Glaucon Durães – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com Mon, 01 Nov 2021 23:36:02 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.4 https://i0.wp.com/observatoriodaevangelizacao.com/wp-content/uploads/2024/04/cropped-logo.png?fit=32%2C32&ssl=1 Glaucon Durães – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com 32 32 232225030 Você sabia que pode ajudar a salvar o território místico do Cemitério dos Escravos de Santa Luzia? Com a palavra Glaucon Durães Santos https://observatoriodaevangelizacao.com/voce-sabia-que-pode-ajudar-a-salvar-o-territorio-mistico-do-cemiterio-dos-escravos-de-santa-luzia-com-a-palavra-glaucon-duraes-santos/ Mon, 01 Nov 2021 23:36:02 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=42444 [Leia mais...]]]> O Cemitério dos Escravos, localizado na região dos Fechos em Santa Luzia, próximo a Comunidade Quilombola de Pinhões, é um dos poucos patrimônios históricos, ainda existe, que nos faz lembrar da escravidão negra na cidade. Isto porque apesar de Santa Luzia ser fruto dos vários assentamentos de bandeirantes que usavam a mão de obra escrava para minerar ouro de aluvião nos afluentes do rio das Velhas no final do século XVII, a história da negritude escravizada na cidade está praticamente apagada.  

Cemitério dos Escravos de Santa Luzia

A região dos Fechos, antiga sesmaria das Bicas, é um dos povoados mais antigos da tricentenária Santa Luzia e possui um inestimável valor histórico, cultural e religioso para a cidade. Foi a partir dos negros escravos enviados da sesmaria de Bicas e da sesmaria de Macaúbas que nasceu, ainda nos setecentos, a comunidade quilombola de Pinhões. Os Fechos abrigam também o conhecido córrego do Cachimbeiro – onde outrora escravos buscavam água – e o Cemitério dos Escravos.

O Cemitério dos Escravos possui tombamento municipal e é um reconhecido como patrimônio histórico. Há três décadas é celebrada, no dia 2 de novembro, a missa em memória dos negros escravizados ali enterrados. É um momento místico de encontro com o nosso passado, com as nossas raízes e de reflexão crítica sobre as várias formas de exploração, de agressão à dignidade da pessoa humana e as condições de trabalho. Relembrar o nosso passado escravocrata nos possibilita compreendermos qual o tipo de sociedade nos tornamos desde então e a realidade na qual estamos inseridos no presente.

Há pelo menos 15 anos o Cemitério dos Escravos vem sendo ameaçado pelo projeto do Rodoanel Metropolitano de Belo Horizonte. A ameaça se tornou realidade factual neste ano de 2021 com a assinatura de acordo entre a mineradora Vale e o Governo de Minas para o ressarcimento do Estado pelos impactos causados pelo rompimento da barragem do Córrego do Feijão, em Brumadinho, em 2019. Os recursos financeiros que sempre faltaram ao DENIT para execução da obra do Rodoanel enfim foram adquiridos. A nova rodovia, que terá aproximadamente 500 metros de largura por 100,6 km de extensão, passará ao lado do Cemitério dos Escravos, descaracterizando brutalmente todo o ambiente rural dos Fechos. Além dos impactos causados pelas pistas de tráfego, haverá os danos provocados pela conexão do Rodoanel com a MG 020 (Estrada Real), e os empreendimentos empresariais que este atrairá para a sua faixa de domínio.

É sintomático que os R$37 bilhões do ressarcimento pelo rompimento de uma barragem de rejeitos de minério – que matou o rio Paraopeba e mais de 200 trabalhadoras e trabalhadores – seja usado para construir uma rodovia que, além de servir como infraestrutura de transporte de minério de ferro, devastará, na região dos Fechos, o Cemitério dos Escravos, o córrego do Cachimbeiro e a Comunidade Quilombola de Pinhões.


Capela de Nossa Senhora do Rosário da comunidade quilombola de Pinhões

Tendo em vida a gravidade da situação que se encontra todo o território místico dos Fechos, durante a ação de graças da Missa em memória aos escravos, acontecerá o ato simbólico Abraço Coletivo ao Cemitério dos Escravos. A Missa será celebrada pelo pe. João Lucena, da paróquia São Raimundo Nonato, no dia 2 de novembro de 2021, às 16 horas, dentro do Cemitério dos Escravos. Confirmaram presença e participação a Pastoral Afro, a Comissão Pastoral da Terra de Minas Gerais, a Associação das Mulheres Quilombolas de Pinhões, os movimentos Salve Santa Luzia, SOS Santa Luzia, SOS Vargem das Flores, o Observatório da Evangelização da PUC Minas, o diretório municipal do PT e do PSOL, a comunidade local e comunidades tradicionais de várias cidades.

Glaucon Durães da Silva Santos

Doutorando em Ciências Sociais pela PUC Minas, colaborador jovem do Observatório da Evangelização da PUC Minas, morador de Santa Luzia, membro do movimento das comunidade quilombolas de Santa Luzia e região impactadas pelo Rodoanel e do coletivo Salve Santa Luzia.

]]>
42444
Narrativas apocalípticas na Igreja e na política: O pontificado apocalíptico de Francisco e o governo destrutivo de Bolsonaro https://observatoriodaevangelizacao.com/narrativas-apocalipticas-na-igreja-e-na-politica-o-pontificado-apocaliptico-de-francisco-e-o-governo-destrutivo-de-bolsonaro/ Thu, 23 Sep 2021 13:32:58 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=41424 [Leia mais...]]]>
Imagem da cidade da Líbia, destruída por bombardeios e hoje inabitada. Foto: EPA.

Começo de conversa

O surgimento e os ressurgimentos das narrativas apocalípticas – como tive a oportunidade de estudar em minha pesquisa de mestrado – são característicos de situações sociopolíticas e econômicas crísicas. A crise do judaísmo no contexto do exílio babilônico e as crises envoltas no martírio cristão pelo Império Romano no século I d.C., foram os cenários sócio-históricos que deram origem ao gênero apocalíptico na escatologia judaico-cristã. Entretanto, os significados de “fim do mundo”, “fim dos tempos” e “holocausto cósmico” só começaram a ser tratados como únicos sinônimos de apocalipse após o aparecimento do pensamento milenarista-messiânico no universo judaico-cristão. Foi assim que o apocalipse transitou do seu caráter revolucionário-libertário original, para um caráter conservador e, em alguns casos, até reacionário.

Seja em sua concepção revolucionária ou conservadora, o apocalipse é, para além de uma categoria religiosa, uma concepção do tempo e da história que influencia o campo da política, tanto com intenções prospectivas quanto com intenções retrospectivas frente a cenários de crises.

Apocalipse na Igreja

Desde o ano de 2013 temos visto se intensificar narrativas apocalíticas, por parte de setores integralistas, neofundamentalistas e reacionários, da Igreja Católica e de várias denominações evangélicas, contra o papa Francisco. São narrativas que afirmam Francisco como o anti-Papa ou o anti-Cristo do fim do mundo. Afinal, o próprio Francisco disse aos fieis na Praça de São Pedro, na noite de sua posse, que os seus amigos cardeais foram buscar um papa lá no fim do mundo. O que significa, porém, que os cardeais católicos buscaram um papa na periferia do mundo globalizado, no terceiro mundo, na última porção de terra do globo a ser ocupada pelos primeiros seres humanos, a Argentina?

De fato, Francisco é o Papa do fim do mundo, ou se quiserem, um papa apocalíptico. Resta saber em qual sentido. Certamente, não no sentido do pensamento milenarista-messiânico, calcado na alienação da crítica dos problemas sociais, no pessimismo e no desprezo pelo mundo material e nas expectativas passivas sobre a volta futura do Messias e o holocausto cósmico. Ao contrário disso, Francisco tem se mostrado um papa apocalíptico no sentido original do termo, qual seja: Deus é Deus Emanuel, estradeiro conosco, que resiste junto com o seu povo a escravidão e o martírio, que liberta o seu povo da escravidão e peregrina, junto a ele, enfrentando os desafios do deserto em busca da terra prometida, que se abaixa, desce do céu, se torna um conosco, habitando em nosso meio. É nessa concepção de apocalipse – que afirma que o projeto de Deus se cumprirá no decorrer da história, com a participação transformadora de seu povo e sem holocausto cósmico – que se reflete o pontificado de Francisco.

É preciso lembrar que o pontificado de Francisco, ao longo da década de 2020, se deu em meio a variadas crises em muitos países do mundo, tais como: o aquecimento global e as mudanças climáticas, o avanço do desmatamento da floresta amazônica e as queimadas nos demais biomas brasileiros, as guerras civis no norte da África, as ondas migratórias para a o sul da Europa e para os Estados Unidos, o avanço do neoliberalismo e o aumento da pobreza e da concentração de renda nas mãos de poucos, a ascensão de governos de extrema direita e a crise da democracia liberal, a intensificação das tensões políticas e econômicas entre os Estados Unidos, a China, a Coreia do Norte e a Rússia e a pandemia da COVID-19.

E em meio a tantos conflitos, destruições e caos internacional, Francisco se mostrou um peregrino transnacional da esperança (do verbo esperançar), um profeta pastoral-apocalíptico da paz, um mensageiro da boa nova de um Reino de Deus real, isto é, que começa aqui, de baixo e da periferia, para cima, para o centro e para a eternidade. O pontificado de Francisco se revela apocalíptico na medida em que revela que Deus é Deus conosco, que os marginalizados, e nãos os opressores, são os preferidos de Jesus, que a realização do Reino de Deus começa no cuidado com a nossa casa comum, a Terra, e na luta pela libertação dos oprimidos e não no mundo dos mortos, ou se preferirem, a eternidade. E a dimensão apocalíptica do pontificado de Francisco não se dá apenas no plano, importantíssimo, das palavras, como nas encíclicas Laudato Si’ e Fratelli tutti e os vários discursos em defesa dos direitos dos povos indígenas, das mulheres, dos LGBTQIAP+, dos migrantes, dos refugiados, dos pobres, dos moradores de rua etc., mas também no plano das ações como a prática da sinodalidade, na reforma da cúria romana, no estreitamento do espaço da Congregação para a Doutrina da Fé, nos Projetos da Economia de Francisco e Clara – que concebe o capitalismo como uma economia que explora o ser humano e degrada o meio ambiente – e o Pacto Educativo Global, que prioriza formas de educação humanistas e solidárias.

Imagem de uma cidade da Síria destruída pela guerra, no final de 2012. Foto: REUTERS/Yazan Homsy.

Apocalipse da Política

As eleições brasileiras de 2018 demarcaram o momento da consolidação da capacidade dos setores integralistas e neofundamentalistas católicos e evangélicos – que desde as eleições de 2010 rompiam sucessivamente com o Partido dos Trabalhadores – de elegerem um presidente da República que defendesse os seus interesses. Após um processo eleitoral repleto de narrativas apocalíptico-messiânicas, assentadas na afirmação do PT como uma organização criminosa que promovia a corrupção no Estado e a amoralidade social, o deputado federal Jair Messias Bolsonaro foi eleito presidente da República com o lema “Brasil acima de tudo e Deus acima de todos”.

Em minha pesquisa de mestrado em Ciências Sociais tive oportunidade de analisar uma das várias narrativas apocalípticas envoltas com contexto histórica das eleições de 2018. Trata-se da telenovela Apocalipse (2017-2018, Record TV), que encena o fim do mundo entre os anos de 1987 e 2017 tendo como cenários o Rio de Janeiro, Roma, Nova York e Jerusalém. São representadas na novela a Igreja Católica, chamada de Igreja da Sagrada Luz, o papa Francisco, chamado de Pai Sagrado Stefano Nicalazzi, a Organização das Nações Unidas (ONU) chamada de Conselho das Nações, a NASA, chamada de Centro Espacial, o Jornal Nacional da Rede Globo, chamado de telejornal e o jornalista Willian Bonner, chamado de Arthur Pestana. A personagem principal da trama, sendo também a sua narradora onisciente, é o jovem banqueiro italiano Ricardo Montana, a encarnação do anti-cristo.

Ricardo é membro da Igreja da Sagrada Luz e tem ascendência judaica ortodoxa por parte da sua mãe. Após ganhar fama nacional com o seu projeto da Cidade do Futuro, torna-se o presidente do Conselho das nações, onde irá conduzir um projeto messiânico global para frustrar o plano salvífico de Deus quando da volta de Jesus no final dos tempos. Para isso Ricardo usa: do que chama de diálogo inter-religioso da Igreja da Sagrada Luz, para a criação de uma religião única mundial – na qual ele mesmo é declarado Deus pelo Pai Sagrado após a sua morte e ressureição –; também usa do seu cargo político e das suas relações econômicas para iniciar a terceira guerra mundial, bem como construir posteriormente um acordo de paz para submeter todos os países a um governo único e uma moeda única; e usa da ciência para criar uma nova, moderna e tecnológica capital mundial, a Nova Babilônia, na qual, por meio de andróides, inteligência artificial, algoritmos e microchip implantado no corpo das pessoas, exerce o controle absoluto sobre todos.

Ricardo se torna um líder populista amado internacionalmente, porém odiado por pessoas evangélicas, que sabem os seus objetivos. Como resposta, Ricardo promove fogueiras para queimar a Bíblia, chantageia, persegue, prende, tortura e mata muitos evangélicos. Ao longo da trama Ricardo ora incorpora a personalidade e ora reproduz discursos do imperador romano Nero, do chanceler nazista Hitler, do presidente estadunidense John Kennedy e do presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva.  

Ao fim da minha pesquisa sobre a telenovela Apocalipse (2017) identifiquei que se tratava de uma encenação apocalíptica de uma crise política que tinha por objetivo combater agendas políticas progressistas e afirmar agendas políticas conservadoras no contexto pré-eleitoral brasileiro de 2018. Identifiquei também que a novela combate o feminismo, sobretudo no que diz respeito às liberdades sexuais e reprodutivas das mulheres, a corrupção (estatal), a ciência moderna (secularizada), o ecumenismo, o diálogo inter-religioso (da Igreja Católica) e os direitos humanos. Por outro lado, a novela defende a família patriarcal mononuclear, a ideia da mulher como mãe de família submissa ao marido e temente a Deus, a ciência bíblica como pressuposto da verdade sobre o mundo, uma ciência que legitime a leitura literal da Bíblia, como pressuposto da verdade, da qual as pesquisas científicas devem partir e fundamentar a liberdade religiosa, sem a intervenção do Estado ou de qualquer instituição, no âmbito da religião e da família.

E, por fim, concluí que a novela apresenta duas alternativas políticas implícitas para o telespectador: na eleição brasileira de 2018, ou você vota no Cristo do pleito (um político de direita, liberal na economia e conservador nos costumes) ou você vota no anticristo do pleito (o político de esquerda, investigado por corrupção, carismático, defensor dos direitos humanos, do diálogo inter-religioso e do conhecimento científico secular). O que se reflete, de forma intencionalmente estereotipada, nas campanhas de Jair Bolsonaro (o Cristo do pleito) e do PT (o anticristo do pleito). 

O constante processo de desconstrução de políticas públicas sociais, trabalhistas identitárias, ambientais e econômicas pelo governo Bolsonaro diminui a capacidade de atuação do Estado na promoção da proteção socioambiental e aumenta a liberdade de atuação (visando exclusivamente os seus próprios interesses de exploração) dos setores conservadores católicos e neofundamentalistas evangélicos, das milícias, dos empresários, dos banqueiros, dos grileiros, dos latifundiários do agronegócio, dos madeireiros, dos mineradores.

As referidas ações do governo Bolsonaro refletem explicitamente qual a concepção de apocalipse da sua base ideológica: o menosprezo pelo mundo material, o pessimismo antropológico, a alienação da capacidade de criticar os problemas sociais, o esperar passivo pela emergência de um líder messiânico, ou da volta de Jesus, para a concretização da destruição final do mundo.

REFERÊNCIAS:

BRANK, Renold, J. Escatologia do mundo: o projeto cósmico de Deus. Escatologia II. São Paulo: Paulos, 2008.  

RECORD TV. Apocalipse. Telenovela, Casablaca, São Paulo, 155 cap. 2017 – 2018.

SANTOS, Glaucon Durães da Silva. Encenações apocalípticas de uma crise política: análise das relações entre a novela Apocalipse (Record TV), a IURD e o cenário pré-eleitoral de 2018 no Brasil. 2021. 241 f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, 2021.


Glaucon Durães da Silva Santos é doutorando em Ciências Sociais pela PUC Minas e colaborador jovem do Observatório da Evangelização da PUC Minas.

]]>
41424
A atual naturalização neoliberal da pobreza no Brasil e a postura da Igreja católica, com a palavra Glaucon Durães da Silva Santos https://observatoriodaevangelizacao.com/a-atual-naturalizacao-neoliberal-da-pobreza-no-brasil-e-a-postura-da-igreja-catolica-com-a-palavra-glaucon-duraes-da-silva-santos/ Wed, 23 Sep 2020 15:31:32 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=35689 [Leia mais...]]]> A ação evangelizadora da Igreja precisa do necessário cultivo da consciência crítica. Boa vontade é importante, mas não basta. É preciso reflexão ético-humanista e leitura crítica da realidade. A caminhada da Igreja na América Latina confirma a importância incontornável do esforço teórico da mediação analítica, que busca compreender criticamente a realidade em que se vive e onde o Evangelho do Reino será testemunhado e anunciado. Entre os critérios decisivos do dinamismo atuante do Reino de Deus presente entre nós está a defesa da vida em plenitude para todos (cf. Jo 10, 10) e da dignidade da pessoa humana, dos filhos e filhas de Deus. Nesse sentido, o combate à desigualdade social e dos mecanismos de exclusão da mesa da cidadania revela-se estruturante e mesmo fundamental para concretizarmos avanços para uma “outra sociedade possível”: justa, solidária e garantidora da vida digna para todos.

Confira a pertinente reflexão do jovem mestrando em Ciências Sociais pela PUC Minas e membro da equipe de colaboradores jovens do Observatório da Evangelização, Glaucon Durães da Silva Santos:

A postura da Igreja Católica frente a naturalização neoliberal da pobreza no Brasil

Após as últimas duas grandes crises internacionais do sistema de produção capitalista, a saber, a crise imobiliária dos Estados Unidos, em 2008, e a troika na União Europeia, em 2010, que geraram desemprego, pobreza e desigualdade, o mundo passa, em 2020, por uma hiper crise humanitária provocada pela pandemia da covid-19. Para além das mais de 800 mil mortes em todo o globo e das mais de 130 mil mortes no Brasil, a pandemia tem provocado uma recessão econômica mundial que tende a ampliar a desigualdade social em todas as suas formas. Porém, no caso do Brasil, não se pode responsabilizar absolutamente o novo corona-vírus pelo crescimento da pobreza e da miséria neste início da década de 2020. Este fenômeno, no país, precede a pandemia, mas se aprofunda diante da naturalização da pobreza impulsionada pelo neoliberalismo dominante nos governos dos presidentes Michel Temer e Jair Bolsonaro e nas duas últimas legislaturas do Congresso Nacional, como apontarei adiante.

Na contramão deste movimento de naturalização da pobreza, que pode ser reconhecido em vários governos dos países da América Latina, estão a luta dos movimentos populares e a Igreja Católica, em especial, sob o pontificado de Francisco que vem sistematicamente denunciando a globalização da indiferença. O papa Francisco, de maneira inédita, já se reuniu três vezes com os representantes dos movimentos populares do mundo inteiro, oportunidades em que enfatizou a importância das proféticas lutas travadas contra a exclusão social, a fome e a miséria. A Igreja católica, por meio de suas pastorais sociais e das inúmeras ações evangelizadoras, juntamente com outras instituições, assume como missão acolher, solidariamente amparar, denunciar a falta de políticas públicas e apoiar a luta dos pobres contra a pobreza. Recordemos que no Brasil, a Igreja iniciou o ano de 2019 com a Campanha da Fraternidade: Fraternidade e Políticas Públicas; cujo lema foi: “Serás libertado pelo direito e pela justiça” (Is 1,27). Em Roma, o Sínodo da Amazônia (2019) encerrou-se com a reafirmação do Pacto das Catacumbas, um pacto simbólico de opção pelos pobres, realizado por um grupo de bispos, entre eles dom Helder Câmara, durante o Concílio Vaticano II (1965).

Embora o papa Francisco seja apontado por católicos entreguistas e católicos conservadores como comunista, talvez devido a sua proximidade com a Teologia da Libertação, percebe-se que a postura deste tem mais a ver com a mensagem do Evangelho e com a Doutrina Social da Igreja, do que com o comunismo. Além disso, importa dizer que a Teologia da Libertação não se originou do materialismo histórico dialético marxista, mas sim da experiência de fé que foi capaz de contemplar a face de Jesus crucificado no rosto de cada ser humano empobrecido mergulhado na dor da exclusão e a presença do Espírito Santo na luta dos próprios empobrecidos contra a pobreza. Nesse sentido, a opção pelos pobres não nasce da concepção moderna da luta de classes, mas sim da coerência com a experiência de Deus consignada na Bíblia, seja na experiência dos profetas, seja na vida e nos ensinamentos do Filho de um carpinteiro da Galiléia, que nasceu em uma manjedoura, que viveu entre os pobres e que, por testemunhar-anunciar a alegria esperançada da presença do Reino de Deus no meio de nós como fermento da justiça, da partilha e da fraternidade, foi condenado e crucificado entre ladrões.       

Na esfera da política nacional, a pobreza geralmente é entendida como resultante de carências múltiplas. Foi um dos principais temas presentes na agenda brasileira na década de 2000, segundo os cientistas sociais brasileiros, Lilia Montali e Luiz H. Lessa [1]. Estes afirmam também, que a política de recuperação do salário mínimo, as medidas de recuperação do emprego e a política de transferência condicionada de renda, promovidas no governo Lula (2003-2011), foram as políticas sociais com maior impacto na redução da pobreza, apesar da permanência da desigualdade social.

É importante ressaltar que a responsabilidade do Estado no combate à pobreza e as desigualdades sociais é uma prática moderna. Sua origem remonta às lutas liberais e comunistas, pela aquisição de direitos civis, políticos e sociais, ocorridas na Inglaterra entre os séculos XVIII e XX. Seu legado, para o sociólogo inglês T. H. Marshall [2], é o surgimento da cidadania, um status de pertencimento a uma sociedade nacional.

Estas conquistas estão inseridas no contexto da formação da sociedade ocidental moderna, cuja característica central para o sociólogo alemão Max Weber, é o fenômeno da racionalização [3]. Neste novo arranjo social, as relações sociais passaram pelos processos de burocratização e secularização. Também, o poder secular (do Estado) separou-se do poder religioso (da Igreja) e várias atividades desenvolvidas, até então, pela Igreja Católica, tais como educação, saúde e assistência social, passaram a ser de responsabilidade do Estado.

No Brasil, a responsabilização do Estado para com a pobreza se deu tardiamente, apenas a partir da Constituição cidadã (1988) e seus dispositivos sociais. Para a socióloga brasileira Lea G. Souki [4], isso aconteceu porque as elites brasileiras, diferente das elites inglesas analisadas por Marshall, não desenvolveram uma consciência de interdependência social, não se deram conta de que a pobreza prejudica toda a sociedade. Ainda segundo esta socióloga, as ações do Estado brasileiro visando a diminuição das desigualdades sociais ocorreram a partir da década de 1990, com a estabilização econômica gerada pelo Plano Real e com as pressões das lutas internacionais pelo combate à fome e à miséria.

A Constituição de 1988, nascida do clamor progressista de amplos setores da sociedade brasileira, em especial da Igreja Católica por meio de suas pastorais sociais e das Comunidades Eclesiais de Base, fundou no Brasil, o conceito de Estado do Bem Estar Social, cujo legado inaugural veio no seu artigo 196, que instituiu a universalização do acesso à saúde pública a todos brasileiros via Sistema Único de Saúde. O SUS é atualmente o maior plano público de saúde no mundo, em termos de número de atendimentos e de especialidades oferecidas. Porém, a continuidade desse processo de expansão de direitos sociais só ocorreu na década de 2000, a partir das políticas públicas dos governos petistas. Estes, compreenderam que o combate à pobreza era um dever do Estado. Várias políticas públicas fragmentadas, iniciadas nos governos Itamar Franco (1992-1995) e Fernando Henrique Cardoso (1995-2003), como o Vale Gás e o Bolsa Escola, foram especializadas e integradas nacionalmente no Programa Bolsa Família.

A década de 2000 e a primeira metade da década de 2010 foram marcadas pela desnaturalização da pobreza e a união de esforços para o combate às desigualdades sociais. O Estado, compreendendo que a pobreza tem origens históricas, assumiu para si, efetivamente, como responsabilidade sua, o combate da mesma. Programas como o Bolsa Família, o Fome Zero e o Brasil sem Miséria sistematizaram, em formato de políticas públicas, práticas de ação social e de assistência social, antes apenas realizadas pelas pastorais católicas e por campanhas independentes, como a “Ação da Cidadania”, do sociólogo Herbert José de Sousa (Betinho).

No fim da década de 2010, porém, o Estado brasileiro – por meio de medidas neoliberais, como os cortes em políticas públicas de saúde, educação e distribuição de renda, e as reformas econômicas – tem tirado a sua responsabilidade sobre o combate às desigualdades sociais, naturalizando a pobreza e a empurrado para o campo do assistencialismo e da esmola. A Reforma Trabalhista do governo Temer (2015-2018), por um lado, intensificou a geração de trabalho precário a partir da extinção de vários direitos trabalhistas, e por outro, não representou um impacto sobre a geração de emprego como havia prometido. A Reforma da Previdência do governo Bolsonaro (2019-…) vem precarizando e dificultando o acesso à aposentadoria e afetando principalmente os mais pobres, a juventude e os servidores públicos de baixo escalão.

Apesar da euforia dos grandes jornais e telejornais brasileiros ao noticiarem os constantes recordes batidos pela Bolsa de Valores de São Paulo a cada avanço das reformas dos governos Temer e Bolsonaro, dados de pesquisa socioeconômica do IBGE (2019) demonstram que desde 2015 há um significativo avanço da pobreza e da extrema pobreza no Brasil. Mediante os resultados negativos, os mesmos jornais eufóricos com os avanços da reformas, noticiam com perplexidade, em novembro de 2019, que o número de pessoas em situação de extrema pobreza saltou de 9,03 milhões em 2014 para 13,5 milhões em 2018 [5]. Porém não se são apresentadas, juntamente, as várias críticas ao modelo econômico neoliberal de privatizações, cortes, extinções e arrefecimentos de recursos para políticas públicas sociais, adotado pelo governo federal.

É possível identificar, portanto, a posição e a divergência de posição, entre o Estado brasileiro e a Igreja Católica, em relação ao problema da pobreza, da fome e da miséria. De um lado, o atual presidente Jair Messias Bolsonaro, querido por amplos setores religiosos pentecostais, neopentecostais e católicos brasileiros, afirmou em sua primeira entrevista a jornais internacionais (19/07/2019) que: “Falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira. Passa-se mal, não come bem. Aí eu concordo. Agora, passar fome, não”. De outro lado, o papa Francisco, querido por religiosos e não religiosos de todo o mundo, em sua mensagem para o Dia Mundial dos Pobres (17/11/2019) – “A esperança dos pobres jamais se frustrará” [6] – destaca o espírito cristão católico de compromisso e respeito com a dignidade de cada pessoa humana.

Glaucon Durães

Glaucon Durães da Silva Santos é jovem cristão católico, mestrando em Ciências Sociais pela PUC Minas, é membro da equipe de colaboradores jovens do Observatório da Evangelização PUC Minas.


[1] MONTALI, Lilian; LESSA, Luiz. H. Pobreza e mobilidade de renda nas regiões metropolitanas brasileiras. Cd. Metrop, São Paulo, v.18, n. 36, p. 503-533. 2016.

[2] MARSHALL, T. H. Cidadania, Classe Social e Status. Zahar. Cap. III Cidadania e Classe Social, p. 57-114.1967.

[3] WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. Presença, ed. 9, Lisboa, p. 11-27. 2016.

[4] SOUKI, Lea, G. A atualidade de T. H. Marshall no estudo da cidadania no Brasil. Civitas, Porto Alegre, p 39-58. 2006.

[5] In: https://g1.globo.com/economia/noticia/2019/11/06/crise-levou-45-milhoes-a-mais-a-extrema-pobreza-e-fez-desigualdade-atingir-nivel-recorde-no-brasil-diz-ibge.ghtml

[6] In: http://caritas.org.br/mensagem-do-papa-francisco-para-o-iii-dia-mundial-dos-pobres-que-sera-celebrado-no-17-de-novembro-de-2019-dia/4212

]]>
35689
VIVER A FÉ NA QUARENTENA: Uma reflexão sobre a “ética da convicção” e a “ética da responsabilidade”, com a palavra jovens cristãos comprometidos https://observatoriodaevangelizacao.com/viver-a-fe-na-quarentena-uma-reflexao-sobre-a-etica-da-conviccao-e-a-etica-da-responsabilidade-com-a-palavra-jovens-cristaos-comprometidos/ Thu, 20 Aug 2020 18:33:57 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=35420 [Leia mais...]]]> Existe uma velha narrativa de senso comum em nossa sociedade que caracteriza a juventude como uma época da vida marcada pela euforia, imaturidade e irresponsabilidade. Neste momento dramático em que vivemos uma pandemia de gripe que já matou mais de 700 mil pessoas em todo mundo, sendo destas mais de 110 mil em nosso país, as juventudes cristãs-católicas são chamadas mais uma vez a se posicionarem com serenidade, maturidade e responsabilidade.

Vivemos tempos em que as estruturas da nossa sociedade contemporânea são abaladas cotidianamente. Não é diferente no âmbito religioso, no qual a maioria das atividades pastorais estão suspensas devido à pandemia da Covid-19. Esta é a primeira vez que a nossa geração de católicos brasileiros passa por uma realidade dramática. É a primeira vem em que somos levados a indagar sobre: como mantermos a nossa fé sem ter a vida comunitária ameaçada?

A resposta de alguns jovens católicos brasileiros a essa indagação pode ser vista no vídeo “Por favor, nos devolvam a Santa Missa”. Com rosto e voz afável, os jovens dizem reconhecer a dificuldade de nosso tempo, mas pedem aos bispos do Brasil a devolução da missa para si, argumentando que: já são permitidas a abertura das pequenas lojas; que as lojas que vendem produtos básicos não foram fechadas durante a quarentena; e que o papa Francisco disse que “a igreja é concreta, não pode permanecer virtual”. Também lançam um questionamento forte: O que poderia ser mais importante e essencial para nós do que a santa missa? E por fim, prometem se colocarem a disposição de seus pastores, arrumarem máscaras, produtos de higiene e luvas, estarem nas portas das igrejas para garantirem o distanciamento de dois metro entre os fiéis, organizarem listas para se inscreverem a missa, limparem os bancos da igreja depois da missa e fazer as igrejas mais seguras do que os supermercados.

De outro lado, o jovem padre da diocese de Divinópolis-MG, Carlos Henrique A. de Resende, em seu artigo “Padre a gente sabe rezar!”, tece uma boa reflexão sobre a manutenção da fé e do espírito coletivo de Igreja em tempos de quarentena. Reconhecendo a maturidade e capacidade das leigas e leigos, o autor convida-nos a viver a força do mistério celebrado a partir da Igreja doméstica, tal como outrora, quando a fé se sustentava no seio da família pela prática da catequese familiar e da partilha da vivência diária.

No que tange a resposta dos jovens católicos que pedem a devolução da santa missa aos bispos do Brasil, é possível constatar que a argumentação geral não se baseia em uma reflexão de inspiração teológica cristã, mas antes, segue, de forma implícita, a retórica ideológica do movimento negacionista. Este movimento se caracteriza pela negação do conhecimento científico em detrimento de achismos e senso comum. Seus adeptos, em todo o mundo, exigem o fim ou o relaxamento da quarentena a partir da desqualificação da pandemia do novo coranavírus como uma “gripezinha”. Também, contrapõem de forma hierárquica, a importância de se salvar primeiro a economia e depois as vidas.

No caso, por exemplo, do negacionismo implícito nos discursos atualmente proferidos pelo empresariado brasileiro, pela classe média nacional e pelo presidente da república Jair Bolsonaro, é afirmado que os pobres não podem ficar em quarentena porque faltará comida em sua mesa caso não forem trabalhar. Há por trás desse discurso, aparentemente louvável, um interesse de classe, de salvar a economia, ou seus lucros, a qualquer custo, ainda que gastando quantas vidas forem preciso. A pergunta que fica é: porque antes da pandemia não havia essa preocupação com a mesa dos pobres?

Já no caso dos jovens católicos o negacionismo implícito se encontra sobretudo na indagação: O que poderia ser mais importante e essencial para nós do que a santa missa? Há por trás dessa pergunta, também aparentemente louvável, interesses individualistas, fundamentalistas e anticristãos, que buscam a garantia do alimento (eucaristia) para as pobres almas, a qualquer custo, ainda que gastando quantas vidas forem preciso para isso.

Ao pedirem a devolução da santa missa aos bispos do Brasil, esses jovens católicos assumem serem o reflexo da velha narrativa de senso comum que considera a juventude como eufórica, imatura e irresponsável. Eufórica porque pedem para estar em comunidade em um momento em que o isolamento social é afirmado pela Organização Mundial da Saúde, pela Santa Sé e pela Congregação Nacional dos Bispos do Brasil, como a forma mais eficaz de contenção da pandemia da Covid-19. Imatura porque não compreendem que o simplismo das ações que prometeram fazer, para o retorno das missas, não corresponde com a complexidade da logística de se realizar aglomeração de pessoas em tempos de pandemia. Irresponsável porque incentivam o afrouxamento do isolamento social e assim colocam em risco a capacidade de atendimento do Sistema Único de Saúde brasileiro, podendo levá-lo ao colapso.

Podemos dizer que o que guia a ação destes jovens católicos não é a reflexão teológica cristã e nem a teoria científica epidemiológica, mas antes, a “ética da convicção”, que segundo o sociólogo alemão Max Weber (1864 – 1920), é uma ação social orientada por valores morais e que não leva em consideração os suas possíveis consequências.

Por outro lado, a resposta do jovem padre Carlos Henrique se sustenta em uma reflexão teológica cristã e em uma ação social que avalia previamente as consequências dos seus possíveis resultados, a “ética da responsabilidade”. Em seu artigo, o padre nos leva a refletir que mesmo sem a possibilidade de comungar o corpo e sangue de Cristo nas missas, podemos viver concretamente o sentido de ser Igreja em comunhão com a família no dia a dia. Esse contraponto entre a “ética da convicção” e a “ética da responsabilidade” refletida na ação dos jovens católicos e na ação do padre de Divinópolis-MG, serve-nos como uma reflexão cristã e uma oportunidade de repensarmos como estávamos vivendo a nossa fé.

 “Será que não estamos nos esquecendo que os fiéis são a Igreja? O que entendemos por celebrar? O que entendemos por Eucaristia? Um rito a ser executado? Uma cerimônia a ser vista? Um alimento a ser digerido? Uma experiência mágica? Ou uma experiência ritual que se confunde com uma realidade existencial?

(RESENDE, 2020)

É importante que nós jovens e demais cristãos católicos compreendamos que toda a prática quando se torna rotineira, mesmo a ida à igreja, perde totalmente o seu sentido. O paradigma desse momento é: como mantermos a nossa fé sem as mesmas estruturas em que fomos doutrinados durante toda vida? É fundamental que consigamos amadurecer a nossa fé tendo a consciência de que Deus está em mim e em você quando tentamos ser pessoas melhores e quando pensamos, em primeiro lugar, naqueles que sofrem.

Repensar a nossa forma de ser Igreja é, também, parar de reproduzir tantas práticas individualistas e egoístas da sociedade capitalista em que vivemos. É pensar no outro, se preocupar e cuidar da comunidade com amor e misericórdia. É ser comunidade e ser Igreja estando todos em quarentena. Não obstante, o padre de Divinópolis nos ensina, a partir do artigo 95 das Diretrizes da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil, que “pela oração cotidiana, os membros da comunidade se sentem consolados, redescobrem sua dignidade de filhos e filhas de Deus, tomam consciência de que são colaboradores de Deus na missão e são impelidos a saírem ao encontro das pessoas e à prática da misericórdia” (RESENDE,2020).

Assim como o padre, defendemos que “não podemos perder a sensibilidade de perceber que nosso povo sabe rezar. Não precisamos fazer para eles simplesmente verem. Talvez seja mais eficaz ajudá-los, com pistas, com provocações, para que eles celebrem e vivam a força do mistério” (RESENDE,2020). Também, não devemos temer o abalo da fé dos cristãos católicos com o distanciamento social, pois todos aqueles que confiam e fazem parte do corpo de Cristo voltarão à vida comunitária e as atividades pastorais em breve.

Enquanto jovens católicos brasileiros responsáveis, reafirmamos que é preciso que não nos deixemos guiar pela “ética da convicção”, que não busquemos apenas matar a nossa fome comendo hóstia no templo. Neste momento é vital que nos orientemos pela “ética da responsabilidade”, que busquemos, portanto, fortalecer a nossa “Igreja doméstica” e preservar a vida de todas as pessoas seguindo os cuidados recomendados pelos profissionais da saúde e cientistas epidemiológicos. A ciência não é inimiga da religião, mas sim um dos instrumentos de Deus para a manutenção da vida em nossa casa comum.

Douglas Dias e Glaucon Durães, ao fundo, a igreja velha de São Joaquim da Grama, os dois participaram da Jornada Mundial da Juventude do Rio de Janeiro (2013)

Sobre os autores:

Douglas Augusto Dias, jovem católico, coordenador da comunidade de São Joaquim da Grama, Rio Claro-RJ.

Glaucon Durães da Silva Santos, jovem católico, mestrando em Ciências Sociais pela PUC Minas.

]]>
35420
Em busca de perspectivas para o Sínodo das Juventudes: que jovem? que sociedade? que Igreja? https://observatoriodaevangelizacao.com/em-busca-de-perspectivas-para-o-sinodo-das-juventudes-que-jovem-que-sociedade-que-igreja/ Thu, 04 Oct 2018 10:00:55 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=29021 [Leia mais...]]]> Por uma Igreja libertadora e juventudes revolucionárias

 

Por   Glaucon Durães

O desafio das juventudes tem sido uma temática central e recorrente na dinâmica do pontificado do papa Francisco. De um modo mais contundente, agora, ele mobilizou toda a Igreja para acolher, ouvir e refletir sobre os anseios das juventudes cristãs católicas, em nível mundial, e os novos rumos que a Igreja deve tomar para ser fiel em sua missão. A Igreja, há quase um ano, se prepara para a realização da XV Assembleia Ordinária do Sínodo dos Bispos, que acontecerá em outubro de 2018 e que traz como eixo norteador a fé e o discernimento vocacional dos jovens.

Mas, primeiramente, teçamos um olhar, ainda que panorâmico, para a história da Igreja. Que marcos significativos podem nos ajudar na compreensão da relação da Igreja com as juventudes?

 

São Luiz Gonzaga, padroeiro da juventude

Em 1726, o papa Bento XIII canonizou o jovem italiano Luiz Gonzaga (1568-1591) e proclamou-o padroeiro da juventude. Em 1926, o papa Pio XI realizou uma audiência, com cerca de 5000 jovens de todo o mundo, e reafirmou, por meio de uma Carta Apostólica, o título concedido a São Luiz Gonzaga dois séculos antes. É possível identificar duas perspectivas, ou melhor, duas construções imagéticas de jovem para a Igreja da época: o de razões eternas e o de razões temporais. O primeiro é dotado de virtude, doçura, alegria, inocência, pureza e que,  em meio à degeneração do mundo, espelha-se em São Luiz Gonzaga como “modelo ideal de todas as virtudes” e procura compor o “forte exército de paz da Sé Apostólica” para a reforma de um mundo em decadência. O segundo é aquele que não está aberto, ou que perdeu, ou ainda, que não tem a “dignidade e o mais belo ornamento da juventude, isto é, a ‘inocência da moral e castidade’”. Nessa perspectiva normativa e classificatória, São Luiz Gonzaga é apresentado como o tipo ideal de jovem de razões eternas. Porém, até este, não está livre de um sentimento de culpa advindo da indignidade humana, uma vez que, segundo o papa Pio XI:

ele não ignora a fraqueza natural de força humana e, especialmente cauteloso em si mesmo, ele tentou contar com a ajuda de Deus, rezando dia e noite por muitas horas sem interrupção, e para obter a misericórdia divina recorreu ao patrocínio da Virgem Mãe de Deus, de quem ele foi um dos devotos mais dedicados”.

Como se pode deduzir, o papa Pio XI apresentou uma visão dualista da realidade humana a partir de um olhar normativo que classifica e julga desde uma lógica singular. Com isso, é possível concluir que não se trata da humildade de um ser humano reconhecendo suas limitações humanas, mas sim, uma negação do humano respaldada na figura imagética de um jovem Santo que frente a sua suposta fraqueza humana natural, reza freneticamente, amedrontado e arrependido, pela misericórdia divina. E como se não bastasse sua reza incansável, recorre a um trunfo maior, a uma advogada que é a própria mãe do juiz.

 

O Concílio Vaticano II e o processo de renovação eclesial

Na década de 1960, a Igreja passou por extraordinário processo de renovação, cujo marco simbólico é reconhecido pelo evento Concílio Vaticano II (1962 a 1965): a abertura da Igreja para o mundo moderno. E novamente aí, ela voltou sua atenção para a juventude, isto é, para uma importante parcela da sociedade que vinha conquistado lugar em diversas instituições e espaços, mundo afora. Isso pode ser notado nos movimentos políticos e culturais, seja contra as drásticas consequências provocadas pela II Guerra Mundial (1939 a 1945), seja contra os impactos negativos promovidos pela globalização do sistema capitalista. Os jovens se tornaram atores sociais e políticos de tamanha relevância no cenário internacional, que a última mensagem do papa Paulo VI, em Concílio, foi destinada aos mesmos:

A Igreja, durante quatro anos, tem estado a trabalhar para um rejuvenescimento do seu rosto, para melhor responder à intenção do seu fundador, […] o Cristo eternamente jovem. E no termo desta importante «revisão de vida», volta-se para vós. É para vós, os jovens, especialmente para vós, que ela acaba de acender, pelo seu Concílio, uma luz: luz que iluminará o futuro, o vosso futuro. (Paulo VI, 08/12/ 1965)

Apesar do Concílio Vaticano II ter promovido uma mudança positiva na Igreja como um todo, a visão da Santa Sé em relação à juventude preservou muito dos antigos discursos dicotômicos e apaixonados dos papas sobre este setor da sociedade. Permanece em alguns pontífices, um olhar que se pretende universalista e inclusivo, tendo como referência um tipo ideal de jovem, mas que acaba por isso mesmo, por ser nivelador, gerando não reconhecimento de muitos, bem como exclusão, segregação, marginalização, estigmatização, preconceito e violência simbólica.

 

Do Concílio Vaticano II ao Sínodo da juventude em 2018

É possível identificar, no entanto, ao menos três momentos relacionais distintos entre a Igreja e a juventude após o Concilio Vaticano II até este Sínodo de 2018. O primeiro engloba o papado de Paulo VI (1963 a 1978), o concretizador do Concílio inaugurado por João XXIII; O segundo compreende o longo período do pontificado de João Paulo II (1978 a 2005) e o de Bento XVI (2005 a 2013); e o terceiro, ainda em andamento, é o inusitado do ministério do papa Francisco (2013 -).

 

a) Primeiro momento

Com Paulo VI, a Igreja se apresenta preocupada com o crescimento da influência, sobre os jovens, de filosofias que questionavam simultaneamente o poder infalível e imperial da Igreja e à exploração econômica e social do modelo de produção capitalista. Tendo este último, impulsionado o desencadeamento de várias crises internacionais e guerras no período.

Esta preocupação fica evidente na mensagem final do Concílio, em que o pontífice se dirige aos jovens sem reconhecer as responsabilidades da Igreja no desenrolar do processo histórico mundial, mas apontando incisivamente para os resultados negativos de práticas filosóficas emergentes no ocidente da época, caracterizando-as como geradoras de egoísmo e vazio. Isso, segundo o papa, a partir da centralização da cultura do prazer e da disseminação do ódio pela violência:

Tem confiança que vós encontrareis uma força e uma alegria tais que não chegareis a ser tentados, como alguns dos vossos antepassados, a ceder à sedução das filosofias do egoísmo e do prazer, ou às do desespero e do nada, e que perante o ateísmo, fenômeno de cansaço e de velhice, vós sabereis afirmar a vossa fé na vida e no que dá um sentido à vida: a certeza da existência de um Deus justo e bom. (Paulo VI, 08/12/ 1965).

E neste combate entra a Igreja de Roma e os movimentos sociopolíticos que lutavam pelos excluídos, ambas as partes jogaram pela janela, a água com a bacia e o bebê, não sendo capazes de se unirem e de se auto criticarem, como ocorreu na bem sucedida experiência da América Latina, em prol daqueles que eram da preferência de Jesus, de São Luiz Gonzaga e dos revolucionários: as pessoas excluídas, exploradas e estigmatizadas.

 

b) Segundo momento

Durante o pontificado de João Paulo II (1978 a 2005), a Igreja amplia suas redes de aproximação aos jovens do mundo inteiro, sobretudo com a criação das Jornadas Mundiais da Juventude, a partir de 20 de dezembro de 1985. João Paulo II corporifica a imagem do papa Pop, do papa para a juventude e do papa peregrino, a partir de sua história de vida, suas várias mensagens a juventude e suas viagens a diversas nações.

No entanto, este papado, expandido pelo de Bento XVI, inovam de forma conservadora, a imagem do jovem para a Igreja. A velha e cansada figura barroca de São Luiz Gonzaga perde a batina preta e branca de acólito europeu para ser revestida com a modernizante ideia de teor ideológico neoliberal, de que: “Precisamos de Santos que bebam coca-cola e comam hot dog, que usem jeans, que sejam internautas, que escutem disc man.”.

Esta ideia de jovens como santos modernos, se pretende novamente inclusiva, mas apresenta igualmente um olhar normativo e nivelador, estabelecendo um estereótipo de jovem que reflete, sobretudo, o “sonho americano” incisivamente vendido pelas campanhas publicitárias capitalistas internacionais, de viés neoliberal: o jovem high school musical; alegre, animado, descolado, com popularidade e que influencia os demais jovens de sua geração. Ou seja, é a nova figura do jovem ideal, eficiente para ir e fazer “discípulos em todas as nações”. Os jovens das massas que arrebata multidões.

O que se percebe em todos os discursos papais até aqui abordados, é a ideia de um jovem padrão a ser imitado e um jovem padrão com capacidade de influenciar e reproduzir seus padrões joviais de religiosidade conservadora. Isso é perceptível, por exemplo, pelo fato de não haver, nos mesmos discursos, uma valorização da figura de São Luiz Gonzaga como um nobre jovem que subverteu a ordem social da qual vivia, renegando as riquezas herdadas de sua família, para ir medicar doentes em situação de miséria. Há portanto, a construção da imagem de um jovem santo que tem mais valor por ter morrido virgem, do que por ter morrido doente, solitário e pobre, em meio ao que ele próprio escolheu como sentido missionário de sua vida: tratar de doenças de pessoas pobres, nas ruas italianas do século XIV.

As duas figuras de jovens, construídas pela Igreja ao longo do século, uma antiga e europeia e outra moderna e estadunidense, cumprem uma função colonialista e imperialista, nivelando a pluralidade dos jeitos de ser jovem, dos jovens das nações periféricas ao jovem ideal das nações centrais, e nivelando as juventudes periféricas das nações centrais ao jovem de classe média e alta das mesmas nações.

Nesse sentido, falta reciprocidade na relação entre Igreja e juventude, uma vez que a diversidade da juventude, isto é, as juventudes, são negadas em detrimento de uma única, tida como ideal. Ou seja, o jovem colocado como ideal para se transmitir uma experiência de fé pouco reflexiva, moldada em preconceitos, fundamentalismo, controle e vigilância. Uma experiência de fé alienadora e unilateral em suas compreensões a respeito da verdade transcendental.

 

c) Terceiro momento

Entretanto a XV Assembleia Ordinária do Sínodo dos Bispos (2018) traz uma concepção de juventude que se pode considerar revolucionária dentro do contexto histórico da Igreja. Foi justamente da boca de um papa latino-americano, “do fim do mundo”, como Francisco se auto denominou no dia de sua posse, que o mundo inteiro ouviu:

Não! O Sínodo é o Sínodo para e de todos os jovens! Os jovens são protagonistas. Mas também os jovens que se sentem agnósticos? Sim. Mesmo os jovens que tem uma fé tépida? Sim. Também os jovens que se sentem distantes da igreja? Sim. Também os jovens que, não sei se há algum, mesmo que exista algum, os jovens que se sentem ateus? Sim.

(Papa Francisco).

Nesta fala, a Igreja enfim conseguiu ser acolhedora, inclusiva, não normativa, não niveladora, não colonizadora e imperialista, não preconceituosa, não juíza e não punitiva, pois além de colocar os jovens como protagonistas do Sínodo e não apenas como receptáculos de discursos elaborados por bispos, reconhece também as diversidades e as singularidades das diversas juventudes católicas e não católicas de todo o mundo.

O Sínodo pede mais, pede ações concretas das juventudes perante a vida e o mundo líquido, concretiza como vocação e vocação como ações que refletem os sinais do Amor Transcendental em cada ser. Amor este que impulsiona todos jovens a lutar pela promoção da dignidade humana de cada pessoa, pela libertação dos marginalizados e explorados, pelo cuidado amoroso com a nossa casa comum, o planeta Terra, em todas as suas dimensões biológicas-naturais e socioculturais.

Por fim, este Sínodo representa uma das maiores expressões do nascimento de uma nova Igreja, desde o Concílio Vaticano II. Uma Igreja mãe e não juíza arbitrária, uma Igreja libertadora e não alienadora, uma Igreja que se compadeça das dores das juventudes, sobretudo as excluídas e estigmatizadas, e enxergue nelas, a face ferida do Cristo que sofreu nas mãos de tiranos e opressores, à miséria e a vaidade humana.

Que o Reino de Deus se cumpra também aqui neste mundo concreto, com pessoas de carne e osso que concretizam uma caminhada, com altos e baixos, acertos e erros. Que tenhamos sabedoria para ajudar os jovens, e os povos da Terra inteira, a se libertarem das alienações e explorações e avançarem passos concretos na conquista de uma vida que valha a pena e em busca do amor e da alegria de compartilhar a fé e a vida em comunidades fraternas, acolhedoras e inclusivas.

glaucon

 

Glaucon Durães

Formado em Ciências Sociais pela PUC Minas

Membro da equipe de colaboradores jovens do Observatório da Evangelização

 

]]>
29021
Restaura a minha igreja: desafios de Francisco https://observatoriodaevangelizacao.com/restaura-a-minha-igreja-desafios-de-francisco/ Fri, 26 Aug 2016 19:39:20 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=10035 [Leia mais...]]]>
Irmão sol e irmã lua
Cena do Filme Irmão sol e irmã lua com Francisco e a Igrejinha em ruínas.

Quem conhece a vida de São Francisco de Assis sabe da profunda experiência espiritual vivenciada por ele nas ruínas da igrejinha de São Damião. Segundo seus biógrafos, Francisco, absorto em oração diante do crucifixo, discerne os apelos de Deus: “Francisco, restaura a minha igreja. Não vês que ela está em ruínas?

Muitos acontecimentos ao longo desses três primeiros anos de pontificado indicam que a retomada da simplicidade da estética evangélica, da proximidade amorosa das pessoas, da dimensão missionária do batismo, e, sobretudo, do primado da misericórdia lançados pelo “papa do fim do mundo” – foi assim que o atual bispo de Roma se auto titulou – está provocando uma autêntica renovação do ar que penetra os pulmões da Igreja católica. Será um sopro do Espírito Santo?  Desejamos que Francisco inaugure um tempo novo e de renovado fôlego para a Igreja, pela atualização da fé cristã nos marcos da cultura contemporânea, pela renovação criativa do colocar-se a serviço do povo de Deus e de toda a humanidade que coexiste em nossa Casa comum, pelo anúncio e testemunho da boa nova do Reino de Deus e, principalmente, pela concretização diária do amar, tal como foi vivido por Jesus Cristo.

1378615_436796199766091_1981816737_n
Mais que o nome do famoso santo, a escolha do nome Francisco para o bispo de Roma indica o compromisso radical com os valores do  Evangelho.

Este hálito de vida nova, soprado pelo Espírito de Deus, nas velas da barca de Pedro no último conclave, aquele que elegeu Francisco como novo timoneiro, parece que a está conduzindo a novos rumos e a singrar por novas rotas no oceano da fé. Cinco séculos depois das Grandes Navegações, outras caravelas partiram novamente do grande centro, a Europa, e, depois de adentrar pelas ondas de além-mar, chegaram a esta mesma periferia, a América Latina. Porém a novidade dessa rota não está tanto numa possível conquista do centro pela periferia, mas na construção de “um outro papado possível”, parafraseando o lema do Fórum Mundial Social. Um modo de exercer o ministério de Pedro que deixa decididamente o solitário e distante trono do altar para estar junto e misturado na caminhada do povo de Deus.

Esse agir pastoral que escuta o clamor dos excluídos e que não teme andar de mãos dadas com os diversos movimentos de defesa da dignidade da vida remete imediatamente à luta dos mais pobres e crucificados pelas históricas contradições sociais. Francisco foi forjado pela fé e esperança teimosa dos pequenos que se nutrem da fidelidade até as últimas consequências do crucificado e por isso não desistem, mesmo diante do sangue derramado das incontáveis vítimas que fecundam este solo latino americano, tão marcado pela colonização, pela exploração humana e dos recursos naturais, pela exclusão social e pela violência dos poderosos.

Como aqui ainda não conseguimos democratizar os grandes meios de comunicação, eles, por estarem nas mãos de grupos poderosos, procuram sistematicamente usurpar e tirar proveito de cenários como o atual da Igreja. Percebem a importância política de um líder com grande influência na maior comunidade de fieis do mundo. No entanto, é preciso cultivarmos um olhar mais profundo e apurado, como aquele de Santa Luzia frente ao julgamento arbitrário do governador Diocleciano[1]. Quando contemplamos a pessoa de Francisco, seus ensinamentos e posturas proféticas percebemos que não se trata de marketing religioso ou uma estratégia da cúpula para estancar a grave perda de fieis das últimas décadas ou trazer de volta ao redil as ovelhas afastadas. Os documentos do magistério de Francisco – Evangelii Gaudium, Laudato Si e Amoris Laetitia, mas igualmente suas homilias, discursos e posturas proféticas revelam que estamos diante, não de algo novo, mas da retomada da preocupação com a coerência com o Evangelho. Merece destaque o recente discurso proferido no Capitólio, em sua viagem aos Estados Unidos em ocasião de emigrações ilegais devido aos conflitos inter-étnicos no norte da África. Com muita simplicidade e sabedoria, Francisco fez duras críticas aos norte americanos, mas sem agredi-los ou desprezá-los. Pontuou corajosamente que o “sonho americano” e os heróis daquela nação ensinaram ao mundo grandes valores, dentre eles o da liberdade, e que, nesse sentido, os estadunidenses deveriam acolher os emigrantes já que há cinco séculos atrás todos que vieram para as Américas eram estrangeiros nas terras do Novo Mundo. Houve críticas ferrenhas de parlamentares conservadores, intelectuais liberais e até mesmo de líderes religiosos da própria igreja ao discurso do Pontífice, tentando o caracterizar, de forma pejorativa, como um discurso puramente comunista. Isto comprova, a nosso ver, que assim como São Francisco de Assis, no fim da Idade Média, o Papa Francisco, na crista da Idade Pós-Moderna, experimenta o mesmo chamado de restaurar a Igreja que está em ruínas. E o faz com os tijolos e pedras vivas, aqueles que estão a margem da sociedade e clamam aos céus por justiça.

alx_imagens-do-dia-20150925-19_original
Papa Francisco faz discurso histórico no Capitólio

Outros gestos proféticos merecem destaque. Primeiro quando, depois de denunciar a tragédia da globalização da indiferença ante do drama dos refugiados tão disseminada pelos países da Europa. Francisco toma a decisão de levar com ele para o Vaticano doze refugiados sírios e colaborar fraternalmente na busca de uma nova vida longe das ameaças dos terríveis e violentos conflitos vividos[2]. Segundo quando, ao se reunir, pela primeira vez no Vaticano, com as lideranças dos movimentos sociais de defesa da vida, ao ouvir seus clamores, proclama para reforçar a esperança e a perseverança em suas lutas pela plena cidadania: “Nenhuma família sem casa, nenhum camponês sem terra, nenhum trabalhador sem direitos”.

ng6514033
Papa Francisco recebe doze refugiados sírios no Vaticano.

Se alguém ainda tem dúvida sobre o poder transformador do Cristo misericordioso e libertador, do qual o “santo pobre de Assis” e o “papa do fim do mundo” se nutrem, contemplar os feitos históricos do Cristianismo despertará a sua atenção para discernir os efeitos eclesiais e sociais provocados pelo jeito singular de Francisco exercer o ministério do Pedro como bispo de Roma. Pela primeira vez na história, setores marginalizados e crucificados da sociedade e da Igreja são acolhidos abertamente por Francisco. Alguns exemplos: bispos de dioceses das periferias são chamados, escutados e reconhecidos nos encontros; promove-se uma gestão mais participativa e de corresponsabilidade na vida da Igreja; a dignidade dos homossexuais e dos recasados é discutida, valorizada e defendida; a cidadania eclesial da mulher volta a ser discutida; leigos e leigas são convidados a participar mais da vida da Igreja; os cuidados com a Casa comum passam a fazer parte da doutrina social da Igreja…  Aqui é importante ressaltar que o atual papado, apesar de suas especificidades, é fruto de um momento anterior, iniciado em 1961, com a abertura do Concílio Vaticano II, pelo então papa João XXIII.

O lugar de origem marca e influencia as relações sociais dos indivíduos, como aponta o sociólogo francês Loic Wacquant no artigo “A estigmatização territorial na idade da marginalidade avançada”. Nesse sentido, o jesuíta argentino Jorge Mario Bergoglio, ao tornar-se bispo de Roma, levou consigo os tesouros guardados ao longo da caminhada da Igreja latino americana. Tesouros estes consagrados no sangue derramado de seus mártires pelo compromisso com a construção da sociedade pautada pela justiça e pela solidariedade fraterna e inclusiva. Como um autêntico e sábio timoneiro, Francisco tem conduzindo a barca de Pedro bem consciente da presença do Espírito Santo na vida de cada homem ou mulher de fé.

glaucon

Glaucon Durães

Estudante de Ciências Sociais da PUC Minas

Membro da equipe de colaboradores jovens do Observatório da Evangelização

[1] Santa Luzia de Siracusa, aclamada padroeira da visão pelos católicos, é um símbolo de discernimento e firmeza de fé. Soube nas vésperas de seu martírio, não se deixar seduzir pelas pompas humanas. Hoje, a jovem siciliana nos convida a não cairmos nas pompas de nossos tempos, dentre elas, é importante citar aqui, as falsas imagens criadas pela mídia e pela indústria cultural, que por muitas vezes, mercadorizam irresponsavelmente a imagem de Francisco.

[2] É importante ressaltar que para além da quantidade de refugiados acolhidos, o gesto de Francisco tem que ser analisado principalmente pelas óticas das representações simbólica e política.

]]>
10035