João Batista Libanio – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com Sun, 16 Dec 2018 10:00:19 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.4 https://i0.wp.com/observatoriodaevangelizacao.com/wp-content/uploads/2024/04/cropped-logo.png?fit=32%2C32&ssl=1 João Batista Libanio – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com 32 32 232225030 Memória do Projeto pastoral “Construir a Esperança” (III) https://observatoriodaevangelizacao.com/memoria-do-projeto-pastoral-construir-a-esperanca-iii/ Sun, 16 Dec 2018 10:00:19 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=29593 [Leia mais...]]]> O Projeto Pastoral “Construir a Esperança” representa um marco importante na caminhada da Igreja Particular de Belo Horizonte. Vale a pena revisitá-lo com olhar prospectivo e atento aos desafios e urgências pastorais de nosso tempo. O Observatório da Evangelização disponibiliza aqui uma preciosa memória: a análise do projeto e dos dados coletados nas pesquisas pelo olhar penetrante do teólogo pastoralista João Batista Libanio.

Confira:

A Igreja e sua capacidade de satisfazer às demandas religiosas Projeto “Construir a Esperança”

Fizeram-se na Arquidiocese de Belo Horizonte amplo levantamento do perfil do católico que a frequenta (1) e uma pesquisa por amostragem sobre as opiniões religiosas das pessoas, procurou-se analisar os resultados numa consideração teológico-pastoral (2) e tentou-se traçar um primeiro esboço do rosto da Igreja presente nesse projeto (3). Outra pesquisa de relevo foi feita, no primeiro semestre de 1991, foram entrevistadas 40 pessoas em cada paróquia, assim distribuídas: 10 católicos militantes, 10 católicos praticantes, 10 católicos não-praticantes e 10 não-católicos (sem ou de outras religiões) de diversas faixas etárias acima de 15 anos, homens e mulheres. Somente 9% das paróquias não entregaram os questionários. Somaram-se 6.440 questionários preenchidos. As 4 perguntas feitas foram as seguintes:

  • 1. Para você a religião é importante? Pessoalmente, o que procura na religião?
  • 2. O que lhe satisfaz ou grada mais na Igreja Católica?
  • 3. O que não lhe satisfaz ou desagrada mais na Igreja Católica?
  • 4. Que sugestões gostaria de dar à Igreja de Belo Horizonte? O que ela deveria fazer?

Os entrevistadores das paróquias foram treinados e orientados pela profª. Leticia Barreto. A organização das respostas através de palavras-chave mostrou-se difícil. Houve a colaboração de voluntários orientados pela Comissão Central do Projeto e pela Profª. Letícia Barreto e pelo Pe. Pedro Leboulanger.

Há uma dificuldade fundamental na análise. Os termos escolhidos para a tabulação não são unívocos e deixam espaço para muita imprecisão de intelecção. São vagos e cobrem-se frequentemente um ao outro em vez de oporem-se. Isso quase impossibilita uma análise. Por isso toda a reflexão que se segue está pisando sobre ovos e goza de certa fluidez e inexatidão. Entretanto, ela pode servir para, ao menos, despertar dúvidas, discussões (4).

1. Relevância da religião

O resultado geral, já que não está indicada a qualidade religiosa de quem respondeu, mostra a alta vinculação entre religião e relação com Deus (63,6%). É o conceito fenomenológico mais difundido. Dentro dessa classificação, percebem-se alguns matizes interessantes. Na relação com Deus, o aspecto de “elo, sintonia, conhecimento (não intelectual), amor de Deus” domina (1.136 respostas) (5) enquanto a dimensão de palavra, de conhecimento intelectual é menor (343 respostas), mas com certa relevância. Isso significa que o trabalho dos círculos bíblicos e toda a renovação bíblica têm produzido efeito, ainda que não se possa compará-lo com a tradição antiga e mais longa de uma religião objetiva de atos. A relação carismática (louvar, rezar, pedir, agradecer: 86 respostas) não tem muita força, como o crescimento de tal movimento poderia fazer imaginar. Nem também aparece tão claro, como aparecera na pesquisa anterior do Instituto “Opinião — Consultoria e Pesquisa”, a predominância de uma relação com Deus, “força e energia superior” (cotação relativamente baixa: 109 respostas). Evidentemente o primeiro item não decide sobre que tipo de ideia de Deus está por trás. Por isso, esta reflexão fica prejudicada. Vai uma simples suspeita.

Podia-se imaginar que o afã de busca de salvação fosse muito relevante. O número é relativamente pequeno (223 respostas) sobretudo se se pensa que a evangelização romanizante se centrou fundamentalmente no “salva a tua alma”. Será que a resposta mais valorizada reflete uma certa dose de gratuidade na religião? Seria já sinal de uma pureza religiosa maior?

São surpreendentemente escassas as respostas (13,7%) que apontam para o encontro com o irmão, já que esta dimensão é fundamental e original no cristianismo. Talvez das nossas pregações apareça a ideia de que a caridade fraterna seja antes consequência de nossa fé cristã. Falta-nos dar um salto em maior profundidade, mostrando que o amor ao irmão é elemento constitutivo da própria fé cristã numa identidade indestrutível. Não há encontro com Deus sem mediação do irmão e não há encontro verdadeiro com irmão sem encontro com Deus.

De certa maneira, é ainda mais surpreendente a baixa pontuação dos ritos e símbolos (1,6%). É sabido que a religiosidade popular está impregnada de ritos, símbolos, gestos externos. Por que então aparece tão pequena referência?

Avento a hipótese de que esses ritos e símbolos, no caso, cumprem bem sua função de mediação da relação com Deus. Essa relação está no centro. Com isso, fica descartada a interpretação mágica dos ritos. Eles não são buscados em si, mas enquanto ligam o fiel com Deus. E se no fundo a ação é de Deus, o rito passa para segundo lugar. E a dimensão mágica também.

Já aparece uma preocupação moderna e pós-moderna presente na religião: a “função terapêutica” individual, a busca de sentido para a vida. a auto-realização, a harmonia interior etc. É sabido que sempre os ritos desempenharam certa função terapêutica, sobretudo o da confissão. Mas não eram nem buscados explicitamente, nem entendidos como tal. Já a pesquisa indica esta busca terapêutica da religião como fonte de paz. tranquilidade, alívio. Entende-se sobretudo por causa da crescente agressividade da vida moderna para todos os segmentos sociais, ainda que de maneira diferente.

É muito positivo que o aspecto repressivo da religião apenas seja mencionado (2%). Pode ser que ela cumpra essa função inconsciente e tal aspecto esteja escondido nos outros itens. Entretanto, de maneira explícita, ela não é vista como Voltaire queria: um freio da sociedade.

Concluindo, apesar de todo o fenômeno de secularização a religião obtém um altíssimo índice de importância (94%). Somente 5,5% se dispensam da religião. Dado um pouco inferior àqueles que se declararam explicitamente sem religião (6,8%) na pesquisa sobre religiões em BH. 94% acham-na importante.

Da maneira como as respostas estão tabuladas não se consegue perceber a importante distinção entre religião e fé. Ambas estão sob as mesmas categorias. Assim não é possível saber se a especificidade da fé cristã é, de fato, colhida e vivida ou ela se perde na generalidade religiosa. Fica esta questão para ulteriores pesquisas. Contudo dois dados apontam para a fé especificamente cristã (Jesus Cristo e Igreja, e conhecimento da Bíblia) e significam 663 respostas em 2.673.

2. A Igreja católica e sua capacidade/ possibilidade de satisfazer a demanda das pessoas

Já estamos num campo mais concreto. Já não se trata da religião em geral, mas da forma católica. Os resultados permitem algumas hipóteses explicativas que ficam à espera de ulterior verificação.

A Igreja pode ser vista na sua dupla face da vida interna (ad intra) e de presença na sociedade (ad extra). É uma instituição que cultiva uma vida interna e que alimenta com ela seus fiéis. É também um corpo social que atua na sociedade segundo a especificidade de sua natureza. Apesar de todo o esforço de a Igreja depois do Concílio Vaticano II e sobretudo de Medellin-Puebla ter uma presença crítica na sociedade, o que ainda mais agrada nela é sua vida “ad intra”. Se somarmos os itens relativos à vivência, celebrações e doutrina, temos 4.244 respostas (6) que dizem respeito portanto à vida interna da Igreja. Por sua vez, as respostas que se referem à atuação da Igreja na sociedade somam 371. A referência aos valores humanos não reflete uma presença da Igreja na sociedade, já que tais valores são de natureza estritamente pessoal (silêncio, conforto, ânimo, alegria). Vê-se a enorme desproporção entre a satisfação vinda pelos elementos “ad intra” e a pelos “ad extra”.

Avento três hipóteses:

  • Às pessoas não agrada que a Igreja se meta nos assuntos sociopolíticos sem mais;
  • Não concordam com a maneira como o faz;
  • Algumas pela primeira razão e outras pela segunda.

Se se trata da primeira hipótese, estamos diante de um público típico da ideologia liberal capitalista que quer ver a Igreja confinada ao reduto religioso. Tais respostas refletiriam já uma verdadeira secularização em nível institucional, em que cada esfera social e cultural reivindica sua autonomia, de um lado, e, de outro, não aceita que outra lhe invada o campo. Cabe à esfera religiosa cuidar dos bens espirituais e ponto final.

Se se trata da segunda hipótese, podemos ter pessoas das mais diversas visões culturais. Pessoas conservadoras que se desagradam com as posições sociais progressistas da Igreja; pessoas de esquerda que não concordam com posições conservadoras da Igreja em certos assuntos e momentos. Torna-se quase impossível deduzir algo consistente desse dado.

E, ainda se complica mais a interpretação se os números exprimem a confluência de pessoas dos diversos universos culturais da ideologia liberal, conservadora e progressista, a cujos interesses a Igreja não responde, mas por razões diametralmente opostas.

Descendo aos elementos mais específicos que agradam na vida interna da Igreja, percebe-se que o item mais salientado são as celebrações (901) a que se podem somar os itens da eucaristia, sacramentos, expressões da religiosidade popular frequentemente vinculadas a ritos celebrativos. Nesse caso teríamos 1.564 respostas. Tal dado revela a capacidade celebrativa da Igreja que consegue agradar às mais diversas pessoas.

Apesar de certa tradição autoritária da Igreja e dos atuais recuos no momento presente, ou, quem sabe, por causa disto, o número de pessoas que apontam a liberdade ou itens semelhantes (abertura para os leigos, acolhimento, capacidade de se renovar) é relativamente alto: 813. Isso indica que a Igreja, se quiser responder a esses anseios, deve ficar muito atenta a evitar medidas autoritárias e continuar um esforço de manter o clima de liberdade no seu interior.

O aspecto doutrinal permite constatação relevante. A Igreja tridentina pusera enorme empenho no ensinamento de catecismos de cunho dogmático-doutrinal e em pregações moralizantes. Entretanto, o que agrada, segundo a maioria das respostas deste item, é precisamente o fenômeno mais recente da valorização da Escritura (509 respostas). As respostas que refletem mais diretamente o aspecto dogmático são menos numerosas (205 respostas). O item catequese (115 respostas) não permite saber a que tipo de catequese se refere. O mesmo vale de termos como atualização, formação (95 respostas) e presença verdadeira de Deus (72 respostas).

A presença da Igreja na sociedade recebe, como já vimos, uma marcação relativamente pequena. Analisando os itens aí indicados, podemos avançar a hipótese de que esta presença é mais apreciada nos seus aspectos assistencialistas (165) que de movimentos de base e comunitários (127 respostas). Este dado reforça a outra pesquisa em que se via que a presença crítico-social da Igreja ainda é relativamente fraca.

Isso nos leva mais uma vez a perceber que a orientação de Medellín-Puebla está longe de ser a consciência comum da Igreja. Antes reflete uma minoria. Ou está ausente, ou provoca resistência, de maneira que não aparece entre os fatores que agradam e satisfazem. Temos no campo social ainda uma tarefa enorme a cumprir, enquanto alguns pensavam, apressadamente, que tínhamos saturado os fiéis. Ainda não os atingimos em profundidade. Estamos ainda longe da posição de Paulo VI na Evangelii Nuntiandi, onde ensina que há laços profundos entre promoção humana — desenvolvimento, libertação — e evangelização (EN 31) e do Sínodo de 1974 que fala da libertação como parte integrante da fé. Alguns bispos sinodais usaram a expressão “parte essencial”.

3. A Igreja e as críticas

Universo muito diversificado (7). Difícil de tirar conclusões ou mesmo levantar hipóteses qualificadas.

Nas críticas, os interrogados se mostram mais sensíveis aos aspectos negativos das pessoas (fiéis e clero: 2.465 respostas) do que aos da instituição e estrutura da Igreja (1.836 respostas). O juízo tipicamente crítico-institucional é menos forte do que o feito às pessoas, ainda que tenha seu peso sobretudo no universo da prática sacramental (506 respostas). Na prática sacramental a crítica se refere às homílias e à maneira mecânica de conduzir o rito (371 respostas) além do aspecto econômico das taxas e de igreja de portas fechadas (135 respostas).

O ponto mais vulnerável na conduta dos fiéis apontado pela pesquisa se refere ao seu procedimento dentro da igreja, no sentido de templo (desatenção, desrespeito, vestimentas: 415 respostas). Tais críticas revelam ainda um sentido sagrado do nosso povo que não pode ser descuidado. O sagrado necessita guardar certa dignidade, hieraticidade. Uma modernização dos ritos não pode ser confundida com sua banalização. vulgarização, que se manifesta na maneira de conduzir o rito e de estar das pessoas. A pesquisa serve de alerta para a maneira de levar à frente as reformas litúrgicas. sempre necessárias e sempre em processo. Nunca acabadas.

A conduta pessoal dos católicos — já não mais dentro do templo, mas no cotidiano — também tem peso no descrédito da Igreja: hipocrisia (268 respostas), ignorância religiosa (239 respostas). Merece breve consideração a problemática dos leigos que colaboram na Igreja. 233 respostas criticam a qualidade de sua presença (fechados, donos da igreja, acúmulo de tarefas, desunião, fofoca). Uma sempre maior participação dos leigos pode vir obviar tais questões, que acontecem onde somente poucos leigos participam. Portanto não se trata de colocar em questão a participação do leigo, antes de ampliá-la. O risco é de alguns deles clericalizarem-se demasiadamente, assumindo os defeitos do clero, sem talvez ter as suas qualidades e capacidade.

Certa inércia do fiel é também sentida (229 respostas). O projeto pode ser ocasião para obviar parte dessa dificuldade, abrindo-lhe novas possibilidades na pastoral.

Diante das falhas pessoais do clero, aparece uma atitude compreensiva e tolerante das pessoas. Elas são mais rigorosas diante da negligência dos mesmos na realização dos ritos sagrados [371 respostas) do que nos seus comportamentos pessoais irregulares (namoro, corrupção: 20 respostas), incoerência (164 respostas). Entre seus defeitos o mais sentido é a falta de acolhida e caridade para com os fiéis (232 respostas). Se a esta falha se acrescenta o estilo autoritário e discriminativo (106 respostas) e a estrutura piramidal e autoritária temos uma avaliação um pouco mais elevada (425 respostas).

A conclusão pode ser de que os fiéis esperam do clero muito mais acolhimento, aceitação das pessoas, bom trato. O caráter conservador e antiquado não impressiona quer a respeito da instituição eclesial [93 respostas) quer referente aos padres (54 respostas), seja porque já existem poucos padres e instituições deste tipo, seja porque o povo não se importa muito com essa atitude.

A divisão interna na Igreja tem uma repercussão negativa (124 respostas) maior, ainda que não exageradamente.

Uma preocupação que tem agitado muito a teologia e pastoral modernas no referente à adaptação da linguagem e comunicação a ponto de falar-se do maior problema da pregação atual não recebe na pesquisa esta importância. Queixam-se da linguagem difícil e falta de comunicação somente 66 pessoas.

4 . As sugestões

A maior preocupação se refere à formação dos leigos (1.221 respostas) (8) com uma menção especial ao conhecimento da Bíblia (625 respostas). Nesse sentido, o projeto tem procurado responder com as inúmeras iniciativas de cursos de formação para leigos e clero em 1992 a essa expectativa maior.

Infelizmente o relatório sobre a pesquisa não oferece, como nos itens anteriores, os números para os diferentes subitens. Estamos desarmados no referente à prioridade, a não ser a respeito do item geral.

Assim a temática genérica da renovação da Igreja recolhe depois da formação as mais numerosas sugestões. Dentro desse item, há questões que vão desde a união do clero e unidade da pastoral até a valorização da mulher. Fala-se de criar mais comunidades de base, de adotar a teologia da libertação, como também de deixar o celibato opcional, de implantar o dízimo, de instituir novos ministérios ou de estabelecer a eleição, rodízio e escolha dos padres. Entretanto, não temos a porcentagem em cada uma dessas sugestões. O conjunto delas constituí um universo de 1.204 respostas.

Prescindindo, portanto, do peso numérico e só considerando a qualidade das sugestões, observa-se uma tendência a duas orientações fundamentais: unidade e abertura a novas situações. A unidade se refere ao clero e à pastoral. A abertura visa à estrutura ministerial da Igreja (celibato, eleição do clero, novos ministérios, papel da mulher, papel do leigo).

Estas sugestões estão a pedir, portanto, um trabalho maior de diálogo entre as forças vivas da Igreja em busca de pontos de consenso. Esta união e unidade não pode vir em detrimento da criatividade e pluralismo, tão necessários no mundo moderno. Por sua vez, a estrutura ministerial da Igreja está carente de uma revisão em profundidade. Contudo, ela defrontará com os limites da catolicidade, romanidade e das leis canônicas.

A renovação litúrgica é um desideratum de sempre. Aparece aqui mas em números menores (614 respostas), pois nesse campo já se têm feito muitos progressos. Já não é como nos anos do Vaticano II o cavalo de batalha. Já se tem caminhado muito e os frutos já se fazem sentir.

O campo social recebe um número médio de sugestões (533 respostas). Levando em consideração os outros dados, confirma-se a hipótese de que ainda não entrou na consciência do católico médio que a problemática social pertence intrinsecamente à vivência da fé cristã e portanto à prática da Igreja. Parece antes um ato supletivo e assislencialista. As opções e orientação de Medellín-Puebla necessitam continuar sendo reforçadas e nem de longe minoradas.

Sobre a comunicação social, que está quase no mesmo pé de igualdade que a pastoral social (513 respostas), vale a observação anterior. Tem-se progredido, mas é ainda um campo aberto a iniciativas. A criatividade do projeto necessita concentrar-se mais nesse campo.

Como último ponto explicitado, está a questão da juventude. Recebe um conjunto de 390 respostas. Sendo um campo bem específico e que, de certo modo, está presente também nos anteriores, os números já mostram uma séria preocupação. Neste ano com a campanha da fraternidade sobre a “Juventude – Caminho aberto” há mais possibilidades de dar grande avanço nessa pastoral. Em outras análises se tinham constatado a fraca presença jovem e o seu êxodo da Igreja. As sugestões vêm de encontro a esta constatação e apontam um caminho a ser trilhado pelo projeto: criar sempre mais iniciativas que envolvam os jovens.

Conclusão

As reflexões carecem de maior densidade e objetividade por se tratar de uma pesquisa aberta e de difícil estruturação. Entretanto, algumas pistas já surgem, como tentamos assinalar.

Notas:

1. Religião na Grande BH. Primeiro relatório das pesquisas promovidas pela Arquidiocese de BH, Projeto Construir a Esperança, 1991; Ver também: Construir a Esperança. Informativo do Projeto Pastoral da Arquidiocese de Belo Horizonte. nº 2 (jan.1991). nº 3 (março 1991>.

2. J. B. LIBANIO. “Projeto pastoral ‘Construir a Esperança'”. PT 24 (1992) 77-92.

3. J. B. LIBANIO. “Rosto da Igreja de Belo Horizonte a partir do projeto ‘Construir a Esperança'”. PT 24 (1992) 237-246.

4. Elaborações dos dados foram apresentadas em: Construir a Esperança. Informativo do Projeto Pastoral da Arquidiocese de Belo Horizonte, nº 9 (nov. 1991) e nº 12 (março 1992).

5. O total das respostas neste subitem “Encontro com Deus” é de 2673. Portanto os números indicados devem ser interpretados em relação a este número.

6. Estamos trabalhando sobre um total de 5.236 rescostas. As respostas nesse item não são exclusivas. Isso significa que uma mesma pessoa pode ter dado varias respostas.

7. Nessa item trabalhamos com um universo de 4130 respostas.

8. O número de respostas que apresentarr sugestões é de 5.107, Portanto as respostas parciais se entendem em confronto com esse número.

João Batista Libanio, S.J.
(1932-2014)

Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana (Roma), Libanio foi um grande teólogo da libertação, pastoralista, professor de teologia sistemática e da práxis cristã, escritor, orientador de estudos, conferencista, assessor da CNBB, da CRB, das CEBs, de grupos de jovens e de muitos outros grupos, movimentos e pastorais. Além disso, foi vigário paroquial. 

(os grifos são nossos)

Fonte:

Perspectiva Teológica 

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29593
Memória do Projeto pastoral “Construir a Esperança” (I) https://observatoriodaevangelizacao.com/memoria-do-projeto-pastoral-construir-a-esperanca/ Thu, 06 Dec 2018 17:33:35 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=29489 [Leia mais...]]]> O Projeto Pastoral “Construir a Esperança” representa um marco importante na caminhada da Igreja Particular de Belo Horizonte. Vale a pena revisitá-lo com olhar prospectivo e atento aos desafios e urgências pastorais de nosso tempo. O Observatório da Evangelização disponibiliza aqui uma preciosa memória: a análise do projeto e dos dados coletados nas pesquisas pelo olhar penetrante do teólogo pastoralista João Batista Libânio.

Confira:

Projeto pastoral “Construir a Esperança”


Histórico do projeto

A Arquidiocese de Belo Horizonte vinha pensando, há algunn tempo, em iniciar um processo de reflexão pastoral mais abrangente. Num primeiro momento, parecia ser importante decidir se o término do processo deveria ser um Sínodo ou uma Assembleia, com as vantagens e desvantagens de cada uma dessas formas. Contudo, preferiu-se, num segundo momento, colocar tal questão entre parênteses, e simplesmente iniciar o processo, esperando que de dentro do seu próprio desenrolar surgissem as melhores decisões e opções.

Diferentemente de outras dioceses, não se quis orientar tal processo na linha de uma avaliação pastoral no sentido estrito, em que o olhar para o passado seria prioritário. Antes se preferiu partir do presente em vista do futuro.

A idéia-mestra consiste em mobilizar todas as forças vivas da Igreja particular de Belo Horizonte numa tomada de consciência dos atuais desafios em busca de pistas de orientação para o futuro.

Em homilia/mensagem que foi lida em todas as igrejas da Arquidiocese no dia 19 de agosto de 1990, Festa da Assunção de Maria Santíssima e da Padroeira de Belo Horizonte, Nossa Senhora da Boa Viagem, D. Serafim Fernandes de Araújo convocou “os católicos e todas as pessoas de boa vontade para compreenderem melhor os desafios do presente, as aspirações das pessoas e comunidades e assim participarem mais ativamente da construção de uma nova sociedade, à luz de  Cristo“. Continuando, disse: “Sintetizamos tudo isso num projeto pastoral que se expressará pelo lema: ‘Construir a Esperança‘”.

Para criar em toda a Arquidiocese um clima de consciência do projeto, em vista da preparação da série de pesquisas e da constituição de grupos de reflexão, programou-se uma série de homílias dominicais (para as quais foram oferecidos subsídios em nível de Arquidiocese) a partir do domingo seguinte ao lançamento do projeto (26 de agosto de 1990) até o domingo 23 de setembro.

Trata-se de um projeto participativo que teve data para começar, mas que não tem data para terminar. Está aberto a sempre novos passos, conforme o processo em andamento o exigir.

Ver a realidade

Num primeiro momento, procurou-se ver a realidade. Diversas pesquisas foram organizadas. Entre agosto e novembro de 1990, centenas de grupos refletiram em torno de quatro roteiros previamente distribuídos, nos quais se perguntava sobre o apelo do arcebispo a participar no projeto, sobre a consciência da própria missão de batizado, sobre os “sinais de vida” e “sinais de morte” na sociedade atual e sobre a missão da Igreja e do cristão hoje. Os grupos enviaram suas reflexões ao secretariado do projeto, que as devolveu, em forma sintética, num boletim, criado especialmente para ser instrumento do projeto.

Destes resultados, emergiram algumas constantes:

  • criação de um clima de esperança, expectativa e disponibilidade de participação;
  • sensação por parte dos católicos de perda de gente e terreno ante o mundo, as seitas;
  • constatação de enorme pluralidade de atividades e missões da Igreja com desejo de valorizá-las ainda mais;
  • dificuldade de motivar e mobilizar as pessoas na sua inércia de práticas costumeiras;
  • percepção do despreparo do cristão/leigo para a missão de hoje;
  • visão realista da gigantesca problemática da sociedade/cidade de Belo Horizonte nos diversos campos;
  • clara tomada de consciência de sinais de vida na sociedade e na Igreja ao lado de sinais de morte;
  • por fim, percepção da importância de se incentivar a vocação missionária na Igreja local.

Em novembro de 1990, fez-se um levantamento paroquial em todas as missas sobre o perfil daquele que frequenta nossas igrejas. Foram aplicadas umas 270.000 fichas, em que se perguntava pelo sexo, idade, estado civil, moradia, nível de instrução, ocupação, frequência à missa, participação na confissão individual e/ou comunitária, tipo de engajamento na Igreja e na vida social/ política, nível de assistência à TV, audiência de rádio e leitura de jornal e finalmente se estaria disposto a dedicar mais tempo ao serviço da comunidade.

P. Alberto Antoniazzi apresentou de maneira clara, didática e sucinta comentários pertinentes sobre o resultado de tal pesquisa, ressaltando o perfil do católico que frequenta nossa missa dominical (Religião na Grande BH. Primeiro relatório das pesquisas promovidas pela Arquidiocese de BH, Projeto Construir a Esperança, 1991, pp. 26-51). Cada paróquia apurou seus resultados e várias delas devolveram de maneira didática a seus fiéis o retrato emergido da pesquisa.

Em janeiro e fevereiro de 1991, o Instituto Opinião, Consultoria e Pesquisa Antônio C. Guimarães realizou por amostragem uma pesquisa de opinião sobre a “Fé e práticas religiosas” do habitante da Região Metropolitana de Belo Horizonte. Sobre os resultados dessa pesquisa, o próprio Instituto e o P. Alberto Antoniazzi fizeram uma leitura interpretativa.

Uma terceira pesquisa foi feita em todas as paróquias à base de perguntas abertas. Depois de rápida identificação, perguntou-se ao pesquisado:

  • se a religião é importante para ele;
  • o que procura nela;
  • o que o satisfaz ou agrada mais na Igreja Católica;
  • o que não lhe satisfaz ou desagrada na Igreja Católica;
  • e que sugestões gostaria de dar à Igreja em Belo Horizonte.

Foram perguntadas 40 pessoas em cada paróquia assim distribuídas: 10 católicos militantes, 10 católicos praticantes, 10 católicos não-praticantes e 10 não-católicos. Os resultados dessa pesquisa estão sendo processados.

O P. Pedro Leboulanger ofereceu já algumas observações e sugestões no referente à problemática da forma religiosa do tradicionalismo em suas manifestações e consequências e também da migração dos católicos para outras religiões, quer no nível das classes pobres, quer no nível das classes média-alta e alta.

Esta mesma pesquisa foi aplicada ao clero na assembléia da Arquidiocese.

A partir das pesquisas constatou-se uma deficiência generalizada na catequese básica. Para responder a esta necessidade, lançou-se um pequeno programa de evangelização através das homílias dominicais. Para isso, foram preparados subsídios para os textos bíblicos para os domingos de 18 de agosto de 1991 até 24 de novembro. Para cada roteiro, elaborou-se uma folha volante com algumas perguntas e pistas de aprofundamento que eram distribuídas a todos os fiéis que frequentavam a missa, a fim de aprofundarem o tema em família ou em grupos especialmente criados para isto.

Em vez de abordar toda a complexa temática que está surgindo das pesquisas, optou-se por escolher cinco temas de reflexão e campos de ação com a finalidade de serem aprofundados nos diversos níveis de paróquia, de forania e de Arquidiocese. Nos níveis de paróquia e forania, a forma depende da criatividade dos párocos e vigários forâneos. Em nível de Arquidiocese, criaram-se cinco grupos temáticos para refletir, propor sugestões e oferecer pistas. Os temas são os seguintes:

  • Liturgia e vida;
  • Comunicação e evangelização;
  • Pastoral social;
  • Formação sobretudo do leigo;
  • e Juventude.

Estes grupos estão já em funcionamento no sentido de ir refletindo e analisando a realidade da Arquidiocese no campo específico de seu tema, aproveitando os dados já disponíveis pelas pesquisas. Desta reflexão surgem problemas aos quais se devem oferecer pistas pastorais de soluções. Espera-se que desses grupos surjam sugestões para os diversos níveis da vida da Arquidiocese nesses campos tão relevantes para a pastoral.

Estão previstos, como os próximos passos do Projeto, dois programas de evangelização com subsídios para as homílias, cursos de atualização para o clero e cursos de formação teológico-pastoral para leigos, quer em nível de Arquidiocese, quer de forania, quer de paróquia. E os grupos temáticos continuarão seus trabalhos de análise, levantamento de problemas e de pistas pastorais.

A equipe de liturgia já elaborou, a partir das necessidades descobertas pela pesquisa e com a intenção de não deixar nem o tempo de férias sem algum estímulo pastoral, uma série de subsídios sobre os fundamentos da liturgia (a celebração do mistério pascal no ano litúrgico, no domingo, na missa e na vida cotidiana). Eles giraram em torno das leituras dos domingos de 12 de janeiro até 1° de março. O método do uso dos subsídios foi semelhante ao empregado nos programas de evangelização. Publicaram-se um folheto de orientação para os encontros de grupos para uso do coordenador e folhas volantes para cada fiel. Aconselhou-se a criação de cada vez mais grupos de reflexão na paróquia onde se podiam aprofundar os roteiros preparados pelo grupo temático de liturgia.

Em termos de pastoral da juventude, estão previstos dois grandes encon-tros de todos os jovens crismados em 1991 e a serem crismados em 1992 no Mineirinho em abril e outro, também no Mineirinho, de todas as crianças que fizeram a Primeira Comunhão nos dois últimos anos.

Como o ano pastoral está iniciando, outras iniciativas irão surgindo dos grupos temáticos e da Comissão Central. Trata-se de um projeto que se vai construindo à medida que vão aparecendo os primeiros resultados, sem ter de esperar um momento somente para planejar. Planeja-se no caminho do próprio processo com pequenas iniciativas. O perfil do planejamento aparecerá, não de uma vez, mas vai-se configurando lentamente e sem término predeterminado. Esta é a originalidade de tal projeto: participativo, progressivo, sem término pré-fixado.

Comentário sobre as pesquisas

Levando em consideração os dados e os primeiros comentários das pesquisas, tentei captar algumas tendências e oferecer já algumas sugestões teológico-pastorais iniciais.

1. Da indefinição para uma definição mais nítida: Deus e escatologia: dimensão pessoal com repercussão definitiva

Chama a atenção certa porosidade teológica dos entrevistados católicos a respeito, quer de Deus, quer da dimensão escatológica da vida.

a) Sobre a experiência trinitária de Deus

É verdade que se afirma, em números altos, a fé em Deus, na Trindade, na divindade de Jesus Cristo. Entretanto ao descrever o conteúdo de Deus, a dimensão pessoal sofre detrimento em relação à ideia de Deus “Tudo, o Todo, O Todo-poderoso” (49,3%). Relacionar Deus com a Trindade recebe 1,5%. Não tenho os dados dos católicos, mas do geral. Entretanto isso já revela a predominância da religiosidade geral à custa de uma Trindade atuante na história.

Apesar de a Bíblia receber alta aceitação (84,1%), parece que a visão que ela dá de Deus ativo na história (AT) e trinitário (NT) não vem configurando a fé do católico. Isso pode significar que esta fé não vem sendo alimentada por uma leitura e assimilação do conteúdo bíblico. É inegável o enorme esforço que a Igreja católica tem feito depois do Concilio Vaticano II na valorização da leitura bíblica e na produção de inúmeros subsídios para aumentar o amor e conhecimento da Escritura. Mas o resultado de tais atividades é mais lento do que se pode imaginar. As socializações mais antigas e tradicionais ainda predominam.

Por isso parece acertado que se continue insistindo nos círculos bíblicos, na leitura e meditação da Escritura. Pode-se perguntar até onde a maneira de pregar da maioria dos padres ainda não salienta suficientemente a dimensão de ação de Deus pessoal e trino na história, corrigindo uma versão mais anímica e difusa de Deus.

Vale como alerta para uma maior exatidão teológica no falar de Deus, recordando que “Deus” sem outro epíteto na Escritura e na liturgia significa a pessoa de Deus Pai e não a essência divina. Este cuidado litúrgico e bíblico devia ser mais explicitado para que os fiéis se conscientizem mais da Trindade.

Como o único acesso que temos à vida íntima da Trindade se faz pela ação de Deus na história, é importante que tal acesso seja mais explicitado e que não se fale da vida interna de Deus a modo do tratado tradicional de Deus uno. Quanto mais trinitárias forem a pregação, as interpretações da Escritura, as orientações bíblicas, as explicações litúrgicas, tanto mais se estará ajudando a superar uma consciência vaga da divindade, e portanto firma-se mais claramente a especificidade cristã.

b) Sobre a escatologia cristã

Reflexão semelhante vale da escatologia. Os parcos dados indicados pela pesquisa revelam uma dificuldade de entender como 72% acreditam na eternidade da alma, mas somente 59,7% acreditam na vida depois da morte. E também 54,8% acreditam na reencarnação. Isso leva a pensar que reina uma confusão sobre a temática escatológica. O “salva tua alma” tradicional convive com dúvidas sobre a vida depois da morte e sobre a reencarnação. Este último dado deve-se naturalmente à influência espírita também no universo católico.

Pastoralmente significa que a temática da escatologia, muito esquecida depois de ter sido objeto central das tradicionais missões populares e pregações moralizantes antigas, necessita ser retomada sob nova luz. Poucos temas teológicos avançaram tanto como os referentes à escatologia. Reina provavelmente certa insegurança nos pregadores a respeito dessas questões. De um lado, sentem que já não podem pregar como antigamente, mas também não sabem como fazê-lo de outro modo. Esse silêncio na pregação e catequese propicia a entrada de outras visões nesse campo.

Um combate frontal à reencarnação não parece ser a via mais aconselhada num mundo cada vez mais pluralista e infenso às apologéticas agressivas. A pregação mais insistente sobre a presença de Jesus ressuscitado, sobretudo na liturgia, pode oferecer excelente acesso à temática escatológica. No tempo pascal, poder-se-ia privilegiar, nas pequenas introduções litúrgicas, a presença nova do Senhor ressuscitado na assembléia. A partir da presença de Jesus ressuscitado, vai-se criando a consciência de uma nova maneira de viver para além da morte, que é a resposta cristã à reencarnação. Participar dessa vida nova de Jesus é todo o sentido da vida cristã.

A problemática da reencarnação poderia também ser abordada sob o ângulo da responsabilidade pessoal. Ponto muito sensível ao homem de hoje, que uma visão reencarnacionista poderia esvaziar.

2. A dialética entre empenho assíduo (19%) e ativo (9,8%) = (28,8%) e a frequência rara (49,9%) ou nula (29,9%) = (70,8%): entre o militantismo interno e a influência externa.O desafio da religião individualista e do indiferentismo

 A qualidade da frequência do católico também é questionante. 70,8% refletem uma fraca frequência, nula (20,9%) ou rara (49,9%). Consideram-se militantes somente 9,8%. Assíduos são 19,5%, de modo que uma boa presença cobre a faixa de 28,8%.

Aparece o fenômeno da busca de religião individualista, sem participação comunitária. Atualmente acusam tal prática 26,2%, mas a faixa dos participantes esporádicos — raramente (42,5%) — pode aumentar tal tendência.

Portanto enfrenta-se o sério problema do enfraquecimento crescente da frequência com uma tendência a uma religiosidade individual, não vinculada à instituição eclesial. E no extremo existe certo indiferentismo religioso.

Sendo a Igreja católica majoritária, não causa, sociologicamente falando, nenhuma estranheza que sua prática religiosa seja mais baixa proporcionalmente ao número de adeptos. Realiza-se a clássica dialética da massa e minoria, tão bem elaborada por J. L. Segundo. A partir da reflexão de J. L. Segundo, podem-se pensar dois tipos de atividade pastoral:

a) Uma que se concentre nos católicos de maior empenho (9,8%), mas de modo que esses sejam irradiadores de presença evangélica para os 70,8% de pouca participação. Em geral, falha-se trabalhando com os de maior empenho que praticamente consomem seu tempo no interior da Igreja. Esses deveriam, pelo contrário, diminuir seu trabalho em estruturas eclesiásticas e aumentar sua presença fora do ambiente eclesial. As minorias são pensadas para favorecerem uma síntese religiosa mais perfeita que atinja as massas. Isso se faz, quer criando estruturas de difusão e influência, quer mecanismos ágeis de contacto com essa massa periférica.

Por conseguinte, o maior esforço dessa minoria deveria concentrar-se para fora das estruturas que só alcançam os católicos e criar portanto estruturas e mecanismos de maior alcance cristão. Uma vez que o amor, a justiça social, a liberdade são os grandes valores do Reino e realmente fazem a história da salvação alcançar densidade concreta, é nessa direção que os esforços dessa minoria deveriam ser orientados. E não diretamente num proselitismo de frequência eclesial. As massas sempre serão massas. E elas avançam por causa das sínteses novas e ricas das minorias. Estas sínteses são as descobertas de valores que a minoria consegue consubstanciar em estruturas e mecanismos históricos.

b) As pesquisas falam da relevância da influência familiar na transmissão dos valores religiosos católicos. Esta é uma estrutura de massa que permite difundir valores e comportamentos, que necessitam ser transmitidos a ela por essas minorias conscientes e ativas. Nesse sentido, investir na socialização familiar parece ser um campo prioritário. Tal se dá pela difusão de conhecimentos, experiências e comportamentos que alertem as famílias para a relevância do momento socializador dos filhos. A catequese massiva batismal, a preparação para o matrimônio, campanhas mais amplas de divulgação podem ajudar em tal atividade conscientizadora.

Entretanto esse empenho deve ter a lucidez de saber que a tendência da modernização é diminuir a força socializadora da família e acentuar a dos meios de comunicação social. Por isso a via familiar, que tem sido a principal transmissora da fé para os católicos, vai perder força e vamos sofrer o impacto negativo de tal processo.

As pesquisas apontam também o risco da religião individualizante e o crescimento do indiferentismo religioso, pelo menos, no sentido institucional. Para responder a tal problemática da sociedade moderna, tem-se elaborado uma saída pastoral que procura tocar o ponto central do fenômeno, a saber, a subjetivização da religião e a relativização das instituições religiosas. É um fenômeno paradoxal. Pois, de um lado, deixa enorme espaço para a experiência religiosa e, de outro, possui frio indiferentismo diante das formas oficiais religiosas. A religião reflui para a esfera da intimidade individual. Talvez nesse paradoxo consista fundamentalmente a secularização nessa fase pós-moderna.

A solução que algumas paróquias e/ou movimentos têm buscado vai na linha de modificar a linguagem global religiosa. Com linguagem global quer-se exprimir não somente a palavra falada ou escrita, mas todos os meios de comunicação. Busca-se encontrar uma nova linguagem que fale a esse homem moderno. O programa de TV da Rede Bandeirantes aos domingos tem sido um desses exemplos mais claros. A renovação carismática, com seus encontros, tem procurado inserir-se nesse movimento de uma pastoral de superação do indiferentismo e insertar dentro da instituição eclesial o elã carismático individualista.

Outro caminho pastoral possível é partir desse desejo individualista do religioso, como dado crescente. Ao falar-lhe, intenta orientá-lo para uma linha do compromisso com o irmão necessitado e da busca de vivenciá-lo em comunidade estável. Com isso, evita-se, quer o aspecto puramente compensatório e alienante de tal surto religioso, quer o reforço da tendência individualista, quer mesmo uma busca difusa de experiências comunitárias sem nenhum vínculo e compromisso de comunidade. Pois uma das características desse surto religioso individualista é a busca de ter encontros, mas que não perturbem os interesses individuais e sejam simplesmente momentos de satisfação individual, sem nenhum laço e engajamento permanente, como comunidade. E a exigência cristã e eclesial fundamental significa, pelo contrário, uma saída da busca de si, da auto-satisfação como norma absoluta, do girar em torno dos próprios interesses individuais, em direção ao irmão, ao outro, à comunidade como compromisso permanente.

3. Da via familiar para a eclesial

Além dessa atividade de massa por meio das minorias, pode-se também aumentar, num segundo momento, o trabalho de comunitarização, celulização do catolicismo familiar. Isso significa que se pode pensar uma pastoral que favoreça o multiplicar-se de comunidades vivas de cristãos, não necessariamente vinculados orgânica e organizadamente à paróquia.

Essas comunidades vivas seriam o lugar natural onde aquela religiosidade familiar poderia encontrar certo aprofundamento, ultrapassando, portanto, a esfera da religiosidade vaga. Essa celulização pode ser pensada naturalmente em dois níveis:

a) Quer em comunidades mais populares, onde o círculo bíblico pode exercer papel importante;

b) Quer em comunidades de gente letrada, onde o aprofundamento teórico da fé e a celebração da vida poderiam revitalizar uma fé genérica.

Dois dados levantam um desafio para a nossa pastoral. O primeiro é o pequeno número de comunidades eclesiais de base – CEBs. A porcentagem de participação em CEBs na Arquidiocese é de 3,2%. O maior grupo está, como era de esperar, na Cidade Industrial e o mais fraco na Região Sul. Como o futuro duma presença mais profunda, consciente e resistente da Igreja no mundo popular, vai provavelmente depender do vigor das CEBs, cabe aqui uma reflexão séria sobre essa insuficiência de nossa pastoral. O segundo ponto importante se refere aos círculos bíblicos e sua atuação. Segundo a experiência de muitas Igrejas do país, o círculo bíblico é a fonte mais importante da criação de CEBs. Muitos evoluem naturalmente para verdadeiras comunidades de base. Ora, pelas estatísticas, o número de participantes em círculos bíblicos é relativamente alto (9,7%) em relação ao da participação em CEBs (3,2%), isto é, três vezes mais. Isso quer dizer que este tipo de círculo bíblico não está evoluindo em direção à comunidade de base.

O que permite pastoralmente tal evolução é um tipo de círculo bíblico, em que a reflexão sobre a Palavra de Deus se articula com a problemática social, do trabalho e de lutas políticas da comunidade. De muitos círculos bíblicos nascem lutas da comunidade. Esta se reúne com a dupla finalidade de organizar-se em vista da luta e de refletir sobre sua fé. Dessa articulação vai nascendo as  CEBs. Pode-se perguntar se os círculos bíblicos não têm ficado num aspecto puramente de intelecção do texto bíblico e pouco articulados com a luta da comunidade. Por isso eles não têm sido germes de comunidades de base.

Outra forma de celulização da Igreja podem ser os grupos de oração. Eles têm um bom peso de presença: 17,0%. Podem transformar-se em verdadeira comunidade, de caráter e dimensão mais espiritualista. Mas mesmo assim podem ser início de uma vida comunitária mais intensa e profunda, ampliando para outros setores da vida o interesse do grupo. E desses grupos de oração, se de nível popular, podem surgir CEBs; se de classe média, podem favorecer comunidades de vida cristã mais intensa e consciente. Pois é este tipo de comunidade que resiste ao esfacelamento da sociedade moderna e ao processo secularizante das instituições religiosas.

Estas comunidades correm o risco de descolarem-se da comunidade maior de Igreja. Por isso um outro movimento deveria ser desencadeado, em que essas comunidades pudessem criar meios de encontrarem-se entre si. Não se trata necessariamente de uma paroquialização das mesmas, mas de constituir-se uma rede de comunidades. Atualmente, fora da paróquia, não se tem nenhuma estrutura capaz de fazer isso. É talvez momento de pensar se a única possibilidade de articulação das comunidades deva ser a paróquia ou já é tempo de ir “superando” esse monopólio paroquial com novas estruturas.

Nesse contexto, cabe tratar da questão da motivação predominante entre os fiéis católicos e a tendência previsível de seu comportamento futuro. As duas motivações mais indicadas na pesquisa por parte dos católicos são a fé e a tradição. Pode-se mesmo perguntar se por fé não se deve entender fé tradicional. Em outras palavras, a principal motivação de ser católico é a tradição. Só depois vêm motivações de caráter mais existencial: paz de espírito, situação de solidão ou carência etc. Ora, um dos efeitos mais claros do fenômeno de secularização é a diminuição da força da tradição religiosa em troca de um reforço das atitudes pessoais de decisão. Se tal fato é verdade, prevê-se que a secularização vai levar à diminuição da adesão à Igreja católica e favorecer o fluxo para outras denominações religiosas que respondam a situações existenciais. De fato, a adesão às Igrejas pentecostais e neopentecostais  tem como motivações principais a fé e a autoprocura ou a procura de um sentido para a vida. Pode-se entender o termo “fé” em sentido subjetivo. E portanto o motivo de adesão às Igrejas pentecostais e neopentecostais  corresponde mais à atual situação subjetivizante e menos tradicional.

A família sendo fundamentalmente o lugar de transmissão da tradição é também o lugar da veiculação da fé católica. À medida que a família perder sua função tradicional, também a transmissão da fé católica se ressentirá negativamente. Tudo leva a crer portanto dever-se trabalhar numa pastoral, como se tem feito aliás, de maior incentivo às motivações pessoais, às decisões livres e conscientes. A linha pastoral sacramental que vem sendo conduzida depois do Vaticano II vai exatamente na direção de uma fé assumida em liberdade e consciência. Por isso se multiplicaram os cursos, criaram-se condições para a recepção dos sacramentos. Isso significará certamente uma queda estatística, já que a própria motivação tradicional predominante não é incentivada nem mesmo pela Igreja.

4. Do imaginário rural para o urbano

A pesquisa mostra que os católicos são os que têm um pouco mais gente de origem rural ou do interior. Pode significar que a mensagem católica está mais vazada em modelo rural e mantém uma prática de ritmo rural e por isso responde mais a este tipo de gente. Sua pregação pode passear mais no imaginário rural que urbano. O clero ainda deve refletir na sua pregação tal universo simbólico. A urbanização violenta que a nova geração sofre numa grande cidade como Belo Horizonte está a pedir uma mudança, quer no imaginário da pregação, quer no ritmo das práticas. Sem dúvida, a liturgia já introduziu modificações nessa linha. A pergunta é se foram suficientes ou ainda requerem-se mais modificações.

As homílias devem ser vistas nessa perspectiva. Será que elas refletem antes imagens, valores, modo de exprimir correspondentes ao mundo rural? Ou já assumiram a problemática realmente urbana com seus desafios?

A formação de um imaginário social coletivo é lento. O principal fator hoje gerador de imagens é a TV com seus programas, sobretudo novelas [Atenção: Libanio aqui fala do contexto de 1992, portanto, há 26 anos atrás. Hoje este lugar é ocupado pela Internet e pelas redes sociais acessadas pelos smartphones]. Há, porém, uma relação dialética. As aspirações do povo condicionam também o mundo da TV [da Internet]. As necessidades, os desejos, os sonhos do povo estão aí disponíveis. Quem souber captá-los, traduzi-los em imagem e símbolos, consegue falar-lhes. E, por sua vez, tais símbolos necessitam ser decodificados em ação para que se produza alguma mudança real.

O desafio da pregação, da liturgia, das práticas eclesiais consiste precisamente em traduzir em imagens e símbolos as necessidades e aspirações do povo, mas não simplesmente para satisfazê-las ou aproveitar-se delas. Isso não significaria evangelização, mas para confrontá-las com a mensagem evangélica na linha de conversão e de práxis.

5. Da atmosfera religiosa para o compromisso secular

Este ponto parece bastante problemático na pesquisa. A mensagem social da Igreja não é um aspecto que ela pode ou não anunciar, segundo a maior ou menor receptividade. É intrínseca ao Evangelho. Portanto não tem nenhum sentido falar que a Igreja a adentrou no social e agora deve refluir para o mundo da religiosidade. O alcance social do Evangelho é inegociável. Evangelho sem práxis, sem compromisso, não é Evangelho.

A religião ainda exerce forte influência no comportamento pessoal, individual, no campo da moral. Não quer dizer que se sigam os ensinamentos oficiais da Igreja católica, mas que o sentimento religioso está presente nas decisões morais de 84,7% (55,9% muito importante; 28,8% importante), ao julgá-lo importante para tais decisões. Para o cotidiano, 82,3% retêm sua importância (56,4% muito importante; 27,9% importante).

Diferentemente se dá no campo político. Aí a relevância da religião vale para 45,9% (20% muito importante; 25,9% importante), enquanto 32,6% a julgam sem importância e 12,1% pouco importante (44,7%) nesse campo.

Sobre a atuação da Igreja católica no campo social, 20,5% acham-na ótima, 43,2% boa (total: 63,7%). Enquanto no campo político, 6,1% acham-na ótima e 26,7% boa. Por sua vez 44,5% consideram a ação política por parte da instituição eclesiástica regular, ruim ou péssima.

Entre os defeitos mais criticados, estão a politicagem (5,2% dos entrevis-tados) e a discórdia (4,7%). A dispersão de opiniões foi enorme. Cruzando com essas informações os dados sobre o tipo de participação em atividades pastorais, associativas e sociais dos católicos, percebe-se que no campo político a presença dos católicos é fraca. 2,6% responderam afirmativamente à pergunta sobre o exercício duma militância política. A participação sindical e/ou em asso-ciações de bairro é um pouco maior: 4,5%. A presença em pastorais mais comprometidas socialmente não se consegue saber, já que as respostas atravessam todo tipo de pastoral. Em todo caso, permanece a evidência de que os católicos não primam em nossa Arquidiocese por uma presença significativa no mundo da luta sindical e política.

A relevância do Evangelho sobre a vida parece reduzir-se aos campos alheios ao social e à política para bom número dos entrevistados. Isso mostra a exatidão da observação de J. Comblin, dizendo que o problema da evangelização não é a redução da dimensão transcendental à imanente, mas o contrário. A Igreja teve e ainda tem muito que fazer para articular essas duas dimensões. Os entrevistados revelam a consciência que eles criaram precisamente por causa da pregação da Igreja até então, e o empenho das últimas décadas ainda não deu seus frutos.

A conclusão não parece dever ir na linha de diminuir a pregação social, mas antes de aumentá-la para que tal distância, refletida na pesquisa, diminua. Evidentemente pode-se perguntar pela maneira de fazê-lo. Certamente em Minas Gerais deve-se levar em consideração uma longa presença da Igreja na política de extrema ambiguidade, apoiando grupos oligárquicos. E agora, ao apoiar grupos opostos, produz a oposição dos entrevistados.

A articulação da mensagem evangélica com o social e a política tem de ser de uma maneira que guarde a sua especificidade numa linha de crítica, de motivação do cristão a causas libertárias e de sinalizar elementos utópicos.

6. Considerações sobre o perfil do nosso fiel

A pesquisa ajuda-nos a perceber, sobretudo de forma comparativa com outras denominações religiosas, o tipo médio do católico sob diversos ângulos e permite assim reflexões pastorais preliminares.

Alguns traços. A freqüência é mais feminina que masculina. Os jovens na faixa de 15-19 anos diminuem fortemente sua presença. Quanto às meninas, começa tal queda mais cedo, entre 10-14 anos. A frequência cresce depois dos 40 anos e atinge a média máxima entre 60-69 anos.

Os extremos da escala social, quanto à instrução, frequentam menos. Os analfabetos e os mais letrados estão mais ausentes. A taxa de desempregados atualmente é alta na sociedade, mas entre os que frequentam a missa é pequena. Logo eles não estão em nossas Igrejas.

O tipo mais pobre, favelado, descamisado, frequenta antes as Igrejas pentecostais e neopentecostais  que nossa Igreja. Significa que nossa presença junto a eles é menor. Isso tem a ver sem dúvida com a estrutura ministerial da Igreja e a possibilidade de contato da Igreja com eles. Ao tratar do fenômeno das Igrejas pentecostais e neopentecostais vamos ampliar essa consideração sobre a impossibilidade de a Igreja ter uma presença ministerial junto à massa pobre das periferias e, pelo contrário, a abundância de pastores permite-a às Igrejas pentecostais e neopentecostais.

Há uma indicação da pesquisa que permite perceber um deslocamento da elite para o espiritismo ou ateísmo. Podem ser pensadas várias causas:

— o espiritismo desenvolve uma atividade assistencialista, confortadora para a consciência moral da elite e que a Igreja numa perspectiva mais libertadora já se nega a favorecer; o ateísmo é compatível com um humanismo sem transcendência, que responde ao senso ético do homem;

— o espiritismo tem um aspecto esotérico que sacia, em parte, esta sede crescente de espiritualismo dessa classe; o ateísmo deixa a pessoa disponível para as mais diversas experiências, sem vinculações dogmáticas;

— o espiritismo com a reencarnação alivia a responsabilidade de única existência, vindo de encontro a anseios de tais classes e a sua má consciência; a não-existência da Transcendência, mesmo que não se queira, diminui o senso de responsabilidade de nossos atos.

7. A dimensão sacramental

A pesquisa oferece dados sobre a confissão individual e comunitária, além da frequência às missas. Sobre a confissão, não sei se se pode arriscar uma reflexão pastoral a partir da comparação entre a confissão individual e comunitária, já que não se trata de frequência exclusiva de uma das formas. Mas simplesmente pelos números, parece acontecer o oposto daquilo que os críticos da confissão comunitária costumam dizer, a saber, que ela favorece um laxismo espiritual. Avento a hipótese contrária. Aqueles cristãos que frequentam mais raramente as missas, são os que se confessam, também raramente, mas individualmente. Os que frequentam mais a eucaristia são os que também preferem a confissão comunitária. Parece que esta atrai pessoas de maior nível espiritual, de maior compromisso e vivência eclesial. Parece que ela consegue criar um clima de maior exigência espiritual que a confissão individual. Não se trata de uma comparação em abstrato, mas como se pratica na atual Igreja. Levanto a suspeita de que a confissão individual se faz em geral em momentos de mutirão, com certa rapidez, e por isso ela não proporciona o mesmo clima de tranquilidade e piedade que uma confissão comunitária preparada pelo sacerdote com mais esmero.

O P. Alberto Antoniazzi observara que “parece evidente que onde foi multiplicado o número de Missas (ou de cultos), a porcentagem dos participantes é mais elevada” (p. 48). Partindo desse dado, pode-se perguntar se não é possível pensar de maneira mais consistente na formação e organização dos ministros do culto . No momento, não há condições de pensar uma ampliação significativa do quadro de sacerdotes. A tendência é de que quanto mais viva se tornar a nossa Igreja local, mais surgirão lugares de cultos, para os quais não se têm sacerdotes ordenados. E quanto mais lugares de culto se criarem, mais viva se tornará a Igreja.

Surge então a questão, se não seria momento de pensar num “ministério instituído não-ordenado” do celebrante de culto, dando-lhe maior relevo e significação eclesial, que se confere atualmente ao ministro da eucaristia. Poder-se-ia pensar em cursos breves ou mesmo numa escola de preparação para ministros de culto. Durante esse curso, haveria um acompanhamento espiritual e intelectual que permitisse uma escolha do candidato a ser constituído “ministro do culto” numa celebração litúrgica por determinado tempo. De ambos os lados, do ministro e da Igreja hierárquica, haveria um compromisso de fidelidade. Superar-se-ia um puro espontaneísmo e aumentaria a legitimidade do ministro, ao ser reconhecido pela Igreja de maneira oficial. O desejo de que a comunidade participe na escolha de seus ministros não é no momento viável em relação ao ministro ordenado. Mas poder-se-ia começar tal prática com o ministro de culto. Portanto a escolha e designação final para receber o envio passaria de certo modo pela mediação da comunidade em que ele iria exercer sua função. Além do mais, seria uma resposta ao desafio ministerial levantado pelas Igrejas pentecostais e neopentecostais, viável na atual situação de Igreja.

A institucionalização do ministro do culto não deveria esgotar as outras possibilidades de ministérios instituídos não-ordenados, nem também o surgimento de formas mais carismáticas de ministérios espontâneos. A vitalidade duma Igreja particular manifesta-se também na pluralidade de ministérios. Basta recordar Paulo VI na Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi, que trata diretamente dos ministérios não-ordenados como “aptos para assegurar um especial serviço da mesma Igreja” e que estão em continuidade com “experiências vividas pela Igreja ao longo de sua existência” (n- 73).

Um dado da pesquisa pode animar-nos nessa linha de ampliar os ministérios instituídos e/ou espontâneos, a saber, o enorme número (44,3%) de pessoas que se declararam disponíveis a dar mais tempo para servir à comunidade.

8. O fenômeno das Igrejas pentecostais e neopentecostais

Inegável seu crescimento. A pesquisa já acusa tal fenômeno ao dizer que entre 20% a 40% das pessoas apontam o fato de algum membro de sua família ter deixado a Igreja. Não especifica que seja para uma entre as  Igrejas pentecostais e neopentecostais. Mas certamente irá nessa direção. 46% dos crentes foram católicos. A maioria dos pertencentes às outras religiões vieram das hostes católicas.

O crescimento do fenômeno pentecostal é visível aos olhos de quem passeia pelas periferias de nossa cidade e pelas estradas do Estado. Nascem templos como cogumelos depois de chuva.

Este fenômeno assenta-se sobre o tripé da cura, do exorcismo e da promessa de prosperidade econômica. Três forças extremamente apelativas para o nosso povo, sobretudo no momento atual.

A prática da cura encontra, antes de tudo, um desejo vindo de matrizes religiosas arquetípicas, que nós mesmos introjetamos no povo com nossas pregações tradicionais. O catolicismo milagreiro penetrou as camadas populares e mesmo não populares até o mais profundo da psique. As Igrejas pentecostais e neopentecostais simplesmente tocam tal tecla menos manuseada pelos católicos depois do Concilio Vaticano II. Além disso, a situação precária do sistema de saúde do país não é a causa, mas agrava tal desejo e necessidade de cura. Somando esses dois fatores, as massas correm em busca de milagre, onde este se oferece, quer nos templos pentecostais e neopentecostais, quer junto às imagens milagrosas de Igrejas católicas.

A situação das camadas mais pobres torna-se cada vez mais precária. Vive–se numa atmosfera de “tentação” contínua, de violência extremada, de penúria, de pressão psicológica, que, em muitos casos, provocam desequilíbrio físico e mental nas pessoas. Comportamentos esquisitos surgem, quer para as próprias pessoas, como para os outros. Nesse momento, interfere a interpretação do pastor pentecostal ou neopentecostal  duma presença do demônio. O demônio também pertence à matriz psíquica profunda do povo. Nós semeamos esse arquétipo. Agora ele eclode na forma de exorcismos nas Igrejas pentecostais e neopentecostais. A dramaticidade da vida real permite que os exorcismos assumam o mesmo grau dramático. Onde se oferece um exorcismo, lá correm as pessoas acabrunhadas por misteriosas forças internas, que são a condensação psíquica de uma contínua violência a que estão submetidas no cotidiano.

Envolvendo o clima propício para a cura e/ou para o exorcismo, cria-se um verdadeiro êxtase coletivo. Ora tal sensação é altamente terapêutica para pessoas submetidas a pressões psíquicas violentas, como é a maioria de nosso povo pobre na sociedade moderna, sobretudo nas grandes cidades. Nesses êxtases, experimentam as pessoas um sentimento de solidariedade, sem necessidade do peso de criar uma comunidade estável com exigências constantes.

As Igrejas pentecostais e neopentecostais prometem prosperidade. Quem não a deseja, sobretudo quando vive na carência absoluta de tudo? Não se trata da promessa aleatória das loterias, que são frequentadas certamente cada semana por um público gigantesco. É uma promessa que se vai cumprindo cada dia e de maneira verdadeiramente constatável. De fato, na sua pobreza muitos se entregam à bebida e a outros gastos supérfluos que os mergulham em miséria maior ainda. Uma lenta recuperação moral, produzida pela pregação das Igrejas pentecostais e neopentecostais, leva a um duplo efeito. De um lado, consegue-se um mínimo de poupança evitando esses gastos do vício e, de outro, muitos se empenham mais seriamente no trabalho produzindo naturalnmente melhora de rendimento. Essas duas pequenas fontes econômicas terminam produzindo o efeito de melhoria na vida material, identificada com a bênção de Deus e a generosidade nas esmolas dadas no templo.

Estas razões referem-se à estrutura interna da evangelização das Igrejas pentecostais e neopentecostais. Elas explicam, em parte, esse sucesso enorme das pregações e ações dos pastores. Entretanto há uma agilidade ministerial das Igrejas pentecostais e neopentecostais que lhes permite uma presença crescente junto às populações, sobretudo urbanas e concentradas. Para formar um pastor pentecostal bastam alguns meses. O campo de escolha é amplíssimo, já que não se exige nada mais do que o desejo de sê–lo e a consagração à obra. Além disso, nem faltam compensações econômicas. Com esse espectro gigantesco de escolha, os pastores são produzidos às dezenas e centenas por ano numa única cidade e lançados no mercado espiritual das Igrejas pentecostais e neopentecostais.

Esta abundância de pastores traz uma consequência altamente propícia para o crescimento das Igrejas. Os pastores podem demonstrar e praticar uma acolhida mais personalizada às pessoas. As comunidades podem ser menores, já que podem subdividir-se progressivamente e encontrar um pastor. Num país de extrema carência humana, em que as pessoas pobres são aviltadas e humilhadas praticamente em todos os ambientes, sentir-se gente numa Igreja é uma experiência muito gratificante.

Além disso, o pastor consegue articular duas atitudes aparentemente antitéticas, mas que produzem um efeito de sucesso. De um lado, esta acolhida e de outro um virulento autoritarismo. Este, porém, é apresentado como um encargo divino, fruto de uma iluminação e vocação. Ele vem responder à necessidade que pessoas pobres desfeitas e desestruturadas pela violência da vida moderna sentem de um ponto de referência seguro, firme. E o pastor filhos oferece.

O ministro católico, por sua vez, é escolhido unicamente entre os celibatários. Aí já vai uma seleção enorme. É submetido a uma longa formação espiritual, intelectual e moral. E no percurso da mesma, muitos desistem. E na vida pastoral o ministro ordenado, por maior que seja a participação do leigo, ainda é o centro e motor. O pequeno número dos ministros ordenados deixa-os na impossibilidade de demonstrar acolhida personalizada a seus fiéis, criando comunidades muito formais e sem calor humano de proximidade. A formação atual dos ministros e as opções pastorais da Igreja impedem de usar do jogo do milagre, do exorcismo, do autoritarismo despótico, como o fazem as Igrejas pentecostais e neopentecostais. Portanto, evidentemente ante esse duplo quadro ministerial, não há por que estranhar que as Igrejas pentecostais e neopentecostais tenham muito mais possibilidade de crescimento.

A razão, que ultimamente se tem alegado, de que o crescimento das Igrejas pentecostais e neopentecostais vem do fato de a Igreja ter-se dedicado mais ao campo social que religioso, não convence. A menos que com isso se queira dizer que a Igreja oficial abandonou o incentivo às duas coordenadas espirituais, acima elencadas, do cultivo do milagre e do exorcismo. Mas tal mudança não veio por causa da dimensão social, mas simplesmente por influência da modernidade ilustrada, assumida no Concilio Vaticano II.

Há uma outra componente importante no crescimento das Igrejas pentecostais e neopentecostais. Elas atuam principalmente sobre pessoas oriundas do campo e sobre donas de casa. A respeito das donas de casa, parece mais simples entender tal influência por causa da massiva e maciça presença dos crentes através dos programas de rádio e de TV. As donas de casa durante o dia de trabalho ouvem muito o rádio. E as estatísticas apontam, de fato, uma maior audiência em relação ao rádio por parte dos membros das Igrejas pentecostais e neopentecostais.

No caso das pessoas do campo, as razões se referem provavelmente ao desarrimo que elas sentem ao chegar na cidade. E as Igrejas pentecostais e neopentecostais oferecem apoio, quer material, quer psicologicamente. Ambas ajudas favorecidas pela abundância de pastores, que podem acolher as pessoas diretamente, explicam esse fluxo.

De fato, quando essas pessoas estavam no campo tinham na presença mais forte da Igreja católica, suas tradições, festas, costumes, uma referência clara. Ao vir para a cidade, tal referência desaparece. Além disso, a falta de padres católicos, a sua posição menos autoritária, a dificuldade do contacto pessoal com essa massa de migrantes deixam as pessoas entregues à ação das Igrejas pentecostais e neopentecostais.

Com efeito, muitos frequentadores das Igrejas pentecostais e neopentecostais são pessoas que vieram do interior. Lá elas tinham na Igreja católica, claramente configurada pela posição física do edifício da Igreja e da pessoa do pároco, sua segurança. Ao virem para a cidade, perdem referências e são bombardeadas pelos meios de comunicação, pela sedução dissolvente da grande cidade. Desestruturam-se, tornam-se inseguras. Ora, o pastor, com seu autoritarismo, dogmatismo, firmeza e convicção inabaláveis, surge para essas pessoas como um ponto firme de referência e segurança, como dissemos acima.

Os crentes confirmam tal hipótese ao darem como motivação de sua participação nas Igrejas a busca e recebimento de apoio, amparo. Encontram nelas a tábua de salvação, que buscam na desorientação causada pela mudança para a vida urbana.

É de prever, portanto, que tal fluxo migratório da Igreja católica para as Igrejas pentecostais e neopentecostais continue crescendo, a não ser que haja uma profunda mudança na estrutura ministerial da Igreja católica — não previsível a curto prazo — ou se estanque o êxodo rural. Além disso, a pastoral na zona rural também deveria adaptar–se a essa nova problemática.

Falsa saída pastoral: Pastoral de conservação e reconquista

Estes e outros fatos mais têm reforçado uma pastoral de conservação de cunho tradicional ou renovado, organizada sobretudo pela paróquia.

A paróquia tradicional tem aproveitado o êxodo para as seitas de muitos fiéis para criticar a pastoral social da Igreja, o empenho nas comunidades de base e nas pastorais específicas. Julga-se que tal tem sido a principal causa da saída dos fiéis. Propugna-se um empenho nas práticas devocionais tradicionais que, segundo esta pastoral, têm ainda força de reter os fiéis e atrair os tresmalhados. Ou se é tentado até mesmo a usar as mesmas armas do milagre e exorcismo com a finalidade de atrair fiéis que emigraram. Naturalmente está por debaixo de tal pastoral uma teologia profundamente equivocada no seu sentido profundo. Transporta-se para o mundo da religião o mesmo espírito de concorrência comercial da sociedade capitalista, esquecendo-se da mais elementar teologia da graça e da salvação.

A imagem, que a grande imprensa quis veicular da última Assembleia da CNBB, vai precisamente na direção de uma Igreja arrependida de seu empenho pelo social e desejosa de voltar a favorecer o extraordinário na religião. No fundo, significa entrar na concorrência com as seitas valorizando os elementos maravilhosos do êxtase coletivo, dos exorcismos, das curas e milagres.

Além disso, conservam-se naturalmente os movimentos tradicionais de piedade, organizados (Apostolado da Oração, Filhas de Maria, Vicentinos etc.) e esporádicos (romarias, procissões, festas da padroeira etc.). Com isso pensa-se enfrentar o desafio das seitas, mas certamente não se responde às questões levantadas pela pesquisa a respeito do perfil do fiel.

A paróquia renovada tenta responder de modo diferente. É mais sensível à problemática levantada pelo novo perfil do fiel e seus questionamentos. Assume o desafio da pastoral urbana. Entende que o fiel está cada vez mais tocado pelo espírito da modernidade: desejo de participação e de valorização de suas experiências pessoais, subjetivas. Além disso, este fiel já não se sente mais vinculado tanto ao âmbito territorial da paróquia. Tem a mobilidade das cidades.

Nesse sentido, a paróquia pretende, pela renovação de suas estruturas internas, proporcionar muito maior participação do leigo nos ministérios, na administração etc. Além disso, em nível transparoquial, estão os movimentos modernos de espiritualidade e apostolado dos leigos. A pastoral urbana vive certo impasse e cada vez maior conforme cresce a cidade. E um dos nós de estrangulamento está na sua concepção paroquial-territorial. O homem urbano se define, não pelo território onde mora, mas pelos interesses que tem. Se quer fazer esporte, não vai ao clube de seu bairro, mas ao de seu interesse, status etc. O mesmo vale de todas as suas atividades humanas. E cada vez mais valerá também das atividades religiosas. Reúne-se para rezar ou freqüenta os ritos sagrados onde estes lhe respondem melhor às necessidades espirituais.

Ora, de maneira intuitiva, ainda que talvez não claramente consciente, os movimentos vêm responder a essa nova configuração da cidade moderna. São transparoquiais, transdiocesanos, transnacionais. Quanto mais se desenvolve a sociedade urbana, mais “trans” ela fica. E nesse sentido os movimentos são, como estrutura, uma resposta, ao que parece, adequada. Não se trata aqui de seu conteúdo, mas da sua estrutura de atuação. Os movimentos tentam também ir na linha de serem criadores e articuladores de comunidades de vida cristã. Uma Igreja de comunidades no nível popular — CEBs — e no nível de classes letradas — movimentos, coordenação de comunidades de vida cristã — pode estar anunciando um novo modelo de Igreja. As atuais estruturas de organização deverão ser profundamente modificadas para darem conta dessa imensa rede de comunidades vivas de fé, de vivência e de práxis cristã, sem as violentarem e sem também deixarem perder a referência unitária da catolicidade.

Conclusão

Muitas leituras dos dados da pesquisa são possíveis. E as conclusões e pistas pastorais vão brotando à medida que elas forem feitas. Algumas pistas aqui indicadas necessitam ser mais fundamentadas. Ter iniciado este processo é o grande sinal dos tempos de nossa Igreja particular. É realmente empenhar-se em “Construir a Esperança” contra toda esperança. O campo da inviabilidade de dados estatísticos abre o espaço da esperança teologal e pode mover muitos cristãos a acreditarem na causa da Igreja de comunidades

João Batista Libanio, S.J.
(1932-2014)

Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana (Roma), Libanio foi um grande teólogo da libertação, pastoralista, professor de teologia sistemática e da práxis cristã, escritor, orientador de estudos, conferencista, assessor da CNBB, da CRB, das CEBs, de grupos de jovens e de muitos outros grupos, movimentos e pastorais. Além disso, foi vigário paroquial. 

(os grifos são nossos)

Fonte:

Perspectiva Teológica 

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Nas pegadas de Medellín: as opções de Puebla https://observatoriodaevangelizacao.com/nas-pegadas-de-medellin-as-opcoes-de-puebla/ Tue, 04 Dec 2018 16:59:24 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=29467 [Leia mais...]]]> O Observatório da Evangelização, em sintonia com toda a Igreja da América Latina que se prepara para celebrar os 40 anos da III Conferência Geral do Episcopado Latino-americano de Puebla, compartilha a análise do teólogo João Batista Libanio sobre o significado deste importante evento eclesial de nossa Igreja, escrito no marco dos 30 anos.

Leia, a seguir, o texto na íntegra:

João Batista Libanio

As realidades históricas passadas paradoxalmente perdem-se no olvido sob muitos aspectos e persistem nas consequências reais, na configuração simbólica e nos dados acessíveis às pesquisas historiográficas. A Conferência de Puebla sumiu-se no horizonte da Igreja com a imensa parafernália de poder e controle, armada pela secretaria do Celam em articulação com dicastérios romanos. Isso pertence definitivamente ao passado. Na Conferência de Puebla, houve muitas lutas, vitórias e derrotas de diferentes grupos antagônicos respectivamente, alegrias e tristezas, gozos e sofrimentos. As pessoas levaram isso consigo e vários protagonistas daquele evento já se foram à casa do Pai, carregando segredos e confidências: o Papa que o convocou, o Presidente do Celam (Card. Aloísio Lorscheider), seu secretário geral (Cardeal López Trujillo) e inúmeros outros personagens decisivos no seu desenrolar, como D. Luciano Mendes de Almeida.

Ficaram-nos sobretudo a simbólica e o texto, que caem sob nosso crivo analítico. Há ainda testemunhas vivas que podem trazer novos depoimentos que ressuscitem aquele evento em pormenores desconhecidos. Mas, pouco a pouco, elas se apagam pelo correr dos anos. Estamos a quase 30 anos de distância [hoje, em 2018, a 40 anos].

As opções de Puebla entendem-se, naturalmente, no contexto social, político, econômico e cultural. Propomo-nos aqui esboçar rapidamente a situação eclesial e nela inserir as opções.

Contexto eclesial

Paulo VI convocara a Conferência de Puebla. Mas, antes de sua realização, deixou-nos num clima de muito sofrimento e decepção diante da implementação do Concílio Vaticano II. Atribuem-se-lhe frases pesadas.

O Osservatore Romano informou que “o Santo Padre afirma ter a sensação de que “por alguma fresta entrou a fumaça de Satanás no Templo de Deus” (Ver o exemplar do dia 29/06/1972.).  “Há a dúvida, a incerteza, a problemática, a inquietação, a insatisfação, o confronto.” “Também na Igreja reina este estado de incerteza. Acreditava-se que depois do Concílio viria um dia de sol para a história da Igreja. Veio, ao invés, um dia de nuvens, de tempestade, de escuridão, de procura, de incerteza. Pregamos o ecumenismo e nos afastamos sempre mais dos outros. Procuramos cavar abismos em vez de fechá-los”(A. Melloni, O que foi o Vaticano II? Breve guia para os juízos sobre o concílio, in Concilium 312 (2005/4), p. 44/468.).

Esse ambiente de suspeita contra as inovações, feitas em nome do Vaticano II, influenciou na eleição dos dois papas seguintes. João Paulo I morreu poucos dias depois. Mas tinha aludido na Primeira Radiomensagem ao propósito de querer “conservar intacta a grande disciplina da Igreja, na vida dos sacerdotes e dos fiéis”. (Ver: L’Osservatore Romano, sem. Port. 3 de setembro de 1978, 9 (1978), n. 26 (457), p. 6.) João Paulo II, que o sucede, repete na Primeira Radiomensagem Urbi et Orbi: “Sob o signo da fidelidade à luz do Concílio: ‘Fidelidade significa ainda observância da grande disciplina da Igreja’” (L’Osservatore Romano IX (27 out 1978), n. 43 (464), p. 1-2.).

Tornava-se claro que cessava o tempo de novas experiências nos diversos campos: teológico, litúrgico, pastoral. Os três centros da Igreja – Vaticano, Diocese e Paróquia – triavam as experiências julgadas assimiláveis pelo conjunto da Igreja e as cercavam com legislação a fim de evitar novos avanços. Cúpulas conservadoras restringiam muito o campo das novidades em nítido esforço de reter ou mesmo de recuperar práticas anteriores ao Concílio que tinham entrado em crise e desaparecido. A pastoral era trazida para dentro da Igreja e espiritualizada, diminuindo-lhe o impacto secular. No setor da juventude, os efeitos de perda de élan transformador se tornaram muito claros. A Ação Católica especializada, que atuava diferenciadamente nos diversos meios estudantis, agrário, operário, cedia lugar para movimentos nos moldes do Cursilho de Cristandade, caracterizados por outra pedagogia. Deslocou a ênfase no social para a conversão pessoal sob o impacto de jogos emocionais. Os movimentos espiritualizantes se espraiavam pelos rincões da teologia, da pastoral, da vida consagrada.

Esse clima estava pronto para influenciar Puebla. Chocava-se com o setor da Igreja da América Latina que assumira corajosamente as linhas de Medellín. Então, duas posições se defrontaram em Puebla.

a) Havia os que queriam a continuidade pura e simples das opções de Medellín. E, se preciso, radicalizá-las ainda mais devido ao agravamento do contexto sociopolítico de repressão, de dominação capitalista. Lá foram dispostos a batalhar pela tradição de Medellín. No interior da Conferência, havia bispos que desposavam claramente tal linha. A organização da Conferência conseguiu vetar todos os teólogos da libertação de maneira que no nível de assessores não havia representantes da linha de Medellín. Eles estavam na Conferência de Puebla, porém fora dos muros, à disposição dos bispos e de outros membros da Conferência. E por essa via tiveram influência e presença.

b) Mais forte, porém, havia o grupo encastelado na organização de Puebla, que protagonizava o enquadramento da Igreja da libertação, especialmente sob vários aspectos: a espiritualização da opção pelos pobres, ao evitar qualquer conotação política; a paroquialização das CEBs, afastando toda ideia de Igreja popular e revolucionária; a desqualificação da Teologia da Libertação como marxista; a secularização das vítimas cristãs e religiosas da luta libertadora, negando-lhes o título de mártir; a desautorização da pastoral profética e crítica da realidade social; o enquadramento dos religiosos/as e das instituições que os apoiavam nas malhas da pastoral diocesana sob a orientação do bispo; a supressão da Ação Católica especializada, ao substituí-la por movimentos espiritualistas e de impacto; o novo tratamento da religiosidade popular, ao mantê-la nos quadros tradicionais e sem perspectiva crítica e política; o redimensionamento dos círculos bíblicos, ao orientá-los para a oração de louvor sem conexão direta com os fatos da vida concreta do povo e sua organização.

O embate está colocado de maneira contrastante por razão didática. No concreto, as posições tendiam para tal distanciamento entre elas, mas nem sempre se manifestavam assim. Conseguiram-se, como o texto de Puebla o mostra muito bem, certos acordos, formulações ambivalentes, ao explorar a adjetivação.

Opções explícitas de Puebla

Contra tal pano de fundo, as opções de Puebla tornam-se mais claramente inteligíveis. Distinguem-se aquelas que se fizeram de maneira explícita e as que subjazem ao texto. Destacaremos, de início, as duas que constam no documento com o nome explícito de opção: a pelos pobres e a pelos jovens.

a) Sobre a opção pelos pobres

Sem dúvida, a mais importante e vistosa soa: opção preferencial pelos pobres. Posiciona-se em nítida continuidade com Medellín. Sabe-se que houve insistente tendência para substituir a expressão por “amor preferencial pelos pobres”. Ao trocar a palavra opção por amor, insinuavam-se certa espiritualização e nítido enfraquecimento do sentido de compromisso do termo opção. Embora a palavra amor seja belíssima e de lídima tradição cristã, posta, no entanto, nesse contexto, ela diminuiria o impacto militante do termo opção, substituindo-a por qualquer gesto de caridade. Não traria nenhuma novidade para dentro da prática da Igreja. Por isso, ela não vingou.

A lingüística nos traz luzes para entender o jogo dos adjetivos. A expressão “opção pelos pobres” sem nenhum adjetivo marca com clareza os dois termos básicos: opção e pobres. Essa forma despojada impacta mais. No jogo ideológico, para diminuir a força de um termo, adicionam-se adjetivos que terminam quase anulando-o. A tendência restritiva a Medellín entrou em tal jogada e forjou adjetivos e expressões paralelas para aligeirar o peso da opção. Já no título se apôs o adjetivo preferencial, que permite interpretação radical ou atenuada. Acrescentaram-se outros adjetivos e expressões como opção clara e profética, solidária, embora não exclusiva. Insiste-se na qualidade da pobreza evangélica. E alerta-se para “os desvios e interpretações com que alguns desvirtuaram o espírito de Medellín”, mas também para “o desconhecimento e até mesmo a hostilidade de outros” (Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano. A Evangelização no presente e no futuro da América Latina. Conclusões: Puebla. São Paulo: Loyola, 1979, n. 1134. Abrev. Puebla: citações dos números.). Sem dúvida, apesar de certas reticências, o tom principal reforça com nitidez a opção de Medellín. Reafirma “a necessidade de conversão de toda a Igreja para uma opção preferencial pelos pobres, no intuito de sua integral libertação” (Puebla, n. 1134); estabelece o fundamento bíblico da opção de Deus pelos pobres; insiste na prática de Jesus que considera os pobres como os primeiros destinatários de sua missão (Puebla, n. 1142); aponta o particular desvelo do Papa pelos pobres (Puebla, n. 1143). O quadro da imensa maioria daqueles, que vivem em situação de pobreza e até de miséria, veio agravando-se (Puebla, n. 1135). Tal realidade desperta a consciência e decisão da Igreja na linha da denúncia profética respeito às graves injustiças e de compromisso concreto (Puebla, nn. 1136, 1138) à custa de perseguições (Puebla, n. 1138) e de juízos destorcidos (Puebla, n. 1139). Conclusão: conversão e mais compromisso(Puebla, n. 1140). Estamos, portanto, na lídima tradição medellínica.

b) Sobre a opção pelos jovens

João Paulo II insistira na importância dos jovens. Os bispos se tornaram sensíveis a tal realidade tanto por causa do peso numérico quanto pelo poder transformador dos jovens. Em Puebla, estava-se a 10 anos de distância daquele tufão juvenil do final da década de 1960, que produziu modificações profundas no comportamento da sociedade. Hoje, com maior distância, nos damos conta da real importância do evento de Maio 1968 na França com os ulteriores prolongamentos.

Não faltaram críticos de Puebla que temeram a opção pelos jovens conter certo insinuante diversionismo em relação à opção pelos pobres. Os anos seguintes à Conferência de Puebla mostraram que a opção pelos jovens não vingou. Faltou maturidade de tempo e consciência. Pareceu algo abrupto. Santo Domingo retoma-la-á, insistindo que não basta opção afetiva. Deve ser efetiva, concreta por uma pastoral juvenil orgânica, com acompanhamento e apoio real em diálogo mútuo entre jovens, pastores e comunidades. Exigem-se maiores recursos pessoais e materiais por parte das paróquias e das dioceses (Consejo Episcopal Latino-Americano-Celam, Santo Domingo: conclusões. São Paulo: Loyola, 1992, n. 114. Abrev. Santo Domingo: citações do número). Essa retomada de Santo Domingo reflete o caráter antes idealista que realista de Puebla. Aparecida, a 15 anos de Santo Domingo, ainda se debate com a pastoral da juventude. Constata que “na evangelização, na catequese e, em geral, na pastoral persistem linguagens pouco significativas para a cultura atual e em particular para os jovens” (Documento de Aparecida. Texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe. São Paulo/Brasíllia: Paulus/ Paulinas/CNBB, 2007, n. 100d. Abrev. Aparecida: citação do número). Volta de novo a retomar “a opção preferencial pelos jovens, em continuidade com as Conferências Gerais anteriores, dando novo impulso à Pastoral da Juventude nas comunidades eclesiais (dioceses, paróquias, movimentos etc.)”, (Aparecida, n. 446a) com uma série de propostas concretas. No horizonte, está a repetida afirmação de que os jovens constituem “a grande maioria da população da América Latina e do Caribe. Representam enorme potencial para o presente e o futuro da Igreja e de nossos povos, como discípulos e missionários do Senhor Jesus”, “sentinelas da manhã” (Aparecida, n. 443) e “a esperança e a riqueza de nosso Continente”, nas palavras de Bento XVI (Do discurso do Papa, in Documento de Aparecida… p. 265).

Esse passeio por Aparecida nos mostra a persistente preocupação da Igreja com os jovens e, implicitamente, a dificuldade de acesso a eles e o pouco vigor da opção de Puebla que se arrasta até hoje com carências e incertezas.

Opções implícitas

Comunhão e participação

A leitura atenta do documento de Puebla revela inúmeras outras opções que os bispos fizeram e que orientaram a confecção do texto. O episcopado brasileiro, antes de ir a Puebla, preparara alguns subsídios (Documentos da CNBB. Subsídios para Puebla, n. 13. São Paulo: Paulinas, 1978. – Abrev. Doc CNBB). Atravessa a inspiração central o binômio comunhão e participação. Ele é “o fio condutor do documento” (D. Jaime Chemello, O contexto de Puebla, in Teocomunicação 9 (1979,2), n. 44, p. 144. Ele foi um dos membros da Conferência e 20 anos depois foi eleito presidente da CNBB). Serviu de amortecedor em relação à proposta de pôr o tema da libertação como central (ANTONIAZZI, Alberto. Libertar para a comunhão e libertação, in Convergência 15 (1980), n. 129, p. 40) ou quem sabe talvez para atenuar, de maneira sutil, a perspectiva libertadora. A Igreja quer tornar-se visível como sinal de comunhão entre as pessoas. A vocação original do homem é para a comunhão de vida com Deus e para a participação de sua felicidade. A comunhão com o Pai faz dela instrumento de conversão dos homens para a união, onde cada membro possa chegar à participação ativa e à corresponsabilidade através de organismos eficazes (Doc CNBB n. 54-56). “A Igreja solidária, sinal e instrumento de comunhão no meio do povo, superará qualquer vinculação a sistemas ou regimes de opressão.” (Doc CNBB n. 57). “A teologia da comunhão dá sentido, força e rumo à Teologia da Libertação: libertar integralmente para a plena comunhão da vida fraterna dos homens entre si e comunhão filial dos homens com Deus Pai.” (Doc CNBB n. 76).

“Prossiga-se o aprofundamento […] de uma Igreja de fraternidade, participação e diálogo.” (Doc CNBB n. 87). Relendo hoje tais subsídios, salta aos olhos como a Igreja do Brasil ia muito além da consciência possível da maioria dos episcopados e das instâncias romanas. Daí que muitas de suas sugestões não repercutiram no documento de Puebla e até hoje permanecem na esfera dos desejos, entre elas o estudo de uma série de temas controvertidos desde a Teologia da Libertação até o valor, método e uso da análise marxista, (Doc CNBB n. 88) a situação dos que deixaram o ministério, novo tipo de presbítero, ordenação presbiteral de homens casados, novos ministérios eclesiais ordenados e não ordenados etc. (Doc CNBB n. 98-99).

A Igreja do Brasil, com o peso numérico, com a enorme credibilidade de que dispunha e com a presença profética e santa de D. Luciano Mendes de Almeida, pesou na opção de Puebla pela comunhão e participação. 

O binômio se escolheu para a ação na e pela Igreja. Ele presidiu ao esquema votado logo no início da Conferência. A terceira parte do documento se estrutura a partir dele: centros e agentes de comunhão e participação, e os meios e o diálogo para alcançá-las. Analisa-se assim a Igreja, na sua totalidade. O texto joga com o factual e o utópico. De fato, necessita existirem a comunhão e a participação na família, nas CEBs, nas paróquias, nas Igrejas particulares, no ministério hierárquico, na vida consagrada, nos leigos, na pastoral vocacional. E, para alcançá-la, propõem-se meios espirituais (liturgia, oração particular, piedade popular), o testemunho e a pastoral (catequese, educação, comunicação social). O diálogo merece destaque. Importante recordar que se vivia na Igreja daquele momento dilaceramento interno.

Contra esse fundo de tensões, a opção pela comunhão e participação permitia matizações e acentos diferentes. A Conferência dos Religiosos do Brasil organizou a Assembléia Geral de 1980 em torno dos temas centrais de Puebla. As conferências feitas chamaram a atenção sobre duas vertentes interpretativas. Ao frisar a comunhão, escondia-se certo viés institucional em detrimento da participação no interno e no externo da Igreja por parte do povo, dos leigos. Se se inverte o acento em favor da participação, a comunhão surge como a ser construída e não já dada de antemão sem mais. A comparação com o bolo ajuda a entender. A Igreja hierárquica prepara o bolo “eclesial” e convida os fiéis a comungarem e participarem dele. A comunhão precede a participação, rege-a, limita-a, condiciona-a. Cada um toma seu pedaço e sai feliz. Esta é a versão clerical. Outra leitura seria diferente. A hierarquia convida os fiéis para todos juntos prepararem o bolo, coserem-no e depois comerem dele. A comunhão nasce da participação. Esta constitui a comunhão, dá-lhe vida, configuração, jeito. Em termos pastorais, as consequências e diferenças se tornam bem significativas.

No espírito de Medellín, a comunhão nasceria da participação. Na virada de peso institucional que acontecia naquele momento de Puebla e continua, o processo é o inverso. A preocupação reside em manter a comunhão doutrinal, disciplinar, canônica e dentro dela se mede o nível de participação possível.

Libertação

Em que pese a triste campanha movida no Continente contra a Igreja da Libertação, Puebla não se afastou da opção pela libertação dos pobres na tônica maior. Os adjetivos integral, cristã, verdadeira, total, genuína, que se acrescentaram ao termo libertação, intentam evitar o uniliteralismo político, mas não excluem a conotação política. Antes, afirma-se com todas as letras que a América Latina vive em situação de opressão e dominação econômica, política e cultural. E que a Igreja se compromete com a libertação do povo oprimido.

A opção pela libertação se vincula estreitamente com os pobres, pois é feita em vista deles. Aparece como exigência intrínseca da evangelização, superando uma concepção espiritualista e puramente doutrinal. Pois ela implica consequências práticas e concretas. Atinge toda a ação da Igreja. A evangelização libertadora tornou-se horizonte para a pastoral do Continente. Concretiza e realiza a justiça social, como decorrência direta do evangelho de Jesus. A inspiração libertadora vem da revelação bíblica entendida ao longo da tradição da Igreja: santos padres, magistério, a grande teologia e a prática do cristão fiel.

Nessa opção, Puebla põe-se em nítida continuidade com a postura central da Conferência de Medellín. Na conferência de Medellín, estão as primeiras afirmações que Puebla retoma e aprofunda. O aspecto social da libertação impôs-se por força da análise da realidade. Os bispos, tanto por experiência pastoral, como por influência de análises sociopolíticas e econômicas, perceberam e afirmaram que a situação do Continente tem piorado para as grandes massas, conduzindo-as à extrema penúria e a grave sofrimento. A repressão, em nome da Doutrina da Segurança Nacional, tem pesado contra toda atitude profética e crítica.

O texto acentua o fato de a libertação ser um processo que se realiza na história em nível pessoal e social dos povos, e abarca dimensões da existência política, econômica e cultural. Radica no solo profundo da fé cristã, e estende os ramos por todos os campos da vida humana.

Puebla retoma uma afirmação contundente de Medellín e avança. “É o grito de um povo que sofre e que reclama justiça, liberdade e respeito aos direitos fundamentais dos homens e dos povos.” Medellín afirma que “um clamor surdo brota de milhões de homens, pedindo a seus pastores uma libertação que não lhes chega de nenhuma parte” (Pobreza da Igreja, n. 2). Puebla acrescenta: “O clamor pode ter parecido surdo naquela ocasião. Agora é claro, crescente, impetuoso e, nalguns casos, ameaçador” (Puebla, nn. 87-89).

Puebla pensa num primeiro nível de libertação que arranca da realidade social. Libertação, portanto, de caráter sociopolítico. Salienta que a motivação do cristão para empreendê-la vem da fé. E que a libertação necessita ir além do nível meramente sociopolítico para atingir todas as dimensões humanas até a mais profundo do pecado pela força da conversão, da graça. As libertações não se opõem. Elas se somam, se complementam, se enriquecem, de tal forma que a omissão de um dos níveis acarreta em descrédito da totalidade da libertação.

Igreja particular e CEBs

Apesar das resistências às CEBs, que aparecem já no discurso inaugural de João Paulo II ao tratar do magistério paralelo em conexão com elas, e da suspeita de manipulação política, de infiltração marxista no seu seio, sob o espectro da Igreja popular, o documento reafirma a opção da Igreja da América Latina por elas. Em Medellín, apenas começavam.

As CEBs “criam maior inter-relacionamento pessoal, aceitação da Palavra de Deus, revisão de vida e reflexão sobre a realidade, à luz do evangelho; nelas acentua-se o compromisso com a família, com o trabalho, o bairro e a comunidade local” (Puebla, n. 629). A sua multiplicação é considerada “esperança da Igreja”, segundo Paulo VI (Ibid.; cita Evangelii nuntiandi, n. 58) . Valoriza-se, na leitura de Puebla, a dimensão comunitária intersubjetiva, de preferência a de inserção e de compromisso social transformador da realidade. Percebe-se o receio dessa faceta das CEBs. A presença dos círculos bíblicos não merece a importância que na realidade têm. Alude-se à aceitação da Palavra de Deus e à revisão de vida e à reflexão sobre a realidade à luz do Evangelho. De novo, há desconfiança a respeito da metodologia desenvolvida pelas CEBs, especialmente no Brasil, à base dos escritos de Carlos Mesters.

Na mesma linha do incremento às CEBs, valoriza-se a Igreja particular em momento de forte romanização, mas sem a contundência que o assunto mereceria. Não falta referência à originalidade da Igreja na América Latina pelo “testemunho de serviço desinteressado e abnegado face a um mundo dominado pelo afã de lucro, pela ânsia de poder e pela exploração” (Puebla, n. 624).

Defesa dos direitos humanos

A América Latina vivia naquela década os piores anos da repressão política, desencadeada por regimes militares à base da Ideologia da Segurança Nacional. O diagnóstico que o Documento faz da realidade sociopolítica, econômica e cultural da América Latina já implica opção básica de virulenta crítica às injustiças e de defesa radical dos direitos humanos numa perspectiva de justiça social.

Os bispos alimentam-se antes das experiências pastorais do que de análises científicas, embora usem algumas categorias. Em face do povo sofrido, compartilham “as angústias que nascem de sua pobreza” (Puebla, n. 27). Partem do Evangelho, e, iluminados pela fé, discernem as interpelações de Deus nos sinais dos tempos para testemunhar, anunciar e promover os valores evangélicos da comunhão e da participação, ao mesmo em que denunciam tudo o que na sociedade contraria a fraternidade (Puebla, n. 15).

Emitem sobre a realidade social um juízo global em termos contundentes: “depois dos anos cinquenta, e não obstante as realizações obtidas, têm fracassado as amplas esperanças do desenvolvimento e aumentado a marginalização de grande parte da sociedade e a exploração dos pobres” (Puebla, 1260). Citam entre outros fatos: exclusão crescente, pauperização, (Puebla, 1207) crescimento da brecha entre ricos e pobres (Puebla, nn. 28, 30). A situação desde Medellín se agravou (Puebla, n. 487), os problemas de injustiça se aguçaram (Puebla, n. 793). Bastam essas afirmações para perceber o que viam os bispos. Descem a muitos pormenores no campo econômico, político e cultural que mostram a situação de extrema, palpável, desumana, generalizada pobreza e até de miséria das imensas maiorias do povo (Puebla, nn. 31, 90, 1129, 1159, 1207). No fundo, os direitos humanos básicos não eram respeitados por regimes de força, ao institucionalizarem a violência por meios repressivos: torturas, delações, violações da privaticidade, exílios, seqüestros, detenções arbitrárias, exclusão da vida pública por causa das idéias, assassinatos, terrorismo de Estado etc. (Puebla, nn. 42, 49, 46, 495, 1259, 1262, 532, 1180).

Em face de tal quadro, os bispos decidem lutar pelos direitos da pessoa humana, especialmente pelos dos pobres. A opção pelos direitos humanos cruza com a dos pobres e vai além. Porque, nos regimes militares, a repressão não atingiu unicamente os pobres. Setores das classes médias, acadêmicos, líderes civis e religiosos sofreram violenta repressão. Nesse sentido, ela amplia-se para espaços maiores. A opção de Puebla fundamenta-se na dignidade humana, em virtude da criação de Deus e da encarnação do Verbo, que lhe atribuem valor infinito. A natureza humana, independente de qualquer condição concreta, merece o respeito e os seus direitos ser defendidos.

No horizonte, se ergue o sonho da “civilização do amor” de que falava Paulo VI e na linguagem de hoje se falaria de “uma sociedade justa e solidária” em que haja entre os homens maior comunhão e participação nos bens de toda ordem que Deus nos outorgou (Puebla, n. 1255). Tal perspectiva se pensa para a ordem nacional e internacional. Pois em ambas existem mecanismos geradores de injustiça social por estarem impregnados de materialismo, egoísmo e não de autêntico humanismo (Puebla, n. 1264).

O texto tipifica os direitos humanos em três grupos: direitos individuais, sociais e emergentes. A Igreja proclama a exigência de sua realização (Puebla, nn. 1271-1273). Em outro momento, trata do direito a uma convivência internacional justa entre as nações, com pleno respeito à sua autodeterminação econômica, política, social e cultural (Puebla, n. 1276). E indica outros direitos, como o de cada nação defender e promover os próprios interesses perante as empresas transnacionais (Puebla, n. 1277).

Ação junto aos construtores da Sociedade na América Latina

Diante da situação paradoxal do Continente latino-americano em que convivem a tendência para a modernização com forte crescimento econômico e o fenômeno da pauperização das massas, Puebla profere palavra profética e testemunha sua mensagem como colaboração na transformação desde de dentro das estruturas da sociedade pluralista. Reconhece a importância de que sua pastoral penetre os quadros e diversos âmbitos da sociedade, superando a distinção entre pastoral de elites e popular.

Por essa razão, dirige um apelo aos políticos, aos homens de governo, aos intelectuais, aos universitários, aos cientistas, aos responsáveis dos meios de comunicação, aos criadores na arte, aos juristas, aos operários, aos camponeses, aos economistas, aos empresários, aos militares, aos funcionários etc. para que se empenhem na construção de uma sociedade pluralista, justa e fraterna (Puebla, nn. 1237-1249).

A preocupação principal consistiu em não deixar nenhuma força social de mudança de lado. Tal opção naturalmente corre o risco de não falar a ninguém. Como diz o provérbio popular, “quem muito abarca, pouco aperta”.

Metodologia

A metodologia não é inocente. Subjaz a ela opção de conteúdo, de objetivos e de propostas. Simples comparação com Medellín ajuda-nos a perceber a opção de Puebla. Em Medellín, havia palestras introdutórias que agitavam o tema. E lá estavam teólogos que seriam depois os corifeus da Teologia da Libertação. A provocação ia na linha da promoção humana, da justiça social, da paz, da libertação, da opção pelos pobres, da pedagogia conscientizadora, da evangelização encarnada, da renovação das estruturas da Igreja numa linha de pobreza, da vida religiosa inserida etc. Seguiam-se discussões. E, depois de obter certo consenso, redigiam-se os textos, independentemente uns dos outros. Daí a diferença no teor e valor deles.

Puebla evitou os dois primeiros passos da Medellín. Nenhum tema provocador para debate. Considerou-se a fase da discussão como terminada. Organizou-se a Conferência em vista da produção de um texto único, articulado. As discussões faziam-se em vista de redigir o documento final. Por esse caminho, as tensões e divergências se atenuavam. Os plenários não visavam à discussão, mas à mera sucessão de posições, com acúmulo de informações, sem confrontos teológicos e pastorais. Com isso, conseguiu-se um texto consensual sem arestas. Além disso, como já observei noutro lugar, os assessores foram selecionados de tal modo que os conhecidamente teólogos da libertação estiveram excluídos. Assim se evitaram confrontos teológicos no interior da Conferência.

Apesar de tal metodologia e de os redatores e assessores principais serem de linha conservadora, espanta-nos que o documento contenha passagens altamente proféticas, ao lado de certa pobreza teológica.

A força questionadora do texto deve-se fundamentalmente à presença de minoria de bispos e de outros membros que carregavam vivência evangélica corajosa de inserção no meio dos pobres e experiências das terríveis injustiças sociais. A palavra dessas pessoas, embora outros discordassem teoricamente, tinha tal força persuasiva que as suas propostas, sugestões e emendas passavam e assim estruturaram um texto com toques vigorosos e audazes.

Os silêncios

Não optar no momento em que se deve fazê-lo, silenciando-se, omitindo-se, configura-se verdadeira opção. A Igreja conheceu, ao longo dos séculos, o testemunho de filhos que deram a vida pela fé, tanto nas missões quanto em momentos conflituosos nos próprios países cristãos. Toda vez em que entravam em jogo explicitamente a defesa da Igreja ou de algum de seus dogmas, a clara perseguição ao fato de ser cristão, a reação violenta contra a evangelização e casos semelhantes, Roma não hesitou em considerar as vítimas de tal situação como mártires e canonizou não poucas delas.

A América Latina viveu situação única. Implantaram-se regimes repressivos e criminosos para defender o capitalismo na fase furiosa da implantação e desenvolvimento. Alguns ousaram invocar, no jogo ideológico, a defesa da “civilização cristã”, como se o ataque ao capitalismo viesse do socialismo enquanto ateu. Gerou-se ambiguidade semântica no jogo das palavras. Agentes de pastoral leigos ou religiosos/as, sacerdotes e alguns bispos assumiram atitudes proféticas de crítica ao sistema vigente. E pagaram com a vida tal ousadia. Entretanto, insinuava-se em meios eclesiásticos, por influência ideológica da direita, que essas pessoas foram perseguidas por razões e opções políticas e ideológicas marxistas. E, portanto, não passavam no exame dos critérios de martírio. Chocante parecia conferir-lhes o título de mártir já que tal acontecia em países católicos.

Por sua vez, outros reconheciam neles verdadeiros mártires. Em torno de suas pessoas, elaborou-se verdadeiro martirológio. As agendas latino-americanas, editadas sob a orientação do claretiano José María Vigil, divulgam amplamente a lista do “martirológio latino- americano”. As celebrações das CEBs voltam inúmeras vezes ao tema dos mártires na América Latina. Teólogos trabalharam tal tema. Leonardo Boff ampliou o quadro também para aqueles que não participavam da mesma fé cristã, chamando-os mártires do Reino de Deus.

A fim de valorizar tal realidade fundamental para a fé cristã, esperava-se que Puebla reconhecesse com gratidão, esperança e coragem o testemunho martirial de tantos cristãos do Continente que morreram por amor à justiça, na defesa do pobres. Teria a força profética de desmascarar o discurso dos regimes militares que se arvoravam em defensores da fé cristã. Mais: acusá-los-ia de ímpios, porque assassinavam cristãos, assemelhando-se aos inimigos da fé ao longo da história.

Puebla não fez tal opção. Preferiu o silêncio. Aludiu ao fato de os governos se confessarem cristãos e mesmo assim abusarem do poder repressivo e da força (Puebla, n. 42). Assinala o fato da perseguição que a Igreja sofreu por causa do testemunho de sua missão profética até a morte de alguns membros.

Também o documento de Aparecida não ultrapassou a barreira do som. Refere-se ao “testemunho de mártires de ontem e de hoje em nossos povos” (Aparecida, n. 140). Outras menções são genéricas  (Aparecida, nn. 220, 275)  ou propositivas (Aparecida, n. 396). Falta-nos ainda reconciliar-nos com a memória dos nossos verdadeiros mártires que empurpuraram o Continente, explicitando-lhes os nomes e o contexto histórico em que testemunharam a fé e o amor aos pobres por sua libertação.

José Comblin vê, nesse ocultamento do martírio, o fato de as elites quererem desfazer-se da responsabilidade histórica em face dos crimes que cometeram. Só lembrá-los ofende as classes dirigentes de muitas nações (J. Comblin, O projeto de Aparecida, in Vida Pastoral 49 (2008), n. 258, p. 9s).

Choca-nos ainda mais o pesado silêncio sobre a teologia latino-americana da libertação. Depois de séculos cultivando uma teologia-reflexo, a América Latina produz teologia própria, original, encarnada no contexto continental, escrita com vigor em obras de valor, reconhecidas pela teologia mundial. E o episcopado do Continente a desconhece como se não existisse. Beira o escandaloso, se não houvesse razões vindas, não do horizonte da verdade nem da objetividade, mas dos receios, das pressões superiores, da pecha de marxista, da reação negativa de muitos bispos e de dicastérios romanos.

Nem Aparecida conseguiu superar tal tabu de usar a expressão “Teologia da Libertação”. No entanto, o conjunto da Conferência, diferentemente de Puebla, mostrou-se aberto à sua contribuição por meio de dois sinais. A presença do Grupo Ameríndia, que organizou a presença dos teólogos da libertação, atuou em clima favorável de conhecimento e consentimento do Celam, prestando serviços a muitos bispos e a outros participantes da Conferência com “legitimidade e visibilidade”, embora com “papel muito discreto, secundário”, na linguagem do coordenador do grupo, Sérgio Torres. E outro sinal foi a realização de um Seminário latino-americano de Teologia na cidade circunvizinha de Pindamonhangaba promovido pelo Conselho Nacional do Laicato do Brasil. Com mais de 200 participantes, nele estiveram presentes teólogos/as ligados à linha da libertação.

Voltando aos anos de Puebla, o Continente latino-americano ardia, naquelas décadas, em lutas violentas entre a repressão do Estado e os movimentos sociais. Aí estava grande parte do melhor de nossa juventude. Não faltaram movimentos que nasceram à sombra da Igreja no mundo estudantil, operário e rural. Na dificuldade de discernir entre os movimentos que optaram pela via armada revolucionária de clara conotação marxista e os que carregavam em si os germes da futura sociedade solidária, o documento fechou-se em comprometido silêncio. Puebla refere-se vagamente “a criar livremente organizações para defender, promover seus interesses, para contribuir responsavelmente para o bem comum”, citando João Paulo II (Puebla, n. 1244). Não toca realmente no problema dos movimentos sociais, populares e não populares. Vários deles estavam então bem próximos da pastoral da Igreja.

Conclusão

Há quase trinta anos [agora, quarenta] de Puebla, que balanço fazer? O texto está aí para contínuos estudos e voltas interessadas. Logo após o evento, livros, artigos, conferências, cursos, discussões em grupo e outras formas de estudo e assimilação do documento inundaram o Continente. O tempo decanta a água pura evangélica e de valor pastoral da imensa massa de ingredientes conflituosos, inseridos por interesses ideológicos ou reflexos de medos.

O melhor da teologia latino-americana, a pastoral viva e as comunidades de base conseguiram construir o imaginário religioso social com a díade Medellín-Puebla como se fosse uma única opção. Ao fazê-lo, associaram a ambas as conferências a opção pelos pobres, pela libertação, pelas CEBs. O resto esvaiu-se na complexidade do texto.

O imaginário produz gigantesca simplificação, como os slogans, as palavras de ordem, as consignas. Por isso, exercem influência maior e ampla, ao atingir círculo estendido de pessoas. Dificilmente alguém, ao ouvir falar de Medellín-Puebla, associa a ideia de restrição, de medo, de volta à disciplina, de encurtamento de visão. Antes, tudo o contrário, embora em Puebla houvesse muitas reservas e se vivesse um momento de enorme tensão com a crescente presença de forças conservadoras na Igreja. Hoje a tendência restauracionista se fez mais clara, em claro afastamento do binômio Medellín-Puebla, ao alimentar movimentos alinhados com o centralismo romano.

João Batista Libanio

Pe. João Batista Libanio, SJ (1932-2014) era doutor em Teologia pela PUG de Roma, 1968, e reconhecido entre os grandes teólogos da libertação. Além de presbítero jesuíta, foi professor, pesquisador, escritor, conferencista e assessor de incontáveis grupos espalhados pelos Brasil.

Fonte:

Cadernos Teologia Pública do Ihu

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Medellín: história e símbolo https://observatoriodaevangelizacao.com/medellin-historia-e-simbolo/ Sat, 19 May 2018 04:15:58 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=28092 [Leia mais...]]]> Por João Batista Libanio

Há dois Medellíns. O histórico, com data e lugar definidos, produziu documentos e traz a marca de suas circustâncias, limites e novidades. O Medellín simbólico, que se alimenta do primeiro, já pertence ao imaginário social e religioso de amplos setores e incentiva a caminhada do povo.

 

Há vinte anos do término da 2ª Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano reunido em Me­dellín, perguntamo-nos ainda por seu sig­nificado político e eclesial. O ano de 1968 foi, sem dúvida, marcado por even­tos expressivos, começando pelas ruido­sas manifestações juvenis nos Estados Unidos e na Europa, passando pela Con­ferência de Medellín, para terminar no silêncio tenebroso do Ato institucional nº 5, que fechou os canais políticos do Brasil e reforçou o período de repressão.

Há dois Medellíns. O Medellín históri­co, com data e lugar definidos, que pro­duziu uma série de documentos. Como todo evento da história carrega a marca de suas circunstâncias, os limites de seu momento e o sentido de sua novidade. Há também o Medellín simbólico, que arranca do primeiro, se alimenta dele, o projeta para o imaginário social coletivo, mas que também consegue autono­mia de vôo. Uma análise-memória de tal realidade-Medellín deve levar ambos em consideração.

O Medellín-evento foi pensado e con­vocado dentro de uma perspectiva intra-eciesiástica definida por Paulo VI como aplicação do Concílio Vaticano II à América Latina. Tanto mais importante parecia tal propósito quanto o episcopa­do da América Latina se tinha mostra­do durante o Concílio como um dos mais tradicionais e conservadores. Enquan­to os bispos europeus, assessorados pelos grandes teólogos, que de fato alicerçavam os documentos do Concílio, se mos­travam sensíveis aos problemas da mo­dernidade centro-européia, os nossos bis­pos, pastores de um povo religioso tradicional, longe das fontes teológicas mo­dernas e sem vagar para estudos teóricos, vinham com uma teologia e concepção eclesiológica extremamente conservado­ras e tradicionais.

 

Tempo Medellín

Os acontecimentos históricos adquirem algumas dinâmicas que superam as inten­ções de seus principais protagonistas. As­sim Medellín iniciou com a proposta de conduzir uma Igreja pré-Vaticano II aos umbrais da era Vaticano II e terminou ultrapassando tal limite, inaugurando o “tempo Medellín”. Abriu-se no horizon­te do “desenvolvimento integral” (Pau­lo VI, Populorum Progressio) e encerrou-se na perspectiva da libertação, iniciou-se com bispos simplesmente inquietos pela problemática social e desejosos de mu­dança e saiu-se com a firme determina­ção da opção pela libertação dos pobres.

O Medellín histórico, o Medellín-documentos tratou da justiça, da paz, da família, da educação libertadora, da pasto­ral de elites e das massas, da vida inter­na da Igreja – catequese, liturgia, leigos, sacerdotes, religiosos, seminaristas, pastoral de conjunto – e meios de comunica­ção. Problemas, hoje candentes, ou ain­da não estavam em seu horizonte temáti­co ou não tinham o atual relevo, tais co­mo índios, negros, luta pela terra e a re­forma agrária, maior participação popular nas estruturas de poder da sociedade e da Igreja. Lá as comunidades eclesiais de base apenas estavam aflorando e vis­tas mais na perspectiva da “vivência da comunhão” sobretudo nas comunidades locais ou ambientais, “do trato pessoal fraterno entre seus membros” enquanto hoje elas são um continente de esperan­ça eclesial e de libertação.

 

Ruptura teórica

Medellín significou a ruptura clara com o esquema desenvolvimentista até en­tão dominante no mundo político-econômico e na mentalidade eclesiástica, despo­sando a recém elaborada “teoria da de­pendência”, com a consequente conclusão da necessidade de uma libertação de tal dependência para alcançar verdadei­ro desenvolvimento. Tal atitude teórica lança suas raízes numa perspectiva teológica, senão iniciada, pelo menos desperta­da e reforçada pelo ensinamento social de João XXIII, de interpretação dos sinais dos tempos. Medellín volta-se para os “si­nais dos tempos” de nosso Continente. Lê dois grandes sinais de valência contra­ditória: o terrível estigma da opressão ca­da vez mais organizada pelo sistema, a ponto de tornar-se “pecado social”, “violência institucionalizada”, e o surdo clamor por libertação vindo dos pobres, do povo cada vez mais consciente e orga­nizado. Medellín capta a “irrupção do povo pobre e de fé” para dentro da so­ciedade e da Igreja, num anseio de libertação, cercado por oceano de opressões. Nesse sentido, Medellín consolida a to­mada de consciência dos bispos da América Latina em relação aos compromis­sos com a luta pela justiça, aprofunda­mento da análise social da realidade do Continente com a consequente atitude de denúncia a partir da fé e com o peso moral da Igreja, assimilação do quadro doutrinal no campo social dos últimos papas — João XXIII e Paulo VI — e da Galdium et Spes do Concílio Vaticano II, temática da libertação do homem de toda escravidão com a necessária opção e exigência de transformações globais, au­dazes, urgentes e profundamente renova­doras do Continente. Numa palavra, os bispos descobriram que comprometer-se com a realidade social não é marxismo, mas decorrência intrínseca do processo evangelizador. Abre-se, então, amplo es­paço para novas forças libertárias nasce­rem e medrarem no seio da Igreja.

 

Novas práticas

De Medellín nasceu para os colégios católicos uma visão libertadora da educa­ção, que vinha sendo trabalhada por Pau­lo Freire. Mas os sólidos muros de nos­sos edifícios educativos não se deixariam penetrar facilmente por prática e teoria libertadoras se não houvesse o aval do episcopado do Continente.

De Medellín brotou uma renovação profunda da vida religiosa, ao encaminhar-se esta para uma maior inserção nos meios pobres, abandonando a sun­tuosidade de suas casas. Processo que continua até hoje, protagonizado pela Conferência Latino-Americana de Reli­giosos (CLAR) e pela Conferência dos Reli­giosos do Brasil (CRB).

Medellín pode ser também considera­do berço eclesial da Teologia da Liberta­ção (TdL), seja porque confirmou o mé­todo ver-julgar-agir, ao trabalhar com ele todos os seus documentos, seja por ter assumido a teoria da dependência, uma das matrizes semânticas da TdL, seja por ter feito a opção preferencial pelo po­vo, pelo pobre, a inspiração fundamen­tal de tal teologia.

 

Medellín simbólico

O Medellín histórico tornou-se bandei­ra, símbolo. Nasce o Medellín simbóli­co, que pertence já ao imaginário social e religioso não só da Igreja Católica, mas de cristãos e cidadãos do Continen­te, que se sintonizam com ele. O Medellín simbólico constrói-se a partir dos ele­mentos mais significativos do Medellín histórico e começa a fazer caminhada lu­minosa já há duas décadas. Por ocasião de Puebla, travou-se verdadeiro duelo sim­bólico a fim de configurar a imagem do­minante de Medellín. Apesar do ardor da refrega, firmou-se o Medellín simbóli­co da opção pelos pobres, do compromis­so de libertação.

Ele atravessa a Igreja em todos os seg­mentos e estamentos. No universo institu­cional hierárquico, é apelo à contínua conversão de lugares geográficos e sociais ricos para o povo pobre e a claro posicio­namento nas lutas populares. No nível dos agentes intermédios, Medellín simbó­lico incentiva uma pedagogia de escuta, de caminhada com o povo, em oposição a autoritarismos de direita e de esquer­da. No nível popular, Medellín significa esperança de que a libertação está mais próxima, ao ser anunciado por uma Igre­ja que se empenha em sua concretização e que mobiliza outros setores da socieda­de nesta direção.

Enfim, Medellín simbólico continua sendo verdadeiro divisor de águas entre uma Igreja que nasce do povo pela for­ça do Espírito, que se deixa construir mi­nisterialmente por esse povo pobre, que lhe privilegia os interesses, que busca uma presença popular no nível de delibe­ração e decisão, e uma Igreja ainda pre­sa a estruturas verticais, pouco sensível aos reclamos populares, preocupada em demasia com seus interesses corporativos.

É tanto mais importante recordar – colocar no coração – reviver o Me­dellín histórico e reforçar o Medellín sim­bólico, quanto maiores são os riscos e as tentativas atuais de uma “volta à gran­de disciplina”. O Medellín simbólico ne­cessita ser continuamente refontizado pe­lo Medellín histórico, para que não se perca sua força crítica libertadora.

 

Fonte:

Revista Tempo e Presença, 233 (1988), pp. 22-23.

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Em tempos de extrema subjetividade e ritualismo exterior acentuado: importa meditar a prática libertadora do Jesus palestinense https://observatoriodaevangelizacao.com/em-tempos-de-extrema-subjetividade-e-ritualismo-exterior-acentuado-importa-meditar-a-pratica-libertadora-do-jesus-palestinense/ Tue, 26 Sep 2017 11:31:40 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=24996 [Leia mais...]]]>

Evangelizar implica cultivar intimidade com a pessoa de Jesus de Nazaré, o profeta que encarna, por palavras e ações, o dinamismo do Reino de Deus. Além disso, exige do/a evangelizador/a buscar lucidez diante dos desafios e urgências de seu tempo. João Batista Libanio, por ter se dedicado tanto a vivência da fé na contemporaneidade, no marco de seus 80 anos, um pouco antes de partir para o grande encontro com o Pai, em entrevista, assim caracterizou o nosso tempo:

“No momento atual de pós-modernidade vivemos o paradoxo de extrema subjetividade e de ritualismo exterior acentuado. A subjetividade não se molda pela liberdade interior, nascida da experiência da proximidade de Jesus, mas da autocentração hedonista e narcisista. E o ritualismo reforça tal perspectiva. A própria exterioridade confirma o lado autocentrado da pós-modernidade. Jesus aporta claro antídoto a tal tendência já que ele afirma, como norma suprema, o amor de si até a entrega da vida pelo e para o outro. Não há maior amor que dá a vida. Vida hoje significa tempo, cuidado, liberdade de e para, serviço.”

Na travessia desses tempos difíceis, para Libanio, na esteira de outros grandes mestres espirituais da fé cristã, não há outro caminho: importa voltarmos ao Jesus palestinense e caminhar com ele, passo a passo, da Galileia a Jerusalém, contemplando em cada encontro, palavra e ação, a sua liberdade libertada para amar e servir, o seu discernimento espiritual na busca convicta e livre de colocar-se a serviço dos/as sofredores/as, fazendo a vontade do Pai, concretizando em seu agir o dinamismo transformador do Reino de Deus, atento aos inviabilizados/as e excluídos/as da mesa da dignidade. Nas palavras de João Batista Libanio:

Cada vez mais frequento o Jesus histórico e a partir dele busco luz para a vida pastoral e estudos. Aliás, pertence ao cerne da espiritualidade inaciana dedicar nos Exercícios Espirituais amplíssimo espaço às meditações dos mistérios da vida de Jesus. Hoje, com a contribuição da exegese e de estudos históricos, a figura do Jesus palestinense, mesmo que lido à luz da ressurreição, se nos torna expressiva e instigante. Impressiona-me em Jesus a liberdade em face das formalidades e costumes da época, considerados lei de Moisés. Jesus apelava para o princípio superior do bem das pessoas, a partir do qual interpretava as prescrições. Não se enroscava em discussões formais de legalidades, próprias dos fariseus de seu tempo.

Fonte:

LIBANIO, João Batista. “Acolhi a vida como dom”. Entrevista a Graziela Wolfart e Luis Carlos Dalca Rosa publicada na Edição 394 do IHU on line em maio de 2012, pp. 7-12.

 

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A dimensão existencial da fé: dar o nosso coração a Deus https://observatoriodaevangelizacao.com/a-dimensao-existencial-da-fe-dar-o-nosso-coracao-a-deus/ Fri, 30 Jun 2017 14:06:00 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=21176 [Leia mais...]]]> Não é tarefa simples compreender os diversos aspectos da fé, enquanto atitude global da pessoa em comunidade diante da proposta salvífica de Deus. Comecemos com o seu aspecto existencial. A reflexão do teólogo João Batista Libanio irá nos guiar em nossa busca de lucidez:

 

“Na própria etimologia do termo “crer” está incrustrada essa dimensão existencial, de entrega, de aceitação, de acolhimento, de engajamento pessoal diante da interpelação de Deus. Crer vem do verbo latino “credere”, que por sua vez se origina da expressão “cor + dare”, i.é dar o coração (a alguém). “Credere Deo” significa, pois, entregar-Lhe o coração, colocar à sua disposição o cerne de nossa pessoa, oferecer-Lhe nossa liberdade num gesto de dádiva confiante.

(…)

A fé implica um compromisso de vida, de existência, seja de nossa pessoa como da comunidade. É toda a comunidade que se põe em atitude de escuta diante da Palavra interpelante de Deus. E, como membros dela, nós nos dispomos, no movimento dinâmico da graça, em posição de acolhida e de compromisso. O aspecto existencial atende mais à dimensão de gratuidade de nossa parte, salienta o caráter de liberdade da fé.

(…)

É verdade que o verbo crer se desgastou muito na linguagem comum. Oculta um matiz de incerteza e insegurança. Assim quando não estamos absolutamente certos de que alguém venha, dizemos:  creio que ele virá (pode ser que não venha). Há indícios de que venha, mas quem sabe pode falhar. Crer neste sentido é uma forma escassa de saber.

Mas de outra parte, sobretudo já influenciados pela maré existencialista, personalista, o verbo crer cresceu muito de valor na nossa linguagem. Quando digo a alguém: “creio em você”, exprimo uma relação profunda pessoal. Ela é fruto de um duplo movimento. Um desprender-se da posse de si , do referir o outro-a-si, do crer somente no pré e autoplanejado. O racionalmente calculado, o risco previamente medido, a garantia da resposta do outro anteriormente assegurada devem ser abandonados numa dinâmica de saída. O crer-no-outro significa, pois, fundamentalmente um esvaziar-se de si, um esquecer-se de si, um superar o desejo de só dar um passo em terreno pré-conhecido e sem riscos… Ela é o reconhecimento do valor do outro como sujeito, como dignidade, como liberdade, como valor em si mesmo, como humanidade. Crer em alguém  é dar-se a um Tu, cujo último motivo é esse mesmo Tu. Crer em alguém é nascer para esse alguém. É gratuidade radical na dádiva de si, sem cálculo, sem ter que recorrer a uma certeza prévia ou a uma verificação racionalmente feita…

Quando esse Tu é Deus, a fé é uma entrega radical, uma gratuidade de dom de nosso ser, numa saída e desprendimento de nós mesmos, em direção ao Ser de Deus por ele mesmo… Quando “digo” que a última realidade, aquilo que em última instância me concerne de modo incondicional, é Deus, comprometo toda minha existência com essa realidade. Digo com a totalidade do meu ser. Portanto, envolve minas decisões concretas, marca a orientação de minha vida, afeta todos os meus atos. Esse é o caráter existencial da fé.

O homem do Antigo Testamento, quando queria exprimir sua fé em Deus, usava a imagem de firmar-se em algo sólido… “O Senhor é minha rocha, meu baluarte e meu libertador. Meu Deus é rochedo em que me abrigo. Meu escudo, minha força salvadora, minha cidadela e meu refúgio, meu salvador” (2 Sm 22, 2-3)… Fé em Deus significa encontrarmos  nele uma base sólida em que colocar todo nosso ser frágil. Nele fundamos nossa existência, como uma casa sobre a rocha. A palavra hebraica mais próxima do que chamamos de fé é a raiz “amen“, que entrou na nossa liturgia. Crer é dizer “amen” a Deus, em ato de liberdade e responsabilidade, cuja última origem é o próprio Deus.

(…)

O Novo Testamento prolonga tal intelecção. Os evangelhos sinóticos nos apresentam um Jesus pedindo, aos que se aproximavam dele na expectativa de um milagre, um movimento de saída de si – deixando a autoconfiança – para confiar na forca de Deu, na presença do Reino… A fé significava nesse contexto saber-se incapaz de sair por si mesmo de tal situação, colocando na força de Deus sua única salvação, entregando-se a Ele sem condição… Esse aspecto existencial da fé revela a dimensão de criaturalidade do fiel, sua radical impotência, sua fraqueza profunda. E, sem desesperar-se de tal condição, entrega-se ele ao ser de Deus, reconhecendo-se envolvido por ele.”

LIBANIO, João Batista, Fé e política. Autonomias específicas e articulações mútuas. São Paulo: Loyola, 1985, p. 18-21

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Sobre o Documento de Aparecida: as Comunidades como o futuro da revitalização da Igreja https://observatoriodaevangelizacao.com/uma-das-novidades-do-texto-e-a-importancia-que-atribui-as-comunidades-e-ve-nelas-o-futuro-da-revitalizacao-da-igreja-a-preciosa-analise-de-joao-batista-libanio-sobre-aparecida/ Tue, 06 Jun 2017 19:37:39 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=19237 [Leia mais...]]]> Na celebração do marco de 10 anos do Documento de Aparecida, tão marcante na dinâmica do pontificado de Francisco, vale a pena reler a análise teológico-pastoral daquele que foi um de nossos maiores teólogos pastoralistas.

ENTREVISTA COM JOÃO BATISTA LIBANIO

(Julho/2008)

“Uma das novidades do texto é a importância que atribui às comunidades e vê nelas o futuro da revitalização da Igreja. Tema que atravessa todo o Documento”.

No horizonte, surge o sonho de uma Igreja que se movimenta de dentro de sua fé no amor de Deus em Jesus Cristo, e inspirada pelo Espírito Santo, que leve a todo o Continente mensagem de fé e vida”.

 

Libanio
Foto: LEO DRUMOND / NITRO

1. Quais as principais novidades da V  Conferência Geral do Episcopado da América Latina e do Caribe em relação a Medellín, Puebla e Santo Domingo?
João Batista Libânio –
Há novidades que vêm do evento e outras que se originam dos textos. O evento de Aparecida distinguiu-se de Medellín  pelo fato de que foi um encontro realmente de bispos. Eles mesmos tomaram as decisões da Assembléia e redigiram o texto. O papel dos assessores em Medellín foi decisivo. Depois de Medellín, perdeu muito de relevância para os bispos mesmos assumirem a tarefa. Em relação à Puebla e a Santo Domingo, Aparecida se mostrou mais envolvida com o ambiente. O fato de os bispos participarem da Eucaristia junto com o povo e experimentarem concretamente a religiosidade popular lhes terá feito bem. Em outros encontros, estiveram isolados e enquartelados no recinto dos trabalhos. Além disso, muitos outros acontecimentos entrosaram-se melhor com a Conferência. Houve um Seminário latino-americano de teologia, coordenado pelo Conselho Nacional do Laicato do Brasil, órgão da CNBB, e bem aceito pelo Celam. A Tenda dos mártires  se fez presença estimuladora. A romaria das CEBs e das pastorais mostrou a visibilidade da Igreja da base. A assessoria permanente de teólogos da libertação do Grupo Ameríndia manteve boa relação com a Assembléia, diferentemente de outras Conferências, em que eram mal vistos.

Medellín foi uma Assembléia que rompeu caminho. Puebla e Santo Domingo vieram nas pegadas. Aparecida significou quase uma surpresa. A criação do Sínodo Continental parecia ter assinado decreto de morte a esse tipo de Encontro. E ele aconteceu depois de delicadas tratativas e oposições importantes.

A maneira da presença do Papa variou em cada uma das Assembléias. No Rio, não houve. Pio XII  não viajava. Na Colômbia, praticamente houve a simples viagem de Paulo VI para inaugurar a Conferência, com poucas atividades além do ato de abertura. Em Puebla, João Paulo II, depois de abrir a Conferência, fez longa viagem pelo México, enquanto os bispos trabalhavam. E os discursos do Papa se faziam cada dia mais críticos no campo social, influenciando continuamente o desenrolar dos trabalhos da Conferência. Haja vista o fato de as Conclusões de Puebla citarem mais de 100 vezes a João Paulo II. Em Aparecida, Bento XVI fez os discursos antes de começar a Conferência, de tal modo que os bispos não foram surpreendidos por novas intervenções pontifícias, a não ser por uma audiência em Roma na quarta-feira, 23 de maio, em que comentou a visita ao Brasil, retificando um ponto de sua fala sobre a primeira evangelização do Continente. Quanto às diferenças de conteúdo do texto, aparecerão nas respostas seguintes.

 

2. Quais seriam, de maneira sintética, as três grandes luzes de Aparecida e quais as três grandes sombras?
João Batista Libânio
– Sobre três grandes luzes:

  • Afirmar a relevância da experiência cristã fundamental e fundante: o encontro pessoal com Cristo no interior da comunidade da Igreja. A catequese tradicional concentrara-se sobre o conhecimento teórico, e, às vezes, até mesmo abstrato da fé católica por meio de catequese verbal. Percebendo que tal catequese não oferece garantia para enfrentar os desafios da pós-modernidade que carrega as tintas no lado existencial e afetivo, uma fé racional soçobrava e os evangélicos com pregações impactantes arrastavam, para suas igrejas, os frios católicos.
  • Uma segunda decorre da alegria de ter-se encontrado com o Senhor. De tal experiência, brotam os desejos de segui-lo e anunciar-lhe o Evangelho do Reino da Vida aos povos latino-americanos.
  • E, finalmente, articulando os dois eixos da alegria do seguimento e o do impulso para a missão do católico no seio da Igreja, pensa-se, então, deslanchar ampla mobilização para uma grande Missão Continental. No horizonte, surge o sonho de uma Igreja que se movimenta de dentro de sua fé no amor de Deus em Jesus Cristo, e inspirada pelo Espírito Santo, que leve a todo o Continente mensagem de fé e vida.

Sobre três grandes sombras:

  • As sombras vêm do lado conservadoramente institucional. Até agora, o conjunto dos bispos da América Latina não superou o trauma da libertação, tanto na expressão teológica quanto na constituição de uma Igreja voltada para ela. Pesa estranho silêncio sobre a Teologia da Libertação, como se ela nunca tivesse existido nem tivesse sido uma das contribuições originais da América Latina para o consórcio teológico mundial. O próprio termo libertação aparece poucas vezes, cercado de adjetivos para tirar-lhe qualquer força real concreta.
  • A análise da realidade ressente do doutrinal. Em vez de partir, de fato, de boa análise da realidade, o texto a fez preceder de considerações doutrinais e misturou, na análise, perspectivas doutrinais de tal maneira que não ficou claro que mediações analíticas realmente usou. Produziu um gênero misto entre análise e doutrina. Estranha-se que nem se tenha mencionado o neoliberalismo, sendo atualmente o único sistema imperante com terríveis conseqüências para os países e camadas pobres.
  • Uma outra sombra se origina da incoerência entre a atitude de pôr no centro da vida eclesial a Eucaristia e, ao mesmo tempo, não enfrentar o problema do ministério ordenado masculino celibatário, em vista de que se consigam ministros ordenados suficientes para a demanda de Eucaristia. E no vácuo ministerial da Igreja católica crescem as igrejas evangélicas.

 

3. Considerando a necessidade de se iniciar uma nova etapa pastoral nas atuais circunstâncias históricas, como seria essa nova etapa pastoral?
João Batista Libânio –
O texto vislumbra ampla renovação da vida do católico médio por meio de uma convocação massiva por parte da Igreja institucional. Há certo voluntarismo idealista que espera mudança a partir da consciência das pessoas. Não se percebe bem que estruturas eclesiásticas favoreceriam tal impulso de discipulado missionário além da atual prática pastoral sacramental. O projeto mais detalhado da Grande Missão Continental será trabalhado na próxima Assembléia Ordinária do Celam, em Cuba. Temos que esperar para ver que tipo de iniciativas se farão para marcar essa nova etapa pastoral.

 

4. Uma novidade do documento é a tentativa de revitalizar a vida dos batizados para que permaneçam e avancem no seguimento de Jesus. Como se dá essa revitalização? O que fazer para motivar os batizados na fé católica?
João Batista Libânio –
A revitalização da vida do discípulo missionário parte de um fato primeiro que se traduz na alegria de ser discípulo para anunciar o evangelho do Reino da Vida. Há uma boa notícia que antecede ao cristão, que ele recebe e de que se faz porta-voz convencido. Na base de tal convicção está o encontro com Cristo, que o chama para segui-lo e o envia para o anúncio na força do Espírito Santo. A Igreja, por sua vez, oferece lugares e vocações específicas para viver tal realidade.

E o documento, em seguida, elabora longo capítulo sobre o itinerário formativo dos discípulos missionários em três lanços:

  • parte-se de uma espiritualidade trinitária do encontro com Jesus Cristo;
  • entra-se num processo de formação, indicando os critérios e os passos que vão da iniciação à vida cristã até a catequese permanente.
  • Finalmente, indicam-se os lugares que a Igreja oferece para a formação:
    • família;
    • paróquia;
    • pequenas comunidades eclesiais;
    • movimentos eclesiais e novas comunidades;
    • seminários;
    • instituições educativas.

Um das linhas fortes do documento se manifesta na insistência e relevância das comunidades na vida eclesial.

 

5. Aparecida confirma a opção preferencial pelos pobres e excluídos. De que forma essa opção será posta em prática?
João Batista Libânio –
A opção pelos pobres já se constituiu, como diz o próprio texto, “um dos traços que marca a fisionomia da Igreja Latino-americana e Caribenha”. É algo tão evangélico e arraigado na vida eclesial do Continente que é caminho sem retorno. As motivações teológicas variam. Bento XVI afirma e o documento repete que “a opção preferencial pelos pobres está implícita na fé cristológica naquele Deus que se fez pobre por nós, para enriquecer-nos com sua pobreza”. No entanto, o texto quase não avança no nível das mediações por causa do temor de a Igreja imiscuir-se em questões políticas. E o fato de incentivar o leigo não resolve, porque na prática a Igreja se identifica com o clero e este é o protagonista de tudo o que se faz. O Documento imagina que o agir consoante com a opção pelos pobres flua da fé cristológica e daí se faça criativo. As indicações permanecem na proximidade afetiva e existencial com o pobre. Já é algo, sem perguntar-se, porém, pelos movimentos sociais e outras instituições que objetivariam tal opção.

 

6. A partir de Aparecida, o que pensar das CEBs? O documento abre para uma retomada do modelo das CEBs ou este modelo já respondeu a uma época e agora se necessita outro novo modelo?
João Batista Libânio –
Uma das novidades do texto é a importância que atribui às comunidades e vê nelas o futuro da revitalização da Igreja. Trata-se de um tema que atravessa todo o Documento. As CEBs são tais comunidades no meio popular. Embora tenham presença discreta, recebem incentivo. Os bispos reafirmam-nas e dão-lhes novo impulso, reconhecem que elas são sinal de vitalidade da Igreja, instrumento de formação e de evangelização, e um ponto de partida válido para a Missão Continental permanente. Constatam a ambivalência do fato de que em muitos lugares florescem e em outros minguam. No entanto, têm sido verdadeiras escolas que formam discípulos missionários do Senhor.

 

7. O documento fala da formação de leigos para a missão evangelizadora. Em que consiste esta formação?
João Batista Libânio –
Qual refrão que atravessa o Documento Final, tudo começa para o cristão com o Encontro pessoal com o Senhor que o chama para viver, conviver com ele em comunhão de vida e destino. Daí lhe nasce a vocação de discípulo. De dentro dela, brota o zelo missionário. Mas tal trilogia – encontro, discipulado e missão – se vive na comunidade. E esta se chama Igreja católica. Daí a importância de se criar a identidade católica. Para ajudar-lhe a construção, requer-se sólida formação. Avulta a importância da catequese e dos catecismos. Ainda no pontificado de João Paulo II, elaborou-se o Catecismo da Igreja Católica na forma ampla e mais recentemente preparou-se um Compêndio para facilitar-lhe o uso. Para o campo social, editou-se o Catecismo da doutrina social da Igreja. O Documento insiste em que a catequese não se limite ao meramente doutrinal, mas seja verdadeira escola de formação. Inclui cultivar a amizade com Cristo na oração, o apreço pela celebração litúrgica, a vivência comunitária, o serviço aos irmãos. Em termos de Igreja de Brasil, a CNBB lançou o Livro do católico  para ajudar tal formação do leigo em vista da missão. Portanto, quatro passos:

  1. experiência pessoal inicial da fé em Cristo;
  2. consciência da identidade católica;
  3. alegria de vivê-la;
  4. zelo missionário de levá-la aos demais pelo anúncio do Reino da Vida.

O tema da vida ocupa o horizonte subjetivo e objetivo da missão.

(os grifos são nossos)

Fonte:

IHU

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Contribuições de João Batista Libanio para as ações evangelizadoras da Igreja (III) https://observatoriodaevangelizacao.com/contribuicoes-de-joao-batista-libanio-para-as-acoes-evangelizadoras-da-igreja-iii/ Sun, 19 Feb 2017 12:00:51 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=13007 [Leia mais...]]]> No dia 19/02/2017, João Batista Libanio completaria 85 anos de vida. Em memória do grande teólogo; professor; escritor; conferencista; orientador de estudos; assessor das CEBs, das Pastorais, da CRB e da CNBB; religioso jesuíta, presbítero da Igreja e vigário da Paróquia Nossa Senhora de Lourdes em Vespasiano – MG, o Observatório da Evangelização publica uma série de reflexões sobre as contribuições dele para as ações evangelizadoras da Igreja.

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Retrato do teólogo João Batista Libanio                                                                       Belo Horizonte MG Foto: LEO DRUMOND / NITRO

Contribuições de João Batista Libanio para a refundação das CEBs – 3ª Parte

Pedro A. Ribeiro de Oliveira

3. Luta e Esperança porque Deus está conosco – 4o Intereclesial de CEBs – 1981

O Encontro de Itaici – SP fechou o ciclo definidor das CEBs e criou os parâmetros para seu desenvolvimento. A importância desse primeiro ciclo de Encontros é tão grande que Libanio inicia seu texto referindo-se aos grandes concílios da Igreja e afirma:

Algo novo começa a acontecer ao sul do equador. A Igreja do Brasil, na sua história como na sua eclesiologia, começa a ser marcada por “Encontros Intereclesiais de Comunidades de Base”. Já o nome não cabe em nenhum dos clássicos cânones. Não é Concílio, nem Sínodo universal ou diocesano, nem Assembleia de Bispos. Trata-se simplesmente de um Encontro. Quem se reúne? Não as cúpulas das Igrejas, mas suas bases acompanhadas, algumas de seu respectivo bispo, outras carregadas da legitimidade da cidadania batismal de seus membros com o beneplácito explícito ou silencioso do bispo e nenhuma contra a vontade dele. Mesmo para o canonista mais escrupuloso, o caráter eclesial de tais encontros excele (1981, p. 140-141).

Sua realização ocorre num contexto social e político mais favorável que os anteriores: de um lado, a abertura “lenta, gradual e segura” que não suprimiu a repressão mas diminuiu seu teor de violência e, de outro, o êxito da greve dos trabalhadores metalúrgicos do ABC paulista em 1979, que abriu o caminho para massivas manifestações populares com explícito apoio de bispos como D. Paulo Arns e D. Cláudio Hummes. Já o contexto eclesiástico era mais complicado devido ao pontificado de João Paulo II que, empenhado em combater o comunismo na Polônia colocava também sob suspeita a Teologia da Libertação e as CEBs. Por isso sua preparação foi perpassada por crises (5). Libanio compara-o ao episódio do filho da viúva de Naim a caminho do cemitério: “Jesus no caso foi D. Waldyr. Parem, não o enterrem. É filho de viúva pobre. Assumiu a preparação e levou-a à frente.” (1981, p. 141).

A metodologia dos encontros anteriores, à base de relatórios das comunidades, foi deixada de lado por tornar-se inviável devido à sua quantidade (6): cerca de 400. Melhor, porém do que qualquer relatório escrito, nesse Encontro a realidade vivida nas bases fez-se presente pela intensa participação de animadores e animadoras de CEBs. Ao todo participaram 280 pessoas, das quais 184 representantes de CEBs de quase todos os Estados e mostrando terem o domínio da palavra, sem receio de falar para bispos e teólogos (7).

O texto de Libanio foi redigido durante e logo após o Encontro e expressa sua reflexão teológica ainda sob o impacto emocional daquele evento.

3. 1 Temática do Encontro

3. 1. 1 Uma realidade sofrida

O ponto de partida, como recomenda o método ver, julgar e agir é conhecer a realidade das lutas, problemas, vitórias e sofrimentos do povo, tendo como focos a “participação na Igreja, solidariedade no bairro, justiça no mundo do trabalho e serviço na política”.

Pouco a pouco foi surgindo diante de nós o terrível quadro da opressão que pesa sobre as camadas populares. Aquela descrição tão sombria do Documento de Puebla ou afirmações gerais da situação de sofrimento do povo foram recebendo concretizações, determinações. Sucediam-se os grupos dos diferentes estados, ora do campo, ora das cidades. Somente a dolorosa monotonia de seus problemas, dificuldades e lutas continuava a mesma.

Quando se recorre à justiça ou às autoridades, o povo sofre discriminação. Ora vão de instância em instância, sendo remetidos de uma repartição a outra, até que se lhes acabe a paciência ou o pouco dinheiro para as conduções (1981,p. 145).

Os relatos não eram, contudo, simples narração dos fatos. Habituado a comparar sua realidade às realidades narradas na Bíblia, o povo das CEBs com frequência fazia o paralelo entre elas. Assim, casas destruídas pela polícia faziam pensar em “Jesus que não tinha onde repousar a sua cabeça. Eram esses pequenos toques bíblicos que vinham trazer um pouco de luz à escuridão daquela noite de opressão”. De todo modo, “foram mais de 4 horas, em que estivemos sentados ouvindo essa horrível ladainha de sofrimentos, de miséria, de opressão, que pesa sobre os queridos de Deus” (1981, p. 146). Ao mesmo tempo, quase todas as narrativas mencionavam as lutas contra essa situação, mesmo quando seu êxito era apenas parcial. Essa capacidade de reação das comunidades populares está ligada ao apoio que recebem da Igreja. Isso se deve, é claro, à própria natureza do encontro que reunia comunidades eclesiais católicas.

Desses relatos Libanio deduz existirem “dois tipos de comunidades de base. Umas eram tipicamente organizações que nasciam da Igreja, (onde) a ligação com o clero é mais forte e permanece sempre uma dependência. (…) Elas evoluem na direção de dar origem e sustentar movimentos populares de reivindicação, de lutas sindicais”. Fator muito importante nessa evolução de comunidades nascidas no ambiente religioso – inclusive dos Cursilhos de Cristandade – e “a relação entre a Palavra de Deus e a vida. Como aquela ilumina esta, e esta, por sua vez, oferece lugar para escutar e entender a Palavra”. Outro tipo são comunidades organizadas a partir de uma luta popular motivada por necessidades básicas da vida. Nelas, “o povo reúne-se para discutir seus problemas, suas urgências concretas e logo emerge o elemento de fé, o desejo de celebrar essas lutas. E em torno delas, nascem comunidades eclesiais”. Essa diferença no fator originário, porém, não é decisiva:

nos dois casos, tornou-se elemento decisivo e essencial a todas a articulação fé e vida, compromisso com as lutas e Evangelho, a inspiração da Palavra de Deus e os problemas concretos. As CEBs fazem então parte do movimento popular, mas guardando sua especificidade, sua originalidade de lugar de reflexão à luz da fé, de oração, de celebração dos sacramentos, sobretudo da Eucaristia. Há um vaivém contínuo entre as comunidades eclesiais e movimentos que brotam delas (1981, p.147).

Essas observações levam o autor a concluir que a dimensão religiosa das CEBs não é apenas uma cobertura religiosa para movimentos de caráter social ou político – como na época insinuavam seus detratores – mas sim o fator decisivo para sua existência como comunidade cristã em missão no mundo: uma fé viva, que se expressa por meio de obras em favor dos “queridos de Deus”. Com efeito, “esta caminhada se fez na luta. As lutas são o reverso das opressões.” (1981, p. 147).

 

3. 1. 2 As lutas: reverso das opressões

É amplo o quadro de lutas traçado pelas comunidades. Elas abrangem a melhoria nas condições de vida (casa, água, transporte, escola, alimento, terreno para morar, esgoto, luz, calçamento nas ruas, segurança), justiça no mundo do trabalho (terra para trabalhar, vender melhor seu produto, evitar atravessadores, aumento de salário, segurança no trabalho, contra o desemprego), reivindicações de direitos sociais (sindicatos autênticos e sem peleguismo, maior participação nas decisões políticas) e maior participação nas decisões da Igreja (8). “Iríamos muito longe se as descrevêssemos como nos foram relatadas pelos grupos”. Nelas se destacam: “os aliados que apoiam a caminhada do povo, os adversários que a obstaculizam e as artimanhas sutis que o povo necessita desenvolver nessas situações con itivas desfavoráveis” (1981, p. 148).

Os principais adversários são as autoridades, os órgãos públicos e os grandes do lugar, a que eles chamam comumente de tubarões”, enquanto governantes como “presidente e ministros estão mais distantes”. Há “radical desconfiança de tudo que vem do governo. Mesmo quando num primeiro momento tudo indica que seja algo para beneficiar o povo ficam com as orelhas em pé para descobrir o engodo”. Outros adversários são “os sindicatos pelegos, que não defendem os direitos dos trabalhadores, mas dos patrões”. A experiência das comunidades aponta também como adversários os meios de comunicação que caluniam e chamam de comunista quem luta por direitos. Também foram apontados “bispos, padres ou irmãs que não acompanham as comunidades nas suas lutas” por causa de “sua visão autoritária e tradicional da Igreja, confinada unicamente ao espaço religioso e espiritual, sem nenhum envolvimento com os problemas reais do povo” (1981, p. 149).

Do outro lado estão os que apoiam as lutas e se aliam às comunidades.

Bispos, sacerdotes e religiosos/as têm sido decisivo para o surgimento, crescimento e fortalecimento das CEBs. Repetidas vezes voltou essa constatação da relevância da presença desses setores de Igreja à caminhada das comunidades. Na mesma linha, pudemos perceber como a Comissão Justiça e Paz, a CPT, a CPO, Centro de Defesa dos Direitos Humanos, Pastoral Ambiental, isto é, a colaboração de médicos, advogados e universitários engajados têm colaborado no fortalecimento das CEBs (1981, p. 149).

O mais importante, sem dúvida, é que as próprias CEBs se apoiam e se ajudam mutuamente. Encontros e visitas entre elas lhes dão novo vigor.“Na medida em que as comunidades se reúnem para celebrar a Palavra e discutir os problemas das pessoas, elas se firmam. As pessoas percebem a importância dessas comunidades.” Além disso, “as CEBs alimentam os movimentos e associações populares e são, por sua vez, alimentadas por eles”. Destacam-se os sindicatos autênticos, que reforçam as CEBs ao mesmo tempo “que elas os nutrem com líderes, pessoas comprometidas com as causas populares. Daí a importância atribuída por tantos relatórios às vitórias nas eleições sindicais e como o sindicato pelego lhes é inimigo” (1981, p. 150). A colaboração entre as CEBs e organizações populares é fundamental para o êxito das lutas.

O povo é fértil em criação de entidades populares: associação de lavadeiras, grupos de quarteirão, centros comunitários, associação dos amigos do bairro, comitês populares, roça e criações comunitárias, cooperativas de compra e venda, açougue e armazéns comunitários, feiras comunitárias, associação de professores, de motoristas, de plantadores de pêssegos, de arroz etc… Fora do contexto de toda essa variada gama de pequenas criações comunitárias de luta, de sobrevivência, de mútua ajuda, não podemos entender a vitalidade das CEBs (1981, p. 150).

Nessas lutas desiguais as comunidades de base usam “meios simples e pobres” para alcançarem seu objetivo. “São verdadeiras artimanhas sutis, cuja habilidade é transmitida no interior das comunidades, nos encontros. Grande parte da sede que têm de encontros provém desse desejo de aprender e transmitir” essas táticas que são descobertas no próprio processo social e que precisam ser empregadas pelos pequenos e fracos diante de inimigos poderosos (1981, p. 150).

Várias lutas foram apresentadas em forma de encenações cuja estrutura pouco variava: iniciava-se por alguma situação de opressão onde “aparecia o povo sofrendo, desunido, desintegrado”, levando alguém a falar da necessidade de união e de organização. Daí vinha o afrontamento com o opressor e depois de alguma peripécia, a vitória do povo unido. O autor pergunta: este esquema “reflete uma realidade ou antes um desejo? Mais provavelmente eles preferiram fixar para o plenário somente aquelas lutas em que a vitória foi o desfecho final”. Impressionado pela “força de esperança das bases” Libanio conclui que tal força é dada pela “utopia sempre presente, decorrente da certeza de que Deus está de seu lado e por isso vencerão” (1981, p. 157).

Por isso, a estratégia das CEBs não se resume, contudo, a identificar os adversários, conquistar aliados e adotar táticas eficazes para as lutas sociais. Elemento essencial nela é a referência à Palavra de Deus. Diz um depoimento: “a primeira coisa que a gente põe é o Evangelho, onde temos a segurança”. E Libanio comenta:

Aí está uma descoberta simples e eficaz. O grupo bíblico ou a celebração mostra aos fiéis que a situação em que vivem não corresponde ao projeto de Deus. “O novo projeto de Jesus é a igualdade de todos”, resume um representante do Pará. Outro ponto firme é a convicção de que “Deus está com o povo e por isso o povo não arreda pé”, continua o mesmo lavrador. Fazer passar a todo o grupo a certeza de que Deus está do lado dos pobres constitui a base da força popular. “Senti a presença de Deus”, “Somos como os 70 discípulos enviados por Jesus para levar a mensagem”, “Com a ajuda do Espírito Santo fomos informados de que … ” , frases como essas revelam essa consciência profunda que anima a comunidade (1981, p. 151).

Essa convicção da presença de Deus na vida e nas lutas do povo é reforçada pelas celebrações das comunidades, onde a fé partilhada torna-se mais firme e profunda. Isso ocorre também nos encontros de CEBs, e Libanio dedica todo um capítulo de seu texto a esse tema.

3. 2 Celebração da fé

Para o autor, “todo o IV Encontro transformou-se em magna celebração de fé das comunidades de base”. A exemplo do povo de Israel, suas lutas e vitórias tornavam-se hinos, orações, cânticos e gestos corporais de louvor a Deus. “A mística da celebração não animou unicamente os dois momentos principais para a oração – de manhã e no cair da tarde – mas invadiu todos os momentos, ora sob a forma narrativa, ora através das conversas pelos corredores, ora nas intervenções do plenário” (1981, p. 155).

Um exemplo: a via-sacra da ressurreição.

À frente ia a cruz da Páscoa do povo. Quatro estações. Na primeira celebrou-se a luta pela terra. (…) A fila da mandioca – símbolo do pobre agricultor – derruba simbolicamente a fila da cana – símbolo do dominador – que vai caindo ao solo. (…) Repetem cenas vividas de perseguição, prisões, liberdade, união e canto de vitória. Aquilo que a comunidade durante anos experimentou na dureza da luta contra os projetos de plantar cana e na destruição de suas roças de subsistência de mandioca era agora celebrado diante de nós. A segunda estação foi a experiência de outra Comunidade que cria seu Conselho comunitário de bairro num esforço de união e organização. Outro passo foi a vitória da água. Numa quarta cena o pessoal mostra a resistência de favelados às ordens de despejo. E na passagem de uma estação a outra, todos cantavam o hino religioso popular «Bendito da Mãe das Dores» (1981, p. 155).

A celebração final recapitulou o Encontro em forma de oração, com a ajuda de um trenzinho de cartolina

Na locomotiva tinha escrito “Deus convoca seu povo”. No vagão seguinte: «Para as tarefas de», no seguinte: «participação na Igreja», no seguinte: «solidariedade no local de moradia», no seguinte: «serviço na política» e no seguinte: «justiça no trabalho». No verso dele todos os participantes foram convidados a assinar seu nome. E no final da liturgia de encerramento a equipe responsável do IV Encontro entregou-o de lembrança para a equipe que assumira a preparação do próximo Encontro, exprimindo o sentido de continuidade. Com essa mesma significação, um membro da equipe cessante toma do altar uma das velas acesas e entrega-a à Igreja de Fortaleza na pessoa de um de seus membros. Estava selado o pacto de fidelidade de manter acesa essa chama que vem iluminando as comunidades nos diversos Encontros (1981, p. 156).

 

Libanio observa o contraste entre “celebrações comunitárias de religiosos, de clero, de jovens estudantes”, sempre “povoadas de silêncios, de momentos de hesitação, em que as pessoas temem assumir a palavra” e as liturgias populares, cheias de falas que traziam a realidade vivida para ser celebrada. Daí sua reflexão final:

Considerando o tempo da oração da manhã e o da missa, tínhamos mais de duas horas de celebração por dia. E quando lemos no jornal os comentários dos temerosos de que as comunidades de base se afastem do religioso para perder-se no político, percebemos como essas pessoas estão longe da realidade, perturbadas pelos próprios fantasmas. O povo educa-nos na oração. Ele gosta de rezar. Toma com tranquilidade o tempo necessário, sem pressa (1981, p. 157).

Paralelamente às celebrações, o 4° Intereclesial teve momentos de expressão artística popular, como cânticos e poemas, que Libanio comenta revelando o quanto o emocionaram. Mas para não aumentar demasiadamente este artigo, passaremos ao tópico final.

3. 3 Questões suscitadas pelo Encontro

Ao terminar um Encontro como esse, o teólogo sai com a cabeça fervilhando de questões”, diz o Autor (1981, p. 159). Quem no Encontro anterior havia se maravilhado com a exacerbação da fala popular agora se maravilha com seu amadurecimento em tão pouco tempo. Os assessores, que tinham tido papel preponderante nos dois primeiros Intereclesiais, submeteram-se ao silencio diante das falas populares no 3° Encontro e estavam preparados para manterem-se quietos também no 4° Encontro. Na altura do 3° dia, porém, esse silêncio dos assessores foi questionado por representantes das bases. Libanio conta que um deles “chegou a dizer: ‘vocês querem guardar os seus conhecimentos para si, arrancando de nós os nossos e depois escrever livros? Também queremos tirar de vocês o que sabem e escrever nosso livro’. Foi uma risada” (1981, p. 160). Essa provocação ajuda o autor a refletir sobre a contribuição específica dos bispos e dos assessores ou assessoras.

Os bispos “deram límpido testemunho de serviço eclesial. Sempre presentes, atentos. Bebiam as palavras dos pobres como lição de sabedoria. Essa proximidade com o povo santifica e converte os pastores (1981, p. 160). Menciona especialmente o cardeal Aloísio Lorsheider, que fora escolhido pelas comunidades do Ceará como parte da delegação eleita pelas bases, e que assumiu com alegria – e coragem, digo eu! – a realização do 5° Encontro em Fortaleza, apesar das pressões eclesiásticas para que os Encontros Intereclesiais passassem ao controle da CNBB (9).

 

Os assessores “guardaram a discrição própria de quem realmente quer aprender do povo”, mas isso não impede contribuírem na área que lhes é própria, como fez Fr. Carlos Mesters ao relacionar “a situação de opressão e de sementes de libertação descrita nos relatórios dos regionais à do Povo de Israel no Cativeiro do Egito até a criação da nova Sociedade com a ocupação da Palestina”, dando assim “um banho de esperança bíblica para todos nós” (1981, p. 159). Frei Betto foi chamado a fazer “rápida exposição sobre o problema da relação concreta e prática da fé e a participação nos movimentos populares e nos partidos”. Chamou então a “atenção para a falsa alternativa de restringir-se unicamente a atividades religiosas ou de reduzir tudo ao sindicato, ao partido. As comunidades eclesiais devem guardar uma autonomia de vida de um lado e articular-se com os movimentos de outro” (1981, p. 160). E Leonardo Boff

mostrou-nos como nas comunidades se dá uma atualização do mistério pascal, aparece o evangelismo da Igreja e surge uma figura nova de Igreja. O mistério pascal é um paradigma do que continua acontecendo na história. Jesus morre na cruz iníqua, sofre as estações da paixão do povo, mas também ressuscita na resistência e esperança do povo. Outras Igrejas podem ser mais ricas em instituições, falam mais do Evangelho. Mas as CEBs são mais evangélicas por causa das notas evangélicas de alegria, esperança, entusiasmo, jovialidade, largueza de coração, boa nova apesar da opressão e certeza da vitória, apesar dos empecilhos, que nelas reluzem. E a figura nova da Igreja surge quando pobres e despretensiosos grupos de cristãos se reúnem até debaixo de uma mangueira para rezar, para ouvir o Evangelho, para testemunhar a fé em Jesus, para segui-lo (1981, p. 160).

Entre os problemas a serem resolvidos está o de “compreender dentro de nossa visão pastoral conciliadora e harmônica, a dimensão constante de luta que apareceu desde o primeiro momento do encontro até o fim. Estamos diante de comunidades de base cujo dia a dia é continua e permanente luta“. Talvez foi a palavra mais repetida. Junto com a luta está “a consciência que a sustenta, (que) não é alimentada por nenhuma ideologia estranha, para usar o jargão dos discursos do sistema, mas pela consciência religiosa, de que a sua força vem de Deus, do Evangelho lido em comunidade, da percepção dos direitos inalienáveis outorgados por Deus, da mística gerada nas celebrações”. Essa consciência que faz cada vitória do povo ser celebrada “como ato de ação de graças a Deus, com canto e ritos religiosos” (1981, p. 162).

Esse problema desdobra-se em como “pensar uma pastoral que não seja conflitiva? Em muitos casos “a Igreja, em sua forma institucional, chegou depois. O Evangelho nunca. Ele sempre está na origem”. Aparece logo “a questão da violência, não como questão teórico-abstrata, mas como decorrência imediata do compromisso. O espírito comunitário afirma-se precisamente nessa comunhão de luta. Lá ele cresce, revigora-se” (1981, p. 163).

Na mesma problemática está a necessidade de conhecer-se melhor “as artimanhas e sutilezas populares. A nossa pedagogia popular ainda está capenga, por falta de compreender e captar com maior clareza as finuras do jeito popular de fazer as coisas, a inventividade daqueles que dispõem unicamente de recursos pobres”. Há que se recorrer à pedagogia de Paulo Freire para elaborar e sistematizar a pedagogia da artimanha (1981, p. 163).

Outro problema está na relação do político com a pastoral: as “comunidades eclesiais têm sua originalidade e identidade própria a partir da fé. Mas no dia-a-dia estão em permanente permeação com os movimentos populares reivindicatórios, sindicais e partidários”. O problema coloca-se “mais no nível da pedagogia que da simples reflexão teórica”. Explica:

se o Sindicato esvaziasse as comunidades e não permitisse que seus a filiados fizessem política partidária, ou se o partido viesse absorver todas as forças, deixando as lutas reivindicatórias e sindicais e as comunidades desmunidas de seus membros, estaríamos articulando falsamente as diferentes lutas e movimentos populares. Tampouco tem sentido uma comunidade eclesial que queira reter os membros dentro de si, impedindo-os de participar nos movimentos populares e partidos, a título de defender a comunidade da politização, em nome de pretensa primazia do religioso (1981, p. 163).

Levanta-se também o problema do projeto político. Não há dúvida de que as CEBs rejeitam o sistema dominante representado pelo Governo, pelas empresas, pelos patrões, pela polícia, pelos grandes proprietários, que são inimigos do povo. “As vitórias celebradas referem-se a enfrentamentos com esses poderes” (1981, p. 163). Essas vitórias, porém, são pontuais, porque estão longe de derrubar aquele sistema. “Em termos de utopia, aparece claro aonde se quer chegar: o projeto de Jesus, de fraternidade, de igualdade, de valorização das camadas populares e pobres. O que não parece ainda refletido e discutido são as etapas intermediárias, quais são as políticas e estratégias para chegar lá.” E termina com uma hipótese: “talvez o interesse pelo projeto político tenha aparecido sob a forma de pergunta: o que é que os partidos têm por detrás? A curiosidade pelos projetos dos partidos já começa a revelar esse interesse para que a utopia seja mediatizada historicamente” (1981, p. 164).

Finalmente Libanio constata a existência da “sadia tensão” entre a “evangelização em grupos pequenos – círculos bíblicos, celebrações das comunidades, encontros de reflexão – e a evangelização de massa através da reorientação de ritos tradicionais como procissões, vias-sacras, dramatizações populares”. As CEBs nascidas do atendimento personalizado em grupos pequenos percebem agora a importância de momentos de manifestação de massa. A grande quantidade de pessoas “produz efeito multiplicador e de crescimento de legitimação social. Naturalmente isso não pode ser feito nos moldes tradicionais conservadores, mas deve guardar o espírito das comunidades de base: comunhão e participação numa luta animada pelo Evangelho”. Mas conclui que “estamos ainda nos inícios” (1981, p. 164).

Luta e esperança, porque Deus está conosco. Este seria o resumo, para mim, desses quatro dias”. A esperança é o “motor da caminhada” porque está “radicada no duplo pólo da presença de Deus e da união-organização do povo”. Por isso as 300 pessoas despediram-se animadas. “O clima do Encontro foi de fato de otimismo. Fora de uma perspectiva de fé e de Igreja, pode parecer um ufanismo imprudente”. Lembrando a reação dos judeus diante dos apóstolos, Libanio afirma: “os 300 participantes não saíram bêbados do Encontro. Mas sentiram sim a presença do Espírito de Deus, que se compraz de estar do lado do mais fraco, do pobre, do que nele confia e não na força do dinheiro ou das armas”. E conclui: “saímos com os olhos voltados para a luta que prossegue, carregando a força da experiência vivida e sonhando com nossa próxima celebração dentro de três anos em Fortaleza. Até lá vai correr muita água debaixo da ponte” (1981, p. 164).

 

Conclusão

Os textos produzidos pelo Pe. Libanio a partir de suas observações sobre os quatro primeiros encontros intereclesiais são uma importante contribuição para a refundação das CEBs. Por isso, ao fazer aqui seu resumo comentado tomei como chave de leitura as questões que me parecem mais relevantes para o contexto atual. Nesta conclusão retomo esses pontos enfatizando sua atualidade.

Libanio foi mestre na pedagogia da assessoria. Sua participação nos Encontros Intereclesiais tinha pouco destaque porque ele raramente falava para a grande assembleia. Sabia que aquela era uma oportunidade ímpar para escutar o que o pessoal das CEBs tinha a dizer e, humildemente, escutava, observava e fazia suas anotações (10). Depois conversava com outros assessores, com pessoas da base, com bispos, sempre se dispondo a esclarecer as questões teológicas suscitadas no desenrolar do encontro. Tendo grande prestígio entre os bispos, era ele que se incumbia de, mineiramente, resolver as questões mais espinhosas. Seus textos bem expressam essa maneira de produzir conhecimentos a partir do encaminhamento teórico de questões levantadas pela prática.

Sua tese central é que o ser-Igreja supõe o ser-Povo. Daí seu encantamento com as falas que apontavam a autoconsciência popular: o povo percebendo-se a si mesmo como sujeitos da própria libertação. Não é este o desafio da Igreja católica hoje? Reclericalizada durante dois pontificados marcados pela “grande disciplina”, ela tornou-se uma Igreja de sacristia. Só a participação ativa do Povo-sujeito pode recuperar aquela Igreja presença no mundo dos pobres e na contemporaneidade. Neste sentido, refundar a CEB é refundar a própria Igreja católica, tirando-a das sacristias e templos e levando-a para as ruas e campos.

Isso supõe reativar a pedagogia libertadora que faz a diferença entre o “antes” e o “depois” do nascimento da CEB. Pedagogia que tem suas raízes na prática de transformação social a partir das bases e se expressa através do discurso fundado não mais no saber recebido mas sim no saber descoberto. Libanio aponta o papel crucial desempenhado pela Bíblia quando a pedagogia libertadora é usada nas comunidades cristãs: a intimidade do povo com a Palavra de Deus o leva a ver a presença de Deus no meio dele e seu projeto de Reino como Esperança para o êxito em suas lutas. Essa é a convicção própria das CEBs: “luta e esperança, porque Deus está conosco”. É nas lutas pela nova sociedade (tema que será desenvolvido em outros Intereclesiais) que se faz a experiência de Deus como libertador junto com seu Povo. Essa pedagogia libertadora requer a participação de agentes de pastoral capazes de desbloquear medos e preconceitos introjetados no povo pela cultura dominante. Por isso sua formação merece toda atenção. Não por acaso, portanto, este talvez tenha sido o campo ao qual Libanio mais dedicou seus esforços: a formação de agentes de pastoral.

Enfim, fica evidente que a CEB tem uma estrutura leve: não é reconhecida pelo Direito Canônico nem dispõe de patrimônio econômico para se autossustentar. Sua existência como “nova forma de ser Igreja” – como a qualificou em 1982 o Documento n° 25 da CNBB – depende de sua capacidade de conquistar o consenso dos fiéis e o apoio dos bispos. A isso devem se dedicar os teólogos e teólogas: explicitar na linguagem católico-romana a eclesialidade das CEBs. Libanio e outros assessores de CEBs abriram esse caminho, mas ainda há muito chão a ser conquistado.

 

Notas:

5. Libanio relata esses percalços com muita prudência, conforme exigiam as circunstâncias do momento. Hoje seria possível completá-lo com mais informações, mas isso fugiria ao propósito deste artigo.

6. Pe. José Oscar Beozzo, principal coordenador do encontro, assegura que doou o material para o centro de documentação da PUC de São Paulo, mas quando lá estive não consegui encontrar nem sinal dele.

7. Registro aqui a inesquecível fala de uma animadora de comunidade de Goiás – GO, referindo-se a D. Tomás Balduino: “este é o companheiro D. Tomás, que é bispo na minha diocese”. Esse clima de liberdade de expressão entre o conjunto de participantes e o espaço favorável da Casa de Itaicí ensejaram debates memoráveis, como o de D. José Maria Pires e Leonardo Boff sobre a eclesialidade das CEBs.

8. Eram tantas as lutas, que era impossível narrar todas. Frei Betto sugeriu-me, então, fazer um questionário aos participantes para sabermos em quantas delas cada pessoa estava envolvida. Rapidamente elencamos os principais tipos de lutas para colocar no questionário a serem respondidos pelos participantes. Libanio viu o questionário e protestou que ali não constava sua própria luta “pela transformação da Igreja”. Aceita a reclamação, ela foi incluída no questionário. Resultado: foi a que obteve maior número de respostas. Os resultados daquela pesquisa podem ser encontrados em OLIVEIRA (1981).

9. O fato de se chamarem Encontros intereclesiais e não “nacionais” tem um motivo profundo, que foi muito debatido na reunião entre bispos e assessores durante o 5° Encontro, em Canindé. Os Encontros não são nacionais porque as CEBs não são um movimento, mas sim a base da Igreja particular. O caráter intereclesial assegura a liberdade de uma Igreja particular convidar outras Igrejas (católico-romanas ou de outras confissões) para refletirem e celebrarem juntas, sem pedir autorização a alguma instância superior. Quando D. Aloísio aceitou levar o 5° Encontro para a Arquidiocese de Fortaleza, ele se comprometeu em fazê-lo em comunhão com o Regional da CNBB. Assim, ele garantiu a intereclesialidade do Encontro, mas reconheceu a importância da CNBB na promoção dos Encontros.

10. No 2° Encontro ele sentou-se ao fundo da sala e cumpriu a função de tradutor para dois convidados alemães, que haviam contribuído financeiramente para a realização do evento.

 

Referências:

BETTO, Frei. A educação nas classes populares. SEDOC, Petrópolis, 1979, p. 787-797.

BOFF, Leonardo. Eclesiogênese: as comunidades eclesiais de base re-inventam a Igreja. SEDOC, Petrópolis, 1976, p. 393-438.

LIBANIO, J. Batista: Uma comunidade que se rede ne. SEDOC, Petrópolis, 1976, p. 295-326.

LIBANIO, J. Batista: Comunidade Eclesial de Base: pletora do discurso. SEDOC, Petrópolis, 1979, p. 765-787.

LIBANIO, J. Batista: O IV Encontro Intereclesial de CEBs na interpretação de um teólogo. SEDOC, Petrópolis, 1981, pp. 140-165.

MESTERS, Carlos: Flor sem defesa: ler o Evangelho na Vida. SEDOC, Petrópolis, 1976, p. 326-392

OLIVEIRA, Pedro Ribeiro de: Oprimidos: a opção pela Igreja. REB, Petrópolis, dez. 1981, p. 643-653.

 

Sobre o autor:

Pedro A. Ribeiro de Oliveira. Nascido em Juiz de Fora – MG. Doutor em Sociologia pela Universidade Católica de Louvaina (1979). Foi professor nos Programas de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora e da PUC-Minas. É membro da Equipe do ISER-Assessoria. Desde 1976 tem assessorado as CEBs no Brasil. Endereço: Sítio Tarumã – Barro Floresta 36072-090 Juiz de Fora – MG. E-mail: pedror.oliveira@uol.com.br

Fonte:

Perspectiva Teológica

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Contribuições de João Batista Libanio para as ações evangelizadoras da Igreja (II) https://observatoriodaevangelizacao.com/contribuicoes-de-joao-batista-libanio-para-as-acoes-evangelizadoras-da-igreja-ii/ Sun, 19 Feb 2017 11:00:19 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=12918 [Leia mais...]]]> No dia 19/02/2017, João Batista Libanio completaria 85 anos de vida. Em memória do grande teólogo; professor; escritor; conferencista; orientador de estudos; assessor das CEBs, das Pastorais, da CRB e da CNBB; religioso jesuíta, presbítero da Igreja e vigário da Paróquia Nossa Senhora de Lourdes em Vespasiano – MG, o Observatório da Evangelização publica uma série de reflexões sobre as contribuições dele para as ações evangelizadoras da Igreja.

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Retrato do teólogo João Batista Libanio                            Belo Horizonte MG Foto: LEO DRUMOND / NITRO

Contribuições de João Batista Libanio para a refundação das CEBs – 2ª Parte

Pedro A. Ribeiro de Oliveira

2. A pletora do discurso – o 3º Encontro Intereclesial de CEBs – 1978

O Encontro de João Pessoa – PB seguiu um método muito diferente do anterior, cujos participantes foram separados em dois espaços de trabalho: num salão reuniam-se os e as representantes das comunidades; em outro reuniam-se bispos, assessores e demais convidados. Esse método foi criticado por não favorecer o diálogo entre todos, mas foi a solução encontrada para que tanto o pessoal vindo das bases pudesse se expressar sem constrangimento quanto os bispos estivessem à vontade com os assessores. Em João Pessoa os e as representantes das bases foram os principais protagonistas do Encontro, pois a eles coube debater os problemas levantados pelos relatórios, deixando os bispos e assessores na posição de ouvintes privilegiados. É a partir dessa situação que Libanio redige seu texto. Ele havia, é claro, estudado os relatórios; mas o texto final já foi influenciado pelo desenrolar do Encontro que ele qualificou como o momento de quebra do silêncio das CEBs:

Até então (1975) praticamente reinava um duplo silêncio teológico. Silêncio sobre as CEBs. Silêncio das CEBs. Rompeu-se vitoriosamente, em Vitória, o primeiro. (…) Não se podia mais esconder a criança em casa. Já tinha crescido bastante. (…) Defrontara-se corajosamente, em idade tão precoce, com a fúria da perseguição, as ameaças dos incomodados, a suspeita dos senhores das instituições dominantes. A novidade perturba a ordem. Esse surto eclesial e popular prejudicava a quem compreendia a Igreja sempre de um modo e estava acostumado a ver o povo comportar-se na sua lenta e tranquila dependência (1979, p. 766).

O 3° Encontro, com 160 relatórios vindos das bases, vai além do “discurso sobre as CEBs. Nasce um discurso das CEBs com uma superabundância impressionante. É a pletora do discurso (1979, p. 766). Libanio deixa-se fascinar por essa manifestação popular mesmo sabendo que esses discursos “foram provocados. Há uma instância de poder que os pediu, que lhes marcou limites de tempo, de teor. Não surgiram na espontaneidade dispersiva dos movimentos inconscientes de libertação” (1979, p. 769). Resultam da metodologia adotada para o Encontro. Para desvendar sua lógica ele recorre a M. Foucault, cuja filosofia do poder gozava de enorme prestígio. Neste artigo deixaremos de lado essa análise do discurso e focalizaremos tão somente algumas de suas conclusões.

2. 1 A novidade do discurso

Libanio afirma que “estamos diante de um discurso eclesial popular”. Sua forma literária é o “rascunho”, a “descrição espontânea”, “a transmissão imediata das próprias experiências. É realmente uma pequena literatura” (1979, p. 777). Seu objeto são as opressões diárias que as classes populares sofrem:

Discurso colado ao dia-a-dia naquilo que ele revela os sofrimentos, as carências, as necessidades. A leitura do conjunto dos relatórios revela tônica dominante de uma situação extremamente sofredora, percebida, descrita, mas já não mais aceita conformisticamente. A riqueza do objeto não está na variedade descritiva ou na agudeza de suas análises. Consiste precisamente nesse aspecto existencial, repetitivo, revelador de um lado da extensão das forças dominadoras e doutro da ampla tomada de consciência nas CEBs de tal realidade (…) “realidade dura, feia e triste” (1979, p. 778).

Efeito dessas falas no interior da Igreja, observa Libanio, é que elas contribuem duplamente para o seu processo de libertação. Para fora, porque são um “chamado à revisão interna de suas estruturas e mecanismos, à reconsideração de suas alianças, de suas relações com os agentes sociais dominantes”. Em sua face interna, porque “esse discurso profundamente ‘democrático’ – no mais puro sentido etimológico – valoriza dentro da Igreja a dimensão teológica da presença do Espírito em todos os fiéis e de modo singular nos mais pobres, mais fracos. É a sabedoria de que fala São Paulo (l Cor 2,1-5). Por isso mesmo, é um discurso que questiona e transforma a Igreja a partir das suas bases” (1979, p. 781).

2. 2 Fundamentos do discurso popular

É evidente a descontinuidade do discurso popular com o discurso teológico do magistério eclesiástico que por muito tempo esteve em vigor. Ela só foi possível devido ao Concílio Vaticano II e Medellín. Libanio traça o percurso histórico dessas mudanças que tornaram possível e fundamentam o discurso popular. Lembra os grupos nascidos da Ação Católica que romperam o “rígido sistema de relações hierarquia-leigo”, mas foram extintos devido ao “traumatismo que esses grupos provocaram em nossa Igreja”.

As CEBs só puderam “aparecer com um discurso novo, livre, espontâneo, autônomo, popular, leigo, sem as barragens até então vigentes” porque tiveram sua fundamentação na eclesiologia do Vaticano II (1979, p. 783).

A Conferência episcopal de Medellín faz uma dupla ruptura:

Conferência genuinamente latino-americana, ela exprime, catalisa todo o movimento de uma Igreja que quer ser original, fonte, autóctone, com colorido próprio, rompendo os laços de extrema dependência, pura refletividade, mera cópia plebeia de problemas, pastorais e discursos europeus. (…) O discurso das CEBs será precisamente reflexo dessa ruptura. É regional (1979, p. 783).

A segunda cissura deu-se no sentido de romper a exclusividade do conteúdo e temática religiosas, assumindo dentro do horizonte da religiosidade e fé questões ligadas ao bem-estar do nosso povo. (…) É um discurso religioso, mas cuja temática se desloca fundamentalmente para o “profano” diário, para os problemas socioeconômicos vividos cada dia. Alarga-se assim amplamente o discurso (1979, p. 784).

Devem ser consideradas também as novas condições de vida das classes populares após o golpe militar de 1964 e o regime ditatorial que se instaura. Ao se organizarem em defesa de seus direitos, sofrem repressão policial-militar e buscam refúgio no espaço religioso. Na medida em que setores de Igreja apoiam os movimentos populares, contra eles se voltam as forças de repressão. Isso produz uma cissura interna entre o “bloco fundamentalmente ligado à ideologia dominante” e o setor que quer dar “voz e vez” às classes populares. São bispos, sacerdotes, religiosas e “leigos de classes mais abastadas, especialmente jovens”, que assumem um trabalho de educação popular e organização das bases. Estas,

já despertadas mas acuadas pelo regime dominante, buscam um espaço onde refletir sobre a própria realidade, analisando-a, interpretando-a e ensaiando gestos e práticas de libertação. Conjugando esses dois movimentos, de baixo e de cima, num contexto de uma Igreja ferida, perseguida por segmentos da sociedade ligados aos interesses dominantes, estabelece-se o solo fértil para o novo discurso, reflexo da nova prática das CEBs (1979, p. 785).

Percebe-se então, na análise do discurso, que as CEBs são fruto e fatores de mudanças, tanto na Igreja quanto na sociedade brasileira. Na Igreja, porque incorporam e desenvolvem as rupturas feitas pelo Vaticano II e Medellín, dando origem ao discurso eclesial popular. Na sociedade porque ao revestirem de sentido religioso as lutas populares, lhes dão novo vigor.

2. 3 Novo horizonte

Libanio conclui seu texto com “esperança e alegria” porque “Comunidades populares de Igreja tomam a palavra, apossam-se dela e produzem-na como obra sua, como expressão de sua vida” (1959, p. 785). Esse fato dá origem a uma “verdadeira democratização” do espaço eclesiástico, no sentido de que agora o povo pobre expressa livremente sua realidade sofrida, e é escutado nessa fala. “Não se limita ao nível de arengas classistas, mas ascende à universalidade evangélica. Pois conecta tais necessidades ao plano de Deus, à revelação do Reino de Deus, à perspectiva da criação e redenção”. Daí sua esperança: “se tal discurso se firmar, as CEBs assumirão função relevante, em relação a todo o corpo eclesial e aos agentes sociais de transformação da realidade, numa linha de participação e liberdade”. Aponta, porém, o risco de uma forma sutil de dominação do discurso popular por agentes de pastoral que buscam no trabalho junto às classes mais pobres um lugar terapêutico para sanar “suas angústias, carência afetiva ou insegurança de personalidade”, ou um lugar onde possam exercer seus “desejos inconscientes de dominação ou de autovalorização” (1979, p. 786). Recomenda, então, melhor formação de agentes de pastoral com “supervisão de pessoas experimentadas”.

Isso lhe permite a formar, na conclusão, que “pouco a pouco estaremos percebendo que nos é dado viver numa Igreja, onde a força do Espírito faz surgir, da sabedoria pobre dos fracos, discursos de fé, de esperança e de amor, como apelativos de conversão a todos nós” (1979, p. 787).

Referências:

LIBANIO, J. Batista: Comunidade Eclesial de Base: pletora do discurso. SEDOC, Petrópolis, 1979, p. 765-787.

Sobre o autor:

Pedro A. Ribeiro de Oliveira. Nascido em Juiz de Fora – MG. Doutor em Sociologia pela Universidade Católica de Louvaina (1979). Foi professor nos Programas de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora e da PUC-Minas. É membro da Equipe do ISER-Assessoria. Desde 1976 tem assessorado as CEBs no Brasil. Endereço: Sítio Tarumã – Barro Floresta 36072-090 Juiz de Fora – MG. E-mail: pedror.oliveira@uol.com.br

Fonte:

Perspectiva Teológica

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A arte de fazer-ensinar teologia pastoral https://observatoriodaevangelizacao.com/a-arte-de-fazer-ensinar-teologia-pastoral/ Wed, 01 Feb 2017 10:32:51 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=12307 [Leia mais...]]]> 1120028_299080

O mais precioso e saboroso do legado de Libanio não está em suas produções, encontra-se no coração de quem com ele conviveu e aprendeu a dedicar-se à arte de amar e servir.

Por Edward Neves Monteiro de Barros Guimarães*

Os grandes mestres, pelo jeito singular com que forjam e transmitem seu saber-fazer, deixam marcas indeléveis na vida de seus discípulos e discípulas. Tais marcas não se convertem em pura admiração, reconhecimento e gratidão. Vão muito além disso. Provocam incontornável senso de corresponsabilidade para que o tesouro recebido não se perca.

Libanio foi desses mestres singulares e inesquecíveis. Deixou atrás de si incontáveis seguidores-continuadores, que assumem publicamente, não só a importância da formação recebida, mas sobretudo o impulso vital, dele recebido de forma testemunhal, para colocarem-se também a serviço e darem continuidade ao precioso legado do mestre. Quanta saudade viva e instigante ele deixou esculpida em nossos corações!

No marco dos três anos de sua partida para a Casa do Pai, destino último de todos nós, quero aqui compartilhar três traços muito significativos da arte libaniana de fazer-ensinar teologia pastoral.

1. Libanio foi alguém que se deixou lapidar pelo labor teológico

Sua vida praticamente inteira girou em torno do aprender e do fazer-ensinar teologia. Cedo entrou na Companhia de Jesus. Ao fazer seus estudos superiores na Europa, desde os primeiros anos da imersão no mar da teologia, descobriu sua vocação e missão. Desde então, deixou-se lapidar pelo complexo labor teológico. Cultivou, com rigor, o desafio de tornar-se intelectual orgânico no seio da Igreja e da sociedade. Após a graduação, passou a ser repetidor das aulas de teologia para os estudantes brasileiros. Essa tarefa oportunizou a ele adquirir sólida formação geral em teologia. Ele gostava de dizer que não seguiu o caminho dos especialistas, mas dos generalistas. A teologia fundamental, destituída de toda apologética não dialógica e aprendiz, ocupou-lhe o centro de irradiação.

Doutorou-se na Alemanha e, em seguida, voltou para o Brasil inserindo-se, de corpo e alma, no desafiante e criativo processo de recepção das ousadas transformações encetadas pelo Concílio Vaticano II. Aqui encontrou na dinâmica de assessoria da CRB – Conferência dos Religiosos do Brasil e da CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, na FAJE – Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, dentre outros espaços, terreno fértil para se colocar a serviço da Igreja, desde os mais pobres, e da profética teologia latinoamericana da libertação. Se na Europa recebeu sólida formação clássica e na teologia dos grandes ideólogos do Concílio, foi em nosso Continente, tão injusto, excludente e desigual, que se aliou aos pensadores da libertação, teólogos, sociólogos e outros, diretamente comprometidos com a participação na luta dos empobrecidos e na defesa da igual dignidade humana, seja na sociedade, seja na Igreja.

Libanio paulatinamente encontrou seu lugar ao concretizar com maestria, ao longo de todo o Continente latino-americano, vasta experiência como teólogo, pastoralista, escritor, conferencista, assessor, diretor espiritual, professor e orientador de estudos. Sua obra precisa ser melhor conhecida para ser continuada.

2. Libanio cultivou autêntico amor pelo fazer-ensinar teologia pastoral

Ninguém coloca em dúvida a paixão com que exercia o criativo labor teológico. A teologia cristã alimentava seus horizontes de sentido e dava a ele alegria de viver. O fazer-ensinar teologia, de forma muito especial, nutria sua pessoa de vitalidade e profunda energia espiritual.

Libanio cultivou verdadeiras amizades com seus pares e, singularmente, com seus alunos e orientandos. Era a presteza em pessoa, alguém sempre pronto para ajudar a quem lhe procurava. Conquistou, desse modo, enorme grau de reconhecimento e admiração pelo seu sensível labor teológico. Mostrava-se alguém profundamente realizado profissionalmente com o que se dedicava. Ele se entregava, de tal maneira, ao fazer-ensinar teologia pastoral que este parecia dar a ele muito mais prazer que cansaço.

Seu bom humor, uma de suas marcas mais características, amalgamado a aguda capacidade crítica e para captar e discernir ideologias, tendências e cenários, tornava suas aulas, palestras, assessorias e orientações de estudo leves, agradáveis, instigantes e contagiantes. Exercia verdadeiro fascínio sobre quem o escutava, não tanto por ser um excelente orador, mas por se doar no que fazia. Era visível sua preocupação com o ritmo de cada um, nos processos de crescimento na fé cristã e nas lides iniciais da vida intelectual. Tinha prazer em lançar seus orientandos na práxis pastoral e vê-los galgar degraus. Seus olhos brilhavam, quando percebia que tocava o mistério profundo das pessoas. E quando estas sentiam o desejo de abrir o coração diante de suas provocações, acompanhava a cada uma, com profundo respeito e ternura. Essa preocupação sensível pela singularidade de cada um que lhe procurava era, de fato, contagiante.

3. Libanio amava o fazer-ensinar teologia na Igreja e como Igreja.

Quando mergulhamos em sua produção teológica e contemplamos sua arte de fazer-ensinar o pensar teológico, o que mais se destaca é a profunda preocupação pastoral. Isso significa que a sensibilidade de despertar para o autêntico seguimento de Jesus era sua preocupação maior. Quando Libanio encontrava uma fresta de abertura no coração das pessoas ou um limiar de conversão ou renovação na vida da Igreja, procurava explicitar, fortalecer e cuidar para que o pequeno broto aflorasse e frutificasse verdadeiros processos de transformação.

Libanio conseguiu fazer-ensinar teologia, com profunda liberdade crítica e autocrítica, na Igreja e como Igreja. E isso não é simples. Não era um teólogo do confronto em flanco aberto ou da vanguarda, do lançar-se na abertura de novas fronteiras para a fé cristã. Embora atento e antenado diante dos acontecimentos, ele dedicava-se mais ao cotidiano da caminhada, ao cuidado da explicitação e consolidação dos processos dialéticos de crescimento humano na medida em que eram aflorados pelo caminho. Libanio apostava nos processos pessoais, eclesiais e sociais e sabia como acompanhá-los com reverência e respeito.

Não é simples fazer-ensinar teologia no caminho, ou seja, inserido numa Igreja repleta das ambiguidades humanas, com suas desafiantes contradições. Se parece mais fácil romper com a instituição, Libanio optou por permanecer no seio dos embates internos e externos da vida da Igreja. Com humildade aprendiz, cultivo da paciência histórica e busca de lucidez, Libanio permaneceu fiel, como os Mestre de Nazaré, até o fim. Foi alguém profundamente livre e consciente dos limites e possibilidades postos pela instituição. Mas, sempre atento ao discernimento dos sinais do tempo, ele captava, com grande habilidade, as novidades do Espírito e as tendências trazidas pelas novas gerações e pela diversidade dialética dos cenários. Ele sabia a quem servia: ao dinamismo libertador do Reino de Deus.

À guisa de conclusão

Libanio deixou vasta obra consignada em livros, inúmeros artigos, conferências, palestras, vídeos, aulas e homilias. Para conhecê-la recomendo acessar o site feito em sua homenagem que, de forma primorosa, oferece amplo acesso ao legado libaniano: http://jblibanio.org.br. Mas, o mais precioso e saboroso, não está em suas produções. Encontra-se vivo e atuante, alojado no coração de quem com ele conviveu e aprendeu a dedicar-se à maravilhosa arte de amar e servir.

Leia também:

A lucidez da fé e o labor teologal

O teólogo que não tinha medo das letras

O insubstituível Pe. Libanio

edEdward Neves Monteiro de Barros Guimarães é mestre em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE, orientado por João Batista Libanio. E atualmente é doutorando em Ciências da Religião na PUC Minas, com uma pesquisa sobre o legado teológico de João Batista Libanio. É professor do Departamento de Ciências da Religião da PUC Minas, onde atua como secretário executivo do Observatório da Evangelização. É assessor das Comunidades Eclesiais de Base – CEBs. Membro do Conselho Arquidiocesano de Pastoral e do Conselho Ampliado de Formação do Seminário Arquidiocesano.

Fonte:

http://www.domtotal.com/noticias/detalhes.php?notId=1120033

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