Frei Tito Alencar – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com Thu, 11 Aug 2016 15:25:27 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.4 https://i0.wp.com/observatoriodaevangelizacao.com/wp-content/uploads/2024/04/cropped-logo.png?fit=32%2C32&ssl=1 Frei Tito Alencar – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com 32 32 232225030 42 anos do martírio de Frei Tito https://observatoriodaevangelizacao.com/42-anos-do-martirio-de-frei-tito/ Thu, 11 Aug 2016 15:25:27 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=8968 [Leia mais...]]]> A Paixão de Frei Tito

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No dia 10 de agosto, recordamos 42 anos do martírio de frei Tito de Alencar Lima. Nossa fé nos dá a certeza de que Tito, com seus escritos, seus exemplos, seus gestos de amor está vivo e presente em nossas lutas de hoje por um mundo de justiça e paz. Abaixo está um sensível texto escrito por frei Betto, sobre a “Paixão” de Tito. Uma ótima leitura para fazer memória da vida, luta e morte de nosso querido frei Tito.

por frei Betto (publicado originalmente no livro “Batismo de Sangue”)


Tudo surpreendentemente calmo. No ar, boiava a expectativa dos próximos minutos. Na prisão, os próximos minutos assustam mais que o feixe de anos de pena. O juiz raciocina em anos, o prisioneiro, em minutos. O próximo minuto pode ser o início de uma fuga, a lâmina de uma faca retalhando a carne, a visita inesperada.

Há cinco dias Frei Tito escrevera a um confrade:

Muitas vezes somos arrastados para onde não queremos ir. Temo que isso venha a acontecer com o conjuntos da Igreja do Brasil. Se vier, e se for como conseqüência de uma fidelidade e de uma responsabilidade mais profundas ao Evangelho, que seja bem-vinda esta hora. Na cadeia, tenho descoberto o Evangelho de S. Mateus. O troço tem que ser ou pão ou pedra. Noutras palavras, acho que ele nos convida a sermos simplesmente homens. É impressionante como tantos não-cristãos aqui vivem isso até as últimas conseqüências. Outro dia dizia-me um jovem: “Não falei nada porque fiz a opção e diante dela morrer ou não é secundário”.

Os trabalhos manuais prosseguiam na cela 7 do Presídio Tiradentes: a longa e fina agulha prateada enroscando fios coloridos de lã na tela do tapete, seguindo o desenho projetado; dedos ágeis dando nós em fios de plástico das sacolas de compras; o couro cedendo ao corte e à ponta incandescente do pirógrafo, ganhando a forma de bolsas e carteiras. O ambiente era uma reprodução cênica de uma oficina de artesãos do fim da Idade Média.

Pela manhã, o pequeno grupo de cristãos, entre os cinqüenta habitantes da cela, rezara os salmos. Nestor lera uma passagem do Evangelho, Frei Giorgio fizera o comentário. Sem tristeza, havia aperto em nosso coração. Os minutos eram vagarosos, longos, como em qualquer espera indefinida. As informações, precárias, pedaços incompletos de uma figura recortada: fora preso o dono do sítio em que a UNE realizara, em 1968, seu congresso clandestino em Ibiúna. Por quê? Só agora, após tanto tempo? Um simples esclarecimento policial? O local havia sido conseguido por Frei Tito, amigo do proprietário.

– Fui levado do Presídio Tiradentes para a Operação Bandeirantes — Oban (Polícia do Exército) — no dia 17 de fevereiro de 1970, terça-feira, às 14 horas. O capitão Maurício veio buscar-me em companhia de dois policiais e disse: “Você agora vai conhecer a sucursal do inferno”.  Algemaram minhas mãos, jogaram-me no porta-malas da perua. No caminho as torturas tiveram início: cutiladas na cabeça e no pescoço, apontavam-se seus revólveres.

Tito partiu sob os nossos protestos: meia centena de presos tinha o rosto espremido no alambrado estendido entre as grades, o peito ferido pela dor e ver, imponentes, um companheiro regressar à Oban, o grito uníssono de “assassinos, assassinos!”, entrecortado por expressões confiantes: “coragem, Tito!”, “firme, companheiro!”. A perua manobrou no pátio, ocultando o rosto redondo de Frei Tito, sua cabeça chata de cearense, o corpo baixo e robusto. Indignados, queríamos saber com que autoridade os homens do Exército retiravam do presídio um preso sob custódia de Justiça Militar.

–  Preso desde novembro de 1969, eu já havia sido torturado no DOPS. Em dezembro, tive minha prisão preventiva decretada pela 2ª Auditoria de Guerra da 2ª Região Militar. Fiquei sob responsabilidade do juiz-auditor Dr. Nelson Guimarães. Soube posteriormente que esse juiz autorizara minha ida para a Oban sob “garantias de integridade física”.

Denunciado incontáveis vezes nos tribunais militares brasileiros, o crime de torturar jamais foi apurado ou punido. À luz da Justiça sobrepõe-se, no juiz, a força do interesse. Sua estabilidade depende da confiança dos militares: qualquer suspeita significa o fim de sua carreira. Por isso, o espanto inicial provocado pelos relatos de atrocidades, prevalece no magistrado a adequação de sua sensibilidade e consciência à tortura como método de interrogatório, ao assassinato como recurso de profilaxia política, à crueldade do poder como exigência de segurança e firmeza de autoridade. Para os torturadores, porém, o juiz não passa de um pobre coitado obrigado a dar cobertura legal aos crimes cometidos pelo Estado.

–  Ao chegar à Oban, fui conduzido à sala de interrogatórios. A equipe do capitão Maurício passou a acarear-me com duas pessoas. O assunto era o congresso da UNE em Ibiúna, em outubro de 1968. Queriam que eu esclarecesse fatos ocorridos naquela época. Apesar de declarar nada saber, insistiram para que eu “confessasse”. Pouco depois levaram-me  para o pau-de-arara. Dependurado, nu, com mão e pés amarrados, recebi choques elétricos, de pilha seca, nos tendões dos pés e na cabeça. Eram seis os torturadores, comandados pelo capitão Maurício. Davam-se “telefones” [tapas nos ouvidos] e berravam impropérios. Isso durou cerca de uma hora. Descansei quinze minutos ao ser retirado do pau-de-arara. O interrogatório se reiniciou. As mesmas perguntas, sob cutiladas e ameaças. Quanto mais eu negava, mais fortes as pancadas. A tortura, alternada de perguntas, prosseguiu até as vinte e duas horas. Ao sair da sala, tinha o corpo marcado por hematomas, o rosto inchado, a cabeça pesada e dolorida. Um soldado carregou-me até a cela 3, onde fiquei sozinho. Era uma cela de 3 x 2,5 mts, cheia de pulgas e baratas. Terrível mau cheiro, sem colchão e cobertor. Dormi de barriga vazia sobre o cimento frio e sujo.

Para certos militares, todo réu é culpado, até prova em contrário —princípio emanado da Doutrina de Segurança Nacional e infundido na cabeça de todos que, durante anos, comandaram a repressão no Brasil. Parte-se da ideia de que ninguém confessa os seus “crimes”, a menos que seja forçado a falar. E para isso só há um recurso: a tortura. A dor física, o pânico psíquico e o medo desencadeiam, no prisioneiro, o instinto de sobrevivência, sob ameaça de levá-lo a dizer ou assinar o que querem seus carrascos. Troca-se a dignidade pela preservação da vida. Nesse  momento, a escolha é crucial, entre ceder à ânsia de sobreviver ou aceitar a dor e a morte por fidelidade aos princípios assumidos.

Em liberdade, quando ainda a nova geração de combatentes não conhecia a fúria repressiva, alimentava-se o mito do herói indomável, capaz de abraçar a morte sem um gemido, como quem encontra o prêmio de seus sacrifícios pelo advento da nova sociedade. No cárcere, os instrumentos de suplício reduziram essas pretensões aos limites da fragilidade humana, embora não tenham faltado testemunhos exemplares, como o de Frei Tito, o de Virgílio Gomes da Silva, o de Apolônio de Carvalho, o de Manuel da Conceição e de tantos outros. A maioria, porém, sucumbiu às atrocidades sofridas. Sabia-se a diferença entre a resistência quebrada e a delação assumida, voluntária. Havia compreensão e perdão para os que falavam sob tortura; discriminava-se punitivamente os que colaboravam com a polícia em pleno domínio de suas faculdades. A escola carcerária ensinava que a fidelidade não se reveste apenas de maturidade ideológica adquirida na prática social, mas sobretudo de amor à causa e às pessoas pelas quais e com as quais se luta. O coração é a raiz da vontade. O bom comportamento tido por Mário Alves, Vladimir Herzog, Marcos Arruda, Carlos Eduardo Pires Fleury e outros resultou de um longo processo de auto-educação, de disciplina, de humildade, que não se deixou iludir por esse voluntarismo esquerdizante revestido de autossuficiência em certos militantes que, de tão centrados em si mesmo, quando presos são os primeiros a entregar os outros.

– Na quarta-feira, fui acordado às oito horas. Subi para a sala de interrogatórios, onde a equipe do capitão Homero me esperava. Repetiram as mesmas perguntas do dia anterior. A cada resposta negativa eu recebia cutiladas na cabeça, nos braços e no peito. Nesse ritmo prosseguiram até o início da noite, quando me serviram a primeira refeição naquelas 48 horas: arroz, feijão e um pedaço de carne. Um preso, na cela ao lado da minha, ofereceu-me cipo, água e cobertor. Fui dormir com a advertência do capitão Homero de que, no dia seguinte, enfrentaria a “equipe da pesada”.

Na Oban, os militares procuravam “quebrar” as resistências do preso alternando torturas, perguntas, ameaças. O medo de sofrer novamente as mesmas dores era, por vezes, mais pavoroso que as próprias dores. Naquele inferno, não faltavam os gestos de solidariedade: um copo d’água e um cobertor significam companheirismo, presença amiga, solidariedade. Saber que alguém nos apóia é vencer a solidão que nos torna vulneráveis. Por isso, a percepção, na fé, da presença de Deus em suas vidas tanto encorajava os primeiros mártires cristãos.

–   Na quinta-feira, três policiais acordaram-me à mesma hora do dia anterior. De estômago vazio, fui para a sala de interrogatórios. Um capitão, cercado por sua equipe, voltou às mesmas perguntas: “Vai ter que falar senão só sai morto daqui!”, gritou. Logo vi que isso não era apenas uma ameaça, era quase uma certeza. Sentaram-me na cadeira-dragão, com chapas metálicas e fios, descarregaram choques nas mãos, nos pés, nos ouvidos e na cabeça. Dois fios foram amarrados em minhas mãos e um na orelha esquerda. A cada descarga, eu estremecia todo, com se o organismo fosse se decompor. Da sessão de choques passaram-me ao pau-de-arara. Mais choques, pauladas no peito e nas pernas que cada vez mais se curvavam para aliviar a dor. Uma hora depois, com o corpo todo ferido e sangrando, desmaiei. Fui desamarrado e reanimado. Conduziram-me a outra sala dizendo que passariam a descarga elétrica para 220 volts a fim de que eu falasse “antes de morrer”. Não chegaram a fazê-lo. Voltaram às perguntas, batiam em minhas mãos com palmatórias. As mãos ficaram roxas e inchadas, a ponto de não ser possível fechá-las. Novas pauladas. Era impossível saber qual parte do corpo doía mais; tudo parecia massacrado. Mesmo que quisesse, não poderia responder às perguntas: o raciocínio não se ordenava mais, restava apenas o desejo de perder novamente os sentidos. Isso durou até as dez, quando chegou o capitão Albernaz.

Venceste, amigo, os limites da vida, rasgando o véu do tempo, da lógica e do espaço, mergulhando no círculo hermético do mistério, espelhos reflexos do nada e do tudo. Cavalgaste a própria dor pelas estradas sinuosas da fragilidade, barco sobre as ondas ancorado no porto seguro do compromisso. O corpo lanhado, espancado, eletrificado, não profanou a tua intimidade, a tua verdade, acesa. Não perdeu o brilho, estrela solitária acima da manada de nuvens rugindo tempestades e estalando raios no atropelo de pesadas patas. Servo contemporâneo de Javé, tua integridade deixou-se fascinar pelo êxtase que decifra o jogo da morte. Um, apenas um de teus gritos resistentes, bastaria para quebrar os cristais de nossos encantos mesquinhos. A profissão embrulhada por interesses no tráfico de compra e venda do mercado de trabalho. As ideias adornadas pelos cabeleireiros da moda. Os hábitos sob a coleira da vaidade, espumas perfumadas que se diluem à clarividência da água lavando nossos corpos mortais. Cápsulas rudimentares do espírito que não se rende às nossas conveniências, nem se dobra aos nossos vícios; antes, é como os pássaros que só pousados à mão dos deuses se sentem livres. Provaste aos verdugos que ainda não se inventaram armas ou se erigiu poder suficientemente forte para derrotar a consciência humana — arma muito perigosa, confidenciou-me Dostoievski.

–  “Nosso assunto agora é especial”, disse o capitão Albernaz ligando os fios em meus membros. “Quando venho para a Oban, deixo o coração em casa. Tenho verdadeiro pavor a padre e para matar terrorista nada me impede… Guerra é guerra, ou se mata ou se morre. Você deve conhecer fulano e sicrano (citou os nomes de dois presos políticos que foram torturados por ele). Darei a você o mesmo tratamento que dei a eles: choques o dia todo. Todo não que você disser, maior a descarga elétrica que vai receber”. Estavam três militares na sala. Um deles gritou: “quero nomes e aparelhos”. Quando respondi: “não sei”, recebi uma descarga elétrica tão forte, diretamente ligada à tomada, que houve um descontrole em minhas funções fisiológicas. O capitão Albernaz queria que eu dissesse onde estava Frei Ratton. Como não soubesse, levei choques durante quarenta minutos. Queria os nomes de outros padres de São Paulo, Rio e Belo Horizonte “metidos na subversão”. Partiu para a ofensa moral: “quais os padres que têm amantes?, porque a Igreja não expulsou vocês?”, “quem são os outros padres terroristas?” Declarou que o interrogatório dos dominicanos feito pelo DOPS tinha sido “a toque de caixa” e que todos os religiosos presos iriam à Oban prestar novos depoimentos. Receberiam também o mesmo “tratamento”. Disse que “a Igreja é corrupta, pratica agiotagem, o Vaticano é dono das maiores empresas do mundo”. Diante de minhas negativas, aplicaram-me choques, davam-me socos, pontapés e pauladas nas costas. Revestidos de paramentos litúrgicos, os policiais me fizeram abrir a boca “para receber a hóstia sagrada”. Introduziram um fio elétrico. Fiquei com a boca toda inchada, sem poder falar direito. Gritavam difamações contra a Igreja, berravam que os padres são homossexuais porque não se casam. Às 14 horas, encerraram a sessão. Carregado, voltei à cela, fiquei estirado no chão.

A tua agonia, irmão, dobra os joelhos da Igreja em atitude penitencial. Ela confessa ao teu testemunho as atribulações de quem, fecundada pelo Espírito, destinada às núpcias com o Rei, entrega-se excitada ao poder repressor, dança ao tilintar de moedas falsas, escuta arrepiada, prazerosa, as bajuladoras promessas de autoridades públicas. Nos becos escuros da história, a prostituta oferece-se ao primeiro que lhe prometa brincos de ouro, colares de pedra e anéis cravejados. Jóia preciosa, resguarda o coração, cofre lacrado do amor que só se abre ao seu Senhor, por quem ela não macula na sarjeta os sentimentos e as emoções. Regressa à casa, despe-se dos adornos, lava-se no sangue de Bartolomeu de las Casas, de Antonio Valdivieso, de Morellos, de Camilo Torres, de Henrique Pereira Neto, de João Bosco Penido Burnier, de Rudolf Lukambein, de Oscar Romero e em teu sangue, Tito. Flor do campo, criança solta livre na manhã vadia, atira-se aos braços de seu Amor, e já são abraços, já são laços. São dois em um só.

–  Às dezoito horas serviram o jantar, mas não consegui comer. Minha boca era uma ferida só. Pouco depois levaram-me para uma “explicação”. Encontrei a mesma equipe do capitão Albernaz. Voltaram às mesmas perguntas. Repetiram as difamações. Disseram que, em vista de minha resistência à tortura, concluíram que eu era um guerrilheiro e deveria estar escondendo minha participação em assaltos a bancos. O “interrogatório” se reiniciou para que eu “confessasse” os assaltos: choques, pontapés nos órgãos genitais e no estômago, palmatória, ponta de cigarro acesa  em meu corpo. Durante cinco horas apanhei como um cachorro. No fim, fizeram-me passar pelo “corredor polonês”. Avisaram que aquilo era a estréia do que iria ocorrer com os outros dominicanos. Quiseram deixar-me dependurado toda a noite no pau-de-arara. Mas o capitão Albernaz objetou: “Não é preciso, vamos ficar com ele aqui mais dias. Se não falar, será quebrado por dentro, pois sabemos fazer as coisas sem deixar marcas visíveis. Se sobreviver, jamais esquecerá o preço da valentia”.

Na sucursal do inferno, demônios afoitos competiam pelo poder de partir a resistência de suas vítimas. Morcegos vorazes borboleteavam céleres de brasões em brasões, sequiosos de sangue. Erguer a alma do réu na ponta do espadim era o supremo gozo, vitória macabra de uma equipe que recusava passar o preso a outra sem o trunfo de vê-lo falar. A morte era o salário do silêncio. O ritual, porém, dera aos duendes o domínio sobre o espírito humano, navios fantasmas construídos no interior de garrafas atiradas às vagas da noite. O capitão Albernaz sabia o que estava dizendo. Filho de brutos, sua profecia, estigma maligno, haveria de se confirmar no futuro atordoado de Frei Tito.

– Na cela, eu não conseguia dormir. A dor crescia a cada momento. Sentia a cabeça dez vezes maior que o corpo. Angustiava-me a possibilidade de os outros religiosos sofrerem o mesmo. Era preciso pôr um fim àquilo. Sentia que não iria aguentar mais o sofrimento prolongado. Só havia uma solução: matar-me.

Oblativa, emergiu em ti, a sombra da morte. Recolhias em teu dom o risco que sobre nós pairava. Resgatava-os das florestas do medo pela tua coragem de abrir as portas dos jardins do Éden, anjo sentinela do cálice que te foi dado beber no Horto das Oliveiras, sorvendo-o sofregamente, até a última gota. Clamaste ao Pai para afastá-lo de nós, entregando-te a copa na qual nos deste teu corpo e teu sangue.

–  Na cela cheia de lixo encontrei uma lata vazia. Comecei amolar sua ponta no cimento. O preso ao lado pressentiu minha decisão e pediu que eu me acalmasse. Havia sofrido mais do que eu (teve os testículos esmagados) e não chegara ao desespero. Mas, no meu caso, tratava-se de impedir que outros viessem a ser torturados e de denunciar à opinião pública e à Igreja o que se passa nos cárceres brasileiros. Só com o sacrifício de minha vida isso seria possível, pensei. Como havia um Novo Testamento na cela, li a Paixão  segundo São Mateus. O Pai havia exigido o sacrifício do Filho como prova de amor aos homens. Desmaiei envolto em dor e febre.

O preso ao lado era um ex-cabo do Exército que não apoiara seus comandantes no assalto ao poder constituído, em 1964. Cassado e caçado, abrigou-se na clandestinidade, lona puída de um velho e precário circo com tão poucos espectadores que os atores acabavam por representar para si próprios. As massas condensavam-se sonoras, pujantes, num conceito teórico que nos escapava na concretude oca da história. O circo era feito de palhaços, seus números arriscados dispensavam redes, a arte era toda audácia; só não se previu a rebelião das feras a abater caçadores e domadores. O ex-cabo Mariani foi preso nos primeiros dias de 1970, próximo a Teófilo Otoni. Transportado para o DOPS de Belo Horizonte, ingeriu velha cápsula de cianureto que trazia consigo. O veneno queimou-lhe as vísceras, correu-lhe os intestinos e, da morte, só provou o sabor amargo. Trazido para São Paulo e entregue ao Exército, recebeu “tratamento exemplar”.

Outro companheiro soube o que é isso e estendeu-te a mão, a paz, o pão: Fernando Gabeira. Ave insolente, um tiro atravessou-lhe, o vôo para a liberdade, devolvendo-a à gaiola de ferros. Não lhe cortaram as asas impetuosas, o amor à vida e o fascínio pela utopia. Contudo, ao retornar do exílio, diria adeus às armas. Por cima de abnegados sacrifícios, faria entender que o circo não passou de uma grande aventura, como se o sonho fosse fruto e não matriz da realidade.

Estranho enlace entre a fé e as feras: o Novo Testamento que tu leste fora presente do capitão Roberto, crente obcecado em difundir a Palavra, sem no entanto reconhecer-se cúmplice da profanação sacrílega que se pratica ali dentro sobre os verdadeiros templos de Deus.

–  Na sexta-feira, fui acordado por um policial. Havia a meu lado um novo preso: um rapaz português que chorava pelas torturas sofridas durante a madrugada. O policial advertiu-me: “O senhor tem hoje e amanhã para se decidir a falar. Senão a turma da pesada repete o mesmo pau. Já perderam a paciência e estão dispostos e matá-lo aos pouquinhos.” Voltei aos meus pensamentos da noite anterior. Nos pulsos, eu havia marcado o lugar dos cortes. Continuei amolando a lata. Ao meio-dia tiraram-me para fazer a barba. Disseram que eu iria para a penitenciária. Raspei mal a barba, voltei à cela. Passou um soldado. Pedi que me emprestasse a gilete para terminar a barba. O português dormia. Tomei a gilete, enfiei-a com força na dobra interna do cotovelo, no braço esquerdo. O corte fundo atingiu a artéria. O jato de sangue manchou o chão da cela. Aproximei-me da privada, apertei o braço para que o sangue jorrasse mais depressa. Mais tarde, recobrei os sentidos no leito do Pronto-Socorro do Hospital das Clínicas. No mesmo dia, transferiram-me para um leito do Hospital Militar. O Exército temia a repercussão, não avisaram a ninguém do que ocorrera comigo. No corredor do Hospital Militar, o capitão Maurício dizia desesperado aos médicos: “Doutor, este padre não pode morrer de jeito nenhum. Temos que fazer tudo, senão estamos perdidos”. No meu quarto, a Oban deixou seis soldados de guarda.

Enquanto padecias, buscávamos desesperados meios de mobilizar as pessoas. Adivinhamos o teu calvário atingido em penosas estações. Nosso apelo chegou ao advogado, Dr. Mário Simas, e aos nossos superiores, Frei Domingos e Frei Edson. Era um tempo em que o relógio marcava cada segundo do jogo da vida e a vitória exigia muita presteza. O Núncio Apostólico, Dom Umberto Mozzoni, voou de Brasília para a capital paulista tão logo foi avisado. Ele e Dom Paulo Evaristo Arns jamais se esconderam dos momentos difíceis; bons pastores, não abandonaram as ovelhas atacadas pelos lobos. Faziam de sua autoridade serviço. Nas vestes vermelhas, traziam as insígnias do martírio; nas mãos o sangue de feridas alheias. Acompanhado por Frei Domingos, o Núncio foi à Operação Bandeirantes, na rua Tutóia, à tua procura. Queria ver-te. Todavia, a prepotência cospe na verdade. Na porta, o policial de plantão informou que teu nome não constava na lista de presos. O convívio com a perversidade habituara-os à mentirosa indiferença perante à aflição de tantas e tantas famílias que, ainda hoje, buscam seus mortos e desaparecidos.

–  No sábado, teve início a tortura psicológica. “A situação lá fora vai piorar para você que é um padre suicida e terrorista”, diziam eles. “A Igreja vai expulsá-lo.” Não deixavam que eu repousasse. Falavam o tempo todo, jogavam, contavam-me estranhas  histórias. Percebi logo que, a fim de fugirem à responsabilidade de meu ato e o justificarem, queriam que eu enlouquecesse.

O quarto que ocupaste no Hospital Militar do Cambuci era, de fato, uma cela, a mesma na qual Gabeira ficara após ser ferido a bala por tentar fugir da Oban. Se o carrossel da loucura não te apanhou, foi graças à carinhosa atenção das irmãs que trabalhavam no hospital, santas marias da consolação.

–  Na segunda noite, recebi a visita do juiz-auditor, acompanhado de um padre do convento e de um bispo-auxiliar de São Paulo. Haviam sido avisados pelos presos políticos do Presídio Tiradentes. O médico do hospital examinou-me à frente deles, mostrando os hematomas e as cicatrizes, os pontos recebidos no Hospital das Clínicas, as marcas de tortura. O juiz declarou que aquilo era “uma estupidez” e que iria apurar responsabilidades. Pedi a ele garantias de vida e que eu não voltasse à Oban, o que prometeu fazer.

Tão logo soube o que ocorrera contigo, o Provincial dos dominicanos, Frei Domingos, entrou em contato com Dom Agnelo Rossi, Arcebispo de São Paulo. Nesses casos, os bispos se dividem em duas atitudes: os que vão direto socorrer os oprimidos e os que acreditam que só os poderosos podem salvar os oprimidos… O Cardeal telefonou ao Governador Abreu Sodré e encarregou seu Bispo-Auxiliar, Dom Lucas Moreira Neves, dominicano, de falar com o juiz-auditor. O Bispo e o juiz eram velhos conhecidos, desde a antiga JUC carioca, nos anos 50. Por insistência deste pequeno grande homem, Frei Domingos, o Dr. Nelson Guimarães decidiu ir ao Hospital Militar, acompanhado também por Dom Lucas. Antes, porém, impôs uma condição: Não se revelar nada do que veriam e ouviriam.

No hospital do Cambuci, o major-oficial do dia e o capitão-médico de plantão acompanharam os visitantes ao teu leito. Teus olhos exultaram ao ver o rosto de pessoas que poderiam salvar-te. Sem receio, disseste que tentaras matar-te, cortando a artéria do braço esquerdo, por não mais suportares o tratamento recebido na Oban. Denunciaste as ameaças que pesavam sobre nós. Solicitado pelo juiz, o capitão-médico examinou-te, constatando escoriações e hematomas em várias partes do corpo e suspeita de fratura nas mãos. Imploraste ao magistrado que te desse garantias de vida e não permitisse teu retorno à sucursal do inferno. Querias viver, Tito, livrar-te dos fantasmas das trevas que povoavam os corredores lúgubres do aparelho repressivo.

Dia seguinte, Frei Domingos, munido de uma autorização do juiz, tentou nova visita. Foi barrado, sob a alegação de que necessitava de uma autorização especial das autoridades da 2ª Região Militar.

Por ocasião do teu julgamento, irmão, a Província dominicana do Brasil pediu a Dom Lucas um depoimento sobre o estado em que te encontravas ao visitar-te. Não uma denúncia, um protesto, um salmo de indignação. Um simples relato, fiel à verdade, de tuas dores. Dom Lucas, para nosso espanto, se recusaria, alegando não querer prejudicar suas atividades pastorais. E as responsabilidades jamais foram apuradas.

– De fato, fui bem-tratado pelo militares do Hospital Militar, exceto os da Oban que montavam guarda em meu quarto. As irmãs Vicentinas deram-me toda a assistência necessária. Mas não se cumpriu a promessa do juiz. Na sexta-feira, 27 de fevereiro de 1970, fui levado de manhã para a Oban. Fiquei numa cela até o fim da tarde, sem comer. Sentia-me tonto e fraco, havia perdido muito sangue e os ferimentos começavam a cicatrizar. À noite, entregaram-me de volta ao Presídio Tiradentes.

No sábado, Dr. Mário Simas solicitou ao juiz apurar a veracidade dos fatos, localizar Frei Tito, colher seu depoimento e adotar as medidas cabíveis e legais diante do que fosse constatado. Dr. Nelson Guimarães concedeu ao advogado autorização para visitar o religioso no Hospital Militar. Recebido à porta pelo coronel-comandante do hospital, nosso defensor foi barrado:

–  O senhor não pode entrar — disse-lhe o oficial. –  Mas trago autorização do juiz-auditor. –  Para mim, isso nada significa. Só admito sua entrada nessas dependências com autorização especial fornecida pela 2ª Região Militar. Dr. Simas ponderou: –  Trata-se de um preso da Justiça Militar. Não se pode mais cercear seu direito de comunicação. –  Sem autorização escrita do meu comando, o senhor não entra aqui — repetiu o coronel. No quartel da 2ª Região Militar, o advogado foi recebido pelo coronel Albuquerque: –  Isso não é comigo — asseverou o militar. — É da alçada do II Exército. Procure lá o coronel Erard ou o tenente-coronel Souza Aguiar. No comando do II Exército, no Ibirapuera, Dr. Mário Simas apresentou-se ao oficial do dia: –  Sou advogado na Justiça Militar e gostaria de falar com o tenente-coronel Souza Aguiar. –  Impossível, ele está de férias. –  E o coronel Erard? O atendente deu um telefonema e, em seguida, informou: –  O coronel Erard não se encontra na casa, passe aqui amanhã. No dia seguinte, Dr. Simas foi recebido pelo coronel Erard. Após expor os motivos de sua visita, ouviu do oficial: –  Isso é com o coronel Albuquerque, da 2ª Região Militar. Vou mandar chamá-lo. Ao comparecer o coronel Albuquerque, seu companheiro de farda fez o advogado repetir o pedido: –  Sem dúvida — retrucou o militar —, desde que obedecidas as condições e os horários do hospital. O senhor aguarda que vou tentar comunicar-me com o comandante do hospital. Perdido na burocracia implacável, submetido à humilhação meticulosa e fria, após longa espera o advogado retirou-se do quartel.

Afeto e admiração cercaram o retorno de Frei Tito à cela 7. Nossa alegria foi contida pelo lastimável estado em que ele se encontrava: o rosto inchado, o corpo coberto de hematomas e de queimaduras de cigarro, o braço esquerdo enfaixado. Estava fraco, pálido. Carregado, subiu as escadas e, na cela, os médicos Davi e Madeira, presos políticos, improvisaram a aplicação de soro glicosado. Apesar de tudo, estávamos orgulhosos de sua coragem. Tito parecia todo feito de luz: seus olhos miúdos irradiavam alegria, o moral revelava-se alto e seu silêncio traduzia paz. Como todos os prisioneiros que não cedem às torturas, ele estava possuído por uma força que exprimia modéstia e dignidade.

Seu relato de torturas, redigido na prisão, foi divulgado pela primeira vez no jornal Publik, da Alemanha, e, posteriormente, mereceu prêmio especial de reportagem da revista norte-americana Look, em 1970. Correu mundo em diversos idiomas. Em seu parágrafo final, alerta Frei Tito:

– É preciso dizer que o que ocorreu comigo não é exceção, é regra. São raros os presos políticos brasileiros que não sofreram torturas. Muitos, como Schael Schreiber e Virgílio Gomes da Silva, morreram na sala de torturas. Outros ficaram surdos, estéreis ou com outros defeitos físicos. A esperança desses presos coloca-se na Igreja, única instituição brasileira fora do controle estatal-militar. Sua missão é defender e promover a dignidade humana. Onde houver um homem sofrendo, é o Mestre que sofre. É hora de nossos bispos dizerem BASTA às torturas e injustiças promovidas pelo regime, antes que seja tarde. A Igreja não pode omitir-se. As provas das torturas trazemos no corpo. Se a Igreja não se manifestar contra esta situação, quem o fará? Ou seria necessário que eu morresse para que alguma atitude fosse tomada? Num momento como este, o silêncio é omissão. Se falar é um risco, é muito mais um testemunho. A Igreja existe como sinal e sacramento da justiça de Deus no mundo. “Não queremos, irmãos, que ignoreis a tribulação que nos sobreveio. Fomos maltratados desmedidamente, alem das nossas forças, a ponto de termos perdido a esperança de sairmos com vida. Sentíamos dentro de nós mesmos a sentença de morte: deu-se isso para que saibamos pôr a nossa confiança, não em nós, mas em Deus, que ressuscita os mortos”(2 Cor. 1, 8 e 9). Faço esta denúncia e este apelo a fim de que se evite amanhã a triste notícia de mais um morto pelas torturas.

Em julho de 1970, Tito recebeu no Presídio Tiradentes esta carta do arcebispo de Fortaleza, datada de 28 de junho:

Caríssimo Frei Tito, 

Enquanto nos movemos no escuro e nem sempre possuímos toda serenidade diante dos acontecimentos da Salvação, somos conduzidos por Deus dentro dos planos infalíveis que nos levam a contribuir para a vitória dela. Como na hora máxima da operação salvífica, em cada instante da sua História haverá sempre uma cruz na qual alguém, mais próximo do Salvador, se purifica no amor aos homens. Este é o grande recurso interior querido pela fé. Ela é a nossa vitória, conforme a revelação ensina. Acredito que das provas de fogo você sairá maior e poderá pregar a todos nós, seus irmãos, a verdadeira doutrina do amor crucificado, em cuja eficácia o mundo não crê. É este amor e somente ele que nos converterá em “espetáculo oferecido aos homens e aos anjos”. A maioria dos nossos irmãos não se converterá sem contemplações espetaculares. Seja digno da vocação de mártir da caridade. Para mim nela se resume a significação de muitas vidas humanas e cristãs.

Do seu servo e pastor amigo,

Dom José Delgado.

Caçula entre onze irmãos, Tito de Alencar Lima nasceu em Fortaleza a 14 de setembro de 1945. Aluno dos jesuítas, ingressou na JEC, afirmando-se logo como um dos seus mais ativos militantes. Nomeado dirigente regional em 1963, transferiu-se para o recife. No velho casarão da Rua do Leite, onde moravam os dirigentes dos movimentos de Ação Católica, encontrei-o em minhas viagens pelo Nordeste. Ele era membro da equipe que coordenava a JEC do Maranhão à Bahia.

A fé cristã o inquietava. Deus irrompera em sua vida como apelo, desafio e paixão. Perseguia-o a ideia de consagrar-se integralmente à causa do Evangelho. Espírito místico, afeito ao silêncio e à oração, considerou a hipótese de fazer-se Irmãozinho de Foucauld, decidindo-se porém pelos dominicanos, mais vinculados aos militantes da JEC. Nos primeiros dias de 1966, entrou no noviciado, no Convento da Serra, em Belo Horizonte. Após a profissão simples, quando assumiu por três anos os votos de obediência, de pobreza e de castidade, a 10 de fevereiro de 1967, Frei Tito transferiu-se para a capital paulista. Residia no convento das Perdizes e cursava Filosofia na USP.

Como em todo o país, também em São Paulo o movimento estudantil era o setor da sociedade civil que melhor expressava o descontentamento frente ao regime militar. Na faculdade, Tito participava de reuniões e das manifestações, colocando-se a serviço de seus companheiros, o que lhe permitiu obter o local em Ibiúna para o congresso da UNE, em 1968. Preso com os congressistas, passou pela triagem do DOPS sem que percebessem sua condição religiosa.

Frei Tito foi novamente preso na madrugada de 3 para 4 de novembro de 1969, quando a equipe do delegado Fleury invadiu o convento da Rua Caiubi. Vasculharam seu quarto e, no DOPS, o próprio Fleury encarregou-se de torturá-lo com choques, palmatória e pancadas na cabeça. Três meses depois ele retornou ao suplício, na Oban.

Em fevereiro de 1970, Tito deveria renovar seus votos religiosos. O Provincial solicitou à Auditoria Militar licença para celebrar missa no presídio. O juiz chamou-o para uma conversa e explicou que não daria a autorização porque a missa poderia ser entendida como afronta ao Governo.

Frei Domingos é o tipo de homem difícil de envergar, impossível de quebrar. No primeiro dia de visita aos presos, em março de 1970, Tito desceu ao pátio carregado pelos companheiros. Ali mesmo, como nas catacumbas, o Provincial recebeu os seus votos, indiferente às preocupações do juiz.

Em outubro, os dominicanos presos fomos acusados de liderar manifestação carcerária contra o Esquadrão da Morte, que tirava suas vítimas dentre os presos comuns recolhidos na parte térrea do Presídio Tiradentes. Punidos, distribuíram-nos por solitárias de quartéis. Como todos nós, Tito passou um mês sozinho numa cela vazia, sob ameaça constante de soldados e de oficiais. Ao sair, foi convocado para prestar depoimento no tribunal militar. O juiz Nelson Guimarães repreendeu-o por divulgar no exterior a narrativa dos suplícios que sofrera em fevereiro. Ficamos felizes pela advertência, pois através dela soubemos que o relato fora publicado nas revista L’Europeo e Look, tendo merecido o prêmio de 1970 do New York Overseas Press Club, importante associação de jornalistas norte-americanos e estrangeiros nos Estados Unidos. –  Além do mais, tudo o que você escreveu é falso! — disse o magistrado. Dr. Nelson Guimarães vira Frei Tito dilacerado no Hospital Militar e considerara aquilo “uma estupidez”. Nos regimes ditatoriais, porém, a palavra da autoridade é a verdade. Tito não se fez de rogado: descreveu novamente todos os detalhes das torturas sofridas. Com o rosto vermelho de raiva e os gestos trêmulos, o juiz proibiu o escrevente de incluir a denúncia no depoimento do réu. O advogado de defesa interferiu e insistiu para que as palavras do religioso fossem transcritas no processo. – Vocês compreendem, a tortura é uma coisa de tal modo horrível que é  melhor não falar dela, esquivou-se o magistrado.

Em dezembro de 1970, um comando da VPR sequestrou, no Rio, o Embaixador suíço, Giovanni Enrico Bücher. Na lista dos setenta prisioneiros políticos que deveriam ser soltos em troca da vida do diplomata, figurava o nome de Frei Tito. Celebramos eufóricos a possibilidade de vê-lo em liberdade, “graças ao grande advogado doutor embaixador, o único que promovia solturas coletivas, independente do peso das condenações”, dizia Daniel José de Carvalho. Tito, porém, reagiu de modo diferente. Não queria deixar o Brasil. Lamentava constar na lista, sobretudo por não poder recusar a oferta, sob pena de fazer o jogo da repressão, interessada em desmoralizar os sequestradores. Nos vários sequestros de diplomatas — americano, japonês, alemão e suíço —, alguns presos preferiram permanecer no cárcere, tendo seus nomes e fotos estampados na imprensa como se fossem aliados do Governo. Tito preferia ser banido — punição automática a todos que saíam mediante sequestros — do que ver-se utilizado pelo regime militar. As negociações foram demoradas, o Governo insistia, pela primeira vez, em não liberar certos prisioneiros considerados mais perigosos pela repressão. Da cela 17 do pavilhão 2, acompanhamos tensos o noticiário através do rádio que, clandestinamente, conseguimos introduzir no Presídio Tiradentes. Era um período em que os rádios estavam proibidos, só entravam jornais. No entanto, tínhamos um de cinco faixas, escondido no colchão. Temerosa der ver a sua ação frustrada, a VPR refazia a lista sob pressão do governo. O nome de Frei Tito, todavia, permanecia em pauta. Seus planos para o exílio consistiam em buscar uma forma de vida religiosa mais radical e estudar a fundo os clássicos políticos. Desde a tortura, ele nos parecia mais introvertido, cercado de silêncio, mergulhado em oração. Em janeiro de 1971, o Governo aceita a lista definitiva. Tito inicia as despedidas e redige esta pequena carta ao advogado e preso político Wanderley Caixe:

Companheiro Wanderley

Para mim foi motivo de grande satisfação ter convivido com você durante 12 meses no presídio Tiradentes. Sob o signo deste herói que, infelizmente, virou nome de cárcere, reuniremos os grandes ideais que o futuro do povo brasileiro tanto anseia: a construção do socialismo. E só os verdadeiros homens é que foram chamados para este grande ideal. Contra isso, nada vence; nem tortura e nem perseguições. Companheiro, aqui no Exterior estaremos sempre reunidos pelos mesmos princípios.

Até a vitória final!

S.Paulo, 10/1/71

Quatro dias depois dessa carta, Tito foi retirado da cela para viajar. Na carceragem do Tiradentes encontravam-se equipes do DOPS e da Oban, criticando abertamente o Governo por ceder aos sequestradores e ameaçando os escolhidos de fuzilamento. Ordenaram a Tito que tirasse a roupa. Nu, ele foi fotografado de todos os ângulos. Ao preencher a ficha, indagaram a que organização política ele pertencia: –  A Igreja — respondeu ele. A última vez que o vi foi naquele momento em que, do pátio, ele abanou a mão e ergueu o polegar, em sinal de otimismo, antes de entrar na viatura que o conduziu ao aeroporto, em companhia de outros companheiros do Tiradentes incluídos na lista. Com gritos de alegria e cantos saudamos, uníssono, a libertação inesperada. Pelas galerias do presídio ressoava impetuoso o Hino da Independência: Ou ficar a Pátria livre ou morrer pelo Brasil.

No mesmo dia o Ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, assinou o decreto banindo do país os companheiros libertados. Horas depois, ao desembarcar no Chile de Allende, Cristóvão Ribeiro comentou eufórico ao ver a multidão alegre no aeroporto para recebê-los: – Tito, eis finalmente a liberdade! – Não, não é esta a liberdade — ponderou o dominicano, deixando seu companheiro intrigado.

Santiago do Chile era, no verão de 1971, o lugar apropriado para os exilados dispostos a participar do sonho de construir o socialismo pela via pacífica e legal, mas não era o lugar que Frei Tito queria. A proximidade com o Brasil permitia contatos mais fáceis, notícias mais frequentes, mormente para os que se empenhavam em restaurar suas organizações durante atingidas pela repressão, mas esse também não era o interesse de Tito. Dentro de poucas semanas, voou para Roma e bateu, em vão, às portas do Colégio Pio Brasileiro, o seminário destinado a formar a elite de nosso clero. A fama de “terrorista” do dominicano assustava os padres do Pio Brasileiro. Tito parte, então, para Paris.

Na capital francesa encontravam-se exilados nossos colegas dominicanos: Osvaldo, Magno e Ratton. Até junho de 1973, Frei Tito desfruta da companhia deles no convento de Saint Jacques, em cuja entrada, à Rue des Tanneries, há a placa que recorda sua invasão pelos nazistas em 1943 e o martírio de dois dominicanos levados pela Gestapo. Prossegue seus estudos de Teologia. Durante os primeiros seis meses, sente-se bem, relacionando-se sem dificuldades com as pessoas. Aos poucos, entretanto, ressurgem os sinais das torturas que sofrera, estigmas psíquicos de sua subjetividade conflitada, a introjeção depressiva alternando-se com momentos de euforia. Sua personalidade avariada exigia tratamento psiquiátrico. Apesar da dedicação dos médicos, os fantasmas não se apagam: a mente atordoada de Frei Tito projeta sobre Paris a imagem onipresente da repressão brasileira, o rosto diabólico do delegado Fleury aparece-lhe em cada café dos Champs Elysées, os olhos injetados de ódio dos militares da Oban tentam, agora, esconder-se entre as folhas do Jardim des Tuilleries, dentro de cada vagão do metrô há um homem do DOPS, todo cuidado é pouco e a desconfiança obsessiva de Tito a marcar pontos para poder encontrar seus amigos brasileiros condenados ao exílio. Não seria o Arco do Triunfo um monumento ao pau-de-arara? A terapia parisiense não conseguia colar os pedaços de sua interioridade quebrada, como prenunciara o capitão Albernaz. A Torre Eiffel erguia-se como um gigantesco eletrodo. Acuado pelas sombras que se acumulavam em seu cérebro, Tito interrompe, sem explicações, o tratamento. Sente-se angustiado, oprimido, perseguido. Só a voz telúrica de Milton Nascimento, a poesia irreverente de Chico Buarque e as longas horas abraçadas ao violão que ele aprendera a dedilhar aliviam suas saudades do Brasil.

–  Veja, estou agonizando. Há agonias que servem para alguma coisa, como a de Cristo. A minha não servirá para nada.

O padre Charles Antoine era muito amigo de Tito. Ouviu-o angustiado. Antigo capelão do Centro Residencial da Cidade Universitária de São Paulo, viu-se obrigado a deixar o Brasil quando a polícia ocupou os alojamentos estudantis, em 1969. Credenciado pela imprensa francesa, acompanharia todo o nosso processo.

Em junho de 1973, Tito acerta com seus superiores transferir-se para Lyon, em busca de um ambiente mais tranqüilo para viver e estudar. Construído por Le Corbusier, o convento de Eveux abre suas portas a ele; novos amigos o cercam: os padres dominicanos Belaud, prior da comunidade, Roland Ducret, Xavier Plassat, e o Dr. Jean-Claude Rolland, psiquiatra do hospital Edouard Herriot, de Lyon.

Em meados de setembro, um acontecimento político muito distante repercute na cabeça, na alma, nos sentimentos e no inconsciente de Frei Tito, fragmentando suas frágeis esperanças, mutilando suas ideias, apagando seus horizonte: a queda de Salvador Allende, no Chile. Enquanto o general Pinochet entra para a galeria dos ditadores latino-americanos, Tito abandona suas atividades normais e torna-se ausente, impenetrável, sufocado por seus fantasmas interiores. O silêncio de sua quietude mística, povoada pela presença inefável do Pai, rompe-se por efeito de um pavoroso delírio: ele ouve continuamente a voz rouca e autoritária do delegado Fleury, hóspede intruso do cérebro, do medo e dos porões da consciência de Frei Tito. Quer que ele confesse e diga as coisas que sabe e invente o que puder e dê vivas aos generais brasileiros e delate todos os seus amigos e acuse os dominicanos, a Igreja, o Papa, e assine depoimentos falsos. Tito resiste, não fala, suporta estoicamente todos os sofrimentos experimentados na Oban, agora introjetados em seu espírito. Fleury ameaça torturar cada um dos membros de sua família: o velho pai, a mãe, as irmãs, os irmãos. Tito prefere morrer do que ceder. Ainda que sua família padeça, há nele uma força descomunal que o impede de trair seus ideais. O chefe do Esquadrão da Morte cumpre a promessa: em seu estreito quarto no convento de L’Arbresle — que visitei no outono de 1980 —, Frei Tito estremece aos gritos do pai espancado no DOPS, geme aos berros da mãe dependurada no pau-de-arara, arrepia-se de pavor aos espasmos de seus irmãos eletrocutados, contorce-se com calafrios ao ver as irmãs despidas pelos homens do Esquadrão. Todavia, a dor, o pânico, a subjetividade como palco de intenso conflito entre o Absoluto  e o absurdo não quebram a sua fidelidade. Ele tudo suporta como quem mastiga o fruto amargo coberto de espinhos.

Vinte frades integravam a comunidade de Lyon. Percebem, certo dia, a ausência de Tito no almoço. Padre Belaud vai ao seu quarto: –  Você não vem comer conosco? –  Você notou que eu não estava? — retrucou com satisfação o religioso brasileiro. –  Claro! – Então você se interessa por mim? –  Você duvida disso? — indagou o prior. Uma sombra cobriu a luz que se abrira no rosto de Tito: –  Sim duvido. Não estou seguro disso.

Malgrado todos os esforços, os médicos reconheceram que o tratamento não apresenta melhoras. Uma noite, após o jantar, os frades caminhavam pelo jardim do convento, quando o céu se abriu à chuva que os obrigou todos a retornarem ao claustro. Só Tito prossegue a caminhada, indiferente à água que lhe encharca o hábito. Xavier Plassat, um de seus melhores amigos, convida-o a entrar: –  Não posso — responde Tito. –  Por quê? –  Ele me proíbe… –  ?! … Quem te proíbe, Tito? –  O Fleury, ele não quer que eu entre. –  Mas ele não está aqui, Tito; está no Brasil. –  Mentira. Ele está lá dentro do convento. Se eu entrar ele me espanca.

Tito ficou um dia e meio sentado sob uma árvore. Xavier tentava compreendê-lo e, de alguma forma, evitar que ele sofresse sozinho. Sentou-se ao lado dele durante seis horas, embora nada entendesse do que ele falava em português. Apenas, percebia a angústia profunda, dilacerante, opressiva. Finalmente, Tito falou-lhe em francês, entre choros e gemidos: –  Tenho que obedecer a ordem dele. –  Dele quem, meu irmão? –  Do Fleury. – Mas ele não está aqui, está no Brasil. –  Não, ele está aqui perto — insistiu o dominicano brasileiro. –  Onde, Tito? –  Em Saint Paul la Palue.

Saint Paul la Palue é uma pequena cidade a cinco quilômetros de Lyon que, na mente assobrada de Tito, ganhara outra ressonância. Fleury viria buscar Tito no dia seguinte se ele não fosse se entregar. Se resistisse, toda a sua família seria torturada. Impassível durante horas, sua firmeza eclodiu em gritos sob as árvores de L’Arbresle: –  Por favor, ele nunca fez nada, é inocente! –  Pelo amor de Deus, não faça isso!

Apesar dos esforços de Xavier, Tito recusava-se a entrar no convento. Confidenciou-lhe a ordem que recebera de Fleury: – “Você é indigno de entrar no convento dos dominicanos, de se sentar com eles à mesa, de comer com eles. Eu te proíbo de entrar!” Procurando seguir a lógica da loucura, Xavier passou a dar ordens a Tito: –  Está bem, você pode ficar aqui, mas deve se abrigar.

Encostou a caminhonete junto à árvore e conseguiu que ele entrasse e tomasse a sopa com os comprimidos para dormir. Enquanto Tito dormia, Xavier entrou no convento. Quatro horas depois, voltou para encontrá-lo de novo sob a árvore, semi-adormecido sob efeito dos remédios, mas fiel às ordens do policial brasileiro.

Decidem caminhar até Saint Paul la Palue para se certificarem da presença do delegado. Pelas ruas, indagam dos moradores se ali residia alguém com o nome de Fleury, informaram-se nos bares, consultam a lista dos hotéis. Não, em Saint Paul la Palue não havia Fleury algum. Sérgio Paranhos Fleury encontrava-se hospedado na alma de Frei Tito de Alencar Lima. Na mesma noite, Tito é internado no hospital Edouard Herriot, no pavilhão N.

A primeira manhã ele passa de pé na enfermaria, o rosto colado à parede, os braços abertos em cruz, sem se mover. A enfermeira pergunta por que se encontra assim e ele responde que não pode deixar a parede porque espera ser fuzilado. Nos dias seguintes, não se alimenta, mostra-se tomado por esmagador sentimento de culpa: sobre sua alma recai o peso da responsabilidade pelo fracasso da luta armada no Brasil, pelo golpe militar no Chile, pela ascensão da direita na América Latina. Frei Tito busca ansioso uma companheira com quem já se familiarizara e que, despida de sua máscara, seria capaz de aliviá-lo, absorvendo-o na paz definitiva: a morte. O Dr. Roland e sua equipe o acompanham com amizade e redobrada atenção profissional. Graças ao repouso e à psicoterapia, o tratamento quimioterápico é interrompido e o delírio cessa. Permanece, contudo, a angústia. A tristeza encerra-o em completo silêncio.

Após três semanas, Tito retorna ao convento. Não acalenta projetos de futuro, evita contatos, arma-se de defesas, fala muito pouco. Teria preferido continuar no hospital, onde se sentia mais seguro. O médico o revê duas vezes por semana e durante o inverno ele retorna periodicamente ao hospital.

No Natal de 1973, sua irmã, Nildes, deixa Fortaleza para visitá-lo. Tito sempre fora muito apegado à família e as saudades reforçavam seu sofrimento. Todos esperavam que a chegada da irmã o aliviasse da angústia abissal. No entanto, durante as três semanas que ela passou em L’Arbresle, hospedada no convento, Tito parecia ignorá-la. Esforçava-se por disfarçar seu desequilíbrio e aparentar segurança, tentando recompor a imagem que outrora projetara à irmã. Nildes procurou abordá-lo, mas ele recuou: –  Não fale comigo de dia, venha ao meu quarto à noite. –  Mas… por quê? –  Estamos sendo vigiados pelo Fleury. De madrugada, ela bate à porta do irmão. Entre, iniciam a conversa, mas Tito está tenso, assustado: –  O que foi, mano? –  É melhor você voltar a seu quarto. –  O que houve? –  Volte logo, o Fleury pode chegar e encontrar-nos aqui.

Aos poucos, Nildes conseguiu que o irmão se aproximasse um pouco mais dela. Decidem ir juntos ao Dr. Roland, com quem conversam abertamente sobre o caso. Ao despedir-se de Tito, no momento de iniciar viagem de retorno ao Brasil, Nildes pressentiu que era a última vez que via seu irmão vivo. –  Tito já está morto. O psiquiatra acha que ele se recomporá. Eu tenho minhas dúvidas.

Ao desembarcar em Fortaleza, ela não escondeu da família sua impressão. Recordou que, com dificuldade conversara muitas coisas com o irmão, que nunca falava de si mesmo, bloqueio rompido apenas uma vez, quando ele desabafou: –  Eu não aguento mais, preciso voltar. Morro de saudades, me sinto só. Quero minhas raízes, quero meu povo, é por ele que eu lutei.

Nildes relembrou seus passeios com Tito pelas cercanias de L’Arbresle: –  Andávamos pelos bosques quando vi, de relance, o cemitério dos dominicanos. Tive a certeza de sua morte. De súbito, imaginei seu túmulo.

No dia em que abriu seu coração, ele disse ainda à irmã que lhe servira de babá na infância: –  Sou uma pessoa inutilizada, mas tenho que vencer isso. Meu problema não é mental, é de superação. Preciso encontrar uma força. Pediu a ela que lesse em voz alta o capítulo da ressurreição de Lázaro, no evangelho de São João. Queria meditar sobre o sentido da outra vida. Após a leitura, ela ponderou: –  Olha, o sentido para mim é que Lázaro, morto, foi ressuscitado para viver aqui.

No decorrer do primeiro semestre de 1974, os dominicanos de L’Arbresle esforçaram-se para que Tito reassuma seu lugar na comunidade, participe das atividades normais, sinta-se integrado. Não obstante, ele deseja ser tratado como o menor de todos e pede que lhe deem as mais difíceis e ingratas tarefas. No que faz, procura um meio de se autopunir, pois a voz de Fleury ecoa em sua cabeça convencendo-o de que é culpado, merece ser rejeitado, não serve senão para humilhar-se perante os outros. A angustia o consome.

Na primavera, após um dia de exaustivas tarefas, ingere um tubo de Valium. Volta ao hospital. A psicóloga que o acompanha não sabe como fazê-lo comer ou falar. Xavier Plassat visita-o, quando o capelão do hospital entra no quarto. –  Você quer rezar, Tito? — pergunta o dominicano francês. –  Quero muito. O capelão estende-lhe o livro e ele escolhe um salmo de lamentação e de desespero que termina com uma palavra de esperança. –  E você Tito, o que espera? — indaga Xavier. –  Sim, eu espero viver, mas só depois da minha morte.

Ao receber alta, ele retorna ao convento como se estivesse curado. Dialoga com as pessoas, interessa-se pelos acontecimentos, entretém prolongados debates teóricos, especialmente com o padre Jolif, a quem tanto estima. Tito está diferente, a vida corre em seu sangue, os fantasmas adormecem em seu cérebro, ele já não se fecha em longos períodos de mutismo, aceita a presença do médico, ingere normalmente os alimentos. Essa fase, propícia à orientação do Dr. Roland, o impele a conquistar sua autonomia, ocupar-se utilmente, ganhar o seu próprio sustento, como os demais frades.

Padre Belaud, o superior do convento, compreende que Tito queira viver independente, recuperar a confiança em si mesmo, mas não vê razão para que ele queira também desligar-se da Ordem, alegando que se constitui um peso para a comunidade, na qual se sente suportado, mas não amado. No entanto, não é hora de exigir de Tito a dimensão proporcional das coisas. O importante é que ele se assuma e evite regressar ao hospital, dedicando-se a atividades que lhe sirvam de laborterapia.

O fim da primavera revigora os campos do Sul da França; a natureza, luminosa, floresce exuberante. Daniel Beghin convida Frei Tito e Xavier Plassat para trabalharem na colheita de cerejas do pequeno pomar de um militante sindical, próximo a Eveux. Tito empenha-se no ofício, colhe as frutas saboreando-as, expõe o corpo ao sol do verão que se aproxima, a pele suada, o sorriso derramando da alma, as noites alegres em torno da mesa de refeições. Antes de encerrarem o trabalho, Daniel acertou com Tito novo passeio para dali a alguns dias.

Na data combinada, partiram para as montanhas, Daniel com sua barraca, Tito com o violão ao ombro. À beira de um lago, o tempo flui à música suave das cordas do instrumento de Tito que cantarola melodias brasileiras, curte a nostalgia impregnada em sua sensibilidade. Tito sorri, renasce nos rios que inundavam sua infância. Junto à água, divertem-se em pescar as moedas que correm do bolso da camisa ao se agacharem para lavar as mãos. Contudo, Daniel percebe que Tito não olha as flores, vira os olhos como se fugisse de uma maldição. Não, não eram floridos os delírios de Frei Tito. Em francês, o perfume das flores o asfixia como um gás letal. Fleury, fleurir.

Na volta, Tito parece embriagado de liberdade. Agradece a Daniel ofertando-lhe o disco Construção, de Chico Buarque, e um outro de emboladas da Bahia. Oito dias nas montanhas fizeram dele um homem saudável e bronzeado. Retoma as leituras, interessa-se de novo pelos jornais, deleita-se com a música.

Não era fácil encontrar um emprego estável para alguém na situação de Tito. Às vezes a disposição naufraga em prolongada ausência da realidade, como que a beira de nova depressão. Trabalha alguns dias como entregador na adega da cooperativa de St. Bel, mas sem êxito, pois logo é despedido. Não tem sorte também como explorador florestal do Haut Beajolais. Cada fracasso o deixa abatido, desligado do real, encerrado em seu próprio círculo hermético. Tito já não se sente como alguém que é. O que ele é não o afirma, antes o nega em seus direitos mais elementares: banido, exilado, desempregado. Seus laços se cortaram. Está distante, muito distante, de seu Ceará, de seus amigos, de sua pátria e de sua luta. Dentro dele navegam o terror, a voz ameaçadora do chefe do Esquadrão da Morte, o silêncio angustiante, a interrogação permanente, sem resposta. Em julho, o Dr. Roland o examina e marca nova consulta para setembro.

A última estação da via-sacra de Frei Tito situa-se em Villefranche-sur-Saône. Através de uma agência de empregos, ele consegue ser admitido como horticultor. Aluga um pequeno quarto numa pensão para imigrantes, o Foyer Sonacotra, cujas despesas ele paga com seu próprio salário. Instala-se em seu quarto com alguns utensílios de cozinha e poucas provisões, mostra-se feliz em sua independência. Porém, ao fim de uma semana repleta de visitas dos frades de Eveux, o patrão o percebe indolente, ausente, povoado por fantasma e pretende afastá-lo do emprego. O horticultor reclama com Xavier: –  Assim não dá. Ele fica lá, sentado no chão, olhando o céu. Num momento está rindo, noutro está chorando. Assim não dá.

São noites de silêncio. Vozes que clamam num espaço infinito. Um silêncio do homem e um silêncio de Deus.

Despedido, Tito permanece no mesmo quarto e logo consegue trabalho no entreposto de Villefranche. Nessa primeira semana de agosto de 1974, ele recebe a visita de Roland Ducret e, por duas vezes, de Michel Saillard, que está de viagem para o Brasil. A Michel, Tito confidencia: –  Já não creio em nada, nem Cristo, nem Marx, nem Freud.

As três grandes vertentes da cultura contemporânea atravessam, como línguas de afiadas espadas, o coração atormentado de Frei Tito. Jesus foi sempre a razão fundamental de sua vida e de sua luta; mergulhado no caos interior, ele prova o sabor amargo do cálice e, como o jovem carpinteiro de Nazaré, sente-se abandonado pelo Pai. Marx o introduzira na racionalidade política, na sucessão produtiva do processo histórico, fornecendo-lhe bases teóricas à sua presença social. Agora, porém, Marx nada tinha a dizer à sua subjetividade atribulada, alienada, a existência cruelmente amputada de sua essência. Freud é insuficiente para dissecar seu inconsciente torturado, introjetado de generais brasileiros, de oficiais da Oban, de policiais do DOPS, da onipresença do delegado Fleury. Todos os recursos da ciência freudiana dissolvem-se em meio a seu desespero interior.

Em luzes as trevas derrama o sangue de minha existência. Quem me dará como é o existir experiência do visível ou do invisível?

Antes de partir para as férias de verão, Xavier vai visitá-lo. Tito está triste, fala pouco, mas parece lúcido: –  Sabe, Xavier, a loucura está me dominando. O amigo francês sabe que é verdade. Mas, dessa vez, a verdade aparece materializada, concreta, iminente: sobre o guarda-roupa há uma corda. Xavier tenta levá-la, mas Tito alega que ela pertence ao patrão.

Na segunda semana de agosto, Roland Ducret vai ao pequeno quarto de Tito na zona rural: bate, bate, ninguém responde. Um estranho silêncio paira sob o céu azul do verão francês, envolvendo folhas, vento, flores e pássaros. Nada se move. Balançando entre o céu e a terra, sob a copa de um álamo, o corpo de Frei Tito é descoberto no sábado, 10 de agosto de 1974. Do outro lado da vida, ele encontra a unidade perdida.

Dois meses antes, Tito anotara num cartão que marcava um de seus livros: é melhor morrer do que perder a vida. Seu mergulho na morte foi uma deliberada atitude de quem buscou desesperadamente a vida em plenitude, lá onde ela se situa além de nossos limites físicos, biológicos e históricos. Suas exéquias fora solenemente celebradas na França e no Brasil.

Na fria e luminosa manhã de domingo 10 de novembro de 1980, Osvaldo Rezende e eu depositamos flores sobre o repouso de Frei Tito, no cemitério dominicano de Sainte Marie de la Tourette, sem tumbas e túmulos. Simples covas de terra com pequenas cruzes de madeira, entre os bosques de L’Arbresle. Na cruz que coube a Tito há esta inscrição: Frei da Província do Brasil. Encarcerado, torturado, banido, atormentado… até a morte, por ter proclamado o Evangelho, lutando pela libertação de seus irmãos. Tito descansa nesta terra estrangeira. “Digo-vos que, se os discípulos se calarem, as próprias pedras clamarão” (Lucas 19,40).

Entre os papéis deixados por Tito, algumas anotações refletem suas últimas concepções políticas. Avaliam a luta travada no Brasil à luz das derrotas sofridas e da experiência acumulada. São prova evidente de que Frei Tito nada tinha dessa loucura que significa demissão frente às exigências do real. Ele levou a fidelidade ao extremo. Jamais cedeu. Por isso, revestia-se de autoridade suficiente para nos abrir novas esperanças:

A violência revolucionária é necessariamente a violência de uma classe e não de uma vanguarda. A vanguarda destina-se a orientar politicamente essa violência. No Brasil, foi a vanguarda que decretou a violência revolucionária, sem orientar politicamente a classe operária. E o que aconteceu? A guerra tornou-se uma guerra de vanguardas confusas e desorientadas. Não foi a guerra do povo, mas a guerra pelo povo. Nesse sentido teve um papel eminentemente ético(a guerra é justa). Mas não teve um papel político (a guerra é correta).

Em outro papel, uma proposta:

O que é principal hoje? Construir uma frente democrática; dar às lutas de massas o caráter principal e primordial desta etapa. Finalidade: unir o povo e os patriotas em geral; objetivo das lutas de massas — criar uma consciência política e uma consciência de classe, dando destaque à construção, a longo prazo, de um partido dos trabalhadores.

De modo exemplar, Frei Tito encarnou todos os horrores do regime militar brasileiro. Este é, para sempre, um cadáver insepulto. Seu testemunho sobreviverá à noite que nos abate, aos tempos que nos obrigam a sonhar, à historiografia oficial que insiste em ignorá-lo. Permanecerá como símbolo das atrocidades infindáveis do poder ilimitado, prepotente, arbitrário. Ficará, sobretudo, como exemplo a todos que resistem à opressão, lutam por justiça e liberdade, aprendendo, na difícil escola da esperança, que é preferível “morrer do que perder a vida”.

Nele a tortura não foi apenas um método para se obterem confissões ou informações, como é hábito nos cárceres administrados por homens formados pelos serviços de inteligência norte-americanos. Nem consistiu uma espécie de vingança, de castigo que se aplica ao marginal derrotado nas disputas que o crime estabelece entre ele e a polícia. Tito foi sangrado na carne até que a dor e o pânico atingissem o âmago de sua alma. Como fiéis guardiães de um sistema iníquo, delegados e militares esvaziaram a humanidade do jovem dominicano. Destruíram-lhe o universo psíquico, roubaram-lhe a paz, inocularam em sua subjetividade o veneno do medo e da angústia, profanaram seus símbolos religiosos, fizeram-no órfão da própria loucura. Viraram-no pelo avesso. Como uma fruta madura, ele foi sugado até que restasse apenas o bagaço triturado. Deixaram-no sobreviver para que experimentasse o horror de si mesmo. Dentro dele alojaram-se torturadores cujas vozes infernais ecoavam pela boca da legião de fantasmas. Sua consciência derreteu-se sob a pressão do delírio que, emergindo dos corredores profundos do inconsciente, reboava terríveis ameaças. Sua interioridade foi devassada como o lar sem portas e janelas exposto à ventania que traz a tempestade, a neblina e, por fim, a noite implacável.

Em busca de si mesmo, Frei Tito peregrinou pelo exílio. Encontrava-se banido também de seu próprio ser. Procurou-se em Santiago do Chile, Roma, Paris, Lyon. O espelho mágico distorcia a sua face límpida, terna, suave, exibindo-lhe os afiados dentes da expressão satânica de seus verdugos. A espada do poder seccionara a personalidade de Frei Tito. Havia uma lâmina de fogo eletrificada, estendia-se por dentro dele, impedindo-o de encontrar-se do outro lado. Ele era outro. Ele era muitos, na complexa dessemelhança do desamor, a da solidão, da perda irreparável de si mesmo. Carregava no coração o próprio inferno, no qual descera antes de morrer.

A morte foi seu último ato de coragem e de protesto. Sua extrema chance de ressuscitar na plenitude da semelhança divina que, originalmente, lhe fora conferida pelo Pai. Ao morrer, Tito matou seus algozes e recuperou a paz duradoura que lhe haviam sequestrado. Libertou-se em definitivo  da onipresença que o dividia e atormentava, reencontrando a unidade e renascendo na totalidade do Amor. Lavado no sangue do Cordeiro, Frei Tito de Alencar Lima deixou-nos, entre outros, o seguinte poema:

Quando secar o rio de minha infância

Quando secar o rio de minha infância secará toda dor.
Quando os regatos límpidos de meu ser secarem minh’alma perderá sua força.
Buscarei, então, pastagens distantes lá onde o ódio não tem teto para repousar.
Ali erguerei uma tenda junto aos bosques.
Todas as tardes me deitarei na relva e nos dias silenciosos farei minha oração.
Meu eterno canto de amor: expressão pura de minha mais profunda angústia.
Nos dias primaveris, colherei flores para meu jardim da saudade.
Assim externarei a lembrança de um passado sombrio.

Paris, 12 de outubro de 1972.

Fonte:

https://freititovive.wordpress.com/

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