. São demasiados desumanos e arrogantes.

Mas dentro deste inferno dantesco, há algo do paraíso que nunca se perdeu e que constitui a permanente saudade do ser humano: saudade da situação paradisíaca na qual tudo se harmoniza, o ser humano trata humanamente outro ser humano, sente-se confraternizado com a natureza e filho e filha das estrelas, como dizem tantos indígenas. Em tempos maus como o nosso, vale ressuscitar esse sonho que dorme no profundo de nosso ser. Ele nos permite projetar outro tipo de mundo que, para além das diferenças, todos se reconhecem como irmãos e irmãs. E se entre-ajudam.

Narro um fato real que mostra a emergência desse pedaço de paraíso, ainda existente entre nós, lá onde a inimizade e a violência são diárias. Essa não é uma história inventada mas real, recolhida por um jornalista espanhol do El País no dia sete de junho de 2001. Ocorreu no ontem, mas seu espírito vale para o hoje. Mazen Julani era um farmacêutico palestino de 32 anos, pai de três filhos, que vivia na parte árabe de Jerusalém. No dia 5 de junho de 2001, quando estava tomando café com amigos num bar, foi vítima de um disparo fatal vindo de um colono judeu. Era a vingança contra o grupo palestinense Hamás que, quarenta e cinco minutos antes, havia matado inúmeras pessoas numa discoteca de Tel Aviv mediante um atentado feito por um homem bomba. O projétil entrou pelo pescoço de Mazen e lhe estourou o cérebro. Levado imediatamente para o hospital israelense Hadassa chegou já morto. Mas eis que a porção adormecida do paraíso em nós foi acordada. O clã dos Julani decidiu aí mesmo, nos corredores do hospital, entregar todos os órgãos do filho morto: o coração, o fígado, os rins e o pâncreas para transplantes a doentes judeus. O chefe do clã esclareceu em nome de todos que este gesto não possuía nenhuma conotação política. Era um gesto estritamente humanitário.

Segundo a religião muçulmana, dizia, todos formamos uma única família humana e somos todos iguais, israelenses e palestinos. Não importa em quem os órgãos vão ser transplantados. Essencial é que ajudem a salvar vidas. Por isso, arrematava ele: os órgãos serão destinados aos nossos vizinhos israelenses. Com efeito, ocorreu um transplante. No israelense Ygal Cohen bate agora um coração palestino, o de Mazen Julani. A mulher de Mazen teve dificuldades em explicar à filha de quatro anos a morte do pai. Ela apenas lhe dizia que o pai fora viajar para longe e que na volta lhe traria um belo presente. Aos que estavam próximo, sussurrou com os olhos marejados de lágrimas: daqui a algum tempo eu e meus filhos iremos visitar a Ygal Cohen na parte israelense de Jerusalém. Ele vive com o coração de meu marido e do pai de meus filhos. Será grande consolo para nós, encostar o ouvido ao peito de Ygal e escutar o coração daquele que tanto nos amou e que, de certa forma, ainda está pulsando por nós.

Este gesto generoso demonstra que o paraíso não se perdeu totalmente. No meio de um ambiente altamente tenso e carregado de ódios, surgiu um Jardim do Éden, de vida e de reconciliação. A convicção de que somos todos membros da mesma família humana, alimenta atitudes de perdão e de incondicional solidariedade. No fundo, aqui irrompe o amor que confere sentido à vida e que move, segundo Dante Alighieri, na Divina Comédia, o céu e todas as estrelas. E eu diria, também o coração da esposa de Mazen Julani e o nosso.

São tais atitudes que nos fazem crer que o ódio reinante do Brasil e no mundo, as fake news e as difamações não terão futuro. É joio que não será recolhido, como o trigo, no celeiro dos homens nem de Deus. Esse tsunami de ódio e seu promotor maior que desgoverna nosso país, irá descobrir, um dia em que só Deu sabe, as lágrimas, os lamentos e o luto que provocaram em milhares de seus compatriotas que, por sua falta de amor e de cuidado para com os afetados pelo Covid-19, perderam a quem tanto amavam. Oxalá neles não esteja totalmente perdida a parcela do Jardim do Éden.

Leonardo Boff

Leonardo Boff é ecoteólogo, escritor e escreveu “O doloroso parto da Mãe Terra: uma nova etapa da Terra e da Humanidade”, a sair pela Vozes em 2020.

Fonte:

www.leonardoboff.files.wordpress.com

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Nosso desafio coletivo maior pós-pandemia: construir cultura e sociedade biocentradas, com a palavra o teólogo Leonardo Boff https://observatoriodaevangelizacao.com/nosso-desafio-coletivo-maior-pos-pandemia-construir-cultura-e-sociedade-biocentradas-com-a-palavra-o-teologo-leonardo-boff/ Mon, 22 Jun 2020 13:29:22 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=34882 [Leia mais...]]]> “Uma coisa ficou clara a propósito do covid-19: caiu um meteoro rasante em cima do capitalismo neoliberal desmantelando seu ideário: o lucro, a acumulação privada, a concorrência, o individualismo, o consumismo, o estado mínimo e a privatização da coisa pública… Ele foi gravemente ferido. O fato é que produziu demasiada iniquidade humana, social e ecológica, a ponto de pôr em risco o futuro do sistema-vida e do sistema-Terra… Ele, entretanto, colocou inequivocamente a disjuntiva: vale mais o lucro ou a vida? O que vem antes: salvar a economia ou salvar vidas humanas? Pelo ideário do capitalismo, a disjuntiva seria salvar a economia em primeiro lugar e em seguida vidas humanas. Mas releva reconhecer que o que nos está salvando é aquilo que inexiste nele: a solidariedade, a cooperação, a interdependência entre todos, a generosidade e o cuidado mútuo pela vida de uns e de outros.

Confira, na íntegra, a reflexão do teólogo:

A transição ecológica para uma sociedade biocentrada

O ataque do coronavírus contra toda a humanidade nos obrigou a nos concentrar no vírus, no hospital, no paciente, no poder da ciência e da técnica e na corrida desenfreada por uma vacina eficaz e no confinamento e distanciamento social. Tudo isso é indispensável. Mas para apreendermos o significado do coronavírus, precisamos enquadrá-lo em seu devido contexto e não vê-lo isoladamente. Ele expressa a lógica do capitalismo global que, há séculos, conduz uma guerra sistemática contra a natureza e contra a Terra.

O capitalismo neoliberal gravemente ferido

O capitalismo se caracteriza pela exacerbada exploração da força de trabalho, pela utilização dos saberes produzidos pela tecnociência, pela pilhagem dos bens e serviços da natureza, pela colonização e ocupação de
todos os territórios acessíveis. Por fim, pela mercantilização de todas as coisas. De uma economia de mercado passamos para uma sociedade de mercado. Nela, as coisas inalienáveis se transformaram em mercadoria. Karl Marx em sua Miséria da Filosofia, de 1874, bem escreveu: “Tudo o que os homens consideravam inalienável, coisas trocadas e dadas, mas jamais vendidas….tudo se tornou venal como a virtude, o amor, a opinião, a ciência e a consciência… tudo se tornou venal e levado ao mercado”. A isso ele denominou o “tempo da corrupção geral e da venalidade universal”(ed.Vozes 2019,p.54-55).É o que estamos vivendo desde o fim da segunda guerra mundial.

O capitalismo quebrou todos os laços com natureza, a transformou num baú de recursos, tidos ilusoriamente ilimitados, em função de uma crescimento também tido ilusoriamente ilimitado. Ocorre que um planeta já velho e limitado não suporta um crescimento ilimitado. Politicamente o neoliberalismo confere centralidade ao lucro, ao mercado, ao Estado mínimo, às privatizações de bens públicos e uma exacerbação da concorrência e do individualismo, a ponto de Reagan e Thatcher
dizerem que a sociedade não existe, apenas indivíduos.

A Terra viva, Gaia, um superorganismo que articula todos fatores para continuar viva e produzir e reproduzir sempre todo tipo de vida, começou a reagir e contra-atacar: pelo aquecimento global, pela erosão da biodiversidade, pela desertificação crescente, pelos eventos extremos e pelo envio de suas armas letais que são os vírus e bactérias (gripe suína, aviária, H1N1, zika, sikunguhnia, SARS, ebola e outros) e agora o covid-19, invisível e letal. Colocou a todos de joelhos, especialmente as potências militaristas cujas armas de destruição em massa (que poderiam destruir toda a vida, várias vezes) se mostraram totalmente supérfluas e ridículas. Agora passamos do capitalismo do desastre para o capitalismo do caos, como diz a crítica do sistema capitalista Naomi Klein.

Uma coisa ficou clara a propósito do covid-19: caiu um meteoro rasante em cima do capitalismo neoliberal desmantelando seu ideário: o lucro, a acumulação privada, a concorrência, o individualismo, o consumismo, o estado mínimo e a privatização da coisa pública e dos commons. Ele foi gravemente ferido. O fato é que produziu demasiada iniquidade humana,
social e ecológica, a ponto de pôr em risco o futuro do sistema-vida e do sistema-Terra.

Ele, entretanto, colocou inequivocamente a disjuntiva: vale mais o lucro ou a vida? O que vem antes: salvar a economia ou salvar vidas humanas? Pelo ideário do capitalismo, a disjuntiva seria salvar a economia em primeiro lugar e em seguida vidas humanas. Mas releva reconhecer que o que nos está salvando é aquilo que inexiste nele: a solidariedade, a cooperação, a interdependência entre todos, a generosidade e o cuidado mútuo pela vida de uns e de outros.

Alternativas para o pós-coronavírus

O grande desafio colocado a todos, a grande interrogação especialmente, aos donos dos grandes conglomerados multinacionais é: Como continuar?
Voltar ao que era antes? Recuperar o tempo e o lucros perdidos? Muitos dizem: voltar simplesmente ao que era antes, seria um suicídio. Pois a Terra poderia novamente contra-atacar com vírus mais violentos e mortais.

Cientistas já advertiram que poderemos, dentro de pouco, sofrer com um ataque ainda mais feroz, caso não tenhamos aprendido a lição de cuidar da natureza e de desenvolver uma relação amigável para com a Mãe Terra. Elenco aqui algumas alternativas, pois os senhores do capital e das finanças estão numa furiosa articulação entre eles para salvaguardar seus interesses, fortunas e poder de pressão política.

A primeira seria a volta ao sistema capitalista neoliberal extremamente radical. Seria 0,1% da humanidade, biliardários, que utilizariam a inteligência artificial com capacidade de controlar cada pessoa do planeta, desde sua vida íntima, privada e pública. Seria um despotismo de outra ordem, cibernético, sob a égide do total controle/ dominação da vida das populações. Este não aprendeu nada do covid-19, nem incorporou o
fator ecológico. Pela pressão geral, talvez assuma uma responsabilidade socioecológica para não perder lucros e fregueses. Mas seguramente haverá grande resistência e até rebeliões provocadas pela fome e pelo
desespero.

A segunda alternativa seria o capitalismo verde que tirou as lições do coronavírus e incorporou o fator ecológico: reflorestar o devastado e conservar ao máximo a natureza. Mas não mudaria o modo de produção e a busca do lucro. O capitalismo verde não discute a desigualdade social perversa e faria de tudo da natureza, ocasião de ganho. Exemplo: não apenas ganhar com o mel das abelhas, mas também sobre sua capacidade de polinizar outras flores. A relação para com a natureza e a Terra continuaria utilitarista e não lhe reconheceria direitos, como declarou a ONU e seu valor intrínseco, independente do ser humano.

A terceira seria o comunismo de terceira geração que nada teria com as anteriores, colocando os bens e serviços do planeta sob a administração plural e global para redistribui-los equitativamente a todos. Poderia ser
possível, mas supõe uma nova consciência ecológica, além de  dar centralidade à vida em todas as suas formas. Seria ainda antropocêntrico. É pouco representado, pelos filósofos Zizek e Badiou, além da carga negativa das experiências anteriores e mal sucedidas.

A quarta, seria o eco-socialismo com maiores possibilidades. Supõe um contrato social mundial com um centro plural de governança para resolver os problemas globais da humanidade. Os bens e serviços naturais seriam equitativamente distribuídos a todos, num consumo decente e sóbrio que incluiria também toda a comunidade de vida. Ela também precisa de meios de vida e de reprodução como água, climas e nutrientes. Esta alternativa estaria dentro das possibilidades humanas, desde que superasse o sociocentrismo e incorporasse os dados da nova cosmologia e biologia, que consideram a Terra como momento do grande processo cosmogênico, biogênico e antropogênico.

A quinta alternativa seria o bem viver e conviver ensaiada por séculos pelos andinos. Ela é profundamente ecológica, pois considera todos os seres
como portadores de direitos. O eixo articulador é a harmonia que começa com a família, com a comunidade, com a natureza, com o inteiro universo,
com os ancestrais e com a Divindade. Esta alternativa possui alto grau de utopia. Talvez, quando a humanidade se descobrir como espécie, habitando
numa única Casa Comum, teria condições de realizar o bem-viver e o bem conviver.

Conclusão desta parte: ficou evidente que o centro de tudo é a vida, a saúde e os meios de vida e não o lucro e o desenvolvimento (in)sustentável. Vai se exigir mais Estado, com mais segurança sanitária para todos, um Estado que satisfaça as demandas coletivas e promova um desenvolvimento que obedeça os ritmos e os limites da natureza. Não será a austeridade que vai resolver os problemas sociais que têm beneficiado aos já ricos, e penalizado aos mais pobres. A solução se deriva da justiça social e distributiva, onde todos participam do ônus e do bônus da ordem social.

Como o problema do coronavírus foi global, torna-se necessário um contrato social global para implementar soluções globais. Tal transformação demandará uma descolonização de visões de mundo e de conceitos, como a voracidade pelo lucro e o consumismo, que foram
inculcados pela cultura do capital. O pós-coronavírus nos obrigará conferir centralidade à natureza e à Terra.

Ou salvamos a natureza e a Terra ou engrossaremos o cortejo dos que rumam para o abismo. Como buscar uma transição ecológica, exigida pela
ação mortífera do covid-19? Por onde começar? Não podemos subestimar o poder do “gênio” do capitalismo neoliberal: ele é capaz de incorporar os dados novos, transformá-los em seu benefício privado e para isso usar todos os meios modernos da robotização, da inteligência artificial com seus bilhões de algoritmos e eventualmente as guerras híbridas. Sem piedade podem conviver, indiferentes, aos milhões e milhões de esfaimados e lançados na miséria.

Por outra parte os que buscam uma transição paradigmática, dentro do qual eu mesmo me situo, devem propor outra forma de habitar a Casa Comum, com uma convivência respeitosa para com a natureza e um cuidado com todos os ecossistemas. Devem gerar na base social outro nível de consciência e novos sujeitos sociais, portadores desta alternativa. Para isso, cabe enfatizar, devemos passar por um processo de descolonização de visões de mundo e de ideias inculcadas pela cultura do capital. Devemos ser anti-sistema e alternativos.

Pressupostos para uma transição bem sucedida

Primeiro pressuposto: a vulnerabilidade da condição humana, exposta a ser atacada por enfermidades, bactérias e vírus. dos ecossistemas e a alimentação humana.

Fundamentalmente dois outros fatores estão na origem da invasão de micro-organismos letais: Primeiro, a excessiva urbanização humana que avançou sobre os espaços da natureza, destruindo os habitats naturais dos vírus e bactérias: saltaram para outros animais ou para o corpo humano. Atualmente 83% da humanidade vive em cidades. O segundo fator é a desflorestação sistemática devida à voracidade do capital que busca riqueza com a monocultura da soja, da cana, do girassol ou com a mineração e produção de proteínas animais (gado), devastando florestas e desequilibrando o regime de umidade e de chuvas de vastas regiões como é o caso da Amazônia.

Segundo pressuposto: a interdependência entre todos os seres, especialmente entre os seres humanos.

Somos, por natureza, um nó de relação, voltado para todas as direções. A bioantropologia e a psicologia evolutiva deixaram claro que é da essência específica do ser humano a cooperação e a relação de todos com todos. Não existe o gene egoísta, formulado por Dawkins no fins dos anos 60 do século passado sem nenhuma base empírica. Todos os genes se interligam entre si e dentro das células. Todos os seres estão inter-retro-relacionados e ninguém está fora da relação. Nesse sentido o individualismo, valor supremo da cultura do capital, é anti-natural e não possui nenhuma base biológica.

Terceiro pressuposto: a solidariedade como opção consciente.

A solidariedade está na base de nossa humanidade. Os bioantropólogos nos revelaram que este dado é essencial ao ser humano. Quando nossos ancestrais buscavam seus alimentos, não os comiam sozinhos. Levavam-nos ao grupo e serviam a todos começando com os mais novos, depois com os mais idosos e por fim a todos. Daí surgiu a comensalidade e o sentido de cooperação e solidariedade. Foi a solidariedade que nos permitiu o salto da animalidade para a humanidade. O que valeu ontem, vale também para hoje.

A sociedade vive e subsiste porque seus cidadãos comparecem como seres cooperativos e solidários, superando conflito de interesses para ter uma
convivência minimamente humana e pacífica e juntos construir o bem comum. Esta solidariedade não vigora apenas entre os humanos. É uma constante cosmológica: todos os seres convivem, estão envolvidos em redes de relações de reciprocidade e de solidariedade de forma que todos se entre-ajudam para viver e co-evoluir. Também o mais fraco, com a colaboração dos outros, subsiste e tem o seu lugar no conjunto dos seres e co-evolui.

O sistema do capital não conhece a solidariedade, apenas a competição que produz tensões, rivalidades e verdadeiras destruições de outros concorrentes em função de uma maior acumulação e, se possível, estabelecer o monopólio de um produto ou de uma fórmula científica.

Hoje o maior problema da humanidade não é nem o econômico, nem o político, nem o cultural, nem o religioso, mas é a falta de solidariedade para com outros seres humanos que estão ao nosso lado. No capitalismo ele é visto como um eventual consumidor, não como uma pessoa humana com suas preocupações, suas alegrias e padecimentos. Foi a solidariedade que nos está salvando face ao ataque do coronavírus, a começar pelos operadores da saúde que generosamente arriscam suas vidas para salvar vidas. Assistimos atitudes de solidariedade em toda a sociedade, mas especialmente nas periferias onde as pessoas não têm condições de fazerem o isolamento social e não possuem reservas de alimentação. Muitas famílias que recebiam as cestas básicas, as repartiam entre outros mais necessitados.

Referência especial merece o MST (Movimento dos Sem Terra) que forneceu toneladas alimentação orgânica para os mais vulneráveis. Não dão o que sobra, mas o que têm. Outras ONGs organizaram ações de solidariedade para atenderem aos mais carentes. Grandes empresas também mostraram solidariedade, doando alguns milhões que lhes sobraram para enfrentar o covid-19.

Não basta que a solidariedade seja um gesto pontual. Ele deve ser uma atitude básica, porque é um dado de nossa natureza. Temos que fazer uma opção consciente para sermos solidários a partir dos últimos e invisíveis,
para aqueles que não contam para o sistema imperante e são considerados prescindíveis e zeros econômicos. Só assim ela deixa de ser eletiva e engloba a todos, pois todos somos co-iguais e nos unem laços objetivos de
fraternidade.

Quarto pressuposto: o cuidado essencial para com tudo o que vive e existe, especialmente entre os seres humanos.

Pertence à essência do humano, o cuidado, sem o qual nenhum ser vivo subsistiria. Nós estamos vivos porque tivemos o infinito cuidado de nossas mães. Deixados no berço, não saberíamos como buscar nosso alimento e dentro de pouco tempo morreríamos. Ademais, o cuidado é além disso uma constante cosmológica como o mostraram Stephan Hawking e Brian Swimme entre outros: as quatro forças que sustentam o universo (a gravitacional, a eletromagnética, a nuclear franca e a forte) agem
sinergeticamente com extremo cuidado sem o qual não estaríamos aqui refletindo sobre estas coisas.

O cuidado representa uma relação amiga da vida, protetora de todos os seres pois os vê como um valor em si mesmo, independente do uso humano. Foi a falta de cuidado para com a natureza, devastando-a, que os vírus perderam seu habitat, conservado em milhares de anos e passaram a outro animal ou ao ser humano para poder sobreviver devorando nossas células. O ecofeminismo trouxe uma expressiva contribuição à preservação da vida e da natureza com a ética do cuidado, desenvolvida por elas, pois o cuidado é de todos os humanos, mas ganha especial densidade nas mulheres.

A transição para a uma civilização biocentrada

Toda crise faz pensar e projetar novas janelas de possibilidades. O coronavírus nos deu esta lição: a Terra, a natureza, a vida, em toda sua diversidade, a interdependência, a cooperação e a solidariedade devem possuir a centralidade na nova civilização, se não quisermos ser mais atacados por vírus letais.

Parto da seguinte interpretação: não só nós agredimos por séculos a natureza e a Mãe Terra. Agora é a Terra ferida e a natureza devastada que estão nos contra-atacando e fazendo sua represália. São entes vivos e
como vivos sentem e reagem às agressões.

A multiplicação de sinais que a Terra nos enviou, a começar pelo aquecimento global, a erosão da biodiversidade na ordem de 70-100 mil espécies por ano (estamos dentro da sexta extinção em massa na era do
antropoceno e do necroceno) e outros eventos extremos, devem ser tomados absolutamente a sério e interpretados. Ou nós mudamos nossa relação para com a Terra e a natureza, num sentido de sinergia, de cuidado e de respeito ou a Terra pode não mais nos querer sobre sua superfície.

Desta vez não há uma arca de Noé que salva alguns e deixa perecer os outros. Ou nos salvamos todos ou engrossaremos o cortejo daqueles que rumam para a sua própria sepultura.

Quase todas as análises do covid-19 focaram na técnica, a medicina, a vacina salvadora, o isolamento social, o distanciamento e o uso de máscaras para nos proteger e não contaminar os outros. Raramente se falou de natureza, pois o vírus veio da natureza. Por que ele passou da natureza a nós? Já o tentamos explicar anteriormente.

A transição de uma sociedade capitalista de superprodução de bens materiais para uma sociedade de sustentação de toda a vida com valores humano-espirituais como a solidariedade, a compaixão, a interdependência, a justa medida, o respeito e o cuidado e, não em último lugar, o amor, não se fará de um dia para o outro. Será um processo difícil que exige, nas palavras do papa Francisco na encíclica “sobre o Cuidado da Casa Comum” uma “radical conversão ecológica”. Vale dizer, devemos introduzir relações de cuidado, de proteção e de cooperação. Um desenvolvimento feito com a natureza e não contra a natureza.

O sistema imperante pode conhecer uma longa agonia. Mas não terá futuro. Há uma grande acumulação de crítica e de práticas humanas que sempre resistiram à exploração capitalista. Segundo minha opinião, quem o vencerá definitivamente nem seremos só nós, mas a própria Terra, negando ao atual sistema as condições de sua reprodução pelos limites dos bens e serviços da Terra superpovoada.

O novo paradigma cosmológico e biológico

Para uma sociedade pós-covid-19 impõe-se a assunção das contribuições do novo paradigma cosmológico que já possui um século de existência. Lamentavelmente até agora não conseguiu conquistar a consciência coletiva nem a inteligência acadêmica, muito menos a cabeça dos “decisons makers” políticos.

Parte de que tudo se originou a partir do big bang, ocorrido há 13,7 bihões de anos. De sua explosão surgiram as grandes estrelas vermelhas e com a explosão destas, as galáxias, as estrelas, os planetas, a Terra e e nós mesmos. Somos todos feitos do pó cósmico. A Terra que já tem 4,3 bilhões de anos e a vida cerca de 3,8 bilhões de anos são vivos. A Terra, isso é um dado de ciência já aceito pela comunidade científica, não só possui viva sobre ela, mas é viva e produz toda sorte de vidas.

O ser humano que surgiu já há uns 10 milhões de anos, há 100 mil anos como sapiens sapiens, é a porção da Terra que num momento de alta complexidade começou a sentir, a pensar, a amar e a cuidar. Por isso
homem vem de húmus, terra boa. Inicialmente possuía uma relação de convivência com a natureza, depois passou de intervenção mediante a
agricultura de irrigação e nos últimos séculos de agressão sistemática mediante a tecnociência. Essa agressão foi levada a todas as frentes a ponto de colocar em risco o equilíbrio da Terra e até uma ameaça de autodestruição da espécie humana com armas nucleares, químicas e biológicas.

Essa relação de agressão subjaz à atual crise sanitária. Levada avante, a agressão poderá nos trazer crises mais agudas até aquilo que os biólogos temem The Next Big One: aquele próximo e grande vírus, inatacável e fatal
que poderá levar a espécie humana a desaparecer da face da Terra.

Para obviar este possível armagedom ecológico, urge renovar o contrato natural violado com a Terra viva: ela nos dá tudo o que precisamos e garante a sustentabilidade dos ecossistemas. Nós, contratualmente, teríamos que lhe devolver cuidado, respeito a seus ciclos e lhe darmos tempo para regenerar o que lhe tiramos. Este contrato natural foi rompido por aquele estrato da humanidade (e sabemos quem é) que explora os bens e serviços, desfloresta, contamina as águas e os mares.

É decisivo renovar o contrato natural e articulá-lo com o contrato social: uma sociedade que se sente parte da Terra e da natureza, que assume coletivamente a preservação de toda vida, mantém em pé suas florestas
que garante a água necessária para todo tipo de vida e regenera o que foi degradado e fortalece o que já é preservado.

A importância da região: o bioregionalismo

A ONU reconheceu a Terra como Mãe Terra e a natureza como titulares de direitos. Isso implica que a democracia deverá incorporar como novos cidadãos, as florestas, as montanhas, os rios, as paisagens. A democracia seria socioecológica.

A vida será o farol orientador e a política e a economia estarão a serviço, não da acumulação e do mercado, mas da vida. O consumo, para que seja universalizado, será sóbrio, frugal e solidário. Destarte, a sociedade seria
suficiente e decentemente abastecida.

O acento não se dará à planetização econômico-financeira que seguirá o seu curso, mas à região. A ponta mais avançada da reflexão ecológica atualmente se realiza em torno do bioregionalismo. Tomar a região, não como vem definida arbitrariamente pela administração geográfica, mas com a configuração que a natureza fez, com seus rios, montanhas, floresta,
planícies, fauna e flora e especialmente com os habitantes que aí moram. Na bioregião poder-se-á verdadeiramente criar um desenvolvimento sustentável que não seja meramente retórico, mas real. As empresas serão preferentemente médias e pequenas, dar-se-á preferência à agroecologia, evitar-se-ão os transportes para regiões distantes, a cultura será o cimento de coesão: as festas, as tradições, a memória das pessoas notáveis, a presença das igrejas ou das religiões, os vários tipos de escolas e outros meios modernos de difusão de conhecimento e de encontros entre as
pessoas.

A Terra será como um mosaico feito de distintas peças com cores diferentes: são as distintas regiões e os ecossistemas, diversos e singulares, mas todos
compondo um só mosaico, a Terra.

A transição se fará por processos que vão crescendo e se articulando a nível nacional, regional e mundial, fazendo crescer a consciência de nossa responsabilidade coletiva de salvarmos a Casa Comum e tudo o que a ela
pertence.

A acumulação de nova consciência permitirá um salto para um outro nível em que seremos amigos da vida, abraçaremos cada ser pois todos possuímos o mesmo código genético de base, desde a bactéria originária,
passando pelas grandes florestas, os dinossauros, os cavalos, os beija-flores e nós mesmos.  Somos construídos por 20 aminoácidos e por 4 bases nitrogenadas ou fosfatadas. Quer dizer, somos todos parentes uns dos outros numa real fraternidade terrenal. Será a civilização “da felicidade possível” e da “alegre celebração da vida”.

Brasil, nosso sonho bom: a sua refundação

O Brasil, por suas riquezas ecológicas, geográficas e populacionais, tem todas as condições de começar a colocar os fundamentos de uma civilização biocentrada. Até hoje vivemos na dependência de outros centros hegemônicos. Está madurando, especialmente nas bases, a ideia da refundação de um outro Brasil.

Três pilastras podem dar corpo a esse sonho, por mim exposto com mais detalhe no livro: “Brasil: concluir a refundação ou prolongar a dependência” (Vozes 2019). Sem entrar em detalhes direi: A natureza, das mais ricas do planeta em biodiversidade, em florestas úmidas e em água. Podemos ser a mesa posta para as fomes e sedes do mundo inteiro.

A cultura que configura a relação do ser humano com a natureza e com outros seres humanos, diversa, rica em criatividade nas artes, na música, na arquitetura, nas danças e em certos ramos da ciência, não obstante o
racismo visceral e as ameaças às culturas originárias e outras exclusões sociais, reforçadas pela atual política de ultra-direita e de viés fascitóide.

O povo brasileiro ainda em fazimento, plasmado por gentes que vieram de 60 países diferentes. A cultura multiétnica e multireligiosa, a cultura relacional, o senso lúdico, a hospitalidade, a alegria de viver e sua criatividade são características entre outras de nosso povo.

O Brasil é a maior nação neolatina do mundo e temos tudo para ser a maior civilização dos trópicos. Para essa utopia viável, temos que retrabalhar no consciente e no inconsciente coletivo, as sombras que nos pesam fortemente: do etnocídio indígena, da colonização, da escravidão e da dominação das oligarquias, herdeiras da Casa Grande e de um governo atual anti-Brasil, anti-vida e anti-povo com traços claros de despotismo que pretende conduzir o país a fases superadas pela humanidade, ao anti-iluminismo, ao mundo do atraso, avesso ao saber e aos valores civilizatórios que são já bens comuns das sociedades mundiais.

Para terminar, tomo como referência a proposta do papa Francisco, quiçá o maior líder ético-político atual da humanidade. Na reunião com dezenas de movimentos sociais populares em 2015 ao visitar a Bolívia. Na cidade de Santa Cruz de la Sierra disse: “Vocês têm que garantir os três Ts: Terra para morar nela e trabalhar. Teto para morar porque não são animais que vivem ao relento. Trabalho com o qual vocês se autorealizam e conquistam tudo o que precisam.” Em seguida continuou: “Não esperem nada de cima. Pois vem sempre mais do mesmo e geralmente ainda pior. Sejam vocês mesmos os protagonistas de um novo tipo de mundo, de uma nova democracia participativa e popular, com uma economia solidária, com uma agroecologia com produtos sãos e livres de transgênicos. Sejam os poetas da nova sociedade. Lutem para que a ciência sirva à vida e não ao mercado.
Empenhem-se pela justiça social sem a qual não há paz. Por fim, cuidem da Mãe Terra sem a qual nenhum projeto será possível.”

Aqui estamos diante de um programa mínimo para um novo tipo de sociedade e de humanidade. O futuro nos assinala que não iremos ao encontro do capitalismo neoliberal, embora teime em se impôr. Ele
não deu certo: acumulou demasiada riqueza em poucas mãos à custa do sacrifício de milhões e milhões vivendo em condições sub-humanas e junto a isso devastou a maioria dos ecossistemas e colocou a Terra numa emergência ecológica.

A travessia para uma sociedade ecologicamente sustentada com uma cultura, uma política e economia compatíveis é a grande utopia viável da humanidade e dos grupos progressistas do Brasil. Cremos e esperamos que esse sonho não seja uma fantasmagoria, mas uma realidade possível que se
adequa à lógica do universo, feito não pela soma de seus corpos celestes, mas pelo conjunto das redes de suas relações dentro das quais nós também estamos envolvidos. Para citar Paulo Freire, diria: precisamos construir uma ecosociedade na qual não seja tão difícil o amor.

O Brasil, libertado de suas sombras históricas, pode ser um embrião da nova sociedade, una, diversa dentro da única Casa Comum, a Mãe Terra.

Leonardo Boff é ecoteólogo, filósofo e escritor e escreveu: Ecologia: grito da Terra, grito dos pobres, Vozes, 1995/2015; em espanhol, por Trotta: Madrid,
1996 e Dabar: México, 1996.

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Brumadinho: "Dói demais o jeito que vocês foram embora" https://observatoriodaevangelizacao.com/brumadinho-doi-demais-o-jeito-que-voces-foram-embora/ Tue, 04 Feb 2020 10:00:00 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=34067 [Leia mais...]]]> No dia 25 de janeiro de 2020 se celebrou em Brumadinho-MG um ato de recordação do trágico desastre criminoso do rompimento da barreira da Vale S.A. Ferem-nos os olhos e rompem os nossos corações aquelas imagens mostradas pela TV: a liberação de 12 milhões de metros cúbicos de rejeitos, o sepultamento sob ondas de lama e morte de 272 pessoas, os danos à economia de milhares de famílias camponeses, indígenas e quilombolas, os impactos químicos dos metais que vão se sedimentar no fundo dos rios, a contaminação dos ecossistemas, da flora, da fauna e das matas ciliares dos rios. A velocidade da onda assassina era de 80 km por hora. È o maior desastre de mineradoras do mundo, com mais vítimas do que aquele de Stava na Itáli em 1985 que dizimou 267 pessoas. Aqui foram 272.

A celebração foi minuciosamente preparada, com uma grande romaria, acorrendo pessoas de todas as partes do Brasil e de diversas igrejas.O lema era:”Porque a vida Vale mais”. Ou:”A vida Vale mais do que o lucro”. O momento talvez mais comovedor ocorreu na “mística” feita pelos parentes das vítimas, com testemunhos, poesias e cânticos e a soltura de 272 balões (número das vítimas) com a inscriação:”Dói demais o jeito que vocês foram embora”. Eles subiram para o alto, rumo ao céu, onde as vítimas, chamadas de “nossas jóias”, estarão no seio de Deus Pai e Mãe de infinita bondade.

Para todas as instâncias até oficiais houve descaso culposo da Vale, mesmo ciente na insegurança da barragem e dos riscos para as populações circunvizinhas. Por isso não ocorreu um acidente mas um tragédiacriminosa cujos responsáveis estão sendo indiciados por vários tipos de crime.

Estabeleceu-se, desde então, um confronto entre duas leituras/narrativas: a da mineradora Vale que insiste no fato do acidente e de sua relutância em reparar adequadamente os danos e de fazer as compensações necessárias aos parentes dos vitimados. Orgulhosamente se auto-apresenta “como uma mineradora global que transforma recursos naturais em prosperidade e desenvolvimento sustentável. Com sede no Brasil e atuação em cerca de 30 países, a empresa emprega aproximadamente cerca de 125 mil empregados, entre próprios e terceiros permanentes”. Esquece que em 2012 foi eleita pelo Public Eye People’s” a pior empresa do mundo, o “Oscar da Vergonha”. Dentro da lógica do capital, visa apenas o lucro mesmo à custa de vidas humanas. Paranovembro de 2019 estavam previstos (mas ainda sub judice) 7.25 bilhões de reais como dividendos para os acionistas. Mas nas negociações com os parentes dasvítimas e face aos danos a toda uma região, se mostra dura e chantageia a população, caso não aderir a suas propostas: não haverá empregos e prosperidade para a região. É um engodo, pois, pela nefasta Lei Kandir a Vale não paga nenhum imposto sobre a exportação e apenas 2% como Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais. Portanto,o lucro principal não vai para o Brasil e para a população.

A outra leitura/narrativa é levada avante pela Arquidiocese, especialmente pelo bispo local Dom Vicente Ferreira e por suas duas exímiasauxiliares, Marina Oliveira e Marcela Rodrigues que largaram seus afazeres e estudos para liderarem as lições a serem tiradas do fato criminoso. Trata-se de mostrar para a população que este modo de organizar a mineração e buscar o lucro é própria do sistema do capital. Ele produz uma dupla injustiça: uma, social, explorando a mão de obra e outra, ecológica, devastando a natureza circundante. Ele se mostra inimigo da vida da natureza e da vida humana, como bem o mostra o Papa Francisco em sua encíclica de ecologia integral”sobre o cuidado da Casa Comum”. As mudanças devem começar com cada um, como cuidar da casa, da água, do lixo,de cada árvore e dos animais. Importa não ficar refém de uma empresa que apenas promete emprego mas a preço de contaminar a atmosfera e afetar a vida especialmente das crianças. Devemos ser inventivos e buscarformas alternativas de garantir a vida de todos, mais sã e melhor compartilhada.

O bispo Dom Vicente usa suas habilidades pessoais para suscitar este novo nível de consciência na população, pois é poeta, cantador e tocador de violão. Encontra dura oposição de católicos carismáticos e outros apoiados pela Vale, que não veem nisso o cumprimento do mandato divino de “cuidar e proteger”o jardim do Éden, mas como mera política. Assim se mostram sem empatia para com os parentes das vítimas. Conservadores,querem reduzir à fé apenas ao espaço do religioso, sem ter aprendido a lição do Concílio Vaticano II que fazer política “e o mais alto ato de amor”, não política partidária, mas política como bem comum, como solidariedade com aqueles que mais sofrem e política como defesa dos direitos de cada pessoa humana e da natureza. Sua fé é estéril, pois não leva à salvação. O que salva não são prédicas mas práticas, de amor, de compaixão e de solidariedade como vem sendo feitas pelo “Comité de Apoio e Solidariedade aos Atingidos pelos Crimes da Vale” e pela pastoral de Dom Vicente Ferreira e de seus auxiliares.

Nós que lá estivemos nas celebrações, damos estetestemunho. E o nosso testemunho é verdadeiro.

Leonardo Boff é teólogo e filósofo e escreveu “Como cuidar da Casa Comum”, Vozes 2018.

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As vantagens da imperfeição https://observatoriodaevangelizacao.com/as-vantagens-da-imperfeicao/ Sat, 02 Nov 2019 12:11:45 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=32897 [Leia mais...]]]> Evangelizar implicar um despertar da consciência da própria dignidade e da importância do caminhar em busca da vida plena. Diante das graves ameaças à dignidade humana, qual o papel dos mitos em nossa caminhada de resistência?

“Os mitos nos inspiram grandes lições, especialmente nos dias atuais quando forças poderosas, nacionais e internacionais, nos querem submeter, limitar e até tirar nossa liberdade. Devemos ser como os guaicuru: saber defender o maior dom que temos, a liberdade. Devemos resistir, nos indignar e nos rebelar. Só assim fazemos o nosso próprio caminho como nação soberana e altiva. E jamais aceitaremos que nos imponham o medo e nem que nos roubem a liberdade”.

O autor nos apresenta uma significativa e provocante reflexão para estes tempos de travessia, tempos sombrios e cheios de ameaça e medo, a partir da grande sabedoria mítica dos Guaicuru, índigenas do Mato Grosso, cuja cultura forjou grande consciência do valor da liberdade humana. Confira:

As vantagens da imperfeição

Registro da marcha das mulheres indígenas em sua luta em defesa de seus direitos e dignidade cidadã.

Em tempos em risco de nossa liberdade, é importante pensarmos em seu valor. Nascemos completos, mas imperfeitos. Não possuímos nenhum órgão especializado, como a maioria dos animais. Para sobreviver, temos que trabalhar e intervir na natureza. Os mitos esclarecem esta situação.

Os indígenas guaicuru, do Mato Grosso do Sul, perguntaram-se o porquê da imperfeição e do alto significado da liberdade. Demoraram longo tempo para chegar a uma resposta. A explicação veio pelo seguinte mito, portador de verdade.

O Grande Espírito criou todos os seres. Colocou grande cuidado na criação dos humanos. Cada grupo recebeu uma habilidade especial para sobreviver sem maiores dificuldades. A alguns deu a arte de cultivar a mandioca e o algodão. Assim podiam se alimentar e se vestir. A outros deu a habilidade de fazer canoas leves e o timbó. Desta forma podiam se locomover rapidamente e pescar.

Assim fez com todo os grupos humanos na medida em que se distribuíam pelo mundo. Mas com os Guaicuru não aconteceu assim. Quando quiseram sair para as vastas terras, o Grande Espírito não lhe conferiu nenhuma habilidade. Esperaram, suplicando, por muito tempo e nada lhes foi comunicado. Mesmo assim resolveram partir. Sentiram logo muita dificuldade em sobreviver. Resolveram procurar intermediários do Grande Espírito para receber também uma habilidade.

Primeiro, dirigiram-se ao vento, sempre soprando e rápido: “Tio vento, tu que sopras pelas campinas, sacodes as matas e passas por cima das montanhas, venha-nos socorrer”. Mas o vento que sacudiu as folhas, sequer ouviu o pedido dos guaicuru. Em seguida, se voltaram para o relâmpago que estremece toda a terra. “Tio relâmpago, você que é parecido com o Grande Espírito, ajude-nos”. Mas o relâmpago passou tão rápido que sequer escutou o pedido deles.

Assim os guaicuru suplicaram às árvores mais altas, aos cumes das montanhas, às águas correntes dos rios, sempre suplicando: “Meus irmãos, intercedam por nós junto ao Grande Espírito para não morrermos de fome”. Mas nada acontecia.

Meio desesperados vagavam por várias paragens. Até que pararam debaixo do ninho de um gavião-real. Este ouvindo seus lamentos resolveu intervir e disse: “Vocês, guaicuru, estão todos errados e são uns grandes bobos”. “Como assim?”, responderam juntos, “O Grande Espírito se esqueceu de nós. Você que é feliz, recebeu o dom de um olhar penetrante e perceber um ratinho na boca da toca e caçá-lo”.

“Vocês não entenderam nada da lição do Grande Espírito”, retrucou o gavião-real. “A habilidade que ele lhes deu está acima de todas as outras. Ele vos deu a liberdade. Com ela vocês podem fazer o que desejarem fazer.”

Os guaicuru ficaram perplexos e cheios de curiosidade. Pediram ao gavião-real que lhes explicasse melhor esta curiosa habilidade. Ele, cheio de garbo, lhes falou: “Vocês podem caçar, pescar, construir malocas, fazer belas flechas, pintar os corpos, os potes, viajar para outros lugares e até decidirem o que vocês querem de bom para vocês e para a própria natureza”.

Os guaicuru se encheram de alegria e diziam uns aos outros: “Que bobos nós fomos, pois nunca discutimos juntos a vantagem de sermos imperfeitos. O Grande Espírito nunca se esqueceu de nós. Deu-nos a melhor habilidade, de não estarmos presos a nada, mas de podermos inventar coisas novas, sabendo das vantagens de nossa imperfeição”.

O cacique guaicuru perguntou ao gavião-real: “Posso experimentar a liberdade?”. Ele respondeu: “Pode”. O cacique tomou uma flecha e derrubou do alto de uma jaqueira uma grande fruta de jaca. E todos se deliciaram.

Desde aquele momento, os guaicuru exerceram a liberdade. Tornaram-se grandes cavaleiros e nunca puderam ser submetidos por nenhum outro povo. A liberdade lhes inspirava novas formas de se defender e garantir a melhor habilidade dada pelo Grande Espírito.

Os mitos nos inspiram grandes lições, especialmente nos dias atuais quando forças poderosas, nacionais e internacionais, nos querem submeter, limitar e até tirar nossa liberdade. Devemos ser como os guaicuru: saber defender o maior dom que temos, a liberdade. Devemos resistir, nos indignar e nos rebelar. Só assim fazemos o nosso próprio caminho como nação soberana e altiva. E jamais aceitaremos que nos imponham o medo e nem que nos roubem a liberdade.

Sobre o autor:

Leonardo Boff é teólogo, pesquisador, professor emérito universitário, escritor renomado, conferencista e assessor das CEBs e dos movimentos populares. Dentre suas muitas obras uma merece destaque sobre esta temática refletida neste artigo: Casamento do Céu com a Terra: contos dos povos indígenas brasileiros, Ed. Mar de Ideias, Rio de Janeiro, 2014.

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“- Papa Francisco, proclame a região amazônica santuário intangível da Casa comum” https://observatoriodaevangelizacao.com/papa-francisco-proclame-a-regiao-amazonica-santuario-intangivel-da-casa-comum/ Mon, 30 Sep 2019 12:00:41 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=31804 [Leia mais...]]]> A Fundación Pueblo Indio del Ecuador, coordenada pela Diretora Executiva Nidia Arrobo Rodas, é uma fundação criada já há mais de 30 anos pelo famoso bispo indígena Leonidas Proaño de Riobamba no Equador. Esta fundacão enviou ao papa Francisco, em razão do Sínodo Panamazônico, uma petição arrojada: declarar toda a região amazônica “Santuário Intangivel da Casa Comum”. 

Não é sem razão, pois o bioma amazônico que recobre 9 países é fundamental para o equilíbrio de nossa Casa Comum. Reconhecidamente vivemos uma emergência climática e ecológica. Não vamos ao encontro do aquecimento global. Estamos já dentro dele e de forma crescente. A Amazônia como um todo é o grande filtro de absorção do CO2 e de outros gazes de efeito estufa. A abundância de suas águas. da biodiversidade, de tantas outras riquezas e de muitíssimos bens e serviços naturais, poderão garantir o futuro da vida no planeta e de nossa civilização. Mas à condição de cuidarmos dela, de sustarmos sua devastação e de valorizarmos a sabedoria ancestral dos povos originários que nela habitam há milhares de anos.

Num outro momento solicitaremos subscrições a este documento para que seja enviado ao Papa Francisco e aos participantes do Sínodo Panamazônico em outubro poróximo. Consideremos atentamente o conteúdo desta proclamação.

Leonardo Boff

Eis a íntegra da petição, seguida de uma versão para o português:

               AMAZONÍA: SANTUARIO INTANGIBLE DE LA CASA COMÚN

“Busco en todas partes luchadores por la PAZ y por la VIDA, debemos actuar antes de que sea demasiado tarde, antes de que la ambición y la locura de unos hombres conviertan a nuestro planeta en una luna muerta, en un cementerio del espacio.”

Mons. Leonidas Proaño

Saludamos la próxima realización del Sínodo de la Panmazonía,una extraordinaria iniciativa del papa Francisco, por la cual esta importante asamblea colegial podrá ver la problemática, analizar y valorar la realidad a la luz de la Palabra y diseñar cursos de acción. La iniciativa es signo de esperanza en medio de los peligros que amenazan la subsistencia de nuestra Casa Común.

Pedimos al papa Francisco y a los padres sinodales la declaratoria de la Amazonía como Santuario Intangible de la Casa Común.

Esta declaratoria sería un llamado espiritual y profético a los hombres y mujeres de buena voluntad para que se reconozca a la Amazonía que recubre 9 paises, como tierra santa, tan sagrada como la de la zarza ardiente del Sinaí donde Moisés escuchó las palabras de Dios: “el lugar donde estás parado es tierra santa.”

La declaratoria sería un llamado a la consciencia universal y particularmente una demanda a los organismos mundiales y a los estados responsables para que tomen las medidas urgentes y profundas que se necesitan para salvar la vida en el planeta.

Las medidas deberían diseñarse y aplicarse con sentido de emergencia, considerando la velocidad y la profundidad de los cambios adversos que vienen afectando cada vez más al clima, al hábitat y a la vida los pueblos amazónicos. Los objetivos deben enfocar el problema como un todo, pues la afectación es sistémica: impacta la flora y la fauna, el clima, el aire y el régimen de lluvias, comprometiendo el delicado equilibrio de todos los ecosistemas y la vida misma de los pueblos amazónicos, cuyo exterminio está cada vez más cercano. Pero los pueblos no son una especie más del sistema. Son la obra magnífica de Dios; Su imagen y semejanza. Ellos recibieron de las manos del creador ese paraíso natural, lo disfrutan y lo protegen. Sabiéndose y sintiéndose uno con su mundo saben cómo vivir sin afectar su equilibrio.

Las medidas, en consecuencia, tendrían que estar encaminadas a

  1. Que se asignen legalmente territorios suficientes para cada una de las diversas nacionalidades indígenasque habitan en la Amazonía, tomando en cuenta su forma de vivir e interactuar con la naturaleza.
  2. Que la delimitación y ubicación de los territorios sea tal que cada uno constituya refugio seguro y base de sustento y nutrición para los pueblos indígenas, y la Vida de la Amazonía.
  3. Que se aplique para esos territorios una larga moratoria de las actividades extractivistas que dañan la foresta, las petroleras y mineras; así como se discuta seriamente la implementación de plantaciones y explotaciones ganaderas que implican la deforestación. Especialmente que se garantiza la sostebilidad para la eventual apertura de carreteras y centrales hidroeléctricas; en fin, el cese de las intervenciones predatorias tanto de los gobiernos como de los grupos económicos interesados, nacionales e internacionales.
  4. Que los pueblos indígenas puedan ejercer en esos territorios su autoridad, en el marco de la autodeterminación, el autogobierno, la justicia ancestral de acuerdo a sus usos y costumbres, y su vida política, cultural y espiritual en plenitud, sentiendose parte de la entera nación.

Los acuerdos y pactos internacionales han carecido de eficacia porque no son mandatorios para los países. No se han establecido consecuencias para su incumplimiento. Aspiramos a que este Sínodo pueda instar a los organismos internacionales para procurar la aplicación efectiva y eficaz de las resoluciones adoptadas.

Pedimos a los padres sinodales obrar con energía para pedir que los estados se comprometan a cumplir con sus compromisos en favor de la Amazonía mediante la adopción de mecanismos idóneos, independientes del vaivén de las coyunturas políticas.

La declaratoria debe enviar un mensaje claro de la Iglesia y de todos presenes en el Sínodo, para toda la humanidad y no solamente a los fieles; para las organizaciones de la sociedad comprometidas con la conservación del planeta y de la especie y para cada uno de los hogares. Todos tenemos algo que hacer en favor del planeta vigilando nuestros hábitos de consumo y nuestras interacciones con los recursos naturales.

Así, la Declaratoria de Santuario, será el instrumento idóneo para salvaguardar a los Pueblos Indígenas en Aislamiento Voluntario, que constituyen los grupos humanos más vulnerables de la Amazonia y del mundo, víctimas de la violencia del modelo económico global depredador impuesto; pero al mismo tiempo, testimonio vivo de resistencia a esta globocolonización que uniformiza, y mata la diversidad y la vida de la humanidad y del planeta.

“…Para el indígena, la tierra es la madre. No es una manera de hablar, no es un puro sentimentalismo; el pueblo indígena considera, dentro de su núcleo cultural, dentro de su pensamiento, a la tierra  como su madre… pensamiento que, por otra parte, se identifica con el pensamiento de la Sagrada Escritura, en otras palabras, con el pensamiento de  Dios”. (Mons. Proaño) Y añade el papa Francisco en su Encíclica “Laudato Si’: sobre el cuidado de la Casa Común”: “Para los indígenas la Tierra no es un bien económico, sino don de Dios, y de sus antepasados que descansan en ella, un espacio sagrado con el cual necesitan interactuar para sostener su identidad y sus valores. Cuando permanecen en sus territorios, son precisamente ellos quienes mejor los cuidan”(n.146).

Queremos finalizar con las palabras de Bernardo Alves, del pueblo indígena Sateré-Mawé: “Los pueblos indígenas son bibliotecas vivas. Son los guardianes, cuidadores y jardineros de la Amazonia y del Planeta. Cada vez que un pueblo indígena es exterminado y desaparece, un rostro de Tupãna (Dios) muere, el cosmos, el planeta y toda la humanidad se empobrecen”.

Fundación Pueblo Indio del Ecuador

Ruiz de Castilla N26-92 y Sosaya

Telfs. 593-2-2529 361; 593-2-3200-968

Email: fpie@fundacionpuebloindio.org; fundacionpuebloindiodelecuador@gmail.com

170520 Quito – Ecuador

Versão para a língua portuguesa feita por Edward Guimarães:

Amazônia: Santuário intangível da Casa Comum

Busco em todos os lugares lutadores pela paz e pela vida, devemos agir antes que seja tarde demais, antes que a ambição e a loucura de alguns homens transformem nosso planeta em uma lua morta, em um cemitério do espaço.” 

Monsenhor Leonidas Proaño

Parabenizamo-nos com a próxima realização do Sínodo da Pan-Amazônia, uma iniciativa extraordinária do papa Francisco, oportunidade singular para que esta importante assembleia colegiada possa ver a complexa situação da Amazônia, analisar e avaliar a nossa realidade à luz da Palavra e elaborar projetos de ação. A iniciativa é um sinal de esperança em meio aos perigos que ameaçam a subsistência de nossa Casa comum.

Pedimos ao papa Francisco e aos padres sinodais que declarem a Amazônia como um Santuário Intangível da Casa Comum.

Esta declaração seria um apelo espiritual e profético para homens e mulheres de boa vontade reconhecer a Amazônia, que abrange 9 países, como terra santa, tão sagrada quanto a da sarça ardente do Sinai, onde Moisés ouviu as palavras de Deus: “O lugar onde você está é um terreno sagrado.”

A declaração seria um apelo à consciência universal e, em particular, uma exigência às agências mundiais e aos estados/ países responsáveis ​​para que tomem as medidas urgentes e profundas necessárias para salvar a vida no planeta.

As medidas devem ser planejadas e implementadas com um senso de emergência, considerando a velocidade e a gravidade das mudanças adversas que afetam cada vez mais o clima, o habitat e a vida dos povos da Amazônia. Os objetivos devem abordar o problema como um todo, pois a afetação é sistêmica: afeta a flora e a fauna, o clima, o ar e o regime pluviométrico, comprometendo o delicado equilíbrio de todos os ecossistemas e a vida dos próprios povos da Amazônia, cujo extermínio está se aproximando. Mas os povos não são mais uma espécie do sistema. Eles são a obra magnífica de Deus; Sua imagem e semelhança. Eles receberam esse paraíso natural das mãos do Criador, desfrutam e protegem. Conhecendo e se sentindo um com o mundo, sabem viver sem afetar o equilíbrio.

As medidas, portanto, deveriam ter como objetivo

  1. Que territórios suficientes sejam legalmente demarcados para cada uma das várias nacionalidades indígenas que habitam a Amazônia, levando em consideração seu modo de viver e interagir com a natureza;
  2. Que a delimitação e localização dos territórios seja tal que cada um deles seja, de fato, um refúgio seguro e uma base de sustento e nutrição para os povos indígenas e a vida da Amazônia;
  3. Que se aplique para esses territórios uma grande moratória pelas atividades extrativistas que prejudicam a floresta, às empresas de petróleo e mineração; como também se discuta seriamente a implementação de plantações e fazendas de gado que envolvam desmatamento. Especialmente que a sustentabilidade seja garantida para a eventual abertura de estradas e usinas hidrelétricas; em suma, que se impeça as intervenções predatórias tanto as impetradas pelos governo, quanto pelos grupos econômicos, nacionais e internacionais, interessados;
  4. Que os povos indígenas possam exercer sua autoridade nesses territórios, e no marco da autodeterminação, seu autogoverno, exercer a justiça ancestral de acordo com seus usos e costumes, e sua vida política, cultural e espiritual em plenitude, sentindo-se parte da nação inteira.

Os acordos e convênios internacionais têm sido ineficazes porque não são obrigatórios para os países. Nenhuma consequência foi estabelecida por seu não cumprimento. Esperamos que este Sínodo possa provocar as organizações internacionais a fim de garantir a implementação efetiva e eficaz das resoluções adotadas.

Pedimos aos Padres sinodais que trabalhem com energia para pedir que os estados/ países se comprometam em cumprir seus compromissos em favor da Amazônia por meio da adoção de mecanismos adequados, independentes da influência das conjunturas políticas.

A Declaração deve enviar uma mensagem clara da Igreja e de todos os presentes no Sínodo para toda a humanidade e não apenas para os fiéis católicos; para as organizações da sociedade comprometidas com a conservação do planeta e das espécies e para cada um dos lares. Todos temos algo a fazer em favor do planeta observando nossos hábitos de consumo e nossas interações com os recursos naturais.

Assim, a Declaração do Santuário será um instrumento com autoridade legítima para salvaguardar os povos indígenas em Isolamento Voluntário, que constituem os grupos humanos mais vulneráveis ​​da Amazônia e do mundo, vítimas da violência do modelo econômico predatório global imposto; mas, ao mesmo tempo, testemunho vivo da resistência a essa globalização que unifica e mata a diversidade e a vida da humanidade e do planeta.

Para os indígenas, a terra é a mãe. Não é uma maneira de falar, não é um puro sentimentalismo; o povo indígena considera, dentro de seu núcleo cultural, dentro de seu pensamento, a terra como mãe… pensamento que se identifica com o pensamento da Sagrada Escritura, ou seja, com o pensamento de Deus”. (Mons. Leonidas Proaño) 

E o papa Francisco acrescenta em sua Encíclica Laudato Si’: 

Aos cuidados da Casa comum: Para os povos indígenas, a Terra não é um bem econômico, mas um presente de Deus e de seus ancestrais que nela descansam, um espaço sagrado com o qual eles precisam interagir para sustentar sua identidade e seus valores. Quando eles permanecem em seus territórios, são precisamente os que mais dele cuidam.” (n.146).

Queremos terminar com as palavras de Bernardo Alves, do povo indígena Sateré-Mawé: 

Povos indígenas são bibliotecas vivas. Eles são os guardiões, cuidadores e jardineiros da Amazônia e do Planeta. Toda vez que um povo indígena é exterminado e desaparece, um rosto de Tupãna (Deus) morre, o cosmos, o planeta e toda a humanidade se empobrecem”.

Fonte:

www.leornardoboff.wordpress.com

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