IHU – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com Thu, 24 Mar 2022 02:23:53 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.4 https://i0.wp.com/observatoriodaevangelizacao.com/wp-content/uploads/2024/04/cropped-logo.png?fit=32%2C32&ssl=1 IHU – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com 32 32 232225030 “Praedicate Evangelium”: as 7 chaves da nova Constituição Apostólica do Papa Francisco https://observatoriodaevangelizacao.com/praedicate-evangelium-as-7-chaves-da-nova-constituicao-apostolica-do-papa-francisco/ Thu, 24 Mar 2022 02:23:53 +0000 https://atomic-temporary-74025290.wpcomstaging.com/?p=44488 [Leia mais...]]]> 250 artigos em 11 capítulos compõem a nova Constituição Apostólica ‘Praedicate Evangelium’. Neste documento, publicado pela Santa Sé no dia 19 de março de 2022, solenidade de São José, o papa Francisco promulga sua reforma da Cúria Romana e seu serviço à Igreja no mundo. Entrará em vigor no dia 5 de junho de 2022, solenidade de Pentecostes, perdendo assim a validade a Constituição Apostólica ‘Pastor bonus‘, do papa João Paulo II.

(A reportagem é de Elena Magariños, publicada por Vida Nueva Digital, 19/03/2022, que foi traduzida e publicada no Brasil pelo IHU. Os grifos são da Equipe executiva do Observatório da Evangelização)

Este é o documento que consolida a organização que o papa Francisco foi impulsionando nos últimos anos, com mudanças nos órgãos essenciais do funcionamento da Santa Sé. Aqui estão 7 chaves para compreender a nova constituição apostólica que governará a Igreja nos próximos anos:

1. Qualquer fiel pode dirigir um Dicastério

O texto detalha não apenas o funcionamento das agências da Cúria e do Vaticano, mas também dá especial importância à sinodalidade como meio de evangelização e de criação de conexões mais fortes na vida da Igreja. Tanto que, entre os princípios gerais do “Praedicate Evangelium”, especifica-se que “todos”, incluindo leigos e leigas, podem ser nomeados para exercer funções de governo e responsabilidade da Cúria Romana.

2. Grande importância para a proteção de menores

O documento transfere para a Cúria a Pontifícia Comissão para a Proteção dos Menores, unindo-a ao Dicastério para a Doutrina da Fé: a tarefa é aconselhar e aconselhar o Romano Pontífice e também propor as iniciativas mais adequadas para a proteção dos menores e de pessoas vulneráveis.

3. Reforma da Cúria

A Cúria Romana não estará mais apenas a serviço do Papa, mas estará a serviço de todas as dioceses e não apenas para verificar seu funcionamento. Da mesma forma, o texto insiste na necessidade de criar mecanismos de colaboração e trabalho em rede entre os dicastérios. Finalmente, os membros da Cúria, assim como os que trabalham nos diferentes dicastérios, devem ter “integridade pessoal e profissionalismo”.

4. Redução de dicastérios

A nova Constituição Apostólica reduz o número de Dicastérios, unindo aqueles cuja finalidade era muito semelhante ou que se complementavam com o objetivo de tornar o trabalho mais eficiente. Ao mesmo tempo, os Pontifícios Conselhos e as Congregações foram abolidos para serem chamados, todos eles, Dicastérios.

5. Dicastério a serviço da caridade

Nasce o novo Dicastério para o Serviço da Caridade (Esmola Apostólica), que “realiza assistência e ajuda em qualquer lugar do mundo” aos necessitados em nome do Papa.

6. Dicastério para a Evangelização

A Constituição Apostólica cria também um grande ‘ministério’ para a Evangelização no qual se unifica o trabalho realizado hoje pela Congregação para a Evangelização dos Povos (Propaganda Fide) e pelo Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização. Ambos se fundem e se tornam o Dicastério para a Evangelização, presidido diretamente pelo Papa.

7. Um grande ‘Ministério da Cultura’

Por outro lado, a Constituição Apostólica também funde o Pontifício Conselho para a Cultura e a Congregação para a Educação Católica, que se torna o Dicastério para a Cultura e a Educação. Será dividido em duas seções: uma dedicada à promoção cultural e animação pastoral; e o outro para desenvolver os princípios da educação nos centros de estudos católicos.

Fonte:

IHU

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Entre cruzes e esperanças: olhando a pandemia a partir da teologia de Jürgen Moltmann https://observatoriodaevangelizacao.com/entre-cruzes-e-esperancas-olhando-a-pandemia-a-partir-da-teologia-de-jurgen-moltmann/ Mon, 05 Apr 2021 14:38:28 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=39135 [Leia mais...]]]> A pandemia já não é algo distante que acompanhamos pelas redes sociais e pela televisão, ela se faz bem próxima e nela perdemos amigos, parentes, pessoas do nosso convívio, pessoas que tinham um nome, uma família, uma razão e uma história. Passado um ano, todos somos afetados por ela, de uma forma ou de outra. Na ausência de respostas, buscamos perguntas; no silêncio e na dor, buscamos um sentido, uma razão, um porquêDiante deste tempo, de dor e sofrimento, é necessário se perguntar: há espaço para a esperança? Há espaço para a vida? Há espaço para a esperança e é possível esperar algo novo a partir deste ponto, algo que possa trazer vida, que traga uma nova chance de vida em um mundo marcado pela morte? Como ter esperança em um mundo marcado pela morte? Como ter esperança e falar de esperança em meio a tantas cruzes que se enfileiram em nossa história? Como olhar para cada cruz e ver nela uma vida, uma história, um caminho que foi interrompido por um mal sistêmico que parece nos dominar e nos deixar sem saída? Como que, nesta semana santa, ao meditarmos a Paixão de Jesus, ao olharmos para a sua cruz e nela vermos as suas opções e vida (pelo Reino), podemos ver as muitas cruzes que nos cercam e nela encontrar espaço de resistência, de acolhimento, de justiça, de protesto, de luz e de esperança?… para compreender um Deus que seja solidário com o sofrimento humano, Moltmann nos convida a observar a atitude depositada pelo homem de Nazaré. Nesta atitude, Jesus (Deus-Homem) não olhava o outro apenas como outro, não o via como alguém estranho a si mesmo, mas sim se aproximava dele, tornando-se próximo, colocando-se junto, ao lado, sendo solidário (cf. Lc 10,25-37). Nisso consiste a atitude cristã que decorre da prática de Jesus. Aí ele é solidário, e também sofredor, pois faz da nossa vida algo importante a ele, vive-a em seu ser, sofre conosco, é solidário. Por isso nos liberta e por isso nos redime e nos salva. É a obra do amor, que é participativo e convidativo, que enche de esperança… A cruz só tem sentido por Aquele que nela se fez presente, que a assumiu com a própria vida e que no percurso até a cruz deixou um caminho de seguimento… É por este caminho que deve seguir o cristão, e nele é que se encontra a cruz que deve ser assumida e que dá sentido à fé e que nos faz ser igreja, é onde se encontra nossa identidade e relevância. Esta cruz não é um adorno religioso, mas uma proposta de vida, uma opção que tem base nas opções de Jesus, capazes de gerar vida, justiça e libertação. O tempo pandêmico nos convida a este caminho e as cruzes que vemos nos desafiam na esperança, para que a vida renasça e que o mundo se abra a vida em sua plenitude.


Cesar Kuzma é teólogo leigo, doutor em teologia pela PUC-Rio, onde atua como professor-pesquisador do Departamento de Teologia. Ele é o atual presidente da SOTER. Ele participou do Ciclo de Conferências da Páscoa IHU 2021 “A questão do mal e do sofrimento no mundo (pós)pandêmico à luz do mistério pascal” proferindo a conferência intitulada “A teologia da cruz e a esperança cristã num mundo pandêmico. Contribuição teológica de J. Moltmann”.

 

Confira o artigo:

Entre cruzes e esperanças: olhando a pandemia a partir da teologia de Jürgen Moltmann

No momento em que celebramos esta Semana Santa e nela fazemos a memória da Paixão de Jesus, vivemos, enquanto país, um dos momentos mais difíceis e dolorosos da nossa história. A pandemia da Covid-19, que já nos assombra há um ano, parece não dar espaço e avança fortemente pelo nosso território, de casa em casa, de cidade em cidade, de pessoa em pessoa, deixando marcas profundas em nossas famílias e ceifando vidas por onde passa. Dia após dia, os números aumentam drasticamente, e a morte, com força, bate a nossa porta. A pandemia já não é algo distante que acompanhamos pelas redes sociais e pela televisão, ela se faz bem próxima e nela perdemos amigos, parentes, pessoas do nosso convívio, pessoas que tinham um nome, uma família, uma razão e uma história. Passado um ano, todos somos afetados por ela, de uma forma ou de outra. Na ausência de respostas, buscamos perguntas; no silêncio e na dor, buscamos um sentido, uma razão, um porquê.

Há uma semana, o Brasil superou o triste recorde de 300 mil mortes e ultrapassou em 12 milhões o número de pessoas que já foram infectadas. Em plena Semana Santa, na vigília da Paixão, chegamos perto de 4 mil mortes diárias, com mais de 320 mil mortes no total, numa onda crescente, que segue rápida e que nos assusta. Segundo alguns analistas, estamos muito perto do limite de um não retorno, e isso é profundamente preocupante. Assumimos a triste marca de sermos o epicentro da pandemia, pois somos o país em que se concentram mais casos, mais contaminações, mais mortes e onde o surgimento de novas variantes do coronavírus arrisca fazer desta tragédia algo ainda maior em nível global. As fronteiras vão sendo fechadas para o Brasil e vamos ficando completamente isolados de tudo e de todos. Por falta de diplomacia da parte brasileira e pelo negacionismo assumido, as vacinas não chegam na proporção desejada e o volume de pessoas vacinadas parece ser insuficiente para frear os dados da Covid.

Não bastassem estes dados, vivemos o colapso do nosso sistema de saúde, a falta de insumos e produtos médicos e hospitalares, a falta de oxigênio e um total despreparo dos órgãos federais do governo, em especial no executivo, no Ministério da Saúde, um desrespeito, podemos dizer, um verdadeiro descaso para com a vida humana, principalmente para com aqueles que são mais pobres e vulneráveis e que são, portanto, mais dependentes de políticas públicas. O Brasil, hoje, sofre e se torna vítima de um vírus letal e sofre ainda mais pela irresponsabilidade de um governo que apostou em um projeto de morte, um governo que, desde o início, ironizou o problema, banalizou o mal e fez a aposta no caos. De forma impotente, vimos pessoas sofrendo, morrendo nas UPAs e hospitais, sem vagas em UTIs, outras agonizavam em ambulâncias a espera de um leito hospitalar, enquanto o governo, na pessoa do presidente, incentivava aglomerações e criticava o uso de máscaras e de métodos de prevenção e proteção. Vimos o esforço de médicos e profissionais da saúde, no arriscar da própria vida, enquanto o governo negava a ciência e induzia a população a consumir medicamentos sem eficácia e sem comprovação científica. Vimos o esforço da pesquisa em produzir vacinas capazes de salvar vidas, enquanto isso soubemos que o governo brasileiro, por meio do presidente da República, recusou a compra das mesmas e não assumiu a imunização da população como uma prioridade.

Depois de um ano de pandemia, muitas mortes poderiam ter sido evitadas, muitos abraços poderiam ainda ser esperados e muitos olhares poderiam seguir existindo, mas os homens da morte partiram com tudo e fizeram e seguem fazendo as suas vítimas, vítimas que avançam para o caminho de um calvário doloroso, cruel e que parece não ter fim. São os Pilatos e Herodes de ontem e de hoje, que lavam as mãos, que zombam de quem sofre e jogam o povo à própria sorte, cercados por aqueles que riem de quem agoniza na cruz desta pandemia. É o que se vê nas aglomerações, nas festas clandestinas e naqueles que seguem com a indiferença e levam a vida como se o mal (pandêmico) não existisse e não os tocasse diretamente, seguem com as viagens, os passeios, as praias, com o consumo, com a indiferença que mata e que deixa a outros sofrerem ainda mais. Somos vendidos por outras trinta moedas, engolidos por um mercado que parece querer a sua vez e se diz mais importante que a vida, já que a economia não pode parar; e, mais uma vez, o caminho que temos é o caminho da cruz, do abandono, do sofrimento, do isolamento e da morte, das novas cruzes de nosso tempo, um tempo pandêmico.

Frente a esta situação, não existem respostas prontas, mas tentativas de entendimento e de aproximação, propostas que nos fazem olhar para nós mesmos, para a nossa condição de fé e com ela, a partir dela, buscar um espaço de vida e de esperança. Nas linhas que seguem, mesmo que de forma breve, queremos oferecer uma reflexão a partir da teologia de Jürgen Moltmann, que pela sua teologia da cruz nos fala de esperança e nos possibilita um entendimento e uma atenção.

Jürgen Moltmann

Moltmann é um teólogo que, em sua juventude, viveu de perto o sofrimento causado pela Segunda Guerra Mundial e fez daquele espaço de medo um caminho para um espaço vasto e aberto para a presença de Deus, capaz de gerar vida, futuro e esperança. Não como uma fuga da realidade e da história, mas de modo a enfrentar os dramas e as tramas de nossa existência e no convite para a construção de uma nova sociedade, onde todos possam fazer parte e a justiça reine e traga a paz.

Em 1964, Moltmann escreve o livro “Teologia da esperança” e, por ele, oferece um novo entendimento da escatologia cristã, como crítica da história e como proposta antecipatória de um Reino que se abre e nos convida a um futuro novo. O chamado de um Deus promitente nos convida à ação, à missão, à missão da esperança.

Nesta obra, a atenção se concentrava no ressuscitado e como que ele inaugurava este novo tempo. A esperança entra como força ativa e mobiliza toda a ação.

Em 1972, em um desenvolvimento de sua teologia, Moltmann nos apresenta uma segunda obra, com um olhar mais crítico à teologia, à sociedade e à postura das igrejas cristãs frente a esta sociedade. Abre caminho para um discernimento político e dá atenção ao sofrimento presente, que é sentido pelo próprio Deus que, em Cristo, assume toda a condição humana. Se na primeira obra a atenção estava mais para o ressuscitado (da cruz para a ressurreição), o olhar teológico agora se concentra na cruz do crucificado (da ressurreição para a cruz), no caminho que a antecede e que é marcado por opções concretas, realizadas pelo homem de Nazaré em favor da justiça e dos últimos da história.

Nesta obra, chamada “O Deus crucificado”, Moltmann abre diálogo com as teologias da libertação que surgiam naquele momento e traz para a sua reflexão teológica uma percepção mais crítica, mais atenta a realidades que nos interpelam e nos questionam nas dimensões humanas, políticas e de fé.

Não iremos aqui trazer um panorama completo da teologia de Jürgen Moltmann. De certa forma, já fiz isso em meu livro de 2014 e que é fruto de minha tese doutoral (O futuro de Deus na missão da esperança, Paulinas). Moltmann é um autor muito estudado, de grande abertura ecumênica e não é difícil encontrar textos e estudos a seu respeito. De modo recente, indico também as obras de Alonso Gonçalves (Jürgen Moltmann e a teologia pública no Brasil, Garimpo, 2017) e de Rogério Guimarães de A. Cunha (A escatologia do amor: a esperança na compreensão trinitária de Deus em Jürgen Moltmann, Vozes, 2020), que tratam de aspectos atuais e centrais no pensamento do autor.

Nossa intenção aqui é aproximar a teologia que ele propõe do cenário pandêmico que nós nos encontramos e verificar se esta expressão teológica pode nos oferecer caminhos de discernimento e de orientação. É evidente que os contextos são diferentes e que o discurso produzido por Moltmann não foi direcionado para esta pandemia. Estamos diante de algo novo, algo que nos interroga e que vai marcar o caminho da humanidade. Contudo, olhando a sua noção de esperança, o modo contextual como desenvolve o seu pensamento, a percepção de Deus em meio ao sofrimento humano e a sua teologia crítica da cruz, entendemos que sim é possível propor um espaço de diálogo e de aproximação; contribuições a partir de seu pensamento.

Diante deste tempo, de dor e sofrimento, é necessário se perguntar: há espaço para a esperança? Há espaço para a vida? Há espaço para a esperança e é possível esperar algo novo a partir deste ponto, algo que possa trazer vida, que traga uma nova chance de vida em um mundo marcado pela morte? Como ter esperança em um mundo marcado pela morte? Como ter esperança e falar de esperança em meio a tantas cruzes que se enfileiram em nossa história? Como olhar para cada cruz e ver nela uma vida, uma história, um caminho que foi interrompido por um mal sistêmico que parece nos dominar e nos deixar sem saída? Como que, nesta Semana Santa, ao meditarmos a Paixão de Jesus, ao olharmos para a sua cruz e nela vermos as suas opções e vida (pelo Reino), podemos ver as muitas cruzes que nos cercam e nela encontrar espaço de resistência, de acolhimento, de justiça, de protesto, de luz e de esperança?

Cesar Kuzma

Isso nos leva a começar com perguntas, com questionamentos, a fim de perceber o quanto e de que forma esta realidade pandêmica nos interpela e de que forma a teologia da cruz de Moltmann pode nos ajudar nesta reflexão. Diante deste tempo, de dor e sofrimento, é necessário se perguntar: há espaço para a esperança? Há espaço para a vida? Há espaço para a esperança e é possível esperar algo novo a partir deste ponto, algo que possa trazer vida, que traga uma nova chance de vida em um mundo marcado pela morte? Como ter esperança em um mundo marcado pela morte? Como ter esperança e falar de esperança em meio a tantas cruzes que se enfileiram em nossa história? Como olhar para cada cruz e ver nela uma vida, uma história, um caminho que foi interrompido por um mal sistêmico que parece nos dominar e nos deixar sem saída? Como que, nesta semana santa, ao meditarmos a Paixão de Jesus, ao olharmos para a sua cruz e nela vermos as suas opções e vida (pelo Reino), podemos ver as muitas cruzes que nos cercam e nela encontrar espaço de resistência, de acolhimento, de justiça, de protesto, de luz e de esperança?

Cada vida perdida é uma perda da humanidade, uma chaga que se abre, uma ferida aberta em uma sociedade que não consegue encontrar caminhos de sobrevivência e de resistência, de amor e solidariedade. Diante do sofrimento e mortes prematuras e injustas, usamos aqui uma frase do teólogo Gustavo Gutiérrez (2000, p. 19), tirada de seu livro “Beber em seu próprio poço”, e perguntamos com ele: “como cantar quando a dor de um povo parece sufocar dentro do peito?”. Gutiérrez faz este questionamento na Páscoa de 1983, o que nos leva hoje, em meio a Páscoa de 2021, seguir pela mesma intenção. Nós nos interrogamos: como viver quando nossos irmãos e irmãs padecem em leitos de hospitais, na espera em ambulâncias, morrendo em silêncio, no escuro, sem ar, sem vida, sem afeto e carinho? Como sobreviver quando outros padecem? Como esperar na ressurreição, se a nossa frente só vemos dor, sofrimento e morte? Entre as cruzes e as esperanças, como posicionar a nossa fé e a nossa reflexão sobre ela?

Como viver quando nossos irmãos e irmãs padecem em leitos de hospitais, na espera em ambulâncias, morrendo em silêncio, no escuro, sem ar, sem vida, sem afeto e carinho? Como sobreviver quando outros padecem? Como esperar na ressurreição, se a nossa frente só vemos dor, sofrimento e morte? Entre as cruzes e as esperanças, como posicionar a nossa fé e a nossa reflexão sobre ela?

Cesar Kuzma

Neste espaço difícil e solitário, muitos são os Cireneus que aparecem no caminho, pessoas que se aproximam e estendem a mão, de modo livre e solidário. São pessoas que tentam oferecer um pouco de vida em meio a morte e que na estrada gritam e passam a esperar por aqueles que já não têm mais forças nem esperança. No entanto, eles não podem ir até o final, eles apenas caminham conosco e nos acompanham por uma parte do caminho, dividem o peso da nossa cruz, mas também a sua força é limitada. O destino de quem padece é isolado, solitário, doloroso, silencioso e de morte. No abandono da vida e na indiferença que mata, clamamos como Jesus na cruz: “Meu Deus, Meu Deus, por que me abandonaste?” (Mc 15,34). Clamamos ainda: por que fomos abandonados por aqueles que deveriam nos ajudar, nos cuidar e nos salvar?… É claro que não há o abandono daqueles que nos amam, embora possamos sentir como se ele existisse.

O que temos é a impotência, o limite divino-humano diante do mal que nos arranca todas as forças e que nos faz sentir como se estivéssemos sós. Sentimos e choramos, sofremos e nos entregamos a um fim que parece estar perto e que nos amedronta. Da mesma forma aqueles que nos amam e da mesma forma os profissionais da saúde, que mesmo na impotência frente a este mal, no limite do que podem fazer, se entregam totalmente, se fazem solidários, seguram a mão de quem está só e tentam fazer com que cada segundo possa ser pulsado como um sinal de vida e esperança, um sinal de amor e de entrega total. Também eles sofrem, também eles se sentem sozinhos e impotentes diante de uma doença que domina e faz com que a morte siga mais perto.

Esta pandemia nos fez perceber pessoas e espaços entre as cruzes, pois todos somos vítimas e todos somos tocados por este estado de dor que nos deixa impotentes, sem ação, com medo, sem razão e sem voz. Há aqueles que padecem e há aqueles que padecem com eles. Há aqueles que morrem e há aqueles que morrem com eles, numa relação que revela a humanidade e a amplitude dos limites e das relações existentes entre nós. Se, por um lado, sofremos o descaso do Estado, tomado pela arrogância e com pessoas insensíveis diante da morte, por outro lado, as atitudes daqueles que se entregam e se doam aos outros fazem com que possamos perceber que a vida ainda resiste, que a esperança insiste e que o amor persiste. Em seu livro, O Deus crucificado, Moltmann dirá que “através dessa dor desperta um amor que não pode ser mais indiferente a tudo, mas que procura o outro, o feio, o indigno de amor para amá-lo. Na dor, cessa aquela apatia, na qual tudo é desinteressante, porque, na dor, sempre há o encontro com o igual e com o conhecido” (2011, p. 62). Esta pandemia nos possibilitou o encontro com a humanidade, com os limites do humano. Ela desperta o pior e o melhor de nós, e a cruz, ao ser sentida em meio ao limite humano, favorece o encontro que pode libertar e nos conduz a uma nova humanidade, na sensibilidade, na solidariedade, na entrega, na vida.

“através dessa dor desperta um amor que não pode ser mais indiferente a tudo, mas que procura o outro, o feio, o indigno de amor para amá-lo. Na dor, cessa aquela apatia, na qual tudo é desinteressante, porque, na dor, sempre há o encontro com o igual e com o conhecido”

Jürgen Moltmann

Esta é uma tese central na teologia da cruz de Moltmann, que é o grito do Cristo abandonado que soa como um grito de todos os abandonados da história, das vítimas de nosso tempo. Este grito, ao ser refletido por Moltmann, questiona a nossa imagem de Deus, a nossa percepção do Cristo e nossa atitude enquanto humanidade e igreja. Neste momento pandêmico, quando morte e solidão se entrecruzam, esta é uma percepção válida e ela nos faz olhar com profundidade a esta questão. Que Deus buscamos e a que Deus clamamos? Que Cristo esperamos? E que Igreja somos, que humanidade construímos e fazemos parte? Muitos são os abandonados, muitas são as vítimas, muitas são as cruzes que se enfileiram nesta pandemia e que acusam a nossa falta de amor e de sentimento para com o outro, de quem deveríamos nos fazer próximos. A cruz, de que fala Moltmann, não deve ser adorada e não deve ser sinal de conformação. Não se assume o sofrimento passivamente, mas ativamente, na luta para superá-lo e no enfrentamento do mal que nos ameaça. A cruz nos abraça e no abraço nos acolhe. Tudo aponta para ela, toda dor, todo pecado, todo o mal, todo sofrimento; tudo aponta para a cruz, mas a cruz transcende para a vida e aponta para a ressurreição. A cruz nos faz olhar a nós mesmos e nos convida a percorrer o caminho daquele que deu à cruz um sentido novo, que fez da justiça a causa de um Reino, que no amor nos reuniu e que na esperança nos libertou para uma vida que se faz sempre nova. A cruz nos consola, mas também nos liberta e nos convida a protestar contra toda a injustiça. Na cruz protestamos contra os agentes do mal, contra o poder que oprime e exigimos vida e liberdade.

Sobre este ponto, fizemos uma reflexão em nosso livro (O futuro de Deus na missão da esperança), que reproduzimos abaixo:

[…] para compreender um Deus que seja solidário com o sofrimento humano, Moltmann nos convida a observar a atitude depositada pelo homem de Nazaré. Nesta atitude, Jesus (Deus-Homem) não olhava o outro apenas como outro, não o via como alguém estranho a si mesmo, mas sim se aproximava dele, tornando-se próximo, colocando-se junto, ao lado, sendo solidário (cf. Lc 10,25-37). Nisso consiste a atitude cristã que decorre da prática de Jesus. Aí ele é solidário, e também sofredor, pois faz da nossa vida algo importante a ele, vive-a em seu ser, sofre conosco, é solidário. Por isso nos liberta e por isso nos redime e nos salva. É a obra do amor, que é participativo e convidativo, que enche de esperança (2014, p. 89).

Nesta citação acima, temos o olhar e a ação solidária de Jesus, ao assumir a dor e o sofrimento, que indica, consequentemente, como deve ser a nossa ação e atitude cristãs, a nossa postura frente a este tempo que nos interpela e nos convida a um momento novo. Esta percepção se faz presente na teologia da cruz de Moltmann, pois a cruz, de Cristo, torna-se ponto de interrogação para as igrejas cristãs, para a prática que assumem e para a postura que se deve ter frente ao mal presente na sociedade. Na cruz mostramos a identidade e a relevância de nossa fé. Ao sermos interrogados pela cruz, poderemos perceber se estamos pertos ou distantes da prática de Jesus e se a nossa atitude humana-cristã é capaz de produzir vida e esperança. Em meio ao tempo pandêmico que estamos vivendo, onde os prédios eclesiásticos se tornam vazios e quando todos somos convidados a um novo entendimento do ser cristão, do ser Igreja, esta provocação feita por Moltmann ganha toda relevância. A cruz da Igreja nem sempre se assemelha a cruz de Jesus, principalmente quando a Igreja (e sua cruz) insistem em se manter firmes em um mundo que padece e agoniza no sofrimento. A cruz pela cruz se torna vazia de conteúdo e significado.

A cruz só tem sentido por Aquele que nela se fez presente, que a assumiu com a própria vida e que no percurso até a cruz deixou um caminho de seguimento. É por este caminho que deve seguir o cristão, e nele é que se encontra a cruz que deve ser assumida e que dá sentido à fé e que nos faz ser igreja, é onde se encontra nossa identidade e relevância. Esta cruz não é um adorno religioso, mas uma proposta de vida, uma opção que tem base nas opções de Jesus, capazes de gerar vida, justiça e libertação. O tempo pandêmico nos convida a este caminho e as cruzes que vemos nos desafiam na esperança, para que a vida renasça e que o mundo se abra a vida em sua plenitude.

Mas a cruz não é fim em si mesma. Ela pertence a história, ao tempo, ela está ligada a este mundo. Por esta razão todas as dores, sofrimentos, doenças, pecados e morte apontam para a cruz. Mas a cruz recebe tudo isso e transforma em vida, em ressurreição, abre o tempo para um espaço novo. Este é o sentido da Páscoa e este é o fundamento da nossa esperança. Não se trata de ignorar a cruz e o sofrimento, mas ao assumi-los criticamente, tentar ver além deles, no desabrochar de uma vida que não pode ser vencida, onde a morte já não existe e o sorriso enxuga toda lágrima. A vigília da Semana Santa nos faz recordar os passos de Jesus, seu caminho e proposta, sua práxis e opções e meditar com ele a experiência da cruz. Cruz que é consequência de uma vida, de uma vocação assumida e que traz a nós um espaço de liberdade. Mas a vigília da Semana Santa, onde o pão é repartido e a paixão é assumida, tem o sábado da espera, do silêncio, do tempo que irrompe e que abre a Páscoa da ressurreição. Este é o sentido e é aqui que repousa toda esperança.

É desta forma que devemos entender este tempo pandêmico, quando a dor e a morte batem a nossa porta e aqueles que nos são próximos, aqueles que amamos são levados e se tornam estatísticas de uma triste realidade. Nunca serão esquecidos e nunca esqueceremos. A experiência da cruz não nos deixará passivos frente a esta dor, mas nos dará forças para resistir e enfrentar. Aquele que morreu solitário também se fez solidário para que ninguém se sinta solitário e que aprendamos, com ele, a viver de modo solidário, levando vida e esperança para todos. As muitas mortes que temos, as muitas cruzes que vemos questionam a nossa vida e a nossa sociedade. Que possamos viver, resistir e sentir. A esperança é mais. Na linha teológica de Moltmann, ele dirá que a teologia da cruz não nos apresenta um Deus morto, mas um Deus que se fez vida, que se fez pão, que se fez justiça, que se entregou a todos e que se fez solidário. A teologia da cruz nos convida à fraternidade com o Deus de Jesus Cristo, ao encontro do crucificado-ressuscitado, na abertura ao Espírito que nos renova e nos liberta e reacende em nós a chama da esperança.

Entre as cruzes e esperanças vemos um Deus que nos liberta e que nos enche de sentido.

(Os grifos sãos nossos)

Cesar Kuzma é teólogo leigo, casado e pai de dois filhos. Doutor em Teologia pela PUC-Rio, onde atua como professor-pesquisador do Departamento de Teologia. É o atual presidente da Sociedade de Teologia e Ciências da Religião – SOTER e autor de livros e artigos sobre a teologia do laicato. Dentre eles: O futuro de Deus na missão da esperança: uma aproximação escatológica (2014), um estudo sobre a obra do “teólogo da esperança”, o protestante Jürgen Moltmann, e Leigos e Leigas – força e esperança da Igreja no mundo (2009).

Fonte:

www.ihu.unisinos.br

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Acabemos com o sistema clerical https://observatoriodaevangelizacao.com/acabemos-com-o-sistema-clerical/ Wed, 25 Nov 2020 21:35:09 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=36808 [Leia mais...]]]> É densa a argumentação com a qual o filósofo e teólogo francês Loïc de Kerimel aborda a raiz doente do clericalismo eclesiástico no seu livro En finir avec le cléricalisme [Acabar com o clericalismo] (Seuil, 2020). O livro publicado em abril de 2020, logo após a morte do autor, pode ser considerado um verdadeiro testamento espiritual.

Segundo Loïc de Kerimel, “Só será possível falar de saída do sistema clerical no dia em que nenhuma mulher for impedida de exercer as funções de governo, de ensino e de culto” reservadas hoje aos homens. Mas ele também acrescenta que, antes de pensar em abrir às mulheres a possibilidade de acesso ao ministério presbiteral, é preciso dessacralizá-lo e dessacerdotizá-lo, evitando estruturá-lo segundo uma ordem hierárquica rígida e discriminatória (p. 241).

A intenção do teólogo Loïc de Kerimel não é tanto estigmatizar as formas desviantes de clericalismo na Igreja que desembocaram – como afirmou o papa Francisco na Carta ao Povo de Deus de 20 de agosto de 2018 – nos abusos sexuais, de poder e de consciência, mas sim de evidenciar o seu caráter sistêmico.

Segundo o autor, na origem do clericalismo, há um processo de sacralização da função do presbitério, que, a partir do fim do século III, a Igreja nascente tomou emprestada das estruturas centralizadoras da tribo judaica dos levitas. A classe sacerdotal constituiria uma casta depositária dos poderes divinos, implicando uma diferença não apenas de grau, mas também de natureza entre o clero e os leigos. No que diz respeito à generalidade das pessoas batizadas, o clero seria depositário de uma superioridade religiosa derivada do sacramento da ordem.

O livro está dividido em três partes. Na primeira (capítulos 1 a 6), o autor examina o nascimento do “sistema clerical”, em contraste com o ensino de Jesus e com a vida das primeiras comunidades cristãs. Na segunda (capítulos 7 a 11), ele se detém sobre a evolução e o fortalecimento do sistema clerical ao longo da história da Igreja. Na terceira (capítulos 12 a 15), ele tenta responder à pergunta sobre se hoje é possível, por parte da Igreja, sair do clericalismo, concretizando o ideal crístico da igualdade de todas as pessoas batizadas em razão da mesma dignidade cristã proclamada certamente pelo Concílio Vaticano II, mas de modo não totalmente isento de mal-entendidos.

(O comentário é de Andrea Lebra, leigo católico italiano, em artigo publicado por Settimana News, 23-11-2020. A tradução, para o IHU, é de Moisés Sbardelotto. A adaptação e os grifos, para o Observatório da Evangelização, é de Edward Guimarães)

Confira:

Foto: PxHere
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ACABEMOS COM O SISTEMA CLERICAL

Andréa Lebra

É densa a argumentação com a qual o filósofo e teólogo francês Loïc de Kerimel aborda a raiz doente do clericalismo eclesiástico no seu livro En finir avec le cléricalisme [Acabar com o clericalismo] (Seuil, 2020).

É um livro que está obtendo um considerável sucesso na França. Ele aborda de frente e de forma meticulosa e documentada uma das questões particularmente caras ao papa Francisco: como prevenir, combater e superar na Igreja aquele “mal feio que tem raízes antigas” (meditação matinal de 13 de dezembro de 2016), constituído pelo clericalismo, “modo anômalo de entender a autoridade na Igreja” e “atitude que não só anula a personalidade dos cristãos, mas também tende a diminuir e a subestimar a graça batismal” posta pelo Espírito Santo no seu coração (Carta ao Povo de Deus de 20 de agosto de 2018).

O livro intitula-se En finir avec le cléricalisme” (Acabar com o clericalismo). Foi escrito por Loïc de Kerimel, pai de quatro filhos e avô de seis netos, irmão do bispo de Grenoble-Vienne, Guy de Kerimel, apreciado professor de filosofia por quase 30 anos em um colégio de Le Mans, teólogo perspicaz, assíduo leitor das obras de um dos mais renomados teólogos franceses, o jesuíta Joseph Moingt, que morreu com mais de 100 anos no dia 28 de julho de 2020.

Cofundador da associação Chrétiens en marche [Cristãos em marcha], por uma presença ativa e responsável do laicato na Igreja, particularmente comprometido no âmbito da Conférence Catholique des Baptisé-es Francophones [Conferência Católica dos Batizados de Língua Francesa], por uma reforma profunda da Igreja, Loïc de Kerimel também tem um papel particularmente ativo no Amitié Judéo-Chrétienne de France [Amizade judaico-cristã da França], uma associação que visa a favorecer o diálogo entre cristãos e judeus.

Raízes culturais do clericalismo

Precedido por um belo prefácio de Jean-Louis Schlegel, redator da revista Esprit, a revista fundada em 1932 por Emmanuel Mounier, o livro tem o mérito de ir às raízes teóricas e culturais do clericalismo, uma doença crônica de que padece o cristianismo desde o fim do segundo século da era cristã. Publicado em abril de 2020, logo após a morte prematura do autor, ele pode ser considerado como um testamento espiritual dele.

A intenção de Loïc de Kerimel não é tanto estigmatizar as formas desviantes de clericalismo na Igreja que desembocaram – como afirmou o papa Francisco na Carta ao Povo de Deus de 20 de agosto de 2018 – nos abusos sexuais, de poder e de consciência, mas sim de evidenciar o seu caráter sistêmico.

Este caráter sistêmico do clericalismo é identificado pelo autor:

  1. no fato de terem sido introduzidas e reiteradas no seio do “povo de Deus” as categorias da separação (clero/leigos, homens/mulheres, puro/impuro);
  2. da hierarquização (bispos/presbíteros/diáconos/religiosos/fiéis);
  3. da marginalização da mulher;
  4. e da sacralização de uma pessoa mediante a imposição das mãos, que cria as condições para se sentir parte de uma casta (a “sacerdotal”), detentora de competências e de atribuições exclusivas e excludentes.

O caráter sistêmico daquilo que o papa Francisco denuncia como “um modo não evangélico” de conceber o papel eclesial do presbítero (discurso de 6 de outubro de 2018 aos peregrinos da Igreja Greco-Católica Eslovaca), ou como “uma caricatura e uma perversão do ministério” do bispo (discurso de 24 de janeiro de 2019 aos bispos da América Central), ou ainda como “um perigo do qual os diáconos também devem se resguardar” (discurso de 25 de março de 2017 aos padres e consagrados por ocasião da visita apostólica a Milão), é examinado percorrendo, primeiro, a história dos primeiros séculos da Igreja.

Configuração hierárquico-sacrificial do sistema clerical

Segundo Loïc de Kerimel, na origem do clericalismo, há um processo de sacralização da função do presbitério, que, a partir do fim do século III, a Igreja nascente tomou emprestada das estruturas centralizadoras da tribo judaica dos levitas. A classe sacerdotal constituiria uma casta depositária dos poderes divinos, implicando uma diferença não apenas de grau, mas também de natureza entre o clero e os leigos. No que diz respeito à generalidade das pessoas batizadas, o clero seria depositário de uma superioridade religiosa derivada do sacramento da ordem.

Paradoxalmente, enquanto a religião judaica, com a substituição do templo pela sinagoga, do rabinato pelo sacerdócio e do sistema sacrificial pelo estudo da Torá, se encontra, de fato, após a destruição do Templo em 70 d.C., dessacralizada e dessacerdotalizada, a Igreja se estrutura de acordo com categorias levíticas, como a instituição do sumo sacerdote (ou seja, do bispo), a distinção sacerdotes/leigos, a exclusão das mulheres, a concepção sacrificial do culto e a reintrodução do “espaço sagrado” inteiramente dedicado a ele e acessível apenas ao clero.

A esse respeito, o autor cita a fórmula lapidar utilizada por Joseph Moingt na sua obra “Esprit, Église et monde: de la foi critique à la foi qui agit” (Paris: Éditions Gallimard, 2016, p. 216): o Antigo Testamento fundado na lei superou o Novo fundado no amor recíproco (p. 29).

No início, não era assim

São 15 os capítulos do livro distribuídos em três partes.

Na primeira parte (capítulos 1 a 6), o autor examina o nascimento do “sistema clerical”, em contraste com o ensino de Jesus e com a vida das primeiras comunidades cristãs. O elemento mais problemático do processo que, ao longo da história, afetou o ministério ordenado – vivido concretamente hoje nos distintos papéis do bispo, do presbítero e do diácono – é a assunção de um forte caráter sacral e sacerdotal, que no início lhe era completamente estranho.

É significativo que os escritos neotestamentários, inclusive os apócrifos, concordam em atribuir a Jesus uma linhagem genealógica que não tem nada a ver com a tribo de Levi, excluindo-o assim na raiz do pertencimento à classe sacerdotal. Com respeito a Jesus – e aos seus apóstolos – os Evangelhos nunca falam de sacerdócio. São muitos os títulos atribuídos a ele (Mestre, Profeta, Filho de Davi, Filho do homem, Messias, Senhor, Filho de Deus), mas nunca o de Sacerdote ou de Sumo Sacerdote (p. 45).

Lendo os textos das origens cristãs, pode-se perceber que nenhum apóstolo e nenhuma outra pessoa se separa da comunidade em virtude de um caráter sagrado, ou se comporta como ministro de um culto novo ou realiza atos especificamente rituais. Pode-se observar que não há nenhuma distinção entre pessoas consagradas e não consagradas (…). Não há espaços ocupados por uma instituição sacerdotal”. Quem escreve isso é Joseph Moingt (em: “Dieu qui vient à l’homme”, t. 2/2, Paris: Les Éditions du Cerf, 2008, p. 842), o teólogo muitas vezes citado por Loïc de Kerimel.

Segundo Loïc de Kerimel, o que é indelével no âmbito do “santo povo fiel de Deus” – escreve o autor – é a condição comum dos batizados e das batizadas à qual tudo, inclusive o exercício da autoridade, está subordinado (p. 41).

É o que emerge a partir das Escrituras, e foi o que o Concílio Vaticano II afirmou com autoridade: antes do ministério ordenado, isto é, antes do “sacerdócio ministerial” do bispo, do presbítero e do diácono, existe a condição comum de todos os fiéis em virtude do batismo, significativamente definida como “sacerdócio comum”. E é isso que, infelizmente, em nível prático e generalizado, por enquanto, não parece ter sido recebido pela Igreja, mesmo que seja um bom presságio a insistência do papa Francisco em colocar novamente no centro o batismo como base inevitável da vida cristã.

No presbiterado, é do batismo que se origina não o “poder” sobre a comunidade de fiéis, mas sim o “serviço” a ela. O sacramento da ordem não sacraliza a pessoa sobre a qual são impostas as mãos, mas radicaliza sua vocação batismal – Andrea Lebra Tweet

Em outras palavras, no que se refere ao presbiterado, é do batismo que se origina não o “poder” sobre uma comunidade de fiéis, mas sim o “serviço” a ela. O sacramento da ordem não sacraliza a pessoa sobre a qual são impostas as mãos, mas radicaliza a sua vocação batismal.

Clericalismo: um problema cuja solução não está próxima

Na segunda parte do seu ensaio (capítulos 7 a 11), o autor se detém sobre a evolução e o fortalecimento do sistema clerical ao longo da história da Igreja.

Estigmatizando as ligações entre a violência e o sagrado a partir dos estudos de René Girard (p. 143), ele relê a Reforma de Lutero e o Concílio de Trento, que enfatizou a dimensão sacrificial da eucaristia e a sacralidade da figura do padre, ofuscando decisivamente a centralidade do fundamento batismal que une todos os fiéis.

Quanto aos nossos tempos, ele não esconde a sua decepção com a presença do fenômeno da reclericalização galopante presente em alguns âmbitos eclesiais e que parece interessar sobretudo aos “padres da geração João Paulo II”, que alimentam a nostalgia “de um sagrado englobante, que exonera o indivíduo da responsabilidade de viver e de pensar” (p. 197).

Há uma presença da reclericalização galopante que parece interessar sobretudo aos “padres da geração João Paulo II”, que alimentam a nostalgia “dum sagrado englobante, exonerando o indivíduo da responsabilidade de viver e pensar” – Andrea Lebra Tweet

Isso o leva a reconhecer que o sistema clerical ainda parece ter um futuro decididamente duradouro, até porque quem deseja padres clericais são famílias numerosas e poderosas de afiliados pertencentes principalmente a categorias socioprofissionais elevadas (p. 198).

Presbíteros, não sacerdotes

Na terceira parte (capítulos 12 a 15), Loïc de Kerimel tenta responder à pergunta sobre se hoje é possível, por parte da Igreja, sair do clericalismo, concretizando o ideal crístico (p. 64) da igualdade de todas as pessoas batizadas em razão da mesma dignidade cristã proclamada certamente pelo Concílio Vaticano II, mas de modo não totalmente isento de mal-entendidos.

A esse respeito, o autor cita Gilles Routhier, um dos mais renomados historiadores do Concílio Vaticano II, que, a 50 anos do Concílio, considera a perspectiva decididamente revolucionária de considerar o tema do “povo de Deus” como uma prioridade em relação à constituição hierárquica da Igreja permaneceu no nível de um piedoso desejo.

A 50 anos do Vaticano II, a perspectiva decididamente revolucionária de considerar o tema do “povo de Deus” como uma prioridade em relação à constituição hierárquica da Igreja permaneceu no nível de um piedoso desejo – Gilles Routhier Tweet

Em particular, quanto à imagem do ministro ordenado, o professor canadense de eclesiologia acredita que o Concílio se viu diante de duas perspectivas:

  • uma, tradicional, que parte da noção de sacerdote – no modelo do “sacrificador” das religiões tradicionais, do grego hiéreus e do hebraico cohen;
  • a outra, atestada no Novo Testamento, baseada na ideia do presbiterado – o estatuto do idoso, do homem (ou da mulher?) que, pela experiência amadurecida, é capaz de exercer a arte do discernimento e de contribuir para resolver conflitos, demonstrando assim que tem o título para cuidar da comunidade que lhe foi confiada, para dar a sua própria contribuição para a vida dos fiéis em um serviço generoso e apaixonado, para presidir o culto.

Segundo Gilles Routhier, o Concílio Vaticano II escolheu a segunda perspectiva e, consequentemente, utiliza o termo “presbítero”, enquanto o Concílio de Trento usa o de “sacerdote”.

O Concílio utiliza o termo “presbítero”, enquanto o Concílio de Trento usa o de “sacerdote” – Andrea Lebra Tweet

Citando, depois, Yves Congar, Routhier acrescenta que o termo sacerdote não só não é bíblico, mas que ele também privilegia indevidamente, entre as três funções atribuídas a Cristo (sacerdotal, profética, real), a sacerdotal em detrimento das outras duas.

Tratando-se de presbíteros, o seu ministério sacerdotal, isto é, a celebração da eucaristia e dos sacramentos, é apenas uma das dimensões do seu ministério. Este último é, em primeiro lugar, ministério da evangelização e do governo. A celebração da eucaristia não monopoliza a definição de quem é e do que faz o padre (p. 204).

O termo sacerdote não só não é bíblico, mas que ele também privilegia indevidamente, entre as três funções atribuídas a Cristo (sacerdotal, profética, real), a sacerdotal em detrimento das outras duas – Gilles Routhier Tweet

Nenhuma desigualdade em Cristo e na Igreja

O reconhecimento – quanto à nacionalidade, condição social ou sexo – da “igual dignidade em Cristo e na Igreja” (Lumen gentium 32, comentando Gl 3,28) das pessoas batizadas e o consequente fim da “dominação masculina” constituem a condição sine qua non tanto da possibilidade de saída da crise que assola a Igreja depois dos escândalos em matéria de abusos sexuais, de poder e de consciência, quanto mais simplesmente da fidelidade ao Evangelho (p. 229).

A radical igualdade de todos os membros do “povo de Deus” sem discriminação de nação, de condição social ou de sexo não anula as diferenças de funções, mas faz com que o exercício destas últimas não gere cisões no corpo eclesial, afaste toda forma desviante de autoritarismo e, ao mesmo tempo, valorize diversidades e complementaridades dos carismas (cf. 1Cor 12) a serviço do bem comum (p. 257).

A celebração da eucaristia não monopoliza a definição de quem é e do que faz o padre – Andrea Lebra Tweet

Sobretudo, segundo Loïc de Kerimel, “só será possível falar de saída do sistema clerical no dia em que nenhuma mulher for impedida de exercer as funções de governo, de ensino e de culto” reservadas hoje aos homens. Mas ele também acrescenta que, antes de pensar em abrir às mulheres a possibilidade de acesso ao ministério presbiteral, é preciso dessacralizá-lo e dessacerdotizá-lo, evitando estruturá-lo segundo uma ordem hierárquica rígida e discriminatória (p. 241).

Pôr fim à exclusão das mulheres devida ao sistema clerical demonstraria realmente que, com Jesus de Nazaré, passamos do sagrado ao santo, de uma concepção elitista de salvação à convicção de que Deus se doa imediatamente a todos e a todas sem excluir ninguém (p. 244).

Fonte:

IHU

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Inventar um Cristianismo para o hoje https://observatoriodaevangelizacao.com/inventar-um-cristianismo-para-o-hoje/ Wed, 05 Aug 2020 15:13:38 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=35307 [Leia mais...]]]> O papa Francisco desde o início de seu magistério pontifício tem não apenas denunciado a autoreferencialidade e o clericalismo como graves problemas da Igreja, mas impulsionado a decisão de uma Igreja em saída, em saída dos próprios muros de ensimesmamento, saída para o mundo. Neste sentido, a reflexão de M.N. adquire, neste contexto de pandemia, um senso de urgência incontornável: “empenharmos, com paixão e competência, a inventar um cristianismo para o hoje“, mas “que não seja nem adaptação ao espírito do tempo“, “nem repetir nostalgicamente memórias agora perdidas de uma fé que, com… seu sutil sonho de subjugar o mundo à sua própria visão dos fatos“. Nesse sentido, “o inédito devir que temos pela frente deveria induzir, de ambos os lados, a inteligência de uma nova aliança entre as práticas religiosas de crer e a dimensão civil de habitar o mundo“. Além disso, afirma que “a passagem para a exterioridade do viver comum indistinto, deixando definitivamente para trás a segurança identitária da religião instituída, é o pressuposto necessário para a invenção do cristianismo – desde as suas origens“.

Vale a pena conferir e deixar-se provocar:

Inventar o Cristianismo

Por M.N., em artigo publicado por Settimana News, em 02/08/2020, e traduzido para o IHU por Luisa Rabolini

Talvez todos precisássemos de uma longa trégua, deixar de lado por alguns anos as polêmicas animosidades dos lados opostos, para realmente nos empenharmos, com paixão e competência, a inventar um cristianismo para o hoje. Que não seja nem adaptação ao espírito do tempo, com suas justas reivindicações e seus obtusos estereótipos, nem repetir nostalgicamente memórias agora perdidas de uma fé que foi, com sua sábia coleção do passado que nos gerou e seu sutil sonho de subjugar o mundo à sua própria visão dos fatos.

Temos um patrimônio sapiencial e cultural de “coisas antigas e coisas novas” que devem ser apresentadas na vida humana de hoje, nas contingências da vida cotidiana, na tarefa que a longa passagem da pandemia inevitavelmente coloca para as comunidades cristãs. Nisso, o cristianismo é testado como todo âmbito social e político na qual é chamado a viver. O inédito devir que temos pela frente deveria induzir, de ambos os lados, a inteligência de uma nova aliança entre as práticas religiosas de crer e a dimensão civil de habitar o mundo.

O aspecto em comum do tempo que atravessamos já nos coloca uns ao lado dos outros – para que não permaneça uma mera justaposição dos destinos, é preciso que alguém tome nas mãos a construção de entrelaçamentos frutíferos justamente por causa de uma oposição que não permite a homologação entre si das diferentes maneiras de habitar na cidade dos homens e das mulheres de hoje.

O engajamento paciente na tecelagem desses entrelaçamentos, sem qualquer pretensão de superioridade moral ou sonho de uma nova supremacia espiritual, deveria ser a tarefa cultural da comunidade cristã em razão de sua fé. Isso também permitiria deslocar seu centro de gravidade, abandonando os limites seguros de seu perímetro comunitário, para entrar nos meandros da vida social que, ao mesmo tempo, une e divide os homens.

A passagem para a exterioridade do viver comum indistinto, deixando definitivamente para trás a segurança identitária da religião instituída, é o pressuposto necessário para a invenção do cristianismo – desde as suas origens. Esquecemos que essa é a condição que salva a comunidade de fé da extinção devida ao devoto espelhamento sobre si mesma.

No entanto, parece que ainda seja muito difícil aceitar a exterioridade da fé como o espaço no qual ela está destinada a se praticar; e há décadas continuamos apenas a falar de nós para nós mesmos. Doença de um cristianismo que se tornou senil, agachado em seu quintal, que imagina – enganando-se – que mudar as próprias estruturas internas (para renová-las ou para fazer com que voltem a ser o que eram) é a carta que decide o destino no nosso tempo.

Repetindo, de maneiras diferentes e contrapostas, o mesmo erro: o de se preocupar consigo mesmo como razão que define seu destino. Não se pode mais aceitar esse tipo de cristianismo – exatamente porque não é digno de sua própria razão de ser. O declínio qualitativo e cultural em que caiu deveria induzir alguma séria reflexão: passamos dos tempos em que as lutas internas da Igreja fizeram a história do Ocidente para uma época em que são uma dádiva de Deus para os tabloides jornalísticos de variado formato.

O problema é que agora isso se tornou a medida segundo a qual avaliamos a nossa importância: fazemos notícias, portanto somos. Diante disso, que venha pelo menos um mínimo tremor de orgulho que nos induza a inventar uma maneira evangelicamente digna de sermos cristãos em nosso tempo.

(Os grifos são nossos)

Fonte:

IHU

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Análise da nova série da Netflix: "Messiah", com a palavra o teólogo Thomas Reese https://observatoriodaevangelizacao.com/analise-da-nova-serie-da-netflix-messiah-com-a-palavra-o-teologo-thomas-reese/ Tue, 03 Mar 2020 13:15:51 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=34261 [Leia mais...]]]> A nova série da Netflix sobre o retorno de Jesus aos tempos contemporâneos é boa na televisão, mas ruim na teologia. No “Messiah” do serviço de streaming, al-Masih, como Jesus retornado é conhecido no Islã, é um catalisador lançado em nossos tempos turbulentos, e a emoção é assistir para ver como as pessoas respondem a ele. Ateus, judeus, cristãos e muçulmanos são todos desafiados por sua aparência.

(O artigo é de Thomas Reese, publicado por Religion News Service, 20-02-2020. A tradução é de Natália Froner dos Santos, do IHU.)

“Messiah” da Netflix não é meu Jesus

Frequentemente, as personalidades e as noções preconcebidas dos personagens determinam suas respostas. Aqueles que procuram desesperadamente por esperança o abraçam, enquanto aqueles cheios de suspeitas acham que ele é uma fraude ou coisa pior. E há aqueles que querem explorá-lo para seus próprios propósitos.

Os mais interessantes são os que flutuam entre fé e dúvida, entre suspeita e confusão. Esses personagens representam os espectadores que o programa mantém em suspense, fornecendo evidências, primeiro de um lado e depois do outro, sobre se esse Jesus é real. (Como em qualquer série que se preze, a temporada termina com mais perguntas do que respostas.)

I – A obsessão com a segunda vinda de Jesus e suas consequências

Tudo isso contribui para uma ótima TV, mas temo que o “Messiah” possa alimentar nossa obsessão com a segunda vinda. Infelizmente, muitos cristãos preocupados com o “fim dos tempos” querem que Jesus volte para recompensá-los e punir seus inimigos. Essa preocupação com o retorno de Jesus tem consequências negativas em como vivemos. Pressupõe que não precisamos nos preocupar com coisas como o aquecimento global, porque o mundo vai acabar mesmo assim. Também não temos que fazer o trabalho duro de construir o reino de paz, justiça e amor do Pai, porque Jesus fará isso por nós.

As pessoas estão prevendo o retorno de Jesus por quase 2.000 anos. Eles sempre estiveram errados. Alguns desses profetas foram fraudes; muitos foram ilusórios. Com esse tipo de registro, é ingênuo ou arrogante pensar que Jesus voltará agora apenas porque estamos vivos.

As pessoas que afirmam que Jesus voltou não devem ser confiáveis. Como o próprio Jesus diz no evangelho de Mateus: “Se alguém lhe disser: ‘Olha, aqui está o Messias!’ ou ‘Lá está ele!’ não acredite. Aparecerão falsos messias e falsos profetas, e eles farão sinais e maravilhas tão grandes que enganarão, se possível, até os eleitos.

Aqueles que buscam sinais da vinda do Senhor devem lembrar as palavras de São Paulo aos Tessalonicenses: “Quanto aos tempos e estações do ano, irmãos, vocês não precisam que nada seja escrito para vocês. Pois vocês sabem muito bem que esse dia do Senhor virá como um ladrão à noite.” Não haverá aviso.

Nenhum é mais claro do que Mateus, onde disse Jesus: “Daquele dia e hora ninguém sabe, nem os anjos do céu, nem o Filho, mas apenas o Pai“. Por que então pensamos que meros mortais podem descobrir isso?

Jesus voltará, mas como os anjos disseram após sua ascensão: “Homens da Galiléia, por que vocês estão olhando o céu?” Pare de sonhar acordado e volte ao trabalho que Jesus deixou para você.

II – A ênfase excessiva nos milagres e o seu sentido muito diferente nos Evangelhos

A série também enfatiza excessivamente os milagres, o que contribui para a boa televisão, mas transforma Jesus em um trabalhador que faz maravilhas. Mesmo presumindo que os milagres são reais, os milagres no “Messiah” são muito diferentes dos milagres nos Evangelhos.

Os milagres no “Messiah” são os de um trabalhador que faz maravilhas clássico: uma tempestade de areia destrói um exército ameaçador; ele conhece nomes e segredos de estranhos; ele desaparece quando está cercado por inimigos; ele misteriosamente escapa da prisão; ele magicamente viaja grandes distâncias sem meios aparentes; ele anda sobre a água; ele escapa de uma tentativa de assassinato. O objetivo desses milagres é provar sua autenticidade.

É verdade que os Evangelhos também mostraram Jesus a fazer algumas dessas coisas, mas a maioria dos milagres bíblicos de Jesus visava a ajudar as pessoas, não chamar a atenção para si mesmo. Ele curou os doentes, expulsou demônios e alimentou os famintos. Seus milagres foram sinais da chegada do reino de Deus, que veio em amor e compaixão, não em poder.

No evangelho de João, quando um oficial da realeza procura uma cura para seu filho, Jesus a princípio o rejeita. “A menos que vocês vejam sinais e maravilhas“, ele diz, “vocês não acreditarão“. Mas quando o pai pede a vida de seu filho, Jesus responde: “Você pode ir; seu filho viverá”. Jesus não faz milagres para ganhar seguidores; ele os faz por compaixão pelos necessitados.

III – A diferença entre os valores e a mensagem de Jesus da série e do Evangelho

Finalmente, os valores e a mensagem de Jesus em “Messiah” são confusos.

É verdade que ele encoraja as pessoas a olharem além de suas categorias sectárias e reconhecerem que Deus pode trabalhar através de qualquer pessoa. Ou, como ele diz a um juiz de imigração, “eu ando com todos os homens”.

Ele também diz a um discípulo chauvinista: “Vá encontrar uma mulher e dê a ela seu lugar”. E depois de destruir o ISIS, ele se torna pacífico. Ele diz a seus seguidores para enterrar suas armas antes de chegarem à fronteira com Israel.

Ele desafia os “sortudos”, que o destino abençoou ao nascer em um local de prosperidade, com fronteiras entre eles e os menos sortudos. Em Washington, ele pergunta aos que estão na terra dos livres, defendendo a liberdade e a justiça: “Quando você trouxe liberdade? Onde você causou justiça?” E quando ele finalmente se encontra com o presidente, ele diz para trazer todas as tropas para casa.

Tudo isso se encaixaria perfeitamente nas visões dos progressistas religiosos.

Mas enquanto o Jesus do Evangelho prega seu Pai, a mensagem do Messiah da Netflix é muito sobre si mesmo. “Me deixar agora é perecer… Se apegue a mim.” Ao mesmo tempo, ele é muito fatalista em sua abordagem da vida: “Estou aqui neste momento porque sempre estive aqui neste momento e você também”, diz ele a um jovem seguidor que pergunta: “Por que você vem agora?”

Ele passa pouco tempo interagindo com as pessoas, exceto seus interrogadores e alguns discípulos escolhidos. E mesmo eles não recebem respostas diretas. Ele geralmente responde a uma pergunta com uma pergunta. Ele passa muito tempo sentado com os olhos fechados, meditando, presumo. Jesus, por outro lado, misturou-se com as pessoas, especialmente durante as refeições.

Existem poucos indícios de que o Messiah da Netflix goste de pessoas. Muitas pessoas vêm buscando curas ou direção, mas ele as ignora, alegando ter uma missão mais importante. Quando as pessoas precisam evacuar a costa da Flórida, ele diz “Deus quer o dilúvio”. Sério?

E quando sua porta-voz pessoalmente selecionada transmite sua mensagem, ela é: “Se você estiver com ele, será entregue. Se não estiver, você será tomado por tornados. Por inundações. E varrido pelo grande deserto”.

Em nenhum lugar temos a sensação de que “Ao ver as multidões, seu coração se comoveu de pena delas porque estavam perturbadas e abandonadas, como ovelhas sem pastor”, como o Evangelho de Mateus o descreve. A única exceção é uma prostituta paga para seduzi-lo, mas que muda de ideia por causa da interação deles.

Mais importante, onde está a mensagem de compaixão de Jesus pelos famintos, nus, desabrigados, encarcerados e doentes? No filme, Ele nunca pede que seus discípulos alcancem os marginalizados e abandonados.

Em um episódio inicial, o Vaticano anuncia que ele será investigado pela Congregação para os Santos, um pequeno erro. Tal caso iria para a Congregação para Doutrina da Fé. A Congregação para os Santos lida apenas com pessoas mortas.

Mas não preciso de uma investigação do Vaticano ou da CIA para saber que esse não é o meu messias. Se esse Jesus saísse da tela e entrasse no mundo, eu não o seguiria, mesmo que ele pudesse realizar milagres. Eu vou ficar com o Jesus do Evangelho. Mas ainda assim, estou ansioso pela segunda temporada.

(Os grifos são nossos)

Fonte:

IHU

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Os eufemismos do poder e o desafio de enfrentar a crise do abuso sexual do clero https://observatoriodaevangelizacao.com/os-eufemismos-do-poder-e-o-desafio-de-enfrentar-a-crise-do-abuso-sexual-do-clero/ Wed, 20 Feb 2019 02:52:08 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=29939 [Leia mais...]]]> Na véspera da reunião dos líderes das conferências nacionais dos bispos católicos em Roma, na qual se discutirão os abusos sexuais do clero, Michele Dillon, professora de sociologia na Universidade de New Hampshire e autora do livro é Catholicism Postsecular: Relevance and Renewal (Catolicismo pós-secular: relevância e renovação), em artigo publicado por National Catholic Reporter, em 15/02/2019, afirma que:

A linguagem eufemística é usada preferencialmente para mistificar e distrair e, especialmente, negar uma dada realidade. Autoridades da Igreja usam a linguagem eufemística, argumentou Bourdieu, para se inocular do reconhecimento da verdade real das práticas da Igreja, e para convencer os leigos (e outros) de que não há nada arbitrário a respeito do poder hierárquico e o privilégio clerical que ele incorpora.

Com outras palavras “É como um manual para esconder a verdade: primeiro, use eufemismos em vez de palavras reais para descrever as agressões sexuais nos documentos da diocese. Nunca diga ‘estupro’, diga ‘contato inadequado’ ou ‘problemas de limite’. (…) Quando um padre precisa ser removido, não diga por quê: diga aos paroquianos que ele está de licença médica ou que está sofrendo de ‘esgotamento nervoso’. Ou não diga nada“.

A menos que as autoridades da Igreja venham a reconhecer as posições de privilégio e poder que elas ocupam, e como isso pode distorcer seu entendimento do sacerdócio, sobre equidade, sobre sexo e abuso sexual, é difícil ver, atualmente, uma saída da crise que eles criaram. A eufemização permitiu à hierarquia mascarar as duplas verdades – celibato/atividade sexual e serviço sacerdotal/poder – que sustentaram o status consagrado de muitas gerações de católicos.

Confira, a seguir, o provocante artigo da socióloga Michele Dillon:

A eufemização do poder da Igreja católica

Líderes das conferências nacionais de bispos católicos irão se reunir em breve, entre 21 e 24 de fevereiro de 2019, em Roma, para confrontarem coletivamente o flagelo do abuso sexual do clero, que foram permitidos por lideranças fracassadas, durante várias décadas. Ações concretas são urgentemente necessárias e esperadas impacientemente.

Qualquer política emergente, no entanto, se não for construída sobre o reconhecimento dos líderes da Igreja de como o poder sacramental (ordenação) pode contribuir para a fermentação do abuso, dificilmente será eficaz na eliminação da atividade sexual do clero e o seu acobertamento. Essa tarefa requer escolhas ativas do papa Francisco e de seus colegas, para chegar à verdade e delineá-la.

O grande sociólogo francês Pierre Bourdieu, já falecido, escreveu em seu livro Razões Práticas: Sobre a Teoria da Ação sobre como os jogos de palavras, incluindo eufemismos, são uma estratégia crucial na reprodução da Igreja Católica da desigualdade entre a hierarquia e os leigos. A linguagem eufemística não é simplesmente um jargão ou a abreviação pragmática. É usada preferencialmente para mistificar e distrair e, especialmente, negar uma dada realidade. Autoridades da Igreja usam a linguagem eufemística, argumentou Bourdieu, para se inocular do reconhecimento da verdade real das práticas da Igreja, e para convencer os leigos (e outros) de que não há nada arbitrário a respeito do poder hierárquico e o privilégio clerical que ele incorpora.

Eu pensei em Bourdieu em agosto de 2018, enquanto lia as conclusões do relatório do grande júri da Pensilvânia sobre abuso sexual nas dioceses católicas do país. O relatório documentou várias instâncias de eufemização em ação. E de fato chamou a eufemização pelo que é.

Resumindo a análise dos arquivos sobre abusos sexuais em dioceses, conduzidos pelo FBI, o grande júri escreveu: “É como um manual para esconder a verdade: primeiro, use eufemismos em vez de palavras reais para descrever as agressões sexuais nos documentos da diocese. Nunca diga ‘estupro’, diga ‘contato inadequado’ ou ‘problemas de limite’. (…) Quando um padre precisa ser removido, não diga por quê: diga aos paroquianos que ele está de licença médica ou que está sofrendo de ‘esgotamento nervoso’. Ou não diga nada“.

Eufemismos, como o grande júri notou, escondem a verdade. Mas qual é a verdade que está sendo escondida? Obviamente, a verdade sendo escondida é de que padres católicos (e alguns bispos e cardeais) estão fazendo sexo com crianças (e com adultos). Essa verdade não deveria ser encobertada. Revela uma flagrante violação da personalidade e dignidade de uma criança; uma violação que, não obstante sua criminalidade e independente de qualquer avaliação psicologicamente benigna comunicada aos oficiais da igreja, seria e deveria ser vista como uma violação da Lei Natural, a tese ancorando o raciocínio moral católico.

Essa verdade também revela um comportamento que é, claramente, uma violação do voto celibatário, obrigado pela ordenação ao sacerdócio. Assim, a eufemização serve para ocultar a dupla verdade ou a “coexistência de opostos” que, segundo Bourdieu, é necessária para sustentar o poder da Igreja.

Esta é a verdade que, como afirmou o Concílio do Vaticano II, embora a Igreja compreenda todo o povo de Deus – leigos e ordenados –, na prática, a Igreja é estruturada pela desigualdade sancionada e consagrada pela ordenação sacerdotal.

O fato de que o clero se envolve em sexo e o fato de que tais clérigos são protegidos pela igreja, material e simbolicamente (através de uma linguagem eufemística), ilumina a dupla verdade do celibato e da atividade sexual. Isto também transmite a verdade de que o sacerdócio, como o Vaticano argumenta, é diferente – “é de outra ordem”, ligado ao “mistério de Cristo” (Congregação para a Doutrina da Fé, “Mulheres no Sacerdócio Ministerial”) – mas, no entanto, concretizada em formas particulares pela Igreja. De fato, sua concretização revela a dupla verdade na alegação da Igreja de que “o sacerdócio é um serviço e não uma posição de privilégio ou poder humano sobre os outros“.

Francisco constantemente denuncia o clericalismo e expressa preocupação de que “o poder sacramental [se torne] estreitamente alinhado com o poder em geral” (Alegria do Evangelho). E ele enfatiza que a Igreja “não é uma elite de padres, de pessoas consagradas, de bispos – mas que todas as pessoas formam o Povo Sagrado e Fiel de Deus”. Na verdade, o poder na Igreja está ligado inseparavelmente à ordenação, e, por definição, consagra uma cultura clerical, bem como práticas excludentes em relação aos não-ordenados. A linguagem, não importa o quão habilmente esteja empregada, não pode obscurecer essa realidade.

A menos que as autoridades da Igreja venham a reconhecer as posições de privilégio e poder que elas ocupam, e como isso pode distorcer seu entendimento do sacerdócio, sobre equidade, sobre sexo e abuso sexual, é difícil ver, atualmente, uma saída da crise que eles criaram. A eufemização permitiu à hierarquia mascarar as duplas verdades – celibato/atividade sexual e serviço sacerdotal/poder – que sustentaram o status consagrado de muitas gerações de católicos.

Mas a eficácia dessa estratégia pode estar diminuindo, como sugerido pelo declínio da confiança dos leigos na liderança da Igreja encontrada em um estudo da Pew Research. A cúpula de fevereiro oferece uma oportunidade para forjar uma estratégia diferente.

(Tradução: Natália Froner dos Santos. Os grifos são da equipe do Observatório)

Fonte:

IHU

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Um sério alerta para o Sínodo dos jovens https://observatoriodaevangelizacao.com/um-serio-alerta-para-o-sinodo-dos-jovens/ Mon, 01 Oct 2018 15:41:37 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=29056 [Leia mais...]]]> Sínodo: existe uma proposta para os jovens?

 

A leitura do mundo juvenil pressupunha uma leitura dolorosa, mas real – como o Papa Francisco insiste muitas vezes – do mundo atual”.

 

A opinião é de Vinicio Albanesi, padre e professor do Instituto Teologico Marchigiano, presidente da Comunidade de Capodarco desde 1994 e fundador da agência jornalística Redattore Sociale e, junto com o Pe. Luigi Ciotti, da Coordenação Nacional das Comunidades de Acolhida (CNCA) da Itália.

(O artigo foi publicado em Settimana News, 30/09/2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.)

Com experiência limitada aos jovens “difíceis” (toxicodependentes, migrantes, mulheres solitárias, crianças abandonadas…), a minha leitura dos documentos preparatórios do Sínodo não desperta nem alegria nem curiosidade.

Lendo o documento preparatório e o Instrumentum laboris, as sensações são ambivalentes. 

O esforço, depois da Evangelii gaudium do papa Francisco e dos dois sínodos sobre a família, de se ocupar com os jovens certamente é louvável. Os jovens fazem parte do futuro e, mesmo que hoje tenham responsabilidades limitadas, proporcionais à sua idade, o futuro depende deles; quando se tornarem adultos, terão que enfrentar a vida e também… os jovens que sobreviverem. Portanto, era justo que um Sínodo da Igreja universal se ocupasse deles.

 

Dialogar sobre coisas concretas

O esforço de leitura da condição juvenil é completo e correto. O único limite é que parece uma leitura anônima; também científica, como o evento Sínodo permite; infelizmente, o diálogo com os jovens assim estabelecido nunca funcionará: isso não significa que a reflexão sobre a idade juvenil não ajude os adultos e toda a Igreja. O diálogo pressupõe a relação. Nesse caso, por um lado, o solene aparato da Igreja Católica e, por outro, o imenso grupo de jovens que habitam o mundo.

Descrever esse mundo não é suficiente; no máximo, uma atenção “devida”, mesmo que apreciada para alguns.

Não se pode falar de outros sem um feeling mínimo com os interlocutores, construído com humildade e disponibilidade: prevendo também a rejeição.

Os adultos do Sínodo nunca falam de si mesmos. São descritas as condições de dificuldade daqueles que devem enfrentar a vida, sem uma referência de responsabilidade àqueles que prepararam esse mundo difícil para elesOs jovens estão em linha direta com aqueles que os fizeram nascer, cuidaram deles e lhes prepararam o mundo que conhecemos. Eu acredito que seja correto pedir perdão por aquilo que não foi feito ou foi feito mal. É um passo indispensável para quem deve enfrentar a vida.

Os âmbitos são muitos: da família à escola, da cidade à nação, do próprio país ao mundo inteiro. Menciona-se nos documentos a internet.

  • Como um jovem conectado da África ou do Extremo Oriente pode aceitar que, na nossa Europa, exista um bloqueio das entradas?

Esse/a jovem busca um futuro melhor que lhe é negado por aqueles que – tendo-se declarado cristãos – fazem de tudo, até mesmo às custas de vê-lo/a morrer, para não ajudá-lo/a.

  • Que dor sofre um/a jovem que vê os próprios pais se separando, quando precisam de apoio e de proximidade?
  • Como é possível aceitar a evolução do último iPhone de mais de mil euros, diante de pobrezas extremas até a morte?

A leitura do mundo juvenil pressupunha uma leitura dolorosa, mas real – como o papa Francisco insiste muitas vezes – do mundo atual.

A subestimação dos escândalos dentro da Igreja, pouco mencionados, não predispõe ao diálogo jovens-adultos. O jovem, precisamente pelo seu jeito de viver as coisas, quer clareza, distinguindo claramente entre o bem e o mal.

 

Faltam propostas

Na segunda parte, dedicada à fé e ao discernimento vocacional.

Não se pode responder citando Santo Irineu de Lyon, Jeremias ou o Livro dos Provérbios. Não é um ultraje à doutrina ou à Sagrada Escritura: é apenas situar mal referências que estão ao alcance apenas de alguns milhares de rapazes e moças orientados à vida religiosa.

A observação nua e crua é que a Igreja atual não tem propostas precisas. Reconhece-se isso nos documentos. Quando alguém falou de “Jesus jovem”? A preocupação teológica é orientada por sínteses antropológicas já relegadas entre os “adeptos aos trabalhos”.

Jesus é sacerdote, profeta e rei. Essas abordagens são simplesmente desconhecidas para as gerações mais jovens, porque a linguagem verdadeira e autêntica da tradição cristã foi elaborada em contextos hoje inexistentes. Basta pensar no conceito de pessoa utilizado para o mistério da Trindade.

O medo (e a preguiça) da proposta de fé, adequada ao mundo que muda, impediu a leitura vital do grande sonho do cristianismo.

 

Amar a Deus e aos outros

Por fim, a proposta.

Acredito que se deva recomeçar a partir das virtudes esquecidas ou contrapostas à cultura dominante. Afinal, o cristianismo é uma religião única porque não propõe nenhum mandamento. Ele faz uma proposta: amar a Deus e aos outros.

O Deus cristão é um pai amoroso, paciente e benigno. Criou o mundo como uma maravilha, embora limitado. Doou dois dons infinitos: a dignidade de cada criatura e a liberdade: do universo à terra, das plantas aos animais, oferecendo ao homem e à mulher o cuidado da vida, deles e daqueles que estão ao seu redor.

Em relação às outras criaturas humanas, ele recomendou que se comportassem como cada um espera para si mesmo: ser escutado, acolhido, ajudado, com mansidão, gratuidade, reconhecimento, perdão. Afinal, ele ditou regras de uma convivência pacífica e justa.

Descobrir esse rosto dá sentido ao porquê as pessoas se comportam de outro modo. Nesse ponto, é possível falar de Jesus, da história que o precedeu e da Igreja que se inspira na sua mensagem. É um sonho porque as contradições são infinitas, embora acompanhadas de heroísmos e de testemunhas exemplares.

Que o Sínodo seja uma oportunidade para todos, cristãos ou não, para prometer que não se percam as indicações do grande Mestre, convocando aqueles que desejam o bem da humanidade.

Seria bonito, ao término do Sínodo, um apelo sincero e leal, indicando temas que são caros às gerações mais jovens: o ambiente, a paridade, os recursos para todos, o respeito recíproco.

Um último detalhe: se se quer falar com os jovens, é preciso se adequar ao seu esquema mental e às suas linguagens. A preocupação da completude e da ortodoxia não deve prevalecer sobre uma abordagem amorosa e benevolente.

Que a mudança de estilo e de conteúdos não seja apenas para os jovens interlocutores do Sínodo, mas também para todos os cristãos.

Afinal, somos os únicos – apesar das contradições – a querer agir gratuitamente pelo bem-estar de qualquer um. Não é pouca coisa em um mundo globalizado e mercantilizado que deixa pouco espaço para as emoções e as afetividades.

 

Fonte:

IHU

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Caminhamos para um cristianismo sem religião. O que isso nos diz? https://observatoriodaevangelizacao.com/caminhamos-para-um-cristianismo-sem-religiao-o-que-isso-nos-diz/ Mon, 23 Apr 2018 12:55:47 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=27852 [Leia mais...]]]> A afirmação de que caminhamos para “um cristianismo sem religião” não foi dita por nenhum inimigo da religião. Trata-se de alguém comprometido com a dinâmica eclesial no contexto atual. Ela foi usada pelo bispo de Gozo, Malta, Dom Mario Grech. Que tal ler a reflexão de Mario Crech e enviar-nos seu posicionamento?

 

Um cristianismo sem religião

É válido admirar a magnífica história da Igreja, mas não podemos continuar a gastar nossa energia numa tradição que pode ter embaçado nossa visão daquilo que Cristo propõe“, escreve Mario Grech, bispo de Gozo (Malta), em artigo publicado por The Malta Independent, 15-04-2018.

Eis o artigo.

Recentemente, um jovem me perguntou que mudança eu queria ver em nossa sociedade. A minha resposta deixou ele surpreso. Disse que desejo que uma certa categoria de cristãos, em particular aqueles nos círculos internos da Igreja, mudem sua maneira de ver sua fé. Suspeito de que muitos católicos estão sofrendo pela exaustão, pela falsificação e pela banalização da nossa fé em Cristo!

Nenhum estudo científico é necessário para concluir que muitas pessoas batizadas estão abandonando a religião. Nossa comunidade religiosa está se transformando em uma comunidade de cabelos brancos! Aqueles que abandonam a Igreja não são desfavorecidos de inteligência. Também não são contrários ao fenômeno religioso. Eles simplesmente perderam o interesse ou se sentem afastados porque nos veem “brincando de Igreja”. É a forma como estamos apresentando o Evangelho, celebrando nossa liturgia e também a nossa incoerência flagrante que está fazendo as pessoas se sentirem espiritualmente enganadas.

Auguste Comte estava errado quando disse que o homem deveria passar da dimensão religiosa para a dimensão científica ou “positivista”. Nem Karl Marx estava correto quando disse que a religião desapareceria pois só oferecia consolações ilusórias. Hoje em dia muitos filósofos confirmam que o desejo religioso é um fato antropológico que pode tomar muitas formas, mas que não pode ser erradicado. Para mim isso confirma que existe um desejo implícito de conhecer a Cristo no coração de cada homem. É a missão da Igreja facilitar este encontro. Portanto, nós, católicos, precisamos garantir que não estamos dificultando aqueles que estão buscando a verdade. Precisamos garantir que nossa nostalgia, nossas incertezas e nossos medos interiores não nos façam apresentar um cristianismo deformado. Temo que estejamos rodeados por este tipo de cristianismo.

Max Weber, Marcel Gauchet e Charles Taylor falam do desencantamento do mundo. As expectativas modernas do homem sobre a relação entre a fé e a religião mudaram. O homem contemporâneo ainda tem sede de fé, mas talvez tenha menos de religião. Devido ao seu desencantamento em assuntos que dizem respeito à fé, o homem moderno prefere percorrer um caminho diferente. Ele tem uma nova forma de ver o mundo e nós, enquanto Igreja, ainda estamos agarrados a uma visão obsoleta.

Por que continuamos obstinadamente a seguir este caminho? Talvez tenhamos medo de correr o risco de mudar. Estamos vivendo uma religiosidade esquizofrênica? Declaramos que estamos seguindo Cristo, mas na verdade nós nos fingimos de cristãos. Estamos nos esquecendo de Cristo em nossa religiosidade? Renegamos a sua mensagem, mas depois celebramos a sua Mãe e os seus santos!

Fonte:

IHU

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Igreja latino-americana pede a convocação de um Sínodo universal sobre “A mulher na vida e na missão da Igreja https://observatoriodaevangelizacao.com/igreja-latino-americana-pede-a-convocacao-de-um-sinodo-universal-sobre-a-mulher-na-vida-e-na-missao-da-igreja/ Fri, 13 Apr 2018 13:35:27 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=27808 [Leia mais...]]]> “Esta Pontifícia Comissão para a América Latina não pretende projetar seus próprios delineamentos e necessidades à Igreja universal, mas pensa seriamente a questão de um Sínodo da Igreja universal sobre o tema da Mulher na vida e missão da Igreja”.

A Igreja latino-americana deu o primeiro passo para o necessário reconhecimento da mulher na instituição. Em todos os níveis. Um caminho apoiado por Francisco e que não tem recuo.

A reportagem é de Jesús Bastante, publicada por Religión Digital, 12-04-2018. A tradução é do Cepat.

 

Esta é uma das principais conclusões de um encontro realizado pela Pontifícia Comissão para a América Latina, com o lema A mulher, pilar na edificação da Igreja e da sociedade na América Latina. Entre outras, os responsáveis admitem que

continuam existindo clérigos machistas, mandões, que pretendem usar as mulheres como servas dentro de sua paróquia, apenas como clientela submissa dos cultos e mão de obra bruta para o que for preciso”, e são categóricos na resposta: “Tudo isto precisa acabar”.

As mulheresprecisam ser reconhecidas e valorizadas como corresponsáveis da comunhão e missão da Igreja, presentes em todas as instâncias pastorais de reflexão e decisão pastorais”. Ao mesmo tempo, recordam que

é possível e urgente multiplicar e ampliar os postos e as oportunidades de colaboração de mulheres nas estruturas pastorais das comunidades paroquiais, diocesanas, em níveis das Conferências episcopais e na Cúria Romana”.

O documento final, divulgado nesta quarta-feira, afirma que

a mudança de época na qual estamos imersos e que requer por parte da Igreja uma nova proposta dedinamismo missionário, exige uma mudança de mentalidade e um processo de transformação análogo ao que o Papa Francisco conseguiu concretizar com as assembleias do Sínodo sobre a Família – que levaram à exortação apostólica Amoris Laetitia – e que agora se propõe com a próxima assembleia sobre os jovens”.

Este trabalho pela sinodalidade, também deve, segundo a Pontifícia Comissão para a América Latina, “estar livre de preconceitos, estereótipos e discriminações sofridas pela mulher”. Ao mesmo tempo, pede às comunidades cristãs “realizar uma séria revisão” para “pedir perdão por todas as situações em que foram e ainda são cúmplices de atentados contra sua dignidade”.

O documento acrescenta que as igrejas locais precisam ter

a liberdade e a coragem evangélica de denunciar todas as formas de discriminação e opressão, de violência e exploração sofridas pelas mulheres, em diferentes situações, e para introduzir o tema de sua dignidade, participação e contribuição na luta pela justiça e a fraternidade, dimensão essencial da evangelização”.

Por isso, “convida-se todas as instituições católicas de ensino superior, em particular as faculdades de teologia e filosofia, a continuar aprofundando uma teologia da mulher, à luz da tradição e do magistério da Igreja, de renovadas reflexões teológicas sobre a Trindade e a Igreja, de desenvolvimento das ciências, em especial da antropologia, como também das atuais realidades culturais dos movimentos e aspirações das mulheres”, declara a Pontifícia Comissão para a América Latina.

Que se promova em todas as igrejas locais e através das conferências episcopais um diálogo franco e aberto entre pastores e mulheres comprometidas em diversos níveis de responsabilidade (dirigentes políticas, empresariais, líderes de movimentos populares e comunidades indígenas)”, conclui o documento, que poder ser lido na íntegra, aqui.

(Os grifos são da equipe executiva do Observatório da Evangelização)

Fonte:

IHU

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Qual o sentido maior da Ressurreição de Jesus para a fé cristã? https://observatoriodaevangelizacao.com/qual-o-sentido-maior-da-ressurreicao-de-jesus-para-a-fe-crista/ Fri, 06 Apr 2018 01:56:15 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=27750 [Leia mais...]]]> Ninguém viu a Ressurreição de Jesus. Temos apenas testemunhos de pessoas às quais deixou-se ver. E há apenas sinais como o sepulcro vazio e suas vestes. Portanto, não é um fato histórico passível de ser detectado por uma máquina fotográfica ou pela televisão. É um fato que aconteceu em Jesus, acessível pela fé dos testemunhos… Poderíamos dizer que a Ressurreição é a concretização da utopia pregada por Jesus, o Reino de Deus que implica a superação da morte e do morrer… Quando digo, seguindo Jürgen Moltmann, que Ressurreição é uma revolução na evolução, quero dizer que Ressurreição é uma pequena antecipação do fim bom da criação, como se o termo da evolução se antecipasse e nos mostrasse em pequeno o que nos está preparado. Isso é uma revolução dentro da evolução que ainda continua e segue seu curso.

 

Ressurreição é uma revolução na evolução

 

Entrevista com o teólogo Leonardo Boff

(Por: João Vitor Santos | 02 Abril 2018)

 

1. Em que medida a Modernidade inebria o entendimento pleno do conceito de Ressurreição?

R.: Não vejo que a Modernidade tenha interesse no tema da Ressurreição, não nos autores que conheço. Preocupam-se sim pelo tema da morte. Por outro lado, se tivermos um conceito mais aprofundado do ser humano, aí sim aponta o tema da Ressurreição. Se concedermos que o ser humano é um projeto infinito e devorado por um desejo que não conhece limites, como Aristóteles e Freud reconheceram, aí se coloca a questão: qual é o objeto adequado ao seu impulso infinito e ao obscuro objeto de seu desejo infinito?

Só um infinito sacia nossa sede de infinito, só uma vida que seja eterna faz descansar o desejo. É a famosa experiência agostiniana do “cor inquietum” que somente repousa quando encontra Deus. O sentido da vida é mais vida, é a plenitude da vida. É aquilo que nós cristãos chamamos de Ressurreição.

 

2. No que consiste o “ressuscitar” segundo a Teologia e a Antropologia?

R.: Ressurreição não pode ser identificada com a reanimação de um cadáver como o de Lázaro que, por fim, acabou morrendo. Ressurreição é a irrupção do “novissimus Adam” de São Paulo (1Cor 15,45). Vale dizer, é a completa realização de todas as virtualidades incontáveis presentes no ser humano. Se ele é um projeto infinito, a Ressurreição representa o momeem em que estas virtualidades chegam a sua plena floração.

 

3. Quais o limites de se buscar a Ressurreição como um dado histórico? E de que forma a leitura mítica pode ampliar o entendimento acerca da Ressurreição?

R.: Ninguém viu a Ressurreição de Jesus. Temos apenas testemunhos de pessoas às quais deixou-se ver. E há apenas sinais como o sepulcro vazio e suas vestes. Portanto, não é um fato histórico passível de ser detectado por uma máquina fotográfica ou pela televisão. É um fato que aconteceu em Jesus, acessível pela fé dos testemunhos.

Esse evento não pertence ao mundo do bios, da vida biológica que sempre termina na morte. Por isso os textos judiciosamente falam em Zoé, que significa uma vida eterna. Também não dizem: nós vimos o Senhor, mas Ele deixou-se ver (óphte em grego, que é o medial de oráo). A iniciativa parte de Jesus e não dos apóstolos, aos quais permite vê-lo. Poderíamos dizer que a Ressurreição é a concretização da utopia pregada por Jesus, o Reino de Deus que implica a superação da morte e do morrer. Não sem razão que Orígenes, um dos mais geniais teólogos cristãos do norte do Egito no século III, denomina a ressurreição como a autobasileia tou Chritou. Traduzindo: a autorrealização do Reino em Cristo.

Quando as realidades são grandes demais, faltam-nos conceitos e palavras. O melhor caminho é elaborar narrativas e projetar mitos que no sentido moderno do termo (em C.G. Jung e nos antropólogos) é um meio de expressar o indizível. O mito não inventa o fato, dá-lhe uma forma que possamos compreendê-lo. Nessa linha dever-se-ia pensar a Ressurreição de Jesus. Antropologicamente ela é fecunda, pois vem ao encontro daquilo que de utópico e infinito discernimos no ser humano.

 

4. Muitos estudiosos defendem que a Ressurreição do Cristo é a vitória da vida sobre a morte. Como podemos compreender tal perspectiva?

R.: A vida é chamada para a vida e não para a morte, mesmo quando sabemos que vamos morrer um dia. Esse é o anseio fundamental do ser humano, não apenas viver muito, mas, como notava Nietzsche, viver eternamente. Nesse sentido, a Ressurreição representa um tipo de vida tão plena que nela não penetra a morte.

Mas para isso ela precisa se transfigurar, vale dizer, realizar totalmente o ser humano em suas infindáveis possibilidades. Não vivemos para morrer, como diriam os existencialistas. Morremos para ressuscitar. Dom Pedro Casaldáliga o formulou bem: a alternativa crista é: ou vida ou ressurreição.

 

5. É possível afirmar que o Deus vivo no Cristo só se revela plenamente na Ressurreição? Por quê?

R.: Enquanto estava entre nós, Jesus participava de todo tipo de limitações e até achaques da existência humana. É o que está implícito da encarnação. O autor da Epístola aos Hebreus é bem concreto: “entre súplicas, clamores e lágrimas se dirigiu àquele que o podia salvar da morte… e aprendeu a obedecer por meio dos sofrimentos que teve” (Hbr 5,7-8). Mais adiante diz que ele “é o general da fé” (12,2). A Ressurreição é a ultrapassagem desta situação carnal e passa à situação “espiritual” (do Espírito de vida). Aqui Deus se revela como o Deus que faz de um morto vivo e de um vivo o “novíssimo Adão”. Dá-se a plena revelação do Deus vivo que quer a vida e que no livro da Sabedoria se revela como “o apaixonado amante da vida” (Sb 11,24).

 

6. No que consiste a ideia de “ressurreição da carne” e de que forma se articula com a perspectiva do túmulo vazio, tão detalhadamente descrito na narrativa de Marcos?

R.: “Carne”, biblicamente, significa a situação humana frágil, doentia, mortal. Essa situação pela Ressurreição foi totalmente transmutada. Paulo o diz claramente: “semeia-se um corpo vital e ressuscita-se um corpo espiritual” (1 Cor 15,44.). Eu sustento a tese, aceita por muitos, de que as aparições no final do evangelho de Marcos seriam um acréscimo posterior, um pequeno resumo das aparições. O Marcos original não teria nada disso. Termina Jesus dizendo “aos discípulos e a Pedro que Ele (Jesus) os precederá na Galileia. Lá me vereis como vos disse” (Mc 16,7).

Com isso quero dizer: Jesus não se manifestou ainda de forma plena. Todos nós estamos a caminho da Galileia (o termo da história) para então vê-lo face a face. Assim me parece se entende melhor a história humana que apesar da Ressurreição de Cristo na verdade nada mudou, pois campeia a morte e a violência no mundo. Na esperança caminhamos para a Galileia da ressurreição. O próprio Jesus está em processo de ressurreição, pois seus irmãos e irmãs, que somos nós, ainda não ressuscitaram nem o universo que lhe pertence alcançou a sua plenitude. Ele está ainda em fase de cosmogênese. Quando tudo se completar, então, Jesus e sua comunidade terão finalmente ressuscitado [Ver um aprofundamento no meu “Cristianismo: o mínimo do mínimo, Petrópolis: Vozes 2015.]. Aqui cabem as palavras de Ernst Bloch: “o gênesis está no fim e não no começo”.

 

7. O senhor diz que a Ressurreição representa “uma revolução na evolução”. Gostaria que detalhasse essa perspectiva.

R.: A moderna cosmologia unanimemente afirma que o estado do universo não é a estabilidade, mas a mobilidade. Tudo está se expandindo, se complexificando e se autocriando. A evolução permite que as virtualidades latentes dentro do universo conheçam emergências, possam irromper sob as formas mais diferentes. Neste sentido, o universo não está ainda pronto. Ao invés de falar em cosmologia, deveríamos falar em cosmogênese, a lenta e progressiva gênese de todas as coisas.

Quando digo, seguindo Jürgen Moltmann, que Ressurreição é uma revolução na evolução, quero dizer que Ressurreição é uma pequena antecipação do fim bom da criação, como se o termo da evolução se antecipasse e nos mostrasse em pequeno o que nos está preparado. Isso é uma revolução dentro da evolução que ainda continua e segue seu curso.

 

8. De que forma o panenteísmo pode contribuir para o entendimento da Ressurreição no nosso tempo?

R.: A expressão “panenteísmo” foi criada no século XIX por um teólogo protestante de nome Krause. Ele quer dizer aquilo que a teologia antiga e clássica ensinava e ainda ensina com a expressão “pericórese” (a intro e retro relação de tudo com tudo) ou “circumincesio”. Primeiramente era aplicada na relação da criação com o Criador: ambos estão de tal maneira imbricados que um não pode ser entendido sem o outro. Depois, aplicou-se à cristologia e à doutrina trinitária. As três divinas Pessoas estão tão intimamente relacionadas que uma sempre implica a outra e assim eternamente.

Panenteísmo significa, então, que Deus está em tudo e tudo está em Deus, resguardadas as diferenças entre criatura e Criador. Não se trata de panteísmo segundo o qual tudo é indistintamente Deus. O próprio Voltaire mostrou o absurdo filosófico que tal afirmação comporta. O panenteísmo guarda as diferenças, mas revela como ambos estão presentes um no outro e que não podem ser pensados separadamente. Esta compreensão pode gerar uma mística como aquela de Pierre Teilhard de Chardin ou de São Francisco de Assis, que conseguiam ver Deus em todas e em qualquer realidade.

O Cristo cósmico das epístolas de São Paulo e da introdução do evangelho de São João dão-nos a perspectiva do “pleroma”, vale dizer, da universalidade da presença do Ressuscitado em todas as coisas. Célebre é o dito 33 do evangelho apócrifo de São Tomé que grandes nomes da exegese como Joaquim Jeremias e outros lhe conferem grande autoridade, pois parece ter saído da boca do Ressuscitado: “Eu sou a Luz do mundo. Tudo saiu de mim e tudo volta a mim. Rache a lenha e estou dentro dela, levante a pedra e estou debaixo dela. Porque estarei convosco todos os dias até o final dos tempos”. Levantar uma pedra é oneroso e rachar lenha é penoso. Mesmo esses afazeres comuns contêm a presença do Ressuscitado.

 

9. Como a volta à experiência da Ressurreição do Cristo pode inspirar a humanidade do nosso tempo a superar seus dilemas?

R.: Talvez este pequeno conto da área da ecologia pode responder a esta pergunta e que se encontra no meu livro Ecologia: grito da Terra – grito dos pobres (p. 307):

Certa feita um velho e santo monge foi visitado em sonho pelo Ressuscitado. Este, o Ressuscitado, o convidou para passearem pelo jardim. O monge acedeu com entusiasmo e cheio de curiosidade. Depois de andarem longo tempo, para frente e para trás pelo caminho do jardim como fazem os monges depois do almoço, ainda hoje, o santo e velho religioso ousou perguntar: ‘Senhor, quando andavas pelos caminhos da Palestina, dissestes, certa feita, que voltarias um dia com toda a pompa e glória. Está demorando tanto esta sua volta!’ Depois de momentos de silêncio que pareciam uma eternidade, o Ressuscitado respondeu: ‘meu irmãozinho querido: quando minha presença no universo e na natureza for evidente; quando minha presença sob a tua pele e no teu coração for tão real quanto a minha presença aqui e agora; quando esta consciência se tornar corpo e sangue em ti a ponto de não mais pensares nisso; quando estiveres tão imbuído desta verdade que não mais precisas perguntar com curiosidade, então, meu querido irmão, eu terei retornado com toda a minha pompa e glória.

E mais não se precisa dizer: o Ressuscitado está entre nós apenas nas fímbrias do mistério; quem crer e for sensível perceberá sua presença.

 

leonardo-boffLeonardo Boff é doutor em Teologia pela Universidade de Munique. Foi professor de teologia sistemática e ecumênica com os Franciscanos em Petrópolis e, depois, professor de ética, filosofia da religião e de ecologia filosófica na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É assessor de movimentos populares, reconhecido pelo seu trabalho com a Teologia da Libertação e nas áreas de filosofia, ética, espiritualidade e ecologia. Publicou diversos livros acerca desses temas, dos quais destacamos: Nossa ressurreição na morte (Petrópolis: Vozes, 2012), Jesus Cristo libertador (Petrópolis: Vozes, 2011), Cristianismo: o mínimo do mínimo(Petrópolis: Vozes, 2011) e Imitação de Cristo de Tomás de Kempis e Seguimento de Jesus (Livro V) (Petrópolis: Vozes, 2016). Ecologia – Grito da terra, grito dos pobres. Dignidade e direitos da mãe terra (Petrópolis: Vozes, 2015).

 

Fonte:

IHU

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