Johan Konings – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com Wed, 03 Jul 2019 13:35:42 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.4 https://i0.wp.com/observatoriodaevangelizacao.com/wp-content/uploads/2024/04/cropped-logo.png?fit=32%2C32&ssl=1 Johan Konings – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com 32 32 232225030 O desafio de cuidar da dupla fidelidade, à Palavra e ao destinatário de hoje. Por Johan Konings https://observatoriodaevangelizacao.com/a-palavra-e-o-destinatario-por-johan-konings/ Wed, 03 Jul 2019 13:35:42 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=30797 [Leia mais...]]]> A Arquidiocese de Belo Horizonte, ao viver o seu Projeto de Evangelização: “Proclamar a Palavra” tem procurado, através de várias iniciativas, despertar em seus membros – ministros ordenados, leigos e leigas, pastorais, movimentos e instancias várias – a necessidade de refletir sobre e concretizar a centralidade da Palavra de Deus em suas ações. É preciso, oportuna e inoportunamente, nos lugares vários que estamos, proclamar e testemunhar a Palavra. A Palavra de Deus deve presidir todas as nossas ações.

Neste horizonte, a Igreja arquidiocesana realizou no dia 19 de maio de 2019 a assembleia do clero e, para a mesma, priorizou como pauta o contemplar a dimensão da Palavra de Deus. Foi uma oportunidade de dá início ao necessário processo avaliativo do seu Projeto de Evangelização, desejando escutar o clero quanto à vivência do mesmo em suas mais diversificadas ações evangelizadoras e na dinâmica da vida cristã vida em rede de comunidades de fé e partilha de vida.

Neste processo de avaliação, ofereceu-se ao clero a oportunidade, dele mesmo, inteirar-se melhor e aprofundar o cultivo da intimidade da Palavra. No processo de preparação da assembleia, o biblista Pe. Johan Konings foi o assessor. E ele compartilhou a seguinte reflexão: A Palavra e o destinatário – “Não sufoque a Palavra pelas palavras”.

Segundo Konings, o que importa no processo de comunicação de um texto é o destinatário. O que realmente é decisivo e, portanto, importa não é o que o remetente quer dizer ou o que diz, mas o que o destinatário entende de fato do que lhe foi anunciado. Cabe ao remetente cuidar do conteúdo e do modo como este é transmitido para que o destinatário receba da melhor maneira possível a mensagem.

Esta lei da comunicação acontece igualmente em relação ao anúncio da “Palavra de Deus”. Portanto, é preciso eliminar, quanto possível, os ruídos da comunicação… O desafio é, na busca de fidelidade à Palavra de Deus, conhecer e cuidar para anunciá-la da melhor forma possível para que a mensagem da Palavra chegue ao destinatário, o povo de Deus, e toque o mais profundo da vida das pessoas.

Leia, a seguir, o texto na íntegra:

A Palavra e o destinatário                              

Johan Konings

“Não sufocar a Palavra pelas palavras.”

Apenas uma breve meditação sobre a Palavra e seu destinatário.

O que se comunica através de um texto ou discurso é o que o destinatário capta. Na compreensão, o destinatário é quem manda, não o remetente! Não adianta dizer “eu quis dizer”, o destinatário tem que entender o que você quis dizer, senão não funcionou a comunicação que você queria. Possivelmente funcionou outra, a que você não queria…

Pois bem, em se tratando daquilo que se chama “a palavra de Deus” funciona essa mesma lei da comunicação. Se o agente não acerta o ouvido e o coração do ouvinte ou leitor, a comunicação é em vão, ou talvez pior… Pode causar mal-entendido, confusão, erro… apesar das melhores intenções do “remetente”.

Sem restringir a Palavra de Deus à Bíblia, quero ilustrar o problema que acabo de sugerir com o foco nas leituras bíblico-litúrgicas e na homilia.

Não vou falar do Autor último, porque Deus ninguém nunca viu, como diz, repetidas vezes, o Quarto Evangelista. Como início de conversa vou considerar os autores humanos da Bíblia. A maioria deles são anônimos. Os livros de Moisés, por exemplo, não são tanto escritos por Moisés, mas a partir e em torno daquilo que ele fez e significou para o povo de Israel. Não vale a pena brigar pela afirmação de que foi Moisés pessoalmente que escreveu. Tanto para os cinco livros da Lei como para a maioria dos demais livros, só conhecemos o autor que se revela dentro do texto, o autor implícito. Isso vale até para são Paulo e para os autores modernos. Não é preciso conhecer a biografia de Guimarães Rosa para traçar o perfil do autor que se revela atuante em Grande Sertão Veredas. É preciso conhecer bem o texto, isso sim! Discute-se para saber em que cidades Paulo esteve preso. Será que tem importância? Importante é que ele estava preso e, por isso, diz que a Palavra não está algemada! Nesta frase reconhecemos um autor que faz da Palavra de Deus o paradigma de sua vida, e é isso que importa para acolhermos o que ele escreve.

Mas além desse autor implícito, que se dá a conhecer pelo próprio texto, temos também um leitor implícito, ao qual o autor, consciente ou inconscientemente, se dirige ao escrever ou ao falar. É para o destinatário implícito que apontamos quando, ao ouvir um sermão, perguntamos: “Para quem é que o padre fala isso?” 

No serviço da Palavra devemos pensar muito mais no destinatário e naquilo que ele vai entender. Não adianta usar os termos teologicamente mais acertados ou rebuscados se o ouvinte entende outra coisa. 

Importa ter presente o ouvinte e o seu mundo, é o ouvinte, com o mundo que ele tem na cabeça e no coração, que decide do sentido da palavra que ouve. Importa ter consciência clara de quem é nosso destinatário e do que lhe acontece ao ouvir a palavra – o que se chama a pragmática do texto, o que o texto faz com ele. Podemos ler um trecho do Apocalipse de modo que o ouvinte fica todo angustiado e confuso, mas também de modo que ele fica esperançoso e consolado, o que é a finalidade do Apocalipse: “Eu venho em breve”, “Vem, Senhor Jesus!”

Aprofundando esse exemplo, para que o ouvinte comum das nossas comunidades se sinta consolado ao ouvir o Apocalipse, provavelmente devemos eliminar algum ruído da comunicação. Não estou falando da microfonia por causa da instalação de som mal regulada – isso também – mas de ruídos psicológicos. Só falar em Apocalipse já causa angústia nas pessoas. Por isso o Concílio prescreveu que a proclamação da Palavra sempre deve ir acompanhada de uma breve explicação. Para isso há dois momentos: a homilia e os comentários introdutórios às leituras. Os puristas da Liturgia não gostam desses comentários prévios. De fato, muitas vezes mais distraem que ajudam. Porém, se forem bem bolados, não improvisados, e não passam de uma ou duas frases, podem ser a ferramenta que tire o possível ruído de comunicação e forneça a chave de compreensão para sintonizar certinho naquilo que está sendo proferido

Outra condição para que a Palavra produza seu efeito é a própria qualidade da proclamação, inclusive a sintonia do aparelho de som e a arte de usar bem o microfone, não grave ou forte demais – é preciso dizê-lo, porque muitas vezes se ajusta o som como a geladeira ou o ar condicionado: no máximo… E, naturalmente, a leitura fluente, calma, pausada, com todas as letras, observando a pontuação… 

Para isso é preciso que o leitor entenda o que ele está lendo. Quero felicitar as paroquias que fazem com os leitores, semanalmente, um treinamento de dicção com explicação do texto. Infelizmente, são poucas. Mas para os leitores conscientes de sua missão, verdadeiros “servidores (ministros) da Palavra”, cito as bem-aventuranças do início do Apocalipse: “Bem-aventurado aquele que faz a leitura, e bem-aventurados os que ouvem as palavras da profecia e guardam o que nela está escrito” (Ap 1,3).

E agora a homilia ou outras formas de explicação da Palavra. Não basta explicar palavras, tem que explicar o sentido, o sentido cristão, que é o verdadeiro sentido espiritual, isto é, inspirado pelo espírito de Cristo. O espírito com o qual ele agiu e falou e o espírito que ele nos deu a partir de sua morte e ressurreição, o Santo Espírito, que é um só. O espírito que nos faz entender a plenitude do Antigo Testamento em Cristo, por mais que muitas histórias desse Antigo Testamento sejam um tanto estranhas do ponto de vista cristão. 

Para isso são importantes as duas extremidades da cadeia de comunicação. Devemos entender bem o que o texto quis significar no primeiro instante, para não lhe atribuir coisas que ele nunca quis dizer. O que ele quis significar é o que serve para a salvação apregoada pelos primeiros evangelizadores, os apóstolos e os evangelistas dos inícios da fé cristã, o que o Concílio chamou “a verdade em vista de nossa salvação” (Dei Verbum11). Para perceber esse sentido, o homileta ou catequeta vai precisar de um pouco de estudo e de leitura atenta, e de bastante oração e meditação. E, na outra extremidade da cadeia de comunicação, está o leitor e o ouvinte de hoje. Que é que o preocupa? Como ele vai combinar o que lhe chega ao ouvido com aquilo que habita a sua cabeça, com os sentimentos de seu coração, com suas preocupações, inclusive materiais, de sobrevivência até… 

Nesse sentido, o pregador é como um intérprete que traduz de uma língua para outra, da linguagem que os autores bíblicos usaram em vista de seu público para uma linguagem que toque o coração de nosso público hoje. Autores originais diversificados, e público de hoje muito diversificado. Por isso, essa tarefa chama-se “interpretação”, como faz um intérprete, mas não de idiomas como faz o tradutor da internet, mas de pensamentos, sentimentos, desejos, esperanças… Esperanças que em última análise se dirigem para o amor infinito de Deus que Jesus revelou em sua vida e morte, mas que tomam um colorido diferente segundo a circunstância em que a pessoa vive: o jovem que não vê rumo para sua vida, o refugiado que perdeu tudo, o sem-terra tentando se organizar numa comunidade, o idoso ou idosa abandonados, o abastado que não vê sentido na riqueza – nem sempre “bem adquirida” – em que se vê envolvido…

Quando o serviço da Palavra é isso aí, é como se nós, com nosso “hoje”, nos sentássemos na roda ao lado dos primeiros cristãos, com o que foi o “hoje” deles – e tudo isso no “hoje de Deus” que é para sempre.

O pregador, homileta, catequeta, é um transmissor. A Palavra de Deus não lhe pertence, mas é confiada a ele. Porém, não num envelope fechado. É antes como o livrinho que o profeta Ezequiel ou o visionário do Apocalipse deve engolir para transmitir a mensagem (Ez 2,8; Ap 10,9). Ele deve assimilá-la em sua compreensão. Por um lado, solidarizando-se com aqueles aos quais o texto foi dirigido em primeira instância, por outro lado, com aqueles a quem ele devolve agora o texto por ele assimilado, buscando a dupla fidelidade ao ouvinte primeiro e ao ouvinte de hoje. A transformação do texto que, necessariamente, ele haverá de operar, está em função dessa dupla fidelidade. Ele não é dono da palavra, mas servo. E mesmo se usar termos ou imagens muito pessoais, não deve ser para expressar sentimentos ou visões particulares dele, mas para fazer chegar aos seus contemporâneos aquilo que tiver compreendido e assimilado escutando os pais na fé. 

Pelo dito percebe-se que essa fidelidade em dois momentos não será uma mera repetição. Repetir os mesmos termos num horizonte de compreensão totalmente diferente, como é o de hoje, não seria fidelidade nem ortodoxia, mas enganação e infidelidade, pois os termos não significariam mais aquilo que significavam. A aparente ortodoxia, o literalismo, ou fundamentalismo, é traição.

Nós tradutores da Bíblia ouvimos muitas vezes o mote “traduttore traditore”, tradução é traição. Vale como brincadeira, jogo de palavras, mas não representa a realidade. Tanto a tradução literária como a pregação são exercícios de fidelidade, sempre aproximativos, como toda obra humana, mas orientados para a verdade e não para a mentira, como seria uma traição.

Entrar na roda do pescador galileu que se tornou anunciador de Jesus e escutá-lo – através de Marcos ou Mateus ou Lucas ou João – e, então, virar-se para o Zé Mineiro e sua comunidade, sentados do outro lado, para tentar dizer-lhes a mesma coisa em palavras que toquem a vida deles. 

(os grifos são nossos)

Sobre o autor:

Pe. Johan Konings é jesuíta, professor de Sagrada Escritura da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE). É assessor bíblico-teológico da CNBB e membro da equipe que concretizou a tradução da Bíblia da CNBB. Dentre seus muitos livros mencionamos: A Bíblia, sua origem, sua leitura (Vozes, 2011); O Evangelho do discípulo amado (Loyola, 2017); João (Loyola, 2017); Evangelho Segundo João: Amor e Fidelidade (Vozes/ Sinodal, 2000); Lucas, o Evangelho da Graça e da Misericórdia (Loyola, 2017); Atos dos Apóstolos. O caminho da Palavra (Escrito com Isidoro Mazzarolo, Loyola, 2017); Marcos. O Evangelho do Reinado de Deus. (Escrito com Rita Maria Gomes, Loyola, 2018); Ser cristão. Fé e prática (Vozes, 2003); Hebreus (Loyola, 2017); A Palavra se fez livro (Loyola, 2002); Sinopse dos Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas e da Fonte Q (Vozes, 2005); Jesus Comunica o Pai. O Evangelho de João Explicado ao Povo (Paulinas, 1989); Pastoral Universitária – Opção Libertadora (Paulinas, 1985)

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