Ladislau Dowbor – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com Wed, 15 Sep 2021 00:30:48 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.4 https://i0.wp.com/observatoriodaevangelizacao.com/wp-content/uploads/2024/04/cropped-logo.png?fit=32%2C32&ssl=1 Ladislau Dowbor – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com 32 32 232225030 Dowbor propõe alternativa à economia da ruína https://observatoriodaevangelizacao.com/dowbor-propoe-alternativa-a-economia-da-ruina/ Wed, 15 Sep 2021 00:30:48 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=40873 [Leia mais...]]]>

Depois de examinar a fundo A Era do Capital Improdutivo, o economista vê, em novo livro, caminhos para superá-la. Para ele, sistema atual devasta sem cessar as sociedades e a natureza – mas superá-lo exige mais que fórmulas ideológicas.

(OUTRASPALAVRAS. ALÉM DA MERCADORIA, por Ladislau Dowbor. Publicado 14/09/2021)

Não basta dizer que
um outro mundo é possível.
Precisamos mostrar que
uma outra gestão é possível.
O que propomos tem de funcionar.

Livro de Dowbor já está disponível no site da editora

No momento em que finalizamos essa atualização e ampliação do texto original desse livro, o mundo enfrenta uma pandemia que colocou com muita força no palco mundial a necessidade de novas regras do jogo. Tornou-se claro que estamos enfrentando a convergência de várias crises, a catástrofe ambiental, a desigualdade explosiva, o caos financeiro, a desagregação dos mecanismos democráticos, e, ainda por cima, a pandemia. O movimento Economia de Francisco, lançado pelo Papa, os escritos de tantos pesquisadores de primeira linha, como Joseph Stiglitz, Thomas Piketty, Ann Pettifor, Jeffrey Sachs, Kate Raworth, e de numerosos centros de pesquisa apresentam o denominador comum de rejeitar os absurdos do neoliberalismo. O movimento também é muito rico no Brasil, com numerosos pesquisadores de economia e de ciências sociais trazendo novas visões. Não é por falta de visões ou de propostas que a economia brasileira está paralisada, e sim pela força dos interesses de elites improdutivas.

A análise do funcionamento da economia que aqui apresentamos tem, sim, um objetivo, que não é necessariamente o crescimento do PIB, mas a reconversão necessária para um desenvolvimento equilibrado. Aliás, é interessante constatar que com um PIB mundial de 88 trilhões de dólares e 7,8 bilhões de habitantes, o que produzimos hoje em bens e serviços representa o equivalente a 18 mil reais por mês por família de quatro pessoas, o que permitiria uma vida digna e confortável para todos, bastando para isso uma modesta redução das desigualdades. Isso também vale para o Brasil, pois com um PIB de 7,3 trilhões de reais (2019) e uma população de 212 milhões, produzimos o equivalente a 11 mil reais por mês por família de quatro pessoas. Não há nenhuma razão econômica para a pobreza, a desigualdade e a consequente guerra social e política interna que vivemos. Nosso problema não é produzir mais: é definir melhor o que produzir, a quem distribuir, e como assegurar a sustentabilidade social e ambiental do planeta. Nosso problema é de redefinição das formas de organização política e social.

Os mecanismos econômicos não são complexos. O que complica é que, segundo os interesses e a vontade de se apropriar de um pedaço maior do bolo, ouvimos explicações contraditórias para cada coisa. O banqueiro diz que precisa subir os juros para ganhar mais, pois isso permite que ele invista e dinamize a economia para o bem de todos. O funcionário diz que precisa ganhar mais, pois isso estimula a demanda, o que, por sua vez, gera investimentos e dinamiza a economia para todos. Todos querem, no discurso, o bem de todos, se possível justificando a apropriação do maior pedaço possível para si. Não há como não trazer para o raciocínio o conceito de justiça, de merecimento. Eu, francamente, acho mais legítimos os interesses dos trabalhadores do que os dos banqueiros. Banco é atividade de meio, e os meios têm de se adequar aos fins, que é o fomento da economia e uma vida digna para todas as famílias.

Muitos simplesmente desistem de entender, imaginam uma complexidade acima da sua compreensão. No entanto, se trata do nosso dinheiro, da nossa sociedade, dos nossos empregos, dos nossos filhos. Enquanto deixarmos a compreensão da economia para os especialistas, são os interesses deles, e dos que os empregam, que vão prevalecer. A democratização da economia, e da própria compreensão do seu funcionamento, é fundamental. Precisamos de muito mais gente que entenda como se pode realmente equilibrar as coisas. O que temos é muita narrativa, mas pouca explicitação dos mecanismos.

A mídia comercial, sem dúvida, não ajuda e, curiosamente, ainda que a nossa vida dependa tanto do andamento da economia, nunca na escola tivemos uma só aula sobre os seus mecanismos. Nenhuma aula sobre como funciona, por exemplo, o dinheiro, esse poderoso estruturador da sociedade. A televisão atinge hoje 97% dos domicílios: seria tão difícil assim gerar uma sociedade mais informada, em vez de nos massacrar com bobagens e fundamentalismos ideológicos? Mas a mídia comercial vive da publicidade contratada pelos grandes grupos privados de interesses, e não há análise objetiva a se esperar desse lado.

Esse pequeno livro busca dar ferramentas de análise a quem queira entender, sem querer se tornar um comentarista, sobre como a economia funciona e como se relacionam os diversos setores. Não haverá nesse texto nenhuma equação, nenhuma econometria. E tampouco haverá simplificações ideológicas. O que interessa é um sistema que funcione. Vamos descrever aqui os desafios, ponto por ponto, setor por setor, apontando dificuldades e soluções. E, como o texto completo está na internet, com livre acesso, inclusive com vídeos de apoio, qualquer leitor poderá se manifestar, sugerir complementos e correções.

Esse livro é muito pequeno, se comparado com os tratados de economia que vemos nas estantes das livrarias. Não vai, portanto, ensinar tudo, mas sim os mecanismos básicos, que cada um poderá detalhar segundo as suas experiências e conhecimentos complementares. Todos nós temos o ponto de partida essencial, que é a vivência de como somos recompensados ou depenados, segundo as circunstâncias. Portanto temos a matéria-prima, e ao vermos o quadro mais amplo, as coisas se encaixam e passam a fazer sentido. Sugiro uma leitura tranquila, passo a passo, e a releitura, pois aqui, mais que o detalhe, interessa a visão de conjunto.

A economia não é propriamente um “setor” de atividades, como a educação ou a agricultura, e sim uma dimensão de todas as nossas atividades. Tem dimensão econômica a latinha de cerveja que alguém joga na rua, e que alguém terá de apanhar. Ou a escola que escolhemos para os nossos filhos, ou ainda a obesidade que se gera com refrigerantes e certos tipos de comida. Quem limpa a rua terá de ser pago, da qualidade da escola depende a produtividade futura, a obesidade vai gerar custos na saúde. Praticamos economia o dia inteiro, ainda que a dimensão econômica frequentemente nos escape. A economia, nesse sentido, constitui um movimento que resulta do conjunto de iniciativas dos mais variados setores, e temos de ter uma noção da contribuição de cada um, e de como se articulam.

A economia está impregnada de ideologias, contaminada por preconceitos. Esse ponto é importante, e vai nos fazer entender, por exemplo, que o motorista apressado tenha ódio do corredor de ônibus, ou que os acionistas de um grupo econômico que poderiam lucrar com um shopping fiquem escandalizados que uma área verde sirva apenas como espaço gratuito de lazer. Mas a economia que funciona não se resolve no ódio, e sim na harmonização razoavelmente equilibrada dos diversos interesses.

Essa harmonização não significa uma abordagem neutra, pois enfrentamos aqui desequilíbrios antigos e novos, herdados e reproduzidos. Nos EUA, o salário de um administrador top de linha de uma instituição de especulação financeira é, aproximadamente, o mesmo que o de 17 mil professores do ensino primário (Russell Jacoby). Faz algum sentido? Nenhum sentido ético, pois o trabalho do professor é muito intenso, e nenhum sentido econômico, pois o professor multiplica conhecimentos, enquanto o especulador multiplica crises. No entanto, é o que prevalece, e o importante não é odiar individualmente o especulador – há inúmeros candidatos para ocupar o seu lugar –, e sim entender como o sistema se deformou e permite esses absurdos.

No plano social, temos de entender como o 1% dos mais ricos do planeta se tornaram donos de 50% das riquezas produzidas por toda a sociedade. Como podemos ter mais de 800 milhões de pessoas que passam fome quando o mundo produz, apenas de grãos, mais de um quilo por pessoa por dia? Como, com tantas tecnologias, um terço da humanidade ainda cozinhe com lenha, e 1,3 bilhões sequer tenham acesso à eletricidade? Esperar ter paz social, política equilibrada e um mundo em segurança nessas condições não faz muito sentido. Gente reduzida ao desespero reage de maneira desesperada, é tão simples. A partir de um certo grau de desigualdade, as sociedades, no seu conjunto, deixam de funcionar, acumulam-se crises e conflitos, os processos democráticos se desarticulam.

No plano ambiental, podemos enfileirar um conjunto de tragédias que se avolumam, como o aquecimento global, a liquidação das florestas, a perda de solo fértil, a ruptura das cadeias alimentares dos oceanos, o desaparecimento da biodiversidade, a contaminação generalizada da água doce e outros processos acelerados de destruição, em que cada agente econômico busca arrancar o máximo para o seu proveito e o dos seus acionistas, sem pensar no conjunto: entre o interesse financeiro de curto prazo dos grupos econômicos e o interesse mais amplo da sociedade, o chamado bem comum, a luta ficou desigual. O relatório da World Wide Fund For Nature (WWF) de 2014 mostra que em quarenta anos, entre 1970 e 2010, destruímos 52% da fauna do planeta, com numerosas espécies já irremediavelmente extintas. Não ver o drama que se avoluma já não é questão de posicionamento político, e sim de cegueira ideológica. Temos de assumir as nossas responsabilidades como seres humanos. Isso envolve uma dimensão ética das pessoas, mas, sobretudo, a reorganização do sistema, de forma que contribuir para a sociedade se torne mais interessante do que maximizar a apropriação. Trata-se de reconciliar a busca de realização individual e a construção do bem comum.

No plano da organização econômica e financeira, chegamos ao absurdo de ter mais de um terço do valor do PIB mundial estocado em paraísos fiscais, fortunas que são aplicadas não em criar atividades econômicas, produzir coisas úteis, mas em gerar lucros especulativos. Como os lucros especulativos aumentam em ritmo muito superior ao crescimento da economia real, temos aqui uma bola de neve em que os mais ricos, que são os que jogam no mercado financeiro, aumentam a sua parte do bolo em ritmo crescente. Como nos paraísos fiscais não se paga impostos, ou apenas simbolicamente, geramos um processo completamente disfuncional, na linha do que tem sido chamado de financeirização da economia.

Jacob Goldstein, autor do livro chamado simplesmente Money, comenta esse estranho divórcio entre a economia real e os sistemas de apropriação:

Os economistas usam essa frase estranha: ‘A economia real’. Isso se refere aproximadamente a tudo o que ocorre fora das finanças. O carpinteiro que constrói a casa trabalha na economia real. Não é o caso do banqueiro que lhe empresta dinheiro para comprar a casa. Quando uma economia funciona bem, a economia real e as finanças se complementam. O banqueiro lhe dá um empréstimo para que você possa comprar a casa que o carpinteiro construiu. Todos (teoricamente) ganham. Mas há tempos em que a economia real e as finanças se desconectam.

Jacob Goldstein, Money, p. 69

O que aqui nos interessa é a economia real, o processo produtivo, o que chamamos simbolicamente de “o pão nosso de cada dia”.

O nosso desafio é bem conhecido: temos de assegurar uma sociedade que seja economicamente viável, mas também socialmente justa e ambientalmente sustentável. Esse tripé, o triple bottom-line, é hoje internacionalmente aceito, mas estamos destruindo o planeta em proveito de uma minoria, sendo que essa minoria sequer consegue administrar os seus recursos para que tenhamos um desenvolvimento econômico que faça sentido. Esses recursos, na realidade, são necessários para financiar políticas sociais inclusivas capazes de assegurar vida digna à imensa massa de pobres, e para financiar a reconversão tecnológica e organizacional que permita assegurar uma produção que não destrua o planeta. Para isso, evidentemente, não basta a boa vontade de alguns, temos de rever as regras do jogo. A governança corporativa, e a responsabilização dos grandes grupos econômicos, assume um papel particularmente importante.

A economia moderna se tornou demasiado complexa para as grandes simplificações de outrora. O que herdamos como visões do século passado era, de um lado, a visão capitalista, centrada na propriedade privada, regulada pela mão invisível e o liberalismo empresarial, com a burguesia ditando os rumos em termos políticos. De outro lado, os defensores da economia estatizada, regulada pelo planejamento central, e com o controle político do proletariado. Hoje, essas visões nos trazem o sentimento de folhearmos antigos compêndios empoeirados. Temos de enfrentar a complexidade de uma economia que funciona com subsistemas diferenciados, buscando soluções menos lineares, e, sobretudo, inteligentes.

Em outros termos, além das simplificações, e levando em conta as enormes transformações das últimas décadas, temos de pensar com cabeça mais fria o que funciona melhor e com que sistemas de gestão. A Polônia, para dar um exemplo, foi, segundo a Economist, o país que melhor sobreviveu à crise de 2008. Os bancos não tinham sido privatizados, e os recursos das poupanças da população continuaram a ser geridos dominantemente por cooperativas como “caixas de poupança”. Balcerowicz, um importante economista polonês, disse ironicamente que a Polônia foi salva por seu atraso financeiro. Semelhante “atraso” pode ser encontrado com as sparrkassen municipais que gerem quase dois terços da poupança da Alemanha, financiando as necessidades reais de cada município em vez de alimentar fortunas no casino financeiro.

Em outros termos, o que aqui buscamos é ver, setor por setor, o que funciona melhor, conscientes de que há coisas que funcionam melhor com mercado, outras com planejamento central, outras, ainda, com planejamento participativo descentralizado, e assim por diante. Estamos diante do desafio real de equilibrar, numa economia que se diversificou, mecanismos de regulação diferenciados e articulados. Como objetivo maior, visamos a construção de sistemas democráticos, equilibrados e sustentáveis de gestão.

Enfrentei, no quadro da ONU a montagem de sistemas econômicos em diversos países africanos, além de ter acompanhado situações muito diversificadas, como as da Mongólia, China, Equador, Suíça, Polônia e muitos outros. Isso me faz duvidar bastante dos grandes caminhos retos, das grandes propostas que tudo igualam. Gostemos ou não, temos de olhar os problemas mais de perto. Simplificações podem assegurar satisfação ideológica e fortes convicções, mas não resolvem os problemas nem abrem caminhos para os avanços que são necessários.

Para o leitor que acompanha os meus estudos, algumas palavras para situar o presente livro. O fio condutor aqui é o mesmo do meu A reprodução social, publicado pela Editora Vozes, mas aqui com dados atualizados e análise expandida. O presente trabalho é particularmente complementar de A era do capital improdutivo, publicado por Autonomia Literária e Outras Palavras. De certa maneira, ao tratar o “Capital Improdutivo”, analisei as deformações do sistema pela financeirização, enquanto o presente estudo é centrado nos setores concretos da “economia real”, como indústria, saúde ou educação, e numa visão propositiva. Na sequência das análises que tenho construído, trata-se precisamente de resgatar a base produtiva da sociedade, a economia real, setor por setor.

Por trás de um livro, há um autor. Eu me tornei consciente dos dilemas sociais trabalhando como jornalista no Jornal do Commercio do Recife, nos tempos de Miguel Arraes, estudei economia política com bons banqueiros na Suíça, e a economia do socialismo em Varsóvia: de certa forma, as duas vertentes, as duas metades da laranja. E com anos de implantação de sistemas de organização econômica e social em diversos países, no quadro das Nações Unidas, me tornei muito mais pragmático, cético quanto às simplificações ideológicas, ainda que cada vez mais consciente dos dramas que estão sendo gerados. O pequeno livro que o leitor tem em mãos resulta, em grande parte, dessa trajetória: ao elaborar um plano nacional de desenvolvimento, é preciso conhecer de maneira concreta os desafios dos diferentes setores, e entender como podem ser articulados.

Para entender os nossos dilemas econômicos, não há como não ver o pano de fundo: nas diversas eras e civilizações, sempre tivemos elites que se apropriaram do produto dos outros, por meio de diferentes mecanismos: a exploração dos servos na era feudal, dos escravos nas plantações, dos assalariados nas fábricas, dos endividados no planeta todo. Mas como mostra Piketty no Capital e ideologia, sempre foram construídas narrativas para justificar a apropriação do excedente social por quem não o produziu: os aristocratas tinham direito de explorar os servos, pois tinham sangue nobre, e o rei era “de direito divino”, os escravos podiam ser explorados, pois eram “legítima propriedade” e sequer teriam alma, os proletários explorados recebiam o merecido, pois os capitalistas é que enfrentavam os riscos – capital de risco, nos ensinam até hoje –, e as fortunas financeiras de hoje fariam parte da lógica impessoal “dos mercados”, ainda que sejam propriedade de pessoas de verdade que pouco produzem. Hoje enfrentamos um “neo-feudalismo”, escreve Joel Kotkin.

Sempre houve mecanismos de exploração e narrativas para justificá-la. E evidentemente, para os que não acreditavam ou hoje não acreditam nas narrativas, sempre há o porrete. Mecanismos econômicos de apropriação, narrativas e contos de fadas para justificar o injustificável, e o porrete para os que não acreditam em contos de fada, esse pode ser o resumo dos nossos tristes destinos de economia selvagem. É tempo de nos civilizarmos.

(Os grifos são nossos)

Fonte:

www.outraspalavras.net

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Economia de Francisco: por uma economia a serviço do bem comum, com a palavra o prof. Ladislau Dowbor https://observatoriodaevangelizacao.com/economia-de-francisco-por-uma-economia-a-servico-do-bem-comum/ Wed, 20 Nov 2019 10:00:00 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=33297 [Leia mais...]]]>

Buscamos uma economia que seja a serviço do bem comum, o que implica que seja economicamente viável, mas também socialmente justa e ambientalmente sustentável. Este triplo objetivo define um novo equilíbrio e uma outra forma de organização. 

O desafio não é o de falta de recursos. No mundo se produz anualmente 80 trilhões de bens e serviços por ano, o que, razoavelmente distribuído, asseguraria 3500 dólares por mês por família de quatro pessoas. O Brasil esta precisamente nesta média mundial. Nosso problema não é de capacidade de produção, e sim de saber o que produzimos, para quem, e com que impactos ambientais. O grande desafio é o da governança do sistema. 

O mundo que enfrentamos se caracteriza por crescente e dramática desigualdade, com 1% detendo mais riqueza do que os 99% seguintes, e 26 famílias com mais do que a metade mais pobre da população, 3,8 bilhões de pessoas. No Brasil 6 famílias acumularam mais riqueza do que os 105 milhões na base da pirâmide. A desigualdade atingiu níveis eticamente, politicamente e economicamente insustentáveis. 

A mudança climática, a liquidação da vida nos mares e em terra – perdemos 52% dos vertebrados em apenas 40 anos – a perda de cobertura florestal, a contaminação química generalizada, a inundação dos plásticos e tantos outros processos destrutivos estão levando a uma catástrofe ambiental generalizada. 

Temos, portanto, de enfrentar o duplo desafio da redução da desigualdade, portanto de uma democratização da economia, e da redução do ritmo de destruição da base natural da nossa sobrevivência, evoluindo para uma economia circular sustentável.

Sabemos o que deve ser feito: os 17 objetivos do desenvolvimento sustentável (Agenda 2030) o definem claramente. Temos os recursos financeiros: apenas nos paraísos fiscais, os 20 trilhões de dólares que resultam de evasão fiscal, corrupção e lavagem de dinheiro, representam 200 vezes os 100 bilhões que na Conferência de 2015 em Paris se decidiu alocar para as políticas ambientais. Temos grande riqueza de informações sobre cada problema do planeta, os dramas estão localizados e quantificados. E temos também as tecnologias que hoje permitem transitarmos para outras matrizes de transporte, de energia, e dos proprios processos produtivos. Não é, portanto, por falta de meios, e sim pelas profundas deformações políticas de como gerimos as nossas economias. 

Assim, o desafio está no próprio processo decisório, em como definimos, regulamos e orientamos o uso dos nossos recursos. A economia tem de voltar a servir o bem comum. No seminário que nos propomos realizar, não se trata de elencar as nossas desgraças, mas de nos concentrarmos nos desafios organizacionais, de governança, que permitam resgatar os rumos, de parar de destruir o planeta em proveito de uma minoria que acumula capitais improdutivos. 

Os pontos essenciais a discutir seriam os seguintes:

  1. Democracia econômica: trata-se de resgatar a governança corporativa, sistemas transparentes de informação, e de gerar maior equilíbrio entre o Estado, as corporações e as organizações da sociedade civil. Não haverá democracia política sem democracia econômica. 
  2. Democracia participativa: os processos decisórios sobre como definimos as nossas opções, como priorizamos o uso dos nossos recursos, não podem depender apenas de um voto a cada dois ou a cada quatro anos. Com sistemas adequados de informação, gestão descentralizada e ampla participação da sociedade civil organizada precisamos alcançar um outro nível de racionalidade na organização econômica e social. As novas tecnologias abrem imensos potenciais que se trata de explorar. 
  3. Taxação dos fluxos financeiros: essencial para assegurar a informação sobre os capitais especulativos, e para que os recursos financeiros sirvam para financiar tanto a redução da desigualdade como para estimular processos produtivos sustentáveis. Na realidade os sistemas tributários no seu conjunto devem servir ao maior equilíbrio distributivo e à produtividade maior dos recursos.
  4. Renda básica universal: no quadro de uma visão geral de que algumas coisas não podem faltar a ninguém, uma forma simples e direta, em particular com as técnicas modernas de transferência, é assegurar um mínimo para cada família. Não se trata de custos, pois a dinamização do consumo simples na base da sociedade dinamiza a economia. 
  5. Políticas sociais de acesso universal, público e gratuito: o acesso à saúde, educação, cultura, segurança, habitação e outros itens básicos de sobrevivência devem fazer parte das prioridades absolutas. Não se trata de custos, e sim de investimentos nas pessoas, que dinamizam a produtividade e liberam recursos das famílias para outras formas de consumo. 
  6. Desenvolvimento local integrado: somos populações hoje essencialmente urbanizadas, e o essencial das políticas que asseguram o bem-estar da comunidade e o manejo sustentável dos recursos naturais deve ter raízes em cada município, construindo assim o equilíbrio econômico, social e ambiental na própria base da sociedade.
  7. Sistemas financeiros como serviço público: o dinheiro que manejam os sistemas financeiros tem origem nas nossas poupanças e impostos, constituem recursos do público, e neste sentido devem responder às necessidades do desenvolvimento sustentável. Bancos públicos, bancos comunitários, cooperativas de crédito e outras soluções, como moedas virtuais diversificadas, são essenciais para que as nossas opções tenham os recursos correspondentes. 
  8. Economia do conhecimento: o conhecimento hoje constitui o principal fator de produção. Sendo imaterial, e indefinidamente reproduzível, podemos gerar uma sociedade não só devidamente informada, mas com acesso universal e gratuito aos avanços tecnológicos mais avançados. Temos de rever o conjunto das políticas de patentes, copyright, royalties de diversos tipos que travam desnecessariamente o acesso aos avanços. O conhecimento é um fator de produção cujo uso, contrariamente aos bens materiais, não reduze o estoque. 
  9. Democratização dos meios de comunicação: os recentes avanços do populismo de direita e a erosão dos processos democráticos mostram a que ponto o oligopólio dos meios de comunicação gera deformações insustentáveis, climas de acerbamento de divisões e aprofundamento de ódios e preconceitos. Uma sociedade informada é absolutamente essencial para o próprio funcionamento de uma economia a serviço do bem comum. 
  10. Pedagogia da economia: a economia consiste essencialmente em regras do jogo pactuadas pela sociedade ou impostas por grupos de interesse. A democracia econômica depende vitalmente da compreensão generalizada dos mecanismos e das regras. Os currículos obscuros e falsamente científicos têm de ser substituídos por ferramentas de análise do mundo econômico real, de maneira a formar gestores competentes de uma economia voltada para o bem comum. 

Fonte:

www.ecofranbr.org.br

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Paradigmas para uma Economia de Francisco (3ª parte) https://observatoriodaevangelizacao.com/paradigmas-para-uma-economia-de-francisco-3a-parte/ Wed, 30 Oct 2019 10:00:00 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=32828 [Leia mais...]]]> Esta é a terceira e última primeira parte do ensaio “Paradigmas para uma Economia de Francisco”.  No plano das ideias, a superação do neoliberalismo já começou. Vale conhecer três de seus aspectos: a revalorização do papel do Estado; a superação do conceito de PIB, precário e ambíguo; e a noção de que a desigualdade tornou-se um câncerNosso problema não é econômico, é essencialmente ético e político…. As imensas fortunas especulativas têm de passar a pagar impostos, e o resultado desses impostos deve ser investido no resgate da sustentabilidade do planeta e na redução da desigualdade. E o básico para a sobrevivência dos mais pobres deve ser garantido desde já.

(Texto do prof. Ladislau Dowbor, publicado em Outras Palavras, em 2/10/2019)

O papel do Estado[6]

O melhor antídoto para a farsa da privatização é a leitura do livro de Mariana Mazzucato, que mostra, no seu O Estado Empreendedor, que o reforço das capacidades de gestão pública constitui a melhor garantia de um desenvolvimento equilibrado. Primeiro temos de equilibrar o imenso deslumbramento com as estrelas mundiais dos avanços tecnológicos. Os imensos avanços na biotecnologia, por exemplo, surgem sobre a base de décadas de pesquisa fundamental desenvolvida no quadro do setor público: “Em biotecnologia, nanotecnologia e internet, o capital de risco chegou 15-20 anos depois que os investimentos mais importantes tivessem sido feitos com fundos do setor público.” (29)

Estamos muito acostumados a glorificar, por exemplo, a eficiência da Apple, sem levar em conta o processo global de avanço científico-tecnológico gerado por meio dos sistemas públicos de ensino e pesquisa: “A genialidade e ‘loucura’ de Steve Jobs levaram a lucros e sucesso massivos, em grande parte porque foi possível à Apple navegar na onda que sustentou o iPhone e o iPad: a Internet, o GPS, a tela de toque e as tecnologias da comunicação. Sem essas tecnologias financiadas pelo setor público, não teria havido onda para surfar loucamente (foolishly).”(94) Assim, a tão importante inovação nos processos modernos de desenvolvimento depende vitalmente de um equilíbrio entre pesquisa fundamental e aplicações diretamente comerciais, gerando o que Mazzucato chama de “ecosistema de inovação”.(194)

Mas esta complementariedade se deforma radicalmente quando se constata que as grandes corporações aproveitam-se das inovações desenvolvidas com fundos públicos, mas se recusam a pagar impostos. Com a globalização, as amplas facilidades geradas pelos paraísos fiscais, o fato de os recursos financeiros circularem como sinais magnéticos – tornando portanto o dinheiro imaterial – e a guerra fiscal entre países ou até Estados de um mesmo país, o fato é que as grandes corporações com os maiores lucros simplesmente não pagam impostos, ou pagam valores simbólicos. A constatação que a Apple pagou na Europa 0,05% de impostos sobre os seus lucros acendeu um sinal vermelho no mundo, e hoje a OCDE perepara um conjunto de medidas no quadro do programa BEPS (Base Erosion and Profit Shifting). Mazzucato traz dados sobre “os esquemas globais de remanejamento de impostos (tax-shuffrling schemes), que certamente não concernem apenas a Apple. Na realidade, outras empresas de tecnologia como Google, Oracle e Amazon também se beneficiam da adoção de esquemas de impostos semelhantes”. (189) A General Electric também é um dos campeões de evasão fiscal, pagando apenas 1,8% sobre os seus lucros entre 2002 e 2011. 

O estudo mostra o papel fundamental desempenhado pelo sistema público na pesquisa de base que permite a inovação em medicamentos, que por sua vez frequentemente são vendidos a preços exorbitantes, aproveitando infindáveis patentes renovadas sobre a base de pequenas inovações cosméticas. Mostra também o papel fundamental do financiamento público, em setores não imediatamente rentáveis, como infraestruturas, mas que são essenciais para a produtividade empresarial e a qualidade de vida da população, enquanto os bancos privados desenvolveram um sistema basicamente extrativo, e não multiplicador de riqueza. 

No conjunto, o resgate do papel do Estado, e em particular a sua melhor compreensão, são essenciais para pensarmos para o futuro um desenvolvimento sustentável. Temos aqui uma análise muito convergente com as propostas do Roosevelt Institute.

Corrigir as contas da economia

Kate Raworth é uma das participantes diretas do projeto Economia de Francisco. O aporte fundamental dela é uma revisão radical de como fazemos as contas na economia, ultrapassando as profundas deformações do cálculo do PIB, que calcula apenas a velocidade dos fluxos econômicos, mas não nos informa sobre os resultados para a sociedade, que é precisamente o que queremos de uma economia que funcione. George Monbiot, do Guardian, não exagera: “Eu li este livro com a excitação com que as pessoas do seu dia devem ter lido a Teoria Geral de John Maynard Keynes. É brilhante, entusiasmante e revolucionário. Com um poço profundo de aprendizagem, sabedoria, e pensamento profundo, Kate Raworth redesenhou e redefiniu os marcos da teoria econômica. É completamente acessível, mesmo para pessoas sem conhecimento do assunto. Eu acredito que Doughnut Economics vai mudar o mundo”.  Comentário  forte, mas perfeitamente adequado.[7]

De forma simples e direta, Raworth faz um tipo de “reset” de como vemos o mundo econômico, e a nova visão faz todo sentido. Consciente de que precisamos hoje, mais do que do detalhe, de uma imagem de referência sobre o que queremos da economia, a autora substitui os nossos tradicionais gráficos de fluxos por uma imagem, o doughnut, a nossa familiar rosquinha. Vale a pena se apropriar de uma ideia básica, de que estamos produzindo algumas coisas em excesso, como poluição do ar, e outras de forma insuficiente, como educação e saúde. Os excessos aparecem explodindo para além da rosca, e as insuficiências como que não chegam à rosca, ficam no vazio interno.

Com esse desenho simples estamos saindo da síntese quantitativa do PIB, em que a destruição ambiental como desmatamento ou vazamentos de petróleo aparecem como positivos, pois aumentam as atividades e logo o PIB. Evoluimos para uma conta completa, permitindo identificar o que tem de ser controlado — por exemplo, a contaminação química — e o que tem de ser expandido — por exemplo, o acesso aos alimentos. Entramos assim na economia do bom senso. Só lembrando a tão bela frase que encontrei num banner de estudantes de economia: “Crescer por crescer é a filosofia da célula cancerosa”. Portanto, temos aqui um ponto de partida sobre o qual podemos construir as políticas, organizar estímulos ou regulação, e repensar as nossas teorias.

O bom do Donut, como todos sabem, é o concreto, aquela rodinha onde tem a massa e o açúcar em cima. No limite interno da rosca, para dentro do vazio, ficam as insuficiências, que devem ser sanadas: 12 itens como alimento, saúde, educação, emprego e renda, paz e justiça, voz política, equidade social, igualdade de gênero, habitação, redes, energia e água. No corpo da rosca, é o espaço onde devemos nos situar, dimensão justa e segura para a humanidade. No limite externo da rosca, fica o teto ecológico que não deveríamos ter ultrapassado: são 9 itens, envolvendo mudança climática, acidificação dos oceanos, poluição química, sobrecarga de nitrogênio e de fósforo, extração de água doce, conversão do solo, perda de biodiversidade, poluição do ar, e destruição da camada de ozônio.

Ou seja, no vazio interno da rosca, temos as insuficiências, shortfall, o que tem de melhorar para entrar no espaço seguro da própria donut. E no vazio externo, temos os excessos, o overshooting, que temos de reduzir. Não muito diferente de como cuidamos da casa, em que temos de complementar as insuficiências, e controlar os excessos. A economia deixa de ser um mistério para amadores de modelos matemáticos, e passa a fazer sentido para os comuns dos mortais. Ao mesmo tempo, temos uma imagem simples e desafios que são coerentes com o que foi decidido nas grandes conferências de 2015, com o Acordo de Paris e os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, a Agenda 2030, em Nova Iorque. (38-39)

A simplicidade e facilidade de leitura, inclusive de visualização mental, dos desafios econômicos, é essencial, pois enquanto a imensa maioria da população não entender a lógica de como usamos os nossos recursos, as farsas irão continuar. Inclusive a farsa maior, de que precisamos dos ricos pois eles investem e geram empregos, e de que precisamos de pobres pois a pobreza os leva a trabalhar. Na realidade os ricos hoje fazem aplicações financeiras em vez de investir, colocam os recursos em paraísos fiscais e, portanto, pouco investem, e mal pagam os seus impostos. Num mundo que funcione, impostos sobre o capital improdutivo levarão os rentistas a buscar fazer algo de útil com os seus capitais. E como constatamos em qualquer iniciativa que assegurou mais recursos para a população, o resultado é maior demanda, multiplicação de pequenas e médias empresas e expansão do emprego. O que aliás gera maior massa de impostos e equilíbrio de contas públicas. Veja-se o sucesso do New Deal, do Welfare State, da fase dinâmica da economia brasileira entre 2003 e 2013, e até mais recentemente da “geringonça” portuguesa.

Aqui, ao vermos em que setores e com que atividades estamos por um lado dilapidando os recursos naturais do planeta por excessos de uso, e por outro que insuficiências existem em diversas partes da população, podemos, setor por setor, canalizar os esforços e recursos financeiros para onde irão gerar maior equilíbrio. 

Ou seja, podemos calcular onde devemos nos restringir, onde podemos expandir, em que setores há prioridade e assegurar o básico para a população. A economia passa a fazer sentido. Tim Jackson, que comenta o livro, lembra o absurdo de termos sido “persuadidos a gastar dinheiro que não temos em coisas que não precisamos para causar impressões que não irão durar sobre pessoas que não nos importam.” Já era tempo que alguém dêsse um pouco de sentido na visão geral da economia realmente existente. No centro das respostas, não estão modelos complicados, e sim a “capacidade do século 21 de criar formas muito mais efetivas de governança, em cada escala, do que as que têm sido vistas anteriormente.(51) E corrigir as contas, em economia, é fundamental.

Resgatar a utilidade dos recursos financeiros

 As boas intenções, proclamações e declarações de elevados princípios éticos não irão resolver se não enfrentarmos o problema central do dinheiro para financiar o que devemos priorizar.

É essencial lembrar, como vimos acima, que a Conferência de Paris em 2015, que com pompa e circunstância firmou o compromisso mundial de levantar 100 bilhões de dólares ao ano para enfrentar o desastre ambiental, é uma soma ridícula quando comparada aos 20 trilhões de dólares que se escondem em paraísos fiscais, 200 vezes mais. Lembrando ainda que praticamente todas as grandes corporações e grandes fortunas hoje têm filiais ou contas em paraísos fiscais, essencialmente fruto de evasão fiscal, corrupção e lavagem de dinheiro. O sistema econômico realmente existente está atolado em ilegalidades. E são recursos em gigantescos volumes.  

Um segundo ponto essencial é que o mundo não é pobre. Como vimos, o PIB mundial, atualmente da ordem de 85 trilhões de dólares. Este volume de bens e serviços produzidos no mundo representa 3700 dólares por mês por família de 4 pessoas, cerca de 15 mil reais. Não há nenhuma justificativa para termos 820 milhões de pessoas passando fome, das quais mais de 150 milhões de crianças. Nosso problema não é econômico, é essencialmente ético e político. No caso do Brasil, estamos exatamente na média mundial em termos de PIB por pessoa. Não há nenhuma razão econômica para a pobreza.

Um terceiro ponto é que as fortunas que hoje se acumulam são essencialmente baseadas em remuneração de papéis financeiros. A partir de estudos de Thomas Piketty, Joseph Stiglitz, Paul Krugman, Ellen Brown, Michael Hudson, François Chesnais, Marjorie Kelly, Paul Dembinski e tantos outros, formou-se hoje uma sólida base teórica e clara explicitação dos mecanismos especulativos que multiplicam fortunas e extraem os recursos que são indispensáveis para evitar os desastres que temos pela frente.

Lembremos o mecanismo básico do enriquecimento especulativo: um bilionário que aplica um bilhão em papéis que rendam modestos 5% ao ano está ganhando 137 mil dólares ao dia. No dia seguinte a fortuna dele irá render sobre um bilhão mais o ganho do dia anterior e assim por diante, sem precisar produzir nada. O mecanismo, conhecido como snowball effect, efeito bola de neve, levou ao absurdo de 1% mais ricos que dispõem de mais patrimônio do que os outros 99%. Sem produzir. No Brasil, seis famílias têm mais riqueza acumulada do que o patrimônio da metade mais pobre da população. Isso, evidentemente, não funciona.

Jared Bernstein, que foi conselheiro econômico do vice-presidente dos EUA, Joe Biden, constata hoje este deslocamento geral das análises econômicas, com o título expressivo do seu estudo: “Nova economia – Uma geração de economistas ajudou a nos colocar nesta bagunça (mess): uma nova geração pode nos tirar”. Segundo autor, Qualquer forma de análise social que vise ser útil para a sociedade precisa evoluir de maneira a estimular o bem-estar social, a equidade, a justiça racial e de gênero, e a sustentabilidade ambiental. Durante demasiado tempo, grande parte da ciência econômica foi reprovada neste teste – e, no entanto, a sua interação com a classe dirigente a elevou para o nível do poder… O mal causado de maneira penetrante por esta interação abriu caminho para um número crescente de economistas que estão derrubando a velha escola do seu patamar privilegiado. Frente a que eu digo: já era tempo.

A revista Forbes, na sua edição brasileira, lançou em 2019 uma lista detalhada dos 206 bilhonários do país. Jorge Lemann está em primeiro lugar, com patrimônio de 104 bilhões de reais. Atividade bancária, naturalmente, dinheiro ganho intermediando dinheiro dos outros. Em segundo lugar Joseph Safra, também dono de banco, com 95 bilhões, sendo que entre 2018 e 2019 aumentou a sua fortuna em 19,31 bilhões, numa fase de paralisia geral da economia brasileira. A família Marinho, com fortuna de 34 bilhões, teve um aumento de 9,3 bilhões no mesmo período. Cândido Pinheiro Koren de Lima, dos serviços de saúde Hapvida, tem um patrimônio de 13,82 bilhões, fortuna que no último ano aumentou em 6,22 bilhões. Especular com saúde rende muito.

É preciso buscar muito na lista para encontrar alguém que efetivamente produza algo. Preferem deter a gestão dos recursos financeiros, ou gerir fundos de ações. No conjunto, em oito anos de descontrole do sistema financeiro, passamos no Brasil de 74 bilionários em 2012 para 206 bilionários em 2019. As fortunas aucumuladas passaram de 346 bilhões de reais para 1205,8 bilhões no mesmo período. (p.108) A tentativa da Dilma freiar a especulação reduzindo juros, em 2012/2013, aparece hoje com toda sua fragilidade. E o travamento da economia torna-se óbvio. Trata-se do coração do poder.

As fortunas mencionadas, evidentemente, não pagam impostos, já que lucros e dividendos distribuídos são isentos, por lei, desde 1995. Não é novo o processo, a expressão pecunia pecuniam parit nos vem dos antigos. Mas com o dinheiro hoje imaterial, essencialmente emitido pelos próprios bancos, e surfando no planeta com pouco controle, o resultado é o desastre planetário. No Brasil, é o sexto ano em que estamos parados, drenados por lucros exorbitantes e improdutivos.

A questão dos paraísos fiscais aparece regularmente na agenda das últimas reuniões do G20, bem como a evasão fiscal generalizada por parte dos grandes grupos e grandes fortunas mundiais. A OCDE prepara uma primeira proposta de regulação financeira internacional, no quadro do BEPS (Base Erosion and Profit Shifting), que deve ver a luz em 2020. Mas a inoperância dos governos e a lentidão dos processos justificam plenamente a indignação de tantos jovens pelo planeta afora, e a perda de paciência de bilhões de pobres que hoje são privados do essencial, enquanto os recursos são desviados da sua utilização produtiva, constituindo o que Marjorie Kelly e Ted Howard qualificam adequadamente de “capitalismo extrativo”. Uma mudança sistêmica em como vemos a economia está na ordem do dia.

* * *

Até o tradicional distanciamento e frieza das análises científicas está perdendo espaço. Não podemos senão concordar com esta declaração de Joseph Stiglitz:

O experimento neoliberal — impostos mais baixos para os ricos, desregulamentação dos mercados de trabalho e de produtos, financeirização e globalização — tem sido um fracasso espetacular. O crescimento é menor do que era no quarto de século após a Segunda Guerra Mundial, e a maior parte acumulou-se no topo da escala de renda. Depois de décadas de renda estagnada ou mesmo em queda para aqueles abaixo dos mais ricos, o neoliberalismo deve ser declarado morto e enterrado.

Uma evidência começa a chegar até as pessoas mais desinformadas ou ideologicamente mais deformadas: as imensas fortunas especulativas têm de passar a pagar impostos, e o resultado desses impostos deve ser investido no resgate da sustentabilidade do planeta e na redução da desigualdade. E o básico para a sobrevivência dos mais pobres deve ser garantido desde já. Hoje enfrentamos o absurdo de conhecermos os desafios, de sabermos o que deve ser feito, e de termos os recursos financeiros e tecnológicos correspondentes, ao mesmo tempo que simplesmente adiamos as ações a serem tomadas.

Notas

[6] Mariana Mazzucato – The Entrepreneurial State – Public Affairs, New York, 2015

[7] Para a resenha feita pelo próprio Monbiot, no Guardian, veja http://www.monbiot.com/2017/04/13/circle-of-life/

(Os grifos e destaques são nossos)

Fonte:

www.outraspalavras.net

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Paradigmas para uma Economia de Francisco (2ª parte) https://observatoriodaevangelizacao.com/paradigmas-para-uma-economia-de-francisco-2a-parte/ Tue, 29 Oct 2019 10:30:53 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=32815 [Leia mais...]]]> Relatório do Roosevelt Institute demonstra: crítica ao neoliberalismo já se espalha muito além da esquerda. Desmoralização do projeto no Equador e Chile, e sua próxima queda na Argentina, poderão acordar a esquerda brasileira?

(Texto do prof. Ladislau Dowbor, publicado em Outras Palavras, em 23/10/2019)

Novas regras do jogo[4]

Uma iniciativa importante me parece ser o estudo do Roosevelt Institute, New Rules for the 21st Century, novas regras para o século 21. Uma constatação forte dá o tom: “Entregamos os nossos governos aos mercados, e entregamos os mercados às corporações”. (p.8)

Um choque impressionante de realismo caracteriza esta excelente síntese dos novos caminhos que os Estados Unidos precisam trilhar para que a economia volte a servir a sociedade, não o contrário. Aqui também temos um aporte propositivo, uma sistematização dos principais desafios e medidas a tomar. O Roosevelt Institute se caracteriza pela seriedadade das suas pesquisas e o bom senso das propostas: “O presente relatório vai ilustrar a necessidade crucial de se reduzir o poder corporativo e resgatar o poder público. Mostraremos que ambos são necessários para mover nossa nação para um futuro que se apoia no que houve de melhor na nossa história, corrige erros cometidos e se adapta aos tempos modernos.”(10)  

O relatório impressiona também por fugir de simplificações ideológicas, buscando claramente as medidas cuja utilidade já foi comprovada. E ajuda muito a clareza ao mostrar as dimensões políticas, de poder de decisão efetivo sobre o uso dos recursos, que temos de enfrentar. O problema não está na falta de recursos, e sim no seu desvio por corporações que em vez de fomentar a economia a drenam, apropriando-se para este fim das próprias políticas públicas. Ou seja, o relatório enfrenta a questão central. E esta questão, evidentemente, não se limita aos Estados Unidos. “As generalizações sobre a ineficiência do governo e sua pouca efetividade são exageradas (overblown), enquanto as consequências negativas das soluções baseadas no mercado têm sido muito frequentemente desconsideradas… A América deixou de lado um poderoso instrumento de governo: a provisão pública direta de bens e serviços.” (47/48)

Ou seja, o que sentimos no relatório, é que finalmente a onda neoliberal está refluindo já não em rincões da esquerda, mas em instituições de grande peso.

Nos últimos 50 anos, temos desinvestido (disinvested) do poder público e nos temos dito que o governo é o problema. Sabemos que isso está errado. Sabemos também que o governo é a base para as instituições e os bens tangíveis que constituem o tecido das nossas vidas cotidianas–escolas e segurança pública; estradas e pontes; alimentos e medicamentos mais saudáveis; ar e água mais limpos.”(63)

Fugindo das polarizações, o relatório mostra que o fortalecimento da capacidade de governo é central inclusive para o funcionamento da economia em geral. “O efeito combinado de poder corporativo concentrado e do poder público corrompido tem sido devastador para o nosso país…O governo não está investindo na população, nos programas públicos, na tecnologia ou na infraestrutura física–o tipo de investimentos que uma economia forte e em expansão exige.”(21) Lembremos que no Brasil ‘investir na população’ é qualificado de ‘gasto’. 

Não se trata aqui de algum flerte com socialismo. Trata-se, na minha interpretação, de um choque de realismo para que o próprio capitalismo volte a funcionar. Tenho qualificado essa busca de ‘capitalismo civilizado’. O próprio documento sugere uma ‘visão de mundo progressiva’ (progressive world-view). Mas as propostas destoam profundamente do neoliberalismo: “A história não tem sido caridosa com o neoliberalismo, esse caótico saco de ideias baseadas na noção fundamentalista de que os mercados se auto-corrigem, alocam recursos com eficiência, e servem bem o interesse público. Aprender a lição de que o neoliberalismo sempre foi uma doutrina política a serviço de interesses especiais pode constituir o fio condutor na nuvem que hoje recobre a economia global.”(1) Leram bem, um documento assinado entre outros por quem já foi economista chefe do governo Clinton e do Banco Mundial.

Os interesses especiais, obviamente, são as corporações, que se transformaram numa máquina rentista, que extrai da economia em vez de contribuir: “Como tanto poder das corporações é direcionado para “extração de renta” (rent-extraction, aspas dos autores), – tomar uma parte maior do bolo econômico da nação ao tirar vantagens de outros – em vez de criar riqueza, reduzir o poder corporativo vai inclusive fortalecer o conjunto da economia.”(3) Temos aqui a evidente consequência da financeirização. O processo se agravou com a apropriação da política: “No final, isso permitiu que os muito ricos convertessem o seu poder econômico em poder político concentrado que, por sua vez, permitiu que eles torcessem ainda mais as regras a seu favor e capturassem mais poder econômico.”(7) É a máquina infernal: poder financeiro que gerou poder político, que por sua vez permite torcer as leis para gerar mais poder financeiro.

Assim, “este vale-tudo do setor privado prejudicou o bem-estar dos indivíduos e das comunidades pelos Estados Unidos afora, mas também travou o crescimento econômico, já que permitiu que os super-ricos retirem lucros do rentismo e de outras atividades que aumentam a sua riqueza sem fazer a economia crescer.” (7) O sistema descolou claramente das contribuições produtivas: “Markups, ou seja, o montante que a companhia cobra acima dos custos, aumentaram de 18% acima do custo marginal em 1980, para 67%. Isso sugere que os lucros corporativos compreendem não retornos produtivos sobre o capital e o trabalho, mas rentas.”(10)[5] Ou seja, remuneramos essencialmente aplicações financeiras, não investimentos: “Antes de 1970, as corporações americanas pagavam 50% dos seus lucros aos acionistas e o resta era reinvestido no negócio. Hoje, o pagamento aos acionistas está na ordem de 90% dos lucros declarados (Mason 2015a).” (17)

O relatório tira as consequências em termos de resgate da produtividade do setor financeiro. “Para assegurar que a função das finanças seja socialmente benéfica, a reforma do setor financeiro devera buscar, acima de tudo, reduzir os riscos macroeconômicos e limitar as práticas predatórias. Além disso, as reformas deveriam buscar o aumento do crédito produtivo, que poderia estimular pequenos negócios que atualmente enfrentam limitações de capital, facilitar empréstimos simples eficientes e a baixo custo, e servir as famílias não bancarizadas ou insuficientemente bancarizadas que atualmente estão sendo exploradas por financeiras de alto custo.”(39)

No nosso caso brasileiro, evidentemente, os próprios bancos fazem o papel de agiotas, em escala incomparavelmente mais nociva. Mas é útil ver que o problema do resgate da utilidade social e econômica dos intermediários financeiros seja colocada com clareza. “Apesar dos avanços tecnológicos que deveriam ter tornado a indústria das finanças – um serviço de ‘intermediação’– menos caro e mais competitivo com o tempo, o custo unitário das finanças hoje é tão caro como era em 1900, porque o setor financeiro não repassa essas economias para os consumidores e sim para aumentar os lucros.” (24) 

Os autores slientam inclusive o fato que a existência de um forte sistema financeiro público é essencial para estimular a qualidade dos serviços prestados pelos mercados: “O provimento público de serviços financeiros básicos não constitui um defeito, mas precisamente o objetivo. Essencialmente, haver uma alternativa pública tende a disciplinar os mercados para assegurar o acesso, qualidade e quantidade de bens e serviços essenciais.” (54) Ou seja, precisamos não só de regulação, mas de empresas públicas que forneçam diretamente bens e serviços para servir de contrapeso, abrindo alternativas para a população e colocando limites à agiotagem e rentismo financeiro. Para nós, que estamos atolados em negociatas de privatização, é importante esta compreensão de que a existência do setor público provedor de serviços é essencial para tornar o setor privado mais performante. 

O documento no seu conjunto buscar resgatar o papel do setor público. “Os agentes políticos (policymakers) deveriam expandir o poder do governo, ao prover diretamente as políticas, com dois objetivos na linha de frente de uma nova visão de mundo progressiva: acesso universal aos bens e serviços e investimentos transformadores na busca de objetivos nacionais.” (51) Invertendo as narrativas neoliberais, o texto mostra a maior produtividade sistêmica alcançada quando o governo assume um papel de provedor direto de políticas. E mostra a falácia da chamada austeridade: “Na realidade, está comprovado que gastar pouco demais leva no fim das contas a custos muito mais elevados (em termos de prejuízo para a vida das pessoas e para o crescimento econômico) do que gastar demais.” (13)

No Brasil, sentimos isso na pele, na medida em que o travamento do acesso às políticas públicas força as pessoas a recorrer a serviços privados muito mais caros, resultando em perda de produtividade sistêmica. É bom lembrar que durante os anos 2003 a 2013, que o Banco Mundial qualificou de “década dourada” (Golden Decade) da economia brasileira, houve forte expansão de renda e de acesso a bens e serviços públicos, o que dinamizou o a economia e limitou o déficit, pois gerou aumento de receitas. O déficit se torna significativo a partir da era da austeridade de 2014 em diante. Para o detalhe, veja o capítulo 12 do meu A Era do Capital Improdutivo, disponível em http://dowbor.org 

A política pública, executada com cuidado relativamente às dinâmicas de mercado subjacentes, deveria constituir o mecanismo básico (default mechanism) para prover bens e serviços que são essenciais para a dignidade e atuação humanas, tais como acesso à habitação, cuidados de saúde, e serviços bancários. O provimento público direto dos serviços é essencial em casos em que o público tem um forte interesse em ter acesso universal, e em que os setores privados têm como exercer um poder de mercado sobre os que buscam acesso. Há justificações econômicas para utilizar o poder do governo para prover bens e serviços essenciais. Uma vasta literatura mostra os benefícios econômicos de se assegurar um nível básico de serviços que incluem o cuidado infantil, a educação inicial e aposentadorias. Particularmente significativo é o fato que um maior investimento nas pessoas assegura uma maior produtividade econômica no conjunto.” (52)

As mudanças, na visão dos autores, não se darão sem uma transformação do processo decisório nas próprias corporações, na chamada governança corporativa. “Para se criar um sistema que sirva aos interesses de todos os atores interessados (stakeholders), e não só dos executivos e da comunidade de aplicações financeiras, deveria ser exigido dos conselhos de administração das corporações a inclusão, no mínimo, de uma proporção substantiva de trabalhadores bem como de representantes de outros stakeholders que não sejam acionistas.” (37) O texto mostra como isso funciona na Alemanha e outros países.

O relatório recomenda inclusive o reforço dos próprios mecanismos de regulação. Em particular, explicita como funciona o sistema de proteção do consumidor de serviços financeiros (Consumer Financial Protection Bureau: CFBR) “que materializou a visão de um governo federal que serve e reforça a democracia, e é fortemente apoiado pela população.”(43). E explicita as necessidades de uma transformação da política tributária: “Elevar as alíquotas tributárias maginais no topo e taxar rendimentos de capital permitiria extrair mais recursos que as firmas usam para pagar aos acionistas e executivos (CEOs).” (60). Não custa lembrar aqui que o CEO da Disney embolsou um salário equivalente a cerca de 1500 vezes o salário médio dos seus empregados, provocando inclusive indignação de uma das netas do Disney. O executivo em questão não tem 1500 vezes mais filhos para criar. Aqui não trata de exageros pontuais, mas de uma deformação patológica do sistema.  

Igualmente interessante é a proposta de uma política pro-ativa de inclusão produtiva. “Uma política de garantia federal de emprego (Federal Jobs Guarantee – FJG) constituiria uma fonte direta de empregos com poder público de literalmente terminar com o desemprego involuntário e pobreza de trabalho.” (57) Tal política poderia assegurar que “independentemente de falhas de mercado – tais como choques econômicos, acordos comerciais mal planejados, discriminação estrutural – cada americano teria o direito a um emprego e à renda e dignidade associadas com o trabalho. Uma garantia de emprego poderia funcionar como uma opção pública que coloca uma regra básica para benefícios, compensações e práticas equitáveis que formatariam o mercado de trabalho no seu conjunto.” (61)

Claramente, na visão dos autores, o enfoque econômico não é suficiente. Para as necessidades básicas humanas, temos de nos voltar para o ‘argumento dos direitos’. Mas mesmo em termos macro-econômicos, temos de inverter o raciocínio: “É muito mais provável que o problema que temos de enfrentar seja de demanda agregada inadequada e desemprego elevado, do que sobreaquecimento e inflação.”(58) Expandir a demanda agregada, evidentemente, melhora a situação das famílias e reduz o desemprego. Nada de radicalmente novo aqui, mas sim muito bom senso. Adeus austeridade. 

Volto a mencionar que não se trata, nesta análise do Roosevelt Institute, de propor rupturas sistêmicas, e sim de civilizar o processo. Para nós, que nos debatemos no primitivismo ideológico e em narrativas absurdas de que sacrificar a população é “ao fim a ao cabo” bom para ela, vejo este documento como extremamente útil. Qual que seja o realismo das propostas, o desmonte do sistema por uma instituição que está no coração dele, com argumentos muito bem organizados, ajuda muito. Não é crítica externa por opositores, é um choque interno de lucidez, por parte de quem conhece o sistema em profundidade. Francamente, são sessenta e poucas páginas que constituem um excelente custo-benefício. Só para não esquecer: a bibliografia é ótima, com artigos e estudos disponíveis online, de acesso aberto e imediato. Para quem quer aprofundar, uma ferramenta.  


[2] Released: August 19, 2019 Updated with New Signatures: September 6, 2019 file:///C:/Users/Ladislau%20Dowbor/Downloads/BRT-Statement-on-the-Purpose-of-a-Corporation-with-Signatures-1.pdf

[3] Banking Principles – UNEP – 23 sept. 2019 – Ativos de 47tri$ https://www.unepfi.org/banking/bankingprinciples/
The Principles for Responsible Banking – See also:https://www.unepfi.org/news/industries/banking/130-banks-holding-usd-47-trillion-in-assets-commit-to-climate-action-and-sustainability/

[4] Roosevelt Institute – New Rules for the 21st Century – 2019 – 77p.https://rooseveltinstitute.org/wp-content/uploads/2019/04/Roosevelt-Institute_2021-Report_Digital-copy.pdf

[5] Estou aqui traduzindo rent por renta, pois não é possível que não tenhamos a palavra correspondente em português. Temos sim rentismo, mas falamos que alguém “vive de rendas” quando se trata de rendimentos improdutivos. Em inglês “rent” e “income” são claramente diferentes, como também em francês, “rente” e “revenu”.


Bibliografia

Bernstein, Jared  – New Economics: A Generation of Economists Helped Get Us into This Mess. A New Generation Can Get Us Out. https://www.vox.com/policy-and-politics/2019/9/13/20862607/economics-inequality-deregulation-wealth-taxes-policy

Brown, Ellen – Banking on the People – Democracy Collaborative, Washington, 2019

Business Round Table – Statement on the Purpose of a Corporation – file:///C:/Users/Ladislau%20Dowbor/Downloads/BRT-Statement-on-the-Purpose-of-a-Corporation-with-Signatures-1.pdf

Dowbor, Ladislau – A Era do Capital Improdutivo – Autonomia Literária, São Paulo, 2018 –http://dowbor.org/blog/wp-content/uploads/2018/11/Dowbor-_-A-ERA-DO-CAPITAL-IMPRODUTIVO.pdf

Forbes – 200 bilionários brasileiros – Edição Especial – São Paulo, 2019

Kelly, Marjorie and Ted Howard – The Making of a Democratic Economy – Berrett-Koehler Publishers, Oakland, 2019

Kliass, Paulo – Cheiro de mudanças no ar – Outras Palavras, 24/set. 2019 –https://outraspalavras.net/alemdamercadoria/economia-cheiro-de-mudanca-no-ar/

Mazzucato, Mariana – The Entrepreneurial State: debunking the public vs private myth – Public Affairs, New York, 2015

Pizzigati, Sam – The Case for a Maximum Wage – Polity Press, Cambridge, UK, 2018 –https://dowbor.org/2018/10/sam-pizzigati-the-case-for-a-maximum-wage-polity-press-cambridge-uk-2018-133p.html/

Raworth, Kate – Doughnut Economics: 7 ways to think like a 21st Century Economist – Chelsea Green Publishing, 2017 – (No Brasil: Economia Donut: 7 maneiras de pensar como um economista do século 21) http://dowbor.org/2017/08/kate-raworth-doughnut-economics-7-ways-to-think-like-a-21st-century-economist-chelsea-green-publishing-2017-isbn-a-economia-da-rosquinha-7-maneiras.html/

Roosevelt Institute – New Rules for the 21st Century – 2019 –https://dowbor.org/2019/04/roosevelt-institute-new-rules-for-the-21st-century-2019-77p.html/

Stiglitz, Joseph – Hora de enterrar um sistema fracassado – Outras Palavras, 6 de jun. 2019https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/stiglitz-hora-de-enterrar-um-sistema-fracassado/ 
http://dowbor.org/2019/06/stiglitz-hora-de-enterrar-um-sistema-fracassado-outras-palavras-traducao-jun-2019-3p.html/

Stiglitz, Joseph – Crise Civilizatória – 4 Set. 2019 – https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/poderia-o-capitalismo-ser-menos-brutal/

Wallace-wells, David – The uninhabitable earth – Penguin Books, New York 2019 –https://dowbor.org/2019/07/david-wallace-wells-the-uninhabitable-earth-life-after-warming-tim-duggan-books-penguin-new-york-2019.html/  


[1] “To embrace young people, beyond differences in belief and nationality, an agreement to change the current economy and humanize the economy of tomorrow: to make it more just, more sustainable and to give new prominence to excluded people.”  https://francescoeconomy.org/wp-content/uploads/2019/08/PR_EconomyOfFrancesco_08_2019.pdf A carta convocatória do Papa Francisco está emhttp://press.vatican.va/content/salastampa/it/bollettino/pubblico/2019/05/11/0399/00815.html

[2] Released: August 19, 2019 Updated with New Signatures: September 6, 2019 file:///C:/Users/Ladislau%20Dowbor/Downloads/BRT-Statement-on-the-Purpose-of-a-Corporation-with-Signatures-1.pdf

[3] Banking Principles – UNEP – 23 sept. 2019 – Ativos de 47tri$https://www.unepfi.org/banking/bankingprinciples/
The Principles for Responsible Banking – See also:https://www.unepfi.org/news/industries/banking/130-banks-holding-usd-47-trillion-in-assets-commit-to-climate-action-and-sustainability/

[4] Roosevelt Institute – New Rules for the 21st Century – 2019 – 77p.https://rooseveltinstitute.org/wp-content/uploads/2019/04/Roosevelt-Institute_2021-Report_Digital-copy.pdf

[5] Estou aqui traduzindo rent por renta, pois não é possível que não tenhamos a palavra correspondente em português. Temos sim rentismo, mas falamos que alguém “vive de rendas” quando se trata de rendimentos improdutivos. Em inglês “rent” e “income” são claramente diferentes, como também em francês, “rente” e “revenu”.

(Os grifos e destaques são nossos)

Fonte:

www.outraspalavras.net

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Paradigmas para uma Economia de Francisco (1ª parte) https://observatoriodaevangelizacao.com/paradigmas-para-uma-economia-de-francisco-1a-parte/ Mon, 28 Oct 2019 13:29:47 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=32781 [Leia mais...]]]> Diante do mal-estar com a desigualdade e devastação do planeta, Papa convoca encontro para pensar nova economia. Caminhos para construí-la: Renda Cidadã, Bens Comuns, Controle das Finanças, Democracia Real e mais

(Texto do prof. Ladislau Dowbor, publicado em Outras Palavras, em 22/10/2019)

O papa Francisco convocou para março de 2020 uma reunião planetária em torno de uma nova economia, chamada simbolicamente de Economia de Francisco, na linha da associação com o que seria a visão São Francisco de Assis, aliás local da reunião proposta. Gerou-se com isso um amplo movimento, por parte de comunidades de diversas religiões, e ampliou-se a visibilidade com a participação direta de personagens como Jeffrey Sachs, Joseph Stiglitz, Amarty Sen, Vandana Shiva, Mohammad Yunus, Kate Raworth e outros personagens de primeira linha mundial, com forte presença de prêmios Nobel. Uma ideia básica, de que a economia deve servir à sociedade, e não o contrário, está encontrando um eco profundo. Vivemos uma era de profunda insegurança e busca de novos modelos. O atual não funciona.

A iniciativa Economia de Francisco tem como objetivo  “trazer gente jovem, além das diferenças de crenças ou nacionalidade, para um acordo (agreement) no sentido de repensar a economia existente, e de humanizar a economia de amanhã: torná-la mais justa, mais sustentável, assegurando uma nova preeminência para as populações excluídas”. [1]

“Today more than ever, everything is deeply connected and that the safeguarding of the environment cannot be divorced from ensuring justice for the poor and finding answers to the structural problems of the global economy. We need to correct models of growth incapable of guaranteeing respect for the environment, openness to life, concern for the family, social equality, the dignity of workers and the rights of future generations. Sadly, few have heard the appeal to acknowledge the gravity of the problems and, even more, to set in place a new economic model, the fruit of a culture of communion based on fraternity and equality.”

No conjunto, trata-se de repensar a função da economia na sociedade. Afinal, a economia em princípio deve servir para vivermos melhor, e não para que estejamos a seu serviço. Parece que está se chegando a uma visão de bom senso, um reordenar dos argumentos. Uma economia a serviço do bem comum implica que seja economicamente viável, mas também socialmente justa e ambientalmente sustentável. Este triplo objetivo define um novo equilíbrio e uma outra forma de organização.

O desafio não é o de falta de recursos. No mundo se produz anualmente 85 trilhões de bens e serviços por ano, o que, razoavelmente distribuído, asseguraria 15 mil reais por mês por família de quatro pessoas. E o Brasil esta precisamente nesta média mundial. O que hoje produzimos é amplamente suficiente para uma vida digna e confortável para todos. Nosso problema não é de capacidade de produção, e sim de saber o que produzimos, para quem, e com que impactos ambientais. O grande desafio é o da governança do sistema, desafio sem dúvida técnico, mas sobretudo ético e político.

O mundo que enfrentamos se caracteriza por crescente e dramática desigualdade, com 1% detendo mais riqueza do que os 99% seguintes, e 26 famílias com mais do que a metade mais pobre da população, 3,8 bilhões de pessoas. No Brasil 6 famílias acumularam mais riqueza do que os 105 milhões na base da pirâmide. A desigualdade atingiu níveis eticamente, politicamente e economicamente insustentáveis.

A mudança climática, a liquidação da vida nos mares e em terra – perdemos 52% dos vertebrados em apenas 40 anos – a perda de cobertura florestal, a contaminação química generalizada, a inundação dos plásticos e tantos outros processos destrutivos estão levando a uma catástrofe ambiental generalizada.

Temos assim de enfrentar o duplo desafio da redução da desigualdade, portanto de uma democratização da economia, e da redução do ritmo de destruição da base natural da nossa sobrevivência, evoluindo para uma economia circular sustentável.

Sabemos o que deve ser feito: os 17 objetivos do desenvolvimento sustentável (Agenda 2030) o definem claramente. Temos os recursos financeiros: apenas nos paraísos fiscais, os 20 trilhões de dólares que resultam de evasão fiscal, corrupção e lavagem de dinheiro, representam 200 vezes os 100 bilhões que na Conferência de 2015 em Paris se decidiu alocar para as políticas ambientais. Temos grande riqueza de informações sobre cada problema do planeta, os dramas estão localizados e quantificados. E temos também as tecnologias que hoje permitem transitarmos para outras matrizes de transporte, de energia, e dos próprios processos produtivos. Não é, portanto, uma questão de falta de meios, e sim de profundas deformações políticas de como gerimos as nossas economias.

Assim, o desafio está no próprio processo decisório, em como definimos, regulamos e orientamos o uso dos nossos recursos. A economia tem de voltar a servir o bem comum. Nas discussões preliminares de preparação da participação brasileira no evento, mais do que elencar as desgraças que nos atingem, buscamos nos concentrar nos desafios organizacionais, de governança, que permitam resgatar os rumos, de parar de destruir o planeta em proveito de uma minoria que acumula capitais improdutivos.

Os pontos essenciais que sugerimos para discussão, em torno desta Economia de Francisco, são os seguintes:

  • 1. Democracia econômica: trata-se de resgatar a governança corporativa, sistemas transparentes de informação, e de gerar maior equilíbrio entre o Estado, as corporações e as organizações da sociedade civil. Não haverá democracia política sem democracia econômica.
  • 2. Democracia participativa: os processos decisórios sobre como definimos as nossas opções, como priorizamos o uso dos nossos recursos, não podem depender apenas de um voto a cada dois ou a cada quatro anos. Com sistemas adequados de informação, gestão descentralizada e ampla participação da sociedade civil organizada precisamos alcançar um outro nível de racionalidade na organização econômica e social. As novas tecnologias abrem imensos potenciais que se trata de explorar.
  • 3. Taxação dos fluxos financeiros: essencial para assegurar a informação sobre os capitais especulativos, e para que os recursos financeiros sirvam para financiar tanto a redução da desigualdade como para estimular processos produtivos sustentáveis. Na realidade os sistemas tributários no seu conjunto devem servir ao maior equilíbrio distributivo e à produtividade maior dos recursos.
  • 4. Renda básica universal: no quadro de uma visão geral de que algumas coisas não podem faltar a ninguém, uma forma simples e direta, em particular com as técnicas modernas de transferência, é assegurar um mínimo para cada família. Não se trata de custos, pois a dinamização do consumo simples na base da sociedade dinamiza a economia e gera o retorno correspondente.
  • 5. Políticas sociais de acesso universal, público e gratuito: o acesso à saúde, educação, cultura, segurança, habitação e outros itens básicos de sobrevivência devem fazer parte das prioridades absolutas. Não se trata de custos, e sim de investimentos nas pessoas, que dinamizam a produtividade e liberam recursos das famílias para outras formas de consumo.
  • 6. Desenvolvimento local integrado: somos populações hoje essencialmente urbanizadas, e o essencial das políticas que asseguram o bem-estar da comunidade e o manejo sustentável dos recursos naturais deve ter raízes em cada município, construindo assim o equilíbrio econômico, social e ambiental na própria base da sociedade.
  • 7. Sistemas financeiros como serviço público: o dinheiro que manejam os sistemas financeiros tem origem nas nossas poupanças e impostos, constituem recursos do público, e neste sentido devem responder às necessidades do desenvolvimento sustentável. Bancos públicos, bancos comunitários, cooperativas de crédito e outras soluções, como moedas virtuais diversificadas, são essenciais para que as nossas opções tenham os recursos correspondentes.
  • 8. Economia do conhecimento: o conhecimento hoje constitui o principal fator de produção. Sendo imaterial, e indefinidamente reproduzível, podemos gerar uma sociedade não só devidamente informada, mas com acesso universal e gratuito aos avanços tecnológicos de ponta. Temos de rever o conjunto das políticas de patentes, copyrights, royalties de diversos tipos que travam desnecessariamente o acesso aos avanços. O conhecimento é um fator de produção cujo uso, contrariamente aos bens materiais, não reduz o estoque.
  • 9. Democratização dos meios de comunicação: os recentes avanços do populismo de direita e a erosão dos processos democráticos mostram a que ponto o oligopólio dos meios de comunicação gera deformações insustentáveis, climas de acerbamento de divisões e aprofundamento de ódios e preconceitos. Uma sociedade informada é absolutamente essencial para o próprio funcionamento de uma economia a serviço do bem comum.
  • 10. Pedagogia da economia: a economia consiste essencialmente em regras do jogo pactuadas pela sociedade ou impostas por grupos de interesse. A democracia econômica depende vitalmente da compreensão generalizada dos mecanismos e das regras. Os currículos obscuros e falsamente científicos têm de ser substituídos por ferramentas de análise do mundo econômico real, de maneira a formar gestores competentes de uma economia voltada para o bem comum.

Esses eixos de análise se referem essencialmente ao processo decisório, às ferramentas de governança de que a sociedade deve dispor para resgatar a funcionalidade dos sistemas econômicos. Neste sentido, são aplicáveis tanto às atividades produtivas como indústria e agricultura, como a políticas sociais como saúde e educação e assim por diante. A filosofia geral aqui proposta consiste na compreensão de que democracia política sem democracia econômica não funciona: os dois universos devem resgatar a sua coerência. E frente ao aprofundamento dos desastres sociais, ambientais, políticos e econômicos, não só o tempo urge, como começamos a ver uma ampla mudança de atitudes, ou pelo menos uma tomada de consciência.

Há amplos caminhos sendo traçados por pesquisadores e centros de pesquisa, e pode-se dizer que estão sendo construidas de forma muito dinâmica as bases teóricas de uma outra economia. Ultrapassando os antigos debates entre ortodoxia e heterodoxia nas teorias econômicas, surge um novo pragmatismo, desta vez baseado em valores, no sentido de se buscar o que funciona, independentemente das eternas etiquetas ideológicas. Veremos abaixo algumas amostras da discussão mundial que se generaliza.

Mea Culpa

Em setembro de 2019, 181 das maiores corporações mundiais assinaram uma carta de compromisso, redefinindo os seus objetivos, e deixando formalmente de lado o que foi o seu credo durante décadas, de que devem enriquecer os seus acionistas e se despreocupar das consequências sistêmicas, qualificadas comodamente de “externalidades”. Negociado e divulgado no quadro do BRT (Business Round Table), o texto é curto, são básicamente cinco parágrafos, mas que reproduzimos aqui no original, atualizado em 6 de setembro de 2019:[2]

“While each of our individual companies serves its own corporate purpose, we share a fundamental commitment to all of our stakeholders. We commit to:

– Delivering value to our customers. We will further the tradition of American companies leading the way in meeting or exceeding customer expectations.

– Investing in our employees. This starts with compensating them fairly and providing important benefits. It also includes supporting them through training and education that help develop new skills for a rapidly changing world. We foster diversity and inclusion, dignity and respect.

– Dealing fairly and ethically with our suppliers. We are dedicated to serving as good partners to the other companies, large and small, that help us meet our missions.

– Supporting the communities in which we work. We respect the people in our communities and protect the environment by embracing sustainable practices across our businesses.

– Generating long-term value for shareholders, who provide the capital that allows companies to invest, grow and innovate. We are committed to transparency and effective engagement with shareholders. Each of our stakeholders is essential. We commit to deliver value to all of them, for the future success of our companies, our communities and our country.”

Ou seja, responder às expectativas dos consumidores, sem dúvida, mas também investir na promoção dos seus empregados – surgem palavras como “diversidade e inclusão, dignidade e respeito” –  o que gera expectativas para quem acompanha como é trabalhar na Walmart ou na Amazon, ou ainda nas linhas de montagem da Apple na China. O compromisso de lidar eticamente com os fornecedores, grandes ou pequenos, seria também uma inovação radical. O quarto ponto, de se responsabilizar com os impactos que exercem sobre as comunidades e o meio ambiente, assumindo a sustentabilidade como objetivo, é evidentemente essencial, mas talvez o mais transformador seja o quinto, em que se ambiciona sim continuar a gerar valor para os acionistas, mas no quadro de uma visão sistêmica que envolve compromissos com o longo prazo e os efeitos sobre as comunidades, quando sabemos que a cultura atual é de se assegurar a maximização de retornos no curto prazo, com pouca preocupação com os resultados para a sociedade.

Nada de profundamente revolucionário na aparência, simples bom senso, mas depois de 40 anos em que as corporações se esconderam por trás das teorias tão convenientes de Milton Friedmann – “The business of business is business” – portanto tendo como único dever enriquecer os acionistas, esta carta de intenções impressiona. Os grandes conglomerados decidem alterar os rumos. Ou assim o declaram.

Conhecendo as corporações, Joseph Stiglitz reage com otimismo moderado: “Nas últimas quatro décadas, a doutrina prevalecente nos EUA tem sido a de que as corporações devem potencializar os valores para seus acionistas — isto é, aumentar os lucros e os preços das ações — aqui e agora, não importa o que aconteça, sem se preocupar com as consequências para os trabalhadores, clientes, fornecedores e comunidades. Logo, a declaração que defende um capitalismo consciente e que foi assinada este mês por quase todos os membros da Business Roundtable causou um grande alvoroço. Afinal de contas, trata-se dos executivos-chefes das companhias mais poderosas dos EUA, dizendo aos norte americanos que o mundo dos negócios é muito mais do que apenas balanços patrimoniais. E isso é uma baita virada de jogo, não é mesmo?

Parece adequado este otimismo cauteloso. Mas a realidade é que ver, no fim carta, as assinaturas do Bezos da Amazon, e dos CEOs das maiores corporações como Apple, Johnson&Johnson, CityGroup e tantos outros, com um posicionamento que reverte profundamente o que nos foi repetido durante décadas, chama a atenção. Essas quase 200 corporações se reunirem para uma tomada pública de posição de que deverão assumir suas responsabilidades indica em todo caso que estão sentindo uma mudança nos tempos, reflexo de um despertar de indignações planetárias com o caos que está sendo gerado.

Mea Maxima Culpa

Mais interessante ainda é a tomada de posição de 130 dos maiores bancos do mundo, que proclamam o seu propósito de respeitar seis princípios básicos:[3] deverão alinhar as suas atividades com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, inclusive os compromissos climáticos de Paris; assegurar um sistema aberto de avaliação dos impactos dos financiamentos; encorajar atividades sustentáveis por parte dos seus clientes; definir objetivos sociais em consulta com os diversos atores sociais; assegurar uma governança interna responsável; gerar instrumentos de transparência para que possam ser verificados os efeitos das suas atividades sobre a sociedade.

Lembremos que os 130 bancos signatários representam ativos de 47 trilhões de dólares, quando o PIB mundial, para termos uma referência, é de 85 trilhões. Ver a assinatura de grandes agiotas como os nossos principais bancos brasileiros na lista gera evidente ceticismo.

E o fato é que as grandes corporações atuam no espaço planetário, onde não há governo, regulação ou regras do jogo. As maiores simplesmente não pagam impostos, como é o caso no Brasil com a isenção de imposto sobre lucros e dividendos distribuídos. (Lei de 1995). Os desastres ambientais e sociais estão se generalizando, a desigualdade atinge níveis explosivos, mas os bancos vão bem. Em paraísos fiscais temos 200 vezes mais recursos financeiros do que o a Conferência Mundial sobre o Clima decidiu, e mal consegue, levantar. Fraudes em medicamentos, alimentos que generalizam a obesidade, inclusive infantil, trambiques em emissões de veículos, agrotóxicos e antibióticos nos alimentos — é um clima de vale-tudo, pois a remuneração dos juros bancários e dos aplicadores financeiros como acionistas e outros fundos têm prioridade absoluta no direcionamento dos recursos.

A verdade é que a indignação está se generalizando. Os impactos econômicos, ambientais e sociais que as corporações provocam fazem parte das suas responsabilidades. Após 40 anos de neoliberalismo irresponsável, há novos caminhos? É saudável recebermos a notícia com ceticismo, a cosmética corporativa tem longa tradição. Mas também é fato que pelo jeito as corporações, e em particular os bancos, estão sentindo o calor da irritação social, enquanto os desastres se tornam cada vez mais visíveis, gerando protestos cada vez mais amplos.

As amplas movimentações, como o chamado do papa Francisco, as manifestações populares como hoje vemos se expandindo, e as proclamações defensivas do mundo corporativo – abrem espaço para um conjunto de aportes teóricos que reformulam a economia tal como tem sido formulada e ensinada, e que agora adquirem grande visibilidade. São visões comodamente classificadas de “heterodoxas”, mas que funcionam, contrariamente às visões ditas ortodoxas que essencialmente justificam os interesses corporativos, e nos levaram aos impasses atuais.


Notas

[1] “To embrace young people, beyond differences in belief and nationality, an agreement to change the current economy and humanize the economy of tomorrow: to make it more just, more sustainable and to give new prominence to excluded people.”  https://francescoeconomy.org/wp-content/uploads/2019/08/PR_EconomyOfFrancesco_08_2019.pdf A carta convocatória do Papa Francisco está em http://press.vatican.va/content/salastampa/it/bollettino/pubblico/2019/05/11/0399/00815.html

[2] Released: August 19, 2019 Updated with New Signatures: September 6, 2019 file:///C:/Users/Ladislau%20Dowbor/Downloads/BRT-Statement-on-the-Purpose-of-a-Corporation-with-Signatures-1.pdf

[3] Banking Principles – UNEP – 23 sept. 2019 – Ativos de 47tri$ https://www.unepfi.org/banking/bankingprinciples/
The Principles for Responsible Banking – See also: https://www.unepfi.org/news/industries/banking/130-banks-holding-usd-47-trillion-in-assets-commit-to-climate-action-and-sustainability/


Bibliografia

Bernstein, Jared  – New Economics: A Generation of Economists Helped Get Us into This Mess. A New Generation Can Get Us Out.https://www.vox.com/policy-and-politics/2019/9/13/20862607/economics-inequality-deregulation-wealth-taxes-policy

Brown, Ellen – Banking on the People – Democracy Collaborative, Washington, 2019

Business Round Table – Statement on the Purpose of a Corporation – file:///C:/Users/Ladislau%20Dowbor/Downloads/BRT-Statement-on-the-Purpose-of-a-Corporation-with-Signatures-1.pdf

Dowbor, Ladislau – A Era do Capital Improdutivo – Autonomia Literária, São Paulo, 2018 – http://dowbor.org/blog/wp-content/uploads/2018/11/Dowbor-_-A-ERA-DO-CAPITAL-IMPRODUTIVO.pdf

Forbes – 200 bilionários brasileiros – Edição Especial – São Paulo, 2019

Kelly, Marjorie and Ted Howard – The Making of a Democratic Economy – Berrett-Koehler Publishers, Oakland, 2019

Kliass, Paulo – Cheiro de mudanças no ar – Outras Palavras, 24/set. 2019 – https://outraspalavras.net/alemdamercadoria/economia-cheiro-de-mudanca-no-ar/

Mazzucato, Mariana – The Entrepreneurial State: debunking the public vs private myth – Public Affairs, New York, 2015

Pizzigati, Sam – The Case for a Maximum Wage – Polity Press, Cambridge, UK, 2018 – https://dowbor.org/2018/10/sam-pizzigati-the-case-for-a-maximum-wage-polity-press-cambridge-uk-2018-133p.html/

Raworth, Kate – Doughnut Economics: 7 ways to think like a 21st Century Economist – Chelsea Green Publishing, 2017 – (No Brasil: Economia Donut: 7 maneiras de pensar como um economista do século 21) http://dowbor.org/2017/08/kate-raworth-doughnut-economics-7-ways-to-think-like-a-21st-century-economist-chelsea-green-publishing-2017-isbn-a-economia-da-rosquinha-7-maneiras.html/

Roosevelt Institute – New Rules for the 21st Century – 2019 – https://dowbor.org/2019/04/roosevelt-institute-new-rules-for-the-21st-century-2019-77p.html/

Stiglitz, Joseph – Hora de enterrar um sistema fracassado – Outras Palavras, 6 de jun. 2019 https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/stiglitz-hora-de-enterrar-um-sistema-fracassado/
http://dowbor.org/2019/06/stiglitz-hora-de-enterrar-um-sistema-fracassado-outras-palavras-traducao-jun-2019-3p.html/

Stiglitz, Joseph – Crise Civilizatória – 4 Set. 2019 – https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/poderia-o-capitalismo-ser-menos-brutal/

Wallace-wells, David – The uninhabitable earth – Penguin Books, New York 2019 – https://dowbor.org/2019/07/david-wallace-wells-the-uninhabitable-earth-life-after-warming-tim-duggan-books-penguin-new-york-2019.html/  


[1] “To embrace young people, beyond differences in belief and nationality, an agreement to change the current economy and humanize the economy of tomorrow: to make it more just, more sustainable and to give new prominence to excluded people.”  https://francescoeconomy.org/wp-content/uploads/2019/08/PR_EconomyOfFrancesco_08_2019.pdf A carta convocatória do Papa Francisco está em http://press.vatican.va/content/salastampa/it/bollettino/pubblico/2019/05/11/0399/00815.html

[2] Released: August 19, 2019 Updated with New Signatures: September 6, 2019 file:///C:/Users/Ladislau%20Dowbor/Downloads/BRT-Statement-on-the-Purpose-of-a-Corporation-with-Signatures-1.pdf

[3] Banking Principles – UNEP – 23 sept. 2019 – Ativos de 47tri$ https://www.unepfi.org/banking/bankingprinciples/
The Principles for Responsible Banking – See also: https://www.unepfi.org/news/industries/banking/130-banks-holding-usd-47-trillion-in-assets-commit-to-climate-action-and-sustainability/

[4] Roosevelt Institute – New Rules for the 21st Century – 2019 – 77p. https://rooseveltinstitute.org/wp-content/uploads/2019/04/Roosevelt-Institute_2021-Report_Digital-copy.pdf

[5] Estou aqui traduzindo rent por renta, pois não é possível que não tenhamos a palavra correspondente em português. Temos sim rentismo, mas falamos que alguém “vive de rendas” quando se trata de rendimentos improdutivos. Em inglês “rent” e “income” são claramente diferentes, como também em francês, “rente” e “revenu”.

[6] Mariana Mazzucato – The Entrepreneurial State – Public Affairs, New York, 2015

[7] Para a resenha feita pelo próprio Monbiot, no Guardian, veja http://www.monbiot.com/2017/04/13/circle-of-life/

Fonte:

www.outraspalavras.net

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A economia de Francisco e a nova versão dos “Dez Mandamentos” para as elites https://observatoriodaevangelizacao.com/a-economia-de-francisco-e-a-nova-versao-dos-dez-mandamentos-para-as-elites/ https://observatoriodaevangelizacao.com/a-economia-de-francisco-e-a-nova-versao-dos-dez-mandamentos-para-as-elites/#comments Wed, 18 Sep 2019 02:40:25 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=31664 [Leia mais...]]]> Evangelizar, verdadeiramente, tem muitas implicações que não podem ser descuidadas. Dentre estas, está a necessidade conhecermos, com cada vez maior profundidade crítica, a realidade em que vivemos (suas positividades, limites e potencialidades). Discernir seus desafios e urgências e buscar, como resposta, ações transformadoras junto dos e com os pobres.

Para esta realidade, com tudo o que concretamente nela existe, a boa nova do Reino de Deus, com seus princípios estruturantes de fraternidade, solidariedade, justiça e paz, é anunciada e testemunhada. O papa Francisco tem convidado os cristãos a sairem da sacristia e se fazerem Igreja em saída, de mãos dadas com todos os que cuidam da vida com responsabilidade. Vale a pena, neste sentido, ler o provocante texto do prof. Ladislau Dowbor. Confira:

Uma das iniciativas importantes nesta era de crises políticas, econômicas e ambientais é a convocação, pelo Papa, de uma reunião em Assis, na Itália, nos dias 26 a 28 de março de 2020, para repensar o papel da economia no mundo. O nome adotado foi Economia de Francisco (saiba mais), honrando o santo, e apontando para uma visão mais generosa do mundo.

Considerando o comportamento das elites governamentais e corporativas atuais, tivemos a ideia de propor uma versão atualizada dos “Dez Mandamentos”, talvez uma inspiração para os poderosos.

Vatican News
Precisamos de uma política pública de mudança do comportamento individual

Os Dez Mandamentos: versão atualizada para elites

(Edição apócrifa revista e atualizada para o Terceiro Milênio)

Considerando que a obediência à primeira edição dos Dez Mandamentos tem sido aleatória, em particular no que se refere a Não Matarás e Não Roubarás, isso sem falar do Não Cobiçarás a Mulher do Próximo – desta vez, além de atualizar os conteúdos, houve a prudência de acrescentar a cada Mandamento uma nota explicativa, destinada às elites impenitentes.

I – Não comprarás o Estado

Resgatar a dimensão pública do Estado: Como podemos ter mecanismos reguladores que funcionem se é o dinheiro das corporações a regular que elege os reguladores? Se as agências que avaliam risco são pagas por quem cria o risco? Uma das propostas mais evidentes da última crise financeira, e que encontramos mencionada em quase todo o espectro político, é a necessidade de se reduzir a capacidade das corporações privadas ditarem as regras do jogo. A quantidade de leis aprovadas no sentido de reduzir impostos sobre transações financeiras, de reduzir a regulação do banco central, de autorizar os bancos a fazerem toda e qualquer operação, somado com o poder dos lobbies financeiros, tornam evidente a necessidade de se resgatar o poder regulador do estado, e para isto os políticos devem ser eleitos por pessoas de verdade, e não por pessoas jurídicas, que constituem ficções em termos de direitos humanos. Enquanto não tivermos financiamento público das campanhas, políticos que representem os interesses dos cidadãos, prevalecerão os interesses econômicos de curto prazo e a corrupção.

Veja regulamentação em O Estado Empreendedor.  

II – Não farás contas erradas

As contas têm de refletir os objetivos que visamos. O PIB indica a intensidade do uso do aparelho produtivo, mas não nos indica a utilidade do que se produz, para quem, e com que custos para o estoque de bens naturais de que o planeta dispõe. Contamos como aumento do PIB os desastres ambientais, o aumento de doenças, o cerceamento de acesso a bens livres, o comércio de drogas. O IDH já foi um imenso avanço, mas temos de evoluir para uma contabilidade integrada dos resultados efetivos dos nossos esforços, e particularmente da alocação de recursos financeiros, em função de um desenvolvimento que não seja apenas economicamente viável, mas também socialmente justo e ambientalmente sustentável. As metodologias existem, aplicadas parcialmente em diversos países, setores ou pesquisas. A adoção em todas as cidades de indicadores locais de qualidade de vida tornou-se hoje indispensável para que seja medido o que efetivamente interessa: o desenvolvimento sustentável, o resultado em termos de qualidade de vida da população. Muito mais do que o output, trata-se de medir o outcome.

A recente Economia Donut ajuda muito.

III – Não reduzirás o próximo à miséria

Algumas coisas não podem faltar a ninguém. A pobreza crítica é o drama maior, tanto pelo sofrimento que causa em si, como pela articulação com os dramas ambientais, o não acesso ao conhecimento, a deformação do perfil de produção que se desinteressa das necessidades dos que não têm capacidade aquisitiva. Os custos de se tirar da miséria e da pobreza a massa de pessoas que vivem situações dramáticas são ridículos, frente aos custos adicionais que a desigualdade gera. E são custos ridículos quando se considera os trilhões transferidos para grupos econômicos financeiros no quadro da última crise financeira. O benefício ético é imenso, pois é inaceitável morrerem de causas ridículas milhões de crianças por ano. O benefício de curto e médio prazo é grande, na medida em que os recursos direcionados à base da pirâmide dinamizam imediatamente a pequena e média empresa, agindo como processo anticíclico, como se tem constatado nas políticas sociais de muitos países. No mais longo prazo, será uma geração de crianças que terão sido alimentadas decentemente, o que se transforma em melhor aproveitamento escolar e maior produtividade na vida adulta. A teoria tão popular de que o pobre se acomoda se receber ajuda, é simplesmente desmentida pelos fatos: sair da miséria estimula, e o dinheiro é simplesmente mais útil onde é mais necessário. O dinheiro na mão do pobre vira consumo, produção e emprego. Na mão do rico vira dívida pública e conta no Panamá.

Veja País Estagnado: um retrato das desigualdades brasileiras, oxfam.

IV – Não privarás ninguém do direito de ganhar o seu pão

Universalizar a garantia do emprego é viável. Toda pessoa que queira ganhar o pão da sua família deve poder ter acesso ao trabalho. Num planeta onde há um mundo de coisas a fazer, inclusive para resgatar o meio ambiente, é absurdo o número de pessoas sem acesso a formas organizadas de produzir e gerar renda. Temos os recursos e os conhecimentos técnicos e organizacionais para assegurar, em cada vila ou cidade, acesso a um trabalho decente e socialmente útil. As experiências de Maharashtra na Índia demonstraram a sua viabilidade, como o mostram as numerosas experiências brasileiras, sem falar no New Deal da crise dos anos 1930. São opções onde todos ganham: o município melhora o saneamento básico, a moradia, a manutenção urbana, a policultura alimentar. As famílias passam a poder viver decentemente; e a sociedade passa a ser melhor estruturada e menos tensionada. Os gastos com seguro-desemprego se reduzem. No caso indiano, cada vila ou cidade é obrigada a ter um cadastro de iniciativas intensivas em mão de obra. Dinheiro emprestado ou criado desta forma representa investimento, melhoria de qualidade de vida, e dá excelente retorno. E argumento fundamental: assegura que todos tenham o seu lugar para participar na construção de um desenvolvimento sustentável. Na organização econômica, além do resultado produtivo, é essencial pensar no processo estruturador da sociedade, através da inclusão produtiva. A dimensão de geração de emprego de todas as iniciativas econômicas tem de se tornar critério central.

Veja o relatório da OIT Trabalhar para um futuro mais prometedor 

V – Não trabalharás mais de quarenta horas

Podemos trabalhar menos, e trabalharemos todos, com tempo para fazermos mais coisas interessantes na vida. A sub-utilização da força de trabalho é um problema planetário, ainda que desigual na sua gravidade. No Brasil, o setor informal situa-se na ordem de 40% da PEA. Uma imensa parte da nação “se vira” para sobreviver. Somando com 13 milhões de desempregados, são 50 milhões de pessoas. No lado dos empregos de ponta, as pessoas não vivem por excesso de carga de trabalho. Não se trata aqui de uma exigência de luxo: são incontáveis os suicídios nas empresas onde a corrida pela eficiência se tornou simplesmente desumana. O stress profissional está se tornando uma doença planetária, e a questão da qualidade de vida no trabalho passa a ocupar um espaço central. A redistribuição social da carga de trabalho torna-se hoje uma necessidade. As resistências são compreensíveis, mas a realidade é que com os avanços da tecnologia os processos produtivos tornam-se cada vez menos intensivos em mão de obra, e reduzir a jornada é uma questão de tempo. A redução da jornada não reduzirá o bem-estar ou a riqueza da população, e sim a deslocará para novos setores mais centrados no uso do tempo livre, com mais atividades de cultura e lazer. Não precisamos necessariamente de mais carros e de mais bonecas Barbie, precisamos sim de mais qualidade de vida.

Veja o livro O pão nosso de cada dia: processos produtivos no Brasil.

VI – Não organizarás a tua vida em função do dinheiro

A mudança de comportamento, de estilo de vida, não constitui um sacrifício, e sim um resgate do bom senso. Neste planeta de 7,8 bilhões de habitantes, com um aumento anual da ordem de 80 milhões, toda política de bom senso envolve também uma mudança de comportamento individual e da cultura do consumo. O respeito às normas ambientais, a moderação do consumo, o cuidado no endividamento, o uso inteligente dos meios de transporte, a generalização da reciclagem, a redução do desperdício – há um conjunto de formas de organização do nosso cotidiano que passa por uma mudança de valores e de atitudes frente aos desafios econômicos, sociais e ambientais. Hoje 95% dos domicílios no Brasil têm televisão, e o uso informativo inteligente deste e de outros meios de comunicação tornou-se fundamental. Frente aos esforços necessários para reequilibrar o planeta, não basta reduzir o martelar publicitário que apela para o consumismo desenfreado, é preciso generalizar as dimensões informativas dos meios de comunicação. A mídia científica praticamente desapareceu, os noticiários navegam no atrativo da criminalidade, quando precisamos vitalmente de uma população informada sobre os desafios reais que enfrentamos. Grande parte da mudança do comportamento individual depende de ações públicas: as pessoas não deixarão o carro em casa (ou deixarão de tê-lo) se não houver melhor transporte público, não farão reciclagem se não houver sistemas adequados de coleta. Precisamos de uma política pública de mudança do comportamento individual.

Veja A terra inabitável.

VII –  Não ganharás dinheiro com o dinheiro dos outros

Racionalizar os sistemas de intermediação financeira é viável. A alocação final dos recursos financeiros deixou de ser organizada em função dos usos finais de estímulo e orientação de atividades econômicas e sociais, para obedecer às finalidades dos próprios intermediários financeiros. A atividade de crédito é sempre uma atividade pública, seja no quadro das instituições públicas, seja no quadro dos bancos privados que trabalham com dinheiro do público, e que para tanto precisam de uma carta-patente que os autoriza a ganhar dinheiro com dinheiro dos outros. A crise financeira de 2008 no plano internacional, e a crise brasileira a partir de 2014 demonstraram com clareza o caos que gera a ausência de mecanismos confiáveis de regulação no setor. O dinheiro não é mais produtivo onde rende mais para o intermediário: devemos buscar a produtividade sistêmica de um recurso que é público. A intermediação financeira é um meio, não é um fim. A intermediação financeira com juros extorsivos apenas gera uma pirâmide especulativa e insegurança, além de desorganizar os mercados e as políticas econômicas.  

Leia A era do capital improdutivo.

VIII – Não tributarás as ações que mais nos ajudam

A filosofia do imposto, de quem se cobra, e a quem se aloca, precisa ser revista. Uma política tributária equilibrada na cobrança, e reorientada na aplicação dos recursos, constitui um dos instrumentos fundamentais de que dispomos, sobretudo porque pode ser promovida por mecanismos democráticos. O eixo central não está na redução dos impostos, e sim na cobrança socialmente mais justa e na alocação mais produtiva em termos sociais e ambientais. A taxação das transações especulativas (nacionais ou internacionais) deverá gerar fundos para financiar uma série de políticas essenciais para o reequilíbrio social e ambiental. O imposto sobre grandes fortunas é hoje essencial para reduzir o poder político das dinastias econômicas (1% das famílias do planeta detém mais riqueza do que os 99% seguintes). O imposto sobre a herança é fundamental para dar chances a partilhas mais equilibradas para as sucessivas gerações. É importante lembrar que as grandes fortunas do planeta em geral estão vinculadas não a um acréscimo de capacidades produtivas, e sim à aquisição maior de empresas por um só grupo, gerando uma pirâmide cada vez mais instável e menos governável de propriedades cruzadas, impérios onde a grande luta é pelo controle do poder financeiro, político e midiático, e a apropriação de recursos naturais. O sistema tributário tem de ser reformulado no sentido anticíclico, privilegiando atividades produtivas e penalizando as especulativas; no sentido do maior equilíbrio social ao ser fortemente progressivo; e no sentido de proteção ambiental ao taxar emissões tóxicas ou geradoras de mudança climática, bem como o uso de recursos naturais não renováveis. O poder redistributivo do Estado é grande, tanto pelas políticas que executa – por exemplo as políticas de saúde, lazer, saneamento e outras infra-estruturas sociais que melhoram o nível de consumo coletivo – como pelas que pode fomentar, como opções energéticas, inclusão digital e assim por diante. A democratização aqui é fundamental. A apropriação dos mecanismos decisórios sobre a alocação de recursos públicos está no centro dos processos de corrupção, envolvendo as grandes bancadas corporativas, por sua vez ancoradas no financiamento privado das campanhas.

Leia Democracia Econômica.

IX – Não privarás o próximo do direito ao conhecimento

Travar o acesso ao conhecimento e às tecnologias sustentáveis não faz o mínimo sentido. A participação efetiva das populações nos processos de desenvolvimento sustentável envolve um denso sistema de acesso público e gratuito à informação necessária. A conectividade planetária que as novas tecnologias permitem constitui uma ampla via de acesso direto. O custo-benefício da inclusão digital generalizada é simplesmente imbatível, pois é um programa que desonera as instâncias administrativas superiores, na medida em que as comunidades com acesso à informação se tornam sujeitos do seu próprio desenvolvimento. A rapidez da apropriação deste tipo de tecnologia até nas regiões mais pobres se constata na propagação do celular e das plataformas colaborativas. O impacto produtivo é imenso para os pequenos produtores que passam a ter acesso direto a diversos mercados tanto de insumos como de venda, escapando aos diversos sistemas de atravessadores comerciais e financeiros. A inclusão digital generalizada permite destravar um conjunto de processos de mudança que hoje se tornam indispensáveis. A criação de redes de núcleos de fomento tecnológico online, com ampla capilaridade, pode se inspirar da experiência da Índia, onde foram criados núcleos em praticamente todas as vilas do país. É particularmente importante a flexibilização de patentes no sentido de assegurar ao conjunto da população mundial o acesso às informações indispensáveis para as mudanças tecnológicas exigidas por um desenvolvimento sustentável.

Leia  A sociedade de custo marginal zero .

X – Não controlarás a palavra do próximo

Democratizar a comunicação tornou-se essencial. A comunicação é uma das áreas que mais explodiu em termos de peso relativo nas transformações da sociedade. Estamos em permanência cercados de mensagens. As nossas crianças passam horas submetidas à publicidade ostensiva ou disfarçada. A indústria da comunicação, com sua fantástica concentração internacional e nacional – e a sua crescente interação entre os dois níveis – gerou uma máquina de fabricar estilos de vida, um consumismo obsessivo que reforça o elitismo, as desigualdades, o desperdício de recursos como símbolo de sucesso. O espectro eletromagnético em que estas mensagens navegam é público, e o acesso a uma informação inteligente e gratuita para todos é simplesmente viável. Expandindo gradualmente as inúmeras formas alternativas de mídia que surgem por toda parte, há como introduzir uma cultura nova, outras visões de mundo, cultura diversificada e não pasteurizada, pluralismo em vez de fundamentalismos religiosos ou comerciais.

Leia IHUOutras PalavrasCarta MaiorDiplôGGNDiálogos do SulBrasil 247GuardianIntercept e outras tantas fontes confiáveis de informação.

O copyright da presente edição revista e ampliada dos Dez Mandamentos é aberto, na linha do Creative Commons. Sendo o Alto Secretariado hoje bem equipado, dispondo das mídias sociais mais avançadas, os que por acaso tenham dificuldades técnicas na aplicação da presente versão dos Mandamentos, poderão recorrer a textos de Exegese no blog http:///dowbor.org.

Ignacy Sachs, Carlos Lopes e Ladislau Dowbor expressaram aqui transcrições pessoais, e as pessoas que encontrem dificuldades políticas na aplicação dos presentes Mandamentos deverão dirigir as suas reclamações às Instâncias Superiores. Sim, as leituras aqui recomendadas mencionam apenas os títulos, sem os autores. Na era da internet, procure, e acharás.  

PS: Respeitarás a mulher, e não apenas a do próximo.

*Ladislau Dowbor é economista, fundador e colaborador da Diálogos do Sul

(os grifos são nossos)

Fonte:

www.dialogosdosul.operamundi.uol.com.br

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https://observatoriodaevangelizacao.com/a-economia-de-francisco-e-a-nova-versao-dos-dez-mandamentos-para-as-elites/feed/ 1 31664
Para aprofundar a vivência da CF 2019: “Utopia para realistas: como construir um mundo melhor” https://observatoriodaevangelizacao.com/para-aprofundar-a-vivencia-da-cf-2019-utopia-para-realistas-como-construir-um-mundo-melhor/ Wed, 20 Mar 2019 19:55:42 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=30173 [Leia mais...]]]> A missão que brota da prática libertadora de Jesus e do anúncio-testemunho do Evangelho do Reino de Deus implica o compromisso com a libertação transformação das pessoas pela experiência da gratuidade do amor de Deus por nós e com a participação na construção de um mundo melhor para todos.

Visitando o blog do professor Ladislau Dowbor, autor de A era do capital improdutivo, (este e muitos outros livros do autor totalmente disponibilizados em pdf), deparamos com um convite muito especial, um texto significativo com uma sugestão de leitura criativa e muito interessante. Vale a pena conferir:

BREGMAN, Rutger. Utopia para realistas: como construir um mundo melhor. Rio de Janeiro: Sextante, 2018

O sucesso mundial do livro do Bregman se deve à forma prática e direta de tratar os nossos grandes dilemas. O que fazer com a desigualdade, com a jornada de trabalho, com as migrações, com o sistema financeiro que desarticula os processos econômicos, sociais e políticos. Enfim, vai direto para onde dói o calo e mostra como, no essencial, sabemos muito bem o que fazer, temos os meios, mas nos envolvemos desnecessariamente em inventar narrativas para evitar de mexer no absurdo que nos cerca. Eu tenho chamado isso de impotência institucional. Mas Bregman não apenas aponta os problemas chave e os rumos, como escreve de maneira prazerosa e direta. Em suma, é um ótimo livro, particularmente para os que se veem atolados em preconceitos e dramas ideológicos.

O caminho concreto de combate a pobreza

Pobreza, explica ele, é essencialmente falta de dinheiro. A solução não exige teorias particularmente sofisticadas: para resolver a pobreza, temos de dar dinheiro aos pobres. Considerando as bobagens escritas por tantos economistas, só esta brilhante análise e interessante solução mereceriam o chamado Nobel de economia. A verdade é que hoje já temos inúmeras experiências exitosas, aliás muito claramente descritas e sintetizadas no livro, mostrando que os pobres, ao receber um pouco de dinheiro e a segurança correspondente, não se encostam, não enchem a cara, não se afundam na droga. Pelo contrário, saem do desespero, recuperam a sua capacidade de pensar no próprio futuro, e passam a contribuir produtivamente para a sociedade de vez de custar. O cálculo simples de quanto custa a pobreza, e de quanto custa financiar a renda básica, mostra que não se trata de “dar dinheiro a quem não merece”, mas de um ótimo investimento social e econômico.(181) “Erradicar a pobreza nos Estados Unidos custaria apenas 175 bilhões de dólares, menos de 1% do PIB. ” (43)

Bregman mostra igualmente o imenso custo financeiro e burocrático de se montar amplas burocracias para vigiar cada programa de apoio aos pobres, privando eles de qualquer sentimento de iniciativa, do direito à suas opções, de que são donos e protagonistas das suas vidas. Em vez de burocracias, cobertas de argumentos de elevada natureza ética de que se trata de proteger os próprios pobres, trata-se de dar-lhes o que merecem, pois não são eles que geram a pobreza e a desigualdade. Naturalmente, com a fragilização generalizada não só do emprego formal, mas das relações de trabalho em geral, trata-se de simples bom senso: temos o dinheiro, formas práticas e controladas de transferência, o impacto humano e social é extremamente positivo, e o impacto econômico é de redução de custos (170). Precisa fazer um desenho, para os que acham que os pobres são “vagabundos”, ou, como disse Margareth Thatcher, pessoas “sem caráter”? A burrice, aqui, está no andar de cima.

“Formulários, entrevistas, checagens, apelos, avaliações, exames, consultas e depois mais formulários – todo pedido de assistência tem os próprios protocolos degradantes e desperdício de dinheiro… Isso não é uma guerra contra a pobreza: é uma guerra contra os pobres. ” Tudo isso baseado numa falácia: “A falácia de que a vida sem pobreza é um privilégio que só pode ser atingido com muito trabalho e não um direito que todos merecemos ter.” (86)

O sentido do trabalho e as vantagens dos programas de redução da jornada de trabalho

Bregman apoia a sua visão nas profundas mudanças tecnológicas, nas polarizações correspondentes e na fragilização do acesso à renda por meio do emprego. As soluções vão no sentido da redução da jornada de trabalho: “O objetivo de uma jornada de trabalho semanal mais curta não é apenas ficarmos em casa sem fazer nada, mas sim passarmos mais tempo fazendo as coisas que importam de verdade para nós. No fim, não são o mercado nem a tecnologia que decidem o que tem valor real, mas sim a sociedade. Se quisermos que este século torne todos nós mais ricos, então temos de nos livrar do dogma de que todo tipo de trabalho é significativo. E, enquanto isso, vamos também nos livrar da falácia de que um salário mais alto automaticamente reflete o valor social desse trabalho. Então poderemos compreender que, em termos de criação de valor não vale a pena, de fato, trabalhar em banco.” (148)

A referência ao trabalho em bancos se apoia aqui nas análises de David Graeber, autor do influente estudo “Bullshit Jobs”. Os lixeiros, escreve Bregman, fazem um trabalho essencial para nós, mas “a dura realidade é que um número cada vez maior de pessoas tem empregos que não fazem muita falta à população. Se parassem de trabalhar de repente, o mundo não se tornaria mais pobre, mais feio ou pior em qualquer sentido. Como os operadores da bolsa em Wall Street, que forram seus bolsos às custas do fundo de pensão alheio. Ou advogados astutos que conseguem arrastar um processo corporativo até o fim dos dias. Ou mesmo o publicitário brilhante que cria o slogan do ano e provoca a falência dos competidores. Em vez de criarem riqueza, esses empregos, na maior parte, apenas a transferem de uns para outros…Embora os bancos hoje tenham se tornado muito grandes, a maior parte do que fazem é simplesmente mover riqueza ou até mesmo destruí-la. Em vez de fazer o bolo crescer, a expansão explosiva do setor bancário aumentou a fatia que serve a si mesmo.”(34)

Pesquisa recente estima que “37% dos trabalhadores britânicos acham que têm um trabalho inútil” (142). Em geral são os mais bem pagos. Se é por questão de merecimento, é tempo de invertermos o raciocínio. “Enquanto os políticos não param de discursar sobre a necessidade de reduzir a máquina do governo, permanecem em silêncio quanto ao número de empregos inúteis que continua a crescer.” Porque é que conseguimos nos convencer de que o mundo de burocratas inúteis que pagamos existem essencialmente no setor público? E a contabilidade defasada que constitui o PIB apresenta custos como produto: “O banqueiro que vende indiscriminadamente o máximo de hipotecas e derivativos para faturar milhões em bônus contribui mais para o PIB hoje do que uma escola repleta de professores ou uma fábrica de automóveis cheia de mecânicos… A ideia de que o PIB ainda serve como medida precisa do bem-estar social é um dos mitos mais disseminados do nosso tempo.”(94)

Encontramos pelo texto afora análises muito realistas sobre temas chave, em particular desbancando mitos. E com muito bom humor, como a constatação de que “francamente, quase não existe outro país no mundo em que o Sonho Americano seja mais difícil de se realizar do que nos Estados Unidos.”(62) Mais do que tratar de utopia, na realidade, o livro sistematiza o óbvio, desbancando preconceitos ou falsas verdades. Uma ótima ferramenta de trabalho para todos nós, em termos de alternativas econômicas e sociais, e na realidade também boa literatura. Nada de economês. Acrescento que sobre cada um dos temas-chave que trata, Bregman traz excelentes fontes para as pesquisas originais que sustentam os argumentos. 

Vale muito a pena também assistir alguns minutos de entrevistas do Bregman, que causaram impacto internacional. Em Davos, onde foi chamado na linha de “também ouvimos pessoas progressitas”, puseram ele numa reunião paralela sobre como ajudar os pobres. Em vez de se gabar com filantropia, disse ele em resumo, paguem os seus impostos. A sua fala, gravada em paralelo, gerou milhões de acessos. Com a repercussão internacional, a Fox, para mostrar espírito esportivo, o chamou para uma entrevista, dando lugar a um bate-boca extremamente divertido, também com grande impacto na internet, já que a Fox cortou, mas ele gravou. Francamente, com Rutger Bergman, temos um bom aliado. Que aliás não hesita em apresentar o outro lado: “De acordo com o escritor inglês Arthur Young (1741-1820), somente um idiota não sabe que as classes baixas devem ser mantidas pobres, do contrário elas nunca serão laboriosas” (63). Aqui algo que reflete em que século andam as nossas próprias ‘classes altas’.

Confira a entrevista de Bergman na FoxNews aqui:

https://www.theguardian.com/society/2019/feb/20/historian-who-confronted-davos-billionaires-leaks-tucker-carlson-rant

E, também, sua participação em Davos:

https://www.theguardian.com/business/video/2019/jan/30/this-is-not-rocket-science-rutger-bregman-tells-davos-to-talk-about-tax-video

PS: sobre os absurdos do PIB, veja http://dowbor.org/2019/02/dowbor-l-alem-do-pib-medir-o-que-importa-e-de-forma-compreensivel-2019-14p.html/

Fonte:

 dowbor.org

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30173
O poder do sistema financeiro e a insustentabilidade das desigualdades sociais https://observatoriodaevangelizacao.com/o-poder-do-sistema-financeiro-e-a-insustentabilidade-das-desigualdades-sociais/ Thu, 03 May 2018 10:00:14 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=27941 [Leia mais...]]]> Evangelizar, por ser o anúncio-testemunho de uma boa nova, implica profunda reflexão crítica sobre a realidade em que vivemos: discernir os sinais de vida e de morte, em busca de caminhos a seguir. Assim como Jesus de Nazaré e, antes dele, os profetas de Israel, perceberam a necessidade incontornável de se fazer críticas ao sistema sociopolítico, econômico, cultural e religioso como parte integrante da missão, hoje, nesse mundo com tantas desigualdades sociais e ameaças ecológicas, não pode ser diferente.

Para se ter maior clareza dos tempos sombrios em que  vivemos, com a palavra o prof. Ladislau Dowbor:

Entrevista especial com Ladislau Dowbor

 

Por: Entrevista Ricardo Machado | Edição Patricia Fachin

 

Ladislau Dowbor é doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia, professor titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP e da Universidade Metodista de São Paulo – Umesp. Além disso, é consultor de diversas agências das Nações Unidas.

Esta entrevista foi concedida pessoalmente à IHU On-Line quando esteve no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, lançando o seu novo livro, A era do capital improdutivo. A nova arquitetura do poder: dominação financeira, sequestro da democracia e destruição do planeta (São Paulo: Outras Palavras & Autonomia Literária, 2017).

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Confira a entrevista:

1. Como o senhor analisa a atual conjuntura econômica brasileira?

Ladislau Dowbor — No conjunto, considero que a política, no Brasil, foi assumida por um grupo de pessoas, ou seja, de políticos e por um segmento do judiciário apoiado pela mídia, o que em outros países seria considerado uma “banda criminosa”. Trata-se de um movimento, de um lado, de rapina sobre o país e, de outro lado, de proteção de caráter mafioso, em que um encobre o outro. Considero que é um processo golpista, que pode ter se cercado de firulas legais, mas quando se tem um governo com aprovação na ordem de 3 a 5%, que está fazendo coisas que são negativas para o país, é golpe.

Eu trabalho mais a dimensão do travamento econômico, que obedece a um escalonamento interessante. A Constituição de 1988, com um movimento pendular, teve uma visão um pouco mais progressista, mas a partir daí houve um desmonte disso com a quebra da inflação. Em 1995 foi aprovada uma lei abolindo o imposto sobre lucros e dividendos, o que é absolutamente escandaloso, e, ao mesmo tempo, foi aprovada a lei que criou a Selic, que passou a ser aplicada a partir de 1º julho de 1996, em que a dívida pública remunera as instituições financeiras que compram títulos da dívida pública na ordem de 25% ao ano. Pagamos 25% ao mês sobre o dinheiro que é dos depositantes — internacionalmente esse juro é da ordem de 0,5%, é de 0% no Japão e 0,75% na Europa. Essas mudanças incentivaram as aplicações financeiras em títulos do governo, e os que lucraram com esse tipo de operação não pagam impostos por causa da lei de lucros e dividendos.

Em 1997 foi aprovada a lei que autorizava o financiamento corporativo das campanhas e isso gerou um Congresso que passou a ser conivente e solidário com esse processo. Em 1999 foi aprovada a lei que liquidava o artigo 192 da Constituição e limitava os juros a 12% mais inflação, de autoria de José Serra. Com isso, os investidores puderam expandir as taxas de juros em todas as áreas que tocam diretamente, em particular, pequenas e médias empresas, a pessoa física e jurídica. Isso foi se acumulando, e em 2002 Lula leu a Carta aos Brasileiros, na qual disse que queria ser eleito e iria respeitar os contratos, ou seja, ele estava sinalizando que não iria mexer no sistema financeiro. Mas, mesmo com poucos recursos, ele conseguiu fazer uma revolução, em termos sociais, extremamente positiva. O Banco Mundial avalia o período de 2003 a 2013 como a “Década Dourada”.

No entanto, na “Década Dourada” os juros começaram a pesar e as pessoas começaram a ficar endividadas. Os últimos dados indicam que 61 milhões de brasileiros adultos estão enforcados com as dívidas, não estão conseguindo pagá-las, quem dirá comprar coisas novas. A capacidade de compra das famílias foi travada, elas pararam de comprar, e isso gerou uma crise na área empresarial. Quando não tem para quem vender, a área empresarial para de produzir e desemprega, o que diminui ainda mais a capacidade de compra das famílias.

Em 2017 o estoque da dívida de pessoa jurídica e pessoa física ficou em torno de 3,1 trilhões de reais, isto é, 50% do PIB. Mas pagamos um juro médio de 30% — na Europa seria 3% —, já incluindo o crédito direcionado, como o da Minha Casa Minha Vida. Se considerarmos o juro livre, que é aquele dinheiro que pegamos no banco, a média de juros para pessoa física é de 68%. Nenhuma economia pode funcionar assim — 3,1 trilhões pagando 30% são 15% do PIB que são transformados em juros. Além disso, 7% do PIB está sendo extraído da Selic: se considerarmos os juros sobre a dívida de pessoa física e pessoa jurídica e somarmos a dívida sobre os títulos públicos, mais 7%, temos 22%. Esse é o fluxo financeiro integrado. Acrescente-se a isso que, em termos tributários, esse tipo de lucro é isento de pagamento de impostos e considere que grande parte desse dinheiro vai para o exterior, onde tem cerca de 520 bilhões de dólares, o equivalente a 1,7 trilhão de reais, ou seja, aproximadamente 28% do PIB. Portanto, os investidores não só não reinvestem, como queria a Constituição, como sequer pagam impostos.

 

2. Por meio de qual operação financeira se leva esse dinheiro para fora do país?

Ladislau Dowbor — São diversas operações. No Brasil há uma leniência absolutamente fenomenal sobre esse problema. Os melhores dados que temos são do Global Financial Integrity – GFI, que fez o levantamento do fluxo através de preço de transferência, que basicamente trata de sobrefaturamento e subfaturamento, ou seja, de fraude em notas fiscais. As fraudes em notas fiscais transferem para fora do país cerca de 2% do PIB, segundo a avaliação do GFI no ano de 2016. O dinheiro, hoje, é um sinal magnético; todos esses bancos que estão no país — Santander, HSBC, entre outros — estão ligados a paraísos fiscais e têm departamentos que chamam de “otimização tributária”, o que facilita esses processos de evasão. Não temos como travar um processo desses.

Quando temos esse tipo de dreno da economia, as famílias não podem comprar, as empresas não têm como investir e o Estado não tem como financiar nem políticas sociais, nem investimentos em infraestrutura. De 2012 para 2013, o governo Dilma constatou que a economia estava sendo paralisada através do sistema financeiro. Com isso o governo decidiu enfrentar o sistema financeiro: reduziu a taxa Selic, de 14% para 7,25%. Ou seja, reduziu uma imensa “mama” de quem ganhava recurso apenas aplicando na taxa Selic sem precisar produzir. E muitas empresas pararam de produzir, dizendo que rendia muito mais aplicar em títulos do governo. Nos bancos públicos em que o governo Dilma podia intervir — Caixa Econômica Federal, Banco do Brasil —, foram baixadas as taxas de juros para as empresas e para as pessoas físicas. Isso fez com que muitas pessoas começassem a fugir dos bancos privados, migrando para os bancos públicos. Isso não prestou, porque sinalizou uma quebra do pacto.

 

3. Esse é um embrião do golpe? Sinaliza também uma quebra do pacto feito por Lula e por Henrique Meirelles em 2002?

Ladislau Dowbor — Exatamente. A partir de meados de 2013 não se tem mais governo; Dilma baixou esses juros, mas não tem mais governo. Com isso, o que a Dilma fez? Voltou a subir a Selic para 14%. É pornográfico.

O Congresso e o Meirelles dizem que baixaram a inflação, mas claro que a inflação baixou, porque quando se quebra o aparelho produtivo, não tem como vender. Se as empresas não têm para quem vender, elas paralisam. As taxas de juros para as empresas são surrealistas, porque enquanto na Europa e nos EUA essas taxas estão na faixa de 2% ao ano, aqui estão na faixa de 20%, 30%, 40%, segundo o tipo de produto. Então, se as empresas têm a opção de colocar o dinheiro na taxa Selic, para que elas vão “se matar para produzir” se podem fazer aplicação financeira?

No meu livro analiso como isso está se dando em nível internacional, porque por trás de tudo isso temos o fato de que, nas últimas décadas, a financeirização se tornou mundial. A partir daí começa a ficar claro por que, no mundo todo, oito famílias possuem mais riqueza do que a metade mais pobre da população mundial. No Brasil, segundo relatório recente da Oxfam, seis famílias têm mais do que a metade mais pobre e que 5% têm mais que os 95%.

É importante citar que o desajuste é estrutural, não é momentâneo. Quando pegamos o fluxo financeiro integrado, pegamos por quem vai fazer funcionar a economia: o primeiro motor é o consumo das famílias. Se isso quebra, trava o outro motor, que são as empresas. E, como foi tirada do Estado a capacidade de redinamizar a economia com políticas anticíclicas através de investimentos e de políticas sociais, simplesmente se “amarrou” o país.

O que funcionou nos Estados Unidos em tempo de crise? O New Deal, isto é, redinamizar na base, reforçar a demanda, que, por sua vez, gera atividade empresarial, que gera impostos, e a geração de impostos cobre o que o governo gastou para redinamizar a economia. A reconstrução da Europa também se deu assim.

4. Em seu novo livro – A era do capital improdutivo – o senhor traz três elementos chaves para pensar as sociedades contemporâneas. Brevemente, o senhor poderia explicar como esses três eixos se relacionam e geram esse problema estrutural?

Ladislau Dowbor — No primeiro capítulo especifico isso, e essa parte é um desafio comum, pois não ocorre só no Brasil; é um desafio geral. Do lado ambiental temos o clima, que é um desastre planetário, porque a humanidade tem muita dificuldade de enfrentar problemas globais de longo prazo e de visão sistêmica. Há contaminação e poluição dos oceanos, rios, lagos etc. O Golfo do México, por exemplo, está morto, o mar Báltico está morto, uma parte do Mediterrâneo está morta, e por aí vai. Além disso, há a sobrepesca dos oceanos, que está liquidando com os peixes. As pesquisas do WWF de 1970 a 2010 mostram que em 40 anos nós destruímos 52% da fauna do planeta. Saíram pesquisas na Alemanha sobre a eliminação de insetos pelo uso de produtos químicos, sendo que os insetos são fundamentais para a polinização.

Outra dimensão é a desigualdade, que está atingindo níveis altos. Esse negócio de 1% da população ser mais rica que os 99% restantes é absolutamente insustentável, não só no plano ético, mas em particular no plano ético, porque essas grandes fortunas não são produtoras, mas sim extratoras do capital. De certa maneira, por mais que xingássemos o capitalista que criou uma fábrica de sapatos e explorava seus trabalhadores, pelo menos ele estava gerando emprego, produzindo sapatos e pagando seus impostos. Os investidores, ao contrário, não pagam impostos e não estão produzindo; apenas extraindo.

Na realidade, a desigualdade tem a dimensão ética, pois não podemos deixar 800 milhões de pessoas morrendo de fome, e tem a dimensão política, porque nenhuma economia consegue funcionar dessa forma. A desigualdade e a destruição do planeta significam que estamos destruindo o planeta por causa de uma minoria. Sabemos, com base em dados e estatísticas, quais são os problemas ambientais que temos, que precisamos mudar a matriz de transporte e a matriz energética, que temos que organizar a inclusão produtiva e a renda básica universal na base social e sabemos onde estão os recursos — eles estão nos paraísos fiscais. Em 2012, nos paraísos fiscais, havia entre 21 e 32 trilhões de dólares, quando o PIB mundial era de 73 trilhões, isto é, ¼ do PIB.

O imenso Acordo de Paris garantia levantar 100 bilhões de dólares ao ano para enfrentar a dinâmica ambiental, mas o que está parado nos paraísos fiscais dá duzentas vezes mais esse valor. Foram feitas reuniões em Nova Iorque, sobre a Agenda 2030, e em Paris, sobre as mudanças climáticas, e também a reunião de Adis Abeba, que é menos falada porque foi um desastre. O objetivo desta última era definir como iríamos financiar tanto as metas de Paris quanto as de Nova Iorque. Esses recursos apropriados pelo sistema financeiro, que não são produtivos, têm que ser reorientados para financiar a mudança na forma como tratamos a natureza e o planeta e a forma como tratamos nossos cidadãos. Isso é interessante não só porque é bom para o planeta e para a humanidade, mas porque em termos econômicos funciona. Quando a Coreia do Sul investiu 960 milhões para melhorar a tecnologia do transporte coletivo nas grandes cidades, não só gerou um monte de pesquisas tecnológicas, como também gerou um monte de empregos e o barateamento do transporte. Com isso temos o chamado “círculo virtual positivo”.

O básico do problema é que o sistema financeiro se tornou extremamente poderoso. A popularidade do livro do Piketty demonstrou cabalmente que, enquanto se remunera a 7% a aplicação financeira, que não produz nada, o PIB cresce a 2% ou 2,5%, ou seja, o dinheiro vai para onde rende mais. Quando Martin Wolf, economista-chefe do Financial Times — um cara de imensa visibilidade mundial para a área financeira —, disse que esse sistema perdeu sua legitimidade, temos que começar a pensar.

 

5. Como o senhor observa o cenário para as eleições do ano que vem? O que podemos esperar?

Ladislau Dowbor — Eu, francamente, acredito que a única personalidade que poderia reunir forças sociais suficientes para gerar uma transformação positiva ainda é o ex-presidente Lula.

 

6. Apesar das controvérsias?

Ladislau Dowbor — As controvérsias são criadas. Eu conheço o Lula há mais de 30 anos, do tempo em que nos reuníamos com Paulo Freire, Florestan Fernandes, Paul Singer etc. Dizer que Lula tem apartamento lá ou aqui é ridículo, inclusive em termos de montantes. Se tivessem encontrado alguma coisa, já se saberia; a dimensão jurídica já é uma armação. Com as armações que se fazem em termos políticos, em termos do judiciário, achar que não há armação contra o Lula, francamente! Tudo isso aqui virou uma zona política que gerou uma imensa insegurança e gerou algo que, ao meu ver, é uma das coisas mais perigosas e mais críticas, que é a convicção de boa parte da sociedade de que esse negócio de política não funciona, de que o cinismo político é geral. Isso pode ser catastrófico, porque abre as portas para o fascismo com muita facilidade. O resgate das dimensões democráticas é vital. Quando viajo — viajo muito para o interior e trabalho muito com desenvolvimento local —, vejo que para grande parte da população existe a memória de que em 10 anos foram feitos imensos avanços. O brasileiro, de 1991 a 2010, ganhou nove anos a mais de vida. Essa memória está dispersa em 5.580 municípios; isso não gera força política, mas existe, e essa memória tem uma grande força.

Eu sou suficientemente realista para saber que, no caos que foi criado, ninguém pode prever os resultados da próxima eleição. Se viesse uma proposta nova, mas não, estão arrancando pedaços de quem pode e votando para proteger uns aos outros, porque amanhã é a sorte do outro. Qualquer previsão é irresponsável; simplesmente não sabemos. Tem uma frase muita simpática do José Ortega y Gasset, filósofo, que diz: “No sabemos lo que pasa y es exactamente eso lo que pasa”.

 

(Entrevista concedida ao IHU On-Line em novembro de 2017)

(Os grifos são nossos)

 

Assista a conferência na íntegra

[youtube https://www.youtube.com/watch?v=0vHoVZ6b4io]

 

Fonte:

IHU

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