Frei Betto – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com Wed, 24 Apr 2024 14:43:00 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.4 https://i0.wp.com/observatoriodaevangelizacao.com/wp-content/uploads/2024/04/cropped-logo.png?fit=32%2C32&ssl=1 Frei Betto – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com 32 32 232225030 Diálogo intergeracional 1: Cabelos Brancos, por Frei Betto https://observatoriodaevangelizacao.com/dialogo-intergeracional-1-cabelos-brancos-por-frei-betto/ Wed, 24 Apr 2024 13:09:10 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.com/?p=49739 [Leia mais...]]]> Participei em Belo Horizonte, no início de abril, do 12º encontro nacional do Movimento Fé e Política. Quase duas mil pessoas. Ao contrário dos encontros anteriores à pandemia, poucos jovens. A maioria de cabelos brancos ou tingidos. Minha geração envelhece. Chego este ano aos 80. Nossas ideias, propostas e utopias, também envelhecem? (…) Precisamos fazer autocrítica, rever nossas ideias, ter a coragem de abrir espaços às novas gerações e reinventar o futuro. Nossos cabelos brancos denunciam o inverno que nos acomete. É hora de uma nova e florida primavera!

Confira o artigo de Frei Betto na íntegra:

CABELOS BRANCOS

Participei em Belo Horizonte, no início de abril, do 12º encontro nacional do Movimento Fé e Política. Quase duas mil pessoas. Ao contrário dos encontros anteriores à pandemia, poucos jovens. A maioria de cabelos brancos ou tingidos.

Minha geração envelhece. Chego este ano aos 80. Nossas ideias, propostas e utopias, também envelhecem?

É muito preocupante constatar que as forças progressistas não logram renovar seus quadros. Para vice de Boulos, na disputa pela prefeitura de São Paulo, em outubro próximo, o PT precisou importar uma mulher filiada a outro partido: Marta Suplicy, que fará 80 anos em março de 2025. No Rio, o PT parece não ter quem indicar para possível vice na chapa do prefeito Eduardo Paes, candidato à reeleição. Tende a importar Anielle Franco, do PSOL.

Tenho proferido conferências pelo Brasil afora e assessorado movimentos populares. Os cabelos brancos predominam na plateia. As poucas manifestações públicas convocadas pela esquerda reúnem um número inexpressivo de pessoas e, em geral, a turma dos cabelos brancos.

Nós, da esquerda, estamos acuados. Como diz a canção de Belchior, “minha dor é perceber / que apesar de termos feito / tudo, tudo, tudo, tudo que fizemos / ainda somos os mesmos e vivemos (…) como os nossos pais”. “Nossos ídolos ainda são os mesmos”. E não vemos que “o novo sempre vem”.

A queda do Muro de Berlim abalou as nossas esperanças em um mundo onde todos teriam a sua existência dignamente assegurada. E o capitalismo, gato de sete fôlegos, inovou-se pelos avanços da ciência e da tecnologia e, sobretudo, do neoliberalismo.

Primeiro, a privatização do patrimônio público; em seguida, das instituições sociais, reduzidas a duas por Margaret Tchatcher: o Estado e a família. E, por fim, o cidadão foi despido de seu manto aristotélico e condenado a ser mero consumista, inclusive de si mesmo ao passar horas a se mirar no espelho narcísico das redes digitais.

Há uma progressiva despolitização da sociedade.

A direita é como uma maré que sobe e ameaça afogar o que nos resta de democracia liberal. Basta dizer que um dos três programas de maior audiência da TV Globo e, portanto, de faturamento, é o BBB, que bem espelha os tempos em que vivemos: ali são explícitas as regras do sistema capitalista. O único objetivo é competir. Todos sabem que, ao final, apenas uma pessoa haverá de amealhar o pote de ouro. E a missão dos concorrentes é cada um fazer tudo para que seus pares sejam eliminados. É o que milhões de adolescentes aprendem ao perder horas assistindo àquele simulacro de “O anjo exterminador”, de Buñuel.

Na esquerda “ainda somos os mesmos”. Não semeamos a safra de novos militantes com medo de que eles se destacassem e ocupassem as nossas instâncias de poder. Abandonamos as favelas, as zonas rurais de pobreza, os movimentos de bairros. E não aprendemos a atuar nas trincheiras digitais, monopolizadas pela direita como armas virtuais da ascensão neofascista.

Não sabemos como reagir diante do fundamentalismo religioso que mobiliza multidões, abastece urnas, elege inclusive bandidos notórios. Fundamentalismo que apaga as desigualdades sociais e as contradições de classe e ressalta que tudo se reduz à disputa entre Deus e o diabo. Todo sofrimento decorre do pecado. Eliminado o pecado, irrompe a prosperidade, que empodera e favorece o domínio: a confessionalização das instituições públicas; a deslaicização do Estado; a neocristandade que condena à fogueira da difamação e do cancelamento todos que não abraçam “a moral e os bons costumes” dos que clamam contra o aborto e homenageiam torturadores e milicianos assassinos.

Precisamos fazer autocrítica, rever nossas ideias, ter a coragem de abrir espaços às novas gerações e reinventar o futuro. Nossos cabelos brancos denunciam o inverno que nos acomete. É hora de uma nova e florida primavera!

Frei Betto é escritor, autor de “Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar brasileira” (Rocco), entre outros livros. Livraria virtual: freibetto.org
Assine e receba todos os artigos do autor: mhgpal@gmail.com

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Crônica de um genocídio anunciado, com a palavra Frei Betto https://observatoriodaevangelizacao.com/cronica-de-um-genocidio-anunciado-com-a-palavra-frei-betto/ Wed, 20 Jan 2021 20:35:37 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=37662 [Leia mais...]]]>
Charge do cartunista Duke – publicada no site da domtotal em 29/04/2020

Tudo indica que o Brasil será o último país a ter a sua população imunizada contra a Covid-19 e, em breve, haverá de superar os EUA em número de mortos, devido ao descaso do governo Bolsonaro. Nesta terceira semana de janeiro, já temos mais de 212 mil vítimas fatais. A cada dia, mais de mil pessoas morrem contaminadas pelo coronavírus.

Bolsonaro sofre de tanatomania, tendência patológica de satisfação com a morte alheia. Agora a situação se agrava com a falta de oxigênio e leitos nos hospitais. Terrível paradoxo: falta oxigênio aos pacientes dos estados do Amazonas e do Pará, ambos na Amazônia, tida como pulmão do planeta. Muitos morrem por asfixia. E ironia do destino: Maduro, execrado pelo governo, reabastece o Amazonas de oxigênio.

Charge do cartunista Aroeira – publicada no site 247, em 14/06/2020

Todo esse quadro necrófilo resulta da inoperância de um presidente e de um governo genocida. O Brasil tem Ministério da Saúde, mas não tem ministro. Desde a posse de Bolsonaro, em janeiro de 2019, os dois médicos que ocuparam o cargo não permaneceram por não concordarem com a indiferença do presidente diante da pandemia e por ele recomendar recursos preventivos sem comprovação científica, como a cloroquina. O atual ministro, general Pazuello, não é médico, e pouco depois de ser empossado admitiu que, até então, desconhecia o SUS, Sistema Único de Saúde, que atende gratuitamente a população e é considerado exemplar. Agora, porém, o SUS está de mãos atadas por falta de vacinas e profissionais de saúde.

No início da pandemia, enquanto o mundo se alarmava, Bolsonaro declarava que se tratava de uma “gripezinha”. Recusou-se a coordenar a mobilização dos brasileiros para evitar a disseminação da doença. E incentivou, com seu exemplo, as aglomerações, criticou o uso de máscara (chegou a proibir a entrada no palácio de quem estivesse de máscara) e desaconselhou medidas preventivas, como o isolamento, a lavagem cuidadosa das mãos e sua higienização frequente com álcool em gel . Foi preciso a Suprema Corte facultar a governadores e prefeitos o direito de desempenhar essa coordenação.

Como Bolsonaro saboreia o macabro cheiro da morte, jamais se preocupou com a vacinação do povo brasileiro. Deu a entender que a Covid-19 mata preferencialmente os pobres (o que economizaria recursos das políticas sociais), os portadores de comorbidades e os idosos (o que reduziria o déficit do SUS e os gastos com a Previdência Social). Contudo, devido à pressão popular, o governo se viu obrigado a correr atrás das vacinas.

Charge do cartunista Nando Motta – publicado no site 247, em 21/08/2020

As vacinas até agora disponíveis são produzidas em dois países, Índia e China, há meses destratados pela família Bolsonaro. O chanceler Ernesto Araújo, adepto do terraplanismo, declarou que a China havia produzido intencionalmente o “comunavírus”. Aliado aos países ricos, o Brasil se recusou a apoiar a proposta da Índia na OMC para quebrar a patente das vacinas. Em outubro de 2020, Bolsonaro assegurou: “Alerto que não compraremos vacina da China”. Seu filho, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, em novembro, acusou o governo chinês de utilizar a tecnologia 5G para espionar.

As poucas vacinas que chegaram ao nosso país, menos de 10 milhões de doses para a população de 212 milhões, vieram da China e foram compradas pelo Instituto Butantan, renomada instituição científica de São Paulo. A Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), do Rio, tenta comprar da China o IFA (insumo farmacêutico ativo) sem que haja, até agora, confirmação de possibilidade de entrega.

É preciso que todos saibam do genocídio promovido pelo governo Bolsonaro. Mais de 50 pedidos de impeachment do presidente estão parados nas gavetas do Congresso Nacional. Vivemos, hoje, num país que não tem governo, não tem política de saúde, não tem suficientes vacinas, cilindros de oxigênio e leitos nos hospitais, não tem leis favoráveis ao lockdown e contrárias às aglomerações. Precisamos todos nos mobilizar para salvar o Brasil e os brasileiros.

Charge do cartunista Jota A – publicada no Portal O Dia, em 04/09/2020.

Sobre o autor:

Frei Betto

Frei Betto é escritor, autor de “O diabo na corte – leitura crítica do Brasil atual” (Cortez), entre outros livros editados no Brasil e no exterior. Você poderá adquiri-los com desconto na Livraria Virtual – www.freibetto.org  Ali os encontrará  a preços mais baratose os receberá em casa pelo correio.  Twitter:@freibetto.

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“Não é pandemia, mas sindemia”, artigo de Frei Betto https://observatoriodaevangelizacao.com/nao-e-pandemia-mas-sindemia-artigo-de-frei-betto/ Mon, 11 Jan 2021 14:01:18 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=37509 [Leia mais...]]]> Evangelizar no complexo contexto em que vivemos exige o cultivo da consciência crítica-autocrítica e um esmerado cultivo do compromisso ético com a defesa da dignidade da vida, deixando-se impulsionar pelos valores e princípios estruturantes do Evangelho de Jesus.

Confira a provocante reflexão de Frei Betto:

Não é pandemia, mas sindemia

É possível erradicar a pandemia de Covid-19 e preservar o capitalismo? A resposta à pergunta foi dada em setembro de 2019, na prestigiosa revista científica “The Lancet”, por Richard Horton, professor da Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres e da Universidade de Oslo. Em artigo intitulado “Não é uma pandemia”, longe de se posicionar ao lado dos negacionistas, Horton afirma que ocorre mais do que uma pandemia, há uma sindemia, conceito forjado em 1990 pelo epidemiologista Merrill Singer.        

Sindemia significa que a doença infecciosa não pode ser encarada isoladamente. Ela se entrelaça com fatores sociais, políticos e econômicos, como desigualdade social, distribuição de riqueza, acesso a bens essenciais, como moradia e saneamento. O problema, portanto, não é apenas a Covid-19. É o capitalismo sindêmico que, em tudo, prioriza a perversa lógica da acumulação privada da riqueza.

Temos visto isso no Brasil, tanto nas propostas que com frequência aparecem na grande mídia, de privatização do SUS disfarçada de parceria público-privada, quanto na corrida empreendida pela iniciativa privada para importar vacinas que estariam ao alcance somente de quem possui recursos para frequentar hospitais e clínicas particulares. Os ricos podem pagar pela vacina e, assim, furar a fila dos que merecem prioridade, como profissionais da saúde e idosos. Mas investirão também na imunização de seus motoristas, faxineiras, cozinheiras e cuidadores de piscinas?       

São Paulo, Brasil, registro durante a pandemia. REUTERS/Amanda Perobelli.

É sabido que endemias, como a gripe aviária e a SARS (Síndrome respiratória aguda grave), tiveram origem na criação intensiva de animais em cativeiro e destinados ao consumo humano, e nos processamentos da indústria alimentícia.        

No livro “Grandes granjas, grandes gripes”, Rob Wallace, epidemiologista especialista em agroecologia, descreve como são processados os animais consumidos por humanos e como isso facilita o surgimento de novas modalidades de vírus. O capitalismo transformou a natureza em laboratório, onde são aplicados todos os tipos de procedimentos para forçar o aumento da produção e do monopólio sobre os bens naturais, como é o caso dos transgênicos e das sementes “suicidas”, aquelas que o agricultor não consegue reproduzir e se vê obrigado a adquiri-las das gigantes dos venenos agrícolas, como a Monsanto.       

Santiago Alba Rico, filósofo espanhol, no artigo “Capitalismo pandêmico” ressalta que, hoje em dia, há mais mortes causadas por infecções hospitalares que gripes, apesar de todos os protocolos higiênicos adotados. Se ocorre em hospitais, diz ele, imagina nas granjas! O que esperar de animais submetidos a confinamento, iluminação permanente, coquetéis de antibióticos e rações químicas? Wallace afirma: “Ao tornar a natureza capitalista, o capitalismo passa a ser considerado algo natural”.        

À debilidade de nossas defesas imunológicas frente às novas ondas virais, acresce-se o apartheid produzido pela desigualdade social. Os “laboratórios naturais” de granjas, currais e frigoríficos geram vírus que infectam sobretudo aqueles que, por razões sociais e etárias, possuem menos defesas naturais: os pobres e idosos. Como diz Rico, “os vírus passam de animais maltratados a humanos maltratados, numa sinergia potencialmente apocalíptica”.       

Desde que a OMS declarou o caráter pandêmico da Covi-19, em março de 2020, diferentes países adotaram diferentes maneiras de tentar deter o seu avanço. A China investiu em controle social e tecnológico. A União Europeia adotou medidas sanitárias combinadas com restrições que reduziram a mobilidade e o consumo. EUA e Brasil decidiram priorizar a economia em detrimento de vidas humanas.       

Eis um falso dilema: salvar vidas ou a economia? A pergunta embute a odiosa discriminação de classe social, já que só os privilegiados podem se dar ao luxo de ficar confinados em casa e, ao mesmo tempo, trabalhar via online e consumir graças às entregas em domicílio. A questão encobre a sentença de morte aos mais pobres, já que o desconfinamento será inevitavelmente praticado por quem só sobrevive se sair à rua e utilizar transporte coletivo.        

A lógica capitalista reforça a sindemia ao aplicar a moderna separação entre Estado e religiões à suposta separação entre economia e política (daí a ênfase na autonomia dos bancos centrais). Como se uma esfera pudesse se distanciar minimamente da outra. E outro dualismo, introduzido pelos negacionistas, é ignorar a palavra da ciência. Isso favorece a relativização das medidas restritivas recomendadas pelos cientistas.        

Mais uma vez o capitalismo fala mais alto, já que ignorar a ciência permite não destinar recursos públicos a auxílios emergenciais, hospitais de campanha, importação de insumos sanitários e vacinas etc.       

Somado à descredibilidade da política, esse negacionismo favorece as aglomerações, em especial a indiferença dos jovens frente à ameaça do vírus. Para eles, tudo se explica por alguma teoria conspiratória, como o “comunavírus” denunciado pelo chanceler brasileiro Ernesto Araújo.

(Os grifos são nossos)

Sobre o autor:

Frei Betto

Frei Betto, dominicano e assessor das CEBs, das pastorais sociais e dos movimentos populares, é conferencista e escritor, autor de “Diário de quarentena – 90 dias em fragmentos evocativos” (Rocco), entre muitos outros livros. É autor de 69 livros, editados no Brasil e no exterior. Você poderá adquiri-los com desconto na Livraria Virtual – www.freibetto.org  Aí os encontrará a preços mais baratos e os receberá em casa pelo correio. 

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O AMOR EM JESUS, com a palavra Frei Betto https://observatoriodaevangelizacao.com/o-amor-em-jesus-com-a-palavra-frei-betto/ Wed, 23 Dec 2020 12:20:26 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=37256 [Leia mais...]]]> Jesus não nos pediu que não tenhamos inimigos, e sim que os amemos. O que é amar o inimigo? Lutar para que ele também se torne aberto ao projeto do Reino. Não se trata de libertar somente a classe trabalhadora, mas toda a sociedade, incluindo os opressores.

Jesus e os fariseus


Uma característica interessante do amor de Jesus aparece no episódio do encontro com o homem rico (Marcos 10,17-22). Este indaga o que fazer para ganhar a vida eterna (só os que já têm assegurada esta vida perguntam a Jesus como ganhar a outra…). Jesus respondeu: “Você conhece os mandamentos”, e recitou-os. O homem confirmou que, desde pequeno, cumpria todos. São Marcos sublinha que “Jesus o amou” para, em seguida, acrescentar que ele recomendou ao homem: “Vai, vende os teus bens, distribui aos pobres e depois vem e me segue”. Diz o Evangelho que “o homem foi embora triste e aborrecido porque era muito rico”.

O amor de Jesus não o impediu de ser exigente. Eis o conceito de amor de Jesus: quem ama é verdadeiro com o outro. Amar é fazer bem ao outro, ainda que isso doa muito. Jesus, ao amar, levava as pessoas a encontrarem a verdade, mesmo que isso criasse nelas antipatia por ele, como foi o caso dos fariseus.

É indisfarçável nos evangelhos o lado irônico da personalidade de Jesus. Na parábola do bom samaritano (Lucas 10, 25-37), o doutor da lei lhe perguntou: “O que devo fazer para ganhar a vida eterna?” Jesus devolveu-lhe a questão: “O que está escrito na lei?” Como se dissesse: “Você não é doutor, formado? Por que pergunta isso a mim?” O doutor recitou de cor o texto bíblico: “Amarás o Senhor teu Deus…” Jesus apenas retrucou: “Faça isso e viverá”.

Percebe-se claramente, pelo relato de Lucas, que o doutor ficou sem graça. Serrou o galho e ele mesmo caiu. Por isso, devolveu a pergunta a Jesus: “Mas quem é o meu próximo?” Jesus deu uma resposta factual, qualitativamente muito diferente da resposta conceitual que o doutor da lei havia dado.

Jesus não nos pediu que não tenhamos inimigos, e sim que os amemos. O que é amar o inimigo? Lutar para que ele também se torne aberto ao projeto do Reino. Não se trata de libertar somente a classe trabalhadora, mas toda a sociedade, incluindo os opressores. Libertá-los da vida indigna, dos falsos valores, da condição de exploradores, das concepções monstruosas que trazem na cabeça sobre a divisão social. Porém, acreditamos que o sujeito da libertação são aqueles que têm interesse na conquista de uma nova ordem social. Os pobres são os bem-aventurados. Pois os que já desfrutam de privilégios não querem abrir mão de seu conforto. Querem perpetuar o presente, jamais buscar um futuro melhor para todos.

Muitos imaginam que, sendo Deus, o homem Jesus teria a visão beatífica do Pai, como quem carregasse dentro de si a contemplação direta da face de Deus. Ora, tal ideia é condenada pela Igreja como herética, por negar a união hipostática Deus-homem em Jesus. Não se pode aceitar que ele era Deus por dentro e homem por fora. Era totalmente Deus e totalmente homem, por dentro e por fora. E tinha fé como nós temos. E até passou por crises de fé, como nós passamos, a ponto de se sentir abandonado por Deus.

Sobre o autor:

Frei Betto

Frei Betto é escritor, autor de “Diário de quarentena – 90 dias em fragmentos evocativos” (Rocco), entre outros livros. É autor de 69 livros, editados no Brasil e no exterior. Você poderá adquiri-los com desconto na Livraria Virtual – www.freibetto.org  Ali os encontrará  a preços mais baratose os receberá em casa pelo correio. 

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“Um homem”, com a palavra Frei Betto https://observatoriodaevangelizacao.com/um-homem-com-a-palavra-frei-betto/ Mon, 05 Oct 2020 01:43:56 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=35883 [Leia mais...]]]> Houve um homem que se enchia de inefável gozo ao sentir-se abraçado pelo Sol e vigiado pela Lua, aos quais chamava de Irmão e de Irmã. Seus olhos reluziam perante a vastidão silenciosa das estrelas e o coração transbordava ao aspirar a fragrância das flores. Ao encontrar plantas e frutos, ajoelhava-se reverente como quem se curva junto a uma criança. Falava com a relva, conversava com as árvores, segredava às pedras, deixava-se acariciar pelo vento e parecia aplacar o vigor das chamas quando evocava seu parentesco cósmico com o fogo.

Este homem nunca estudou astrofísica e jamais soube que nas águas dos rios lateja o mesmo oxigênio, expirado pelas estrelas, que flui em nossa corrente sanguínea, bombeando-nos vida. Porém, havia nele uma conatural empatia com toda a Criação. Apaixonado por Deus, sabia-se em comunhão com o Cosmo. Andarilho, o sabor do mel era, ao seu paladar, um dom tão precioso quanto a escuridão da noite para seus olhos e o lamento famélico dos lobos para seus ouvidos. Tudo evocava a maravilha do Criador: o canto das cigarras, a sinuosidade rastejante dos répteis, o rugir dos trovões, o pó das estradas.

Ele nasceu num povoado italiano há cerca de 800 anos. Sonhou ser rico como o pai, cavaleiro como os jovens de sua geração, monge como os que renunciavam ao mundo. Embebido do Evangelho de Jesus, evitou as três possibilidades. Despiu-se da roupa tecida na manufatura de seu pai, pioneiro do capitalismo, e abraçou a vida despojada das primeiras vítimas coletivas do novo modo de produção: os pobres. Como ele mesmo disse, Deus o destinara a ser “louco no mundo”. Loucura que o levava a comer do mesmo prato dos doentes, a preterir armas e cavalos em favor da ternura e da pregação itinerante. Seu mosteiro eram os caminhos e as vilas, os bosques e as montanhas. Companheiro de Clara, tudo nele era fé e festa, expressão indelével do eros, ágape místico. Cantava a dor e o riso e referia-se à morte como irmã.

Seu pai batizou-lhe Francisco, “aquele que vem da França”, em homenagem à metrópole europeia da época. Mas ele preferiu trocar os privilégios pelas efusões do Espírito, que sopra onde quer e como quer. A 4 de outubro, os cristãos comemoram a sua festa, recordando que, em 45 anos de vida, Francisco de Assis deixou-nos um testemunho de liberdade que ainda ressoa como paradigma de futuro.

Ele foi o que não somos e o que, no fundo, gostaríamos de ser.

Frei Betto é escritor, autor de “Um homem chamado Jesus” (Rocco), entre outros livros. Site e livraria virtual: www.freibetto.org

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A pandemia trará mudanças? https://observatoriodaevangelizacao.com/a-pandemia-trara-mudancas/ Mon, 01 Jun 2020 10:57:43 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=34769 [Leia mais...]]]> Ignoro se a humanidade ficará melhor após a quarentena. Não me incluo entre os otimistas, porque conheço o poder do Capitaloceno, essa era na qual a apropriação privada da riqueza fala mais alto que os direitos coletivos…. Como adverte o historiador britânico Neal Ascherson, ‘depois da pandemia o novo mundo não surgirá por um passe de mágica. Haverá que lutar por ele.’ Caso contrário, retrocederemos à anormalidade de antes.”

Confira o pertinente e provocante artigo de Frei Betto: 

A pandemia trará mudanças?

Frei Betto

A pandemia nos obriga a rever muitos conceitos. Aliás, como acontece cada vez que recuamos de nossa rotina habitual, como em retiros espirituais, internação hospitalar ou prisão. Ao deixar a reclusão, retornamos ao trivial cheios de bons propósitos. Duram pouco. Logo somos absorvidos pelo sistema e voltamos a dançar conforme a música.

Ignoro se a humanidade ficará melhor após a quarentena. Não me incluo entre os otimistas, porque conheço o poder do Capitaloceno, essa era na qual a apropriação privada da riqueza fala mais alto que os direitos coletivos.

Ao menos alguns de nossos hábitos pessoais haverão de mudar, como transformar a casa em local de trabalho (para maior lucro das empresas e menos tranquilidade no âmbito familiar) e usar burca com frequência. 

Ficou evidente a gratidão da natureza pelo sumiço dos humanos. Permitiu-a florescer em paz, purificar suas águas, liberar o movimento dos animais, respirar sem a quantidade de gases tóxicos que projetamos na atmosfera. Prova de que ela pode muito bem viver sem a nossa incômoda presença. Nós é que não podemos prescindir dela.

Quem dera que, cessada a quarentena, o consumismo exacerbado seja desacelerado. Mas quando vejo os shoppings lotarem, como por encanto, em cidades que afrouxam medidas preventivas e abrem o comércio, fico em dúvida se isso será possível.

Um dos conceitos que deve ser revisto é o de Segurança Nacional, ainda hoje impregnado de ideologia liberal belicista. No caso do Brasil, inútil falar em risco de interferência externa no país. Há tempos isso acontece. E o pior, com anuência do próprio governo que, em sua sanha privatizante, banca o sujeito que vende o fogão para comprar comida.

Nosso governo é tão submisso à Casa Branca que imita até as loucuras do Trump, como prescrever cloroquina como antídoto à Covid-19. 

Segurança Nacional deveria significar distribuição de riqueza, renda básica a toda a população, aprimoramento do SUS, ampliação da rede de educação (com qualidade) pública e gratuita. Nosso inimigo não é um governo estrangeiro, e nem mesmo o terrorismo. É a desigualdade social, a fome, o desemprego, a escalada da violência. Nosso inimigo é a queimada, o desmatamento, a invasão de terras indígenas, o latifúndio improdutivo.

Só a cegueira do fanatismo leva alguém a enxergar como ameaça à Segurança Nacional o comunismo, enterrado sob os escombros do Muro de Berlim, em 1989. Mas ainda há quem acredita em fantasmas. E ameace abertamente a Segurança Nacional, com apoio explícito do gabinete presidencial, ao promover carreatas e manifestações contra as instituições republicanas e a democracia.

Ameaça à Segurança Nacional é um ministro de Estado, dentro do Palácio do Planalto (e não no balcão de um boteco), xingar ministros da Suprema Corte de “vagabundos” e propor que sejam presos. Ameaça à Segurança Nacional é outro ministro, também em plena reunião ministerial (e não na cerca de um curral), sugerir aproveitar o período da pandemia, quando a mídia se ocupa mais com a questão sanitária, e “passar a boiada”, ou seja, flexibilizar as leis de proteção ambiental, de defesa da floresta amazônica, de punição de desmatadores e invasores de áreas indígenas, e cancelar as multas de quem agride o meio ambiente.

Pode ser que a pandemia nos conduza a um mundo melhor, mais solidário e desigual. Também pode ser que nos leve, como alerta Ignacio Ramonet, à Grande Regressão Mundial ao reduzir os espaços de democracia, destruir ainda mais os ecossistemas, agravar a violação dos direitos humanos, neocolonizar o Sul do mundo, acirrar o racismo, a xenofobia, o preconceito aos migrantes, o repúdio aos refugiados, e ampliar a cibervigilância sobre a sociedade.

Como adverte o historiador britânico Neal Ascherson, “depois da pandemia o novo mundo não surgirá por um passe de mágica. Haverá que lutar por ele.” Caso contrário, retrocederemos à anormalidade de antes. 

Frei Betto é escritor, autor de “O diabo na corte – leitura crítica do Brasil atual” (Cortez), entre muitos outros livros. Para conhecer o site do autor: http://www.freibetto.org/

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“Semana muito santa”, com palavra Frei Betto https://observatoriodaevangelizacao.com/semana-muito-santa/ Sun, 05 Apr 2020 22:10:26 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=34534 [Leia mais...]]]> O papa Francisco cancelou as celebrações litúrgicas presenciais na Semana Santa. Outras Igrejas cristãs fizeram o mesmo, para evitar aglomerações que exponham os fiéis ao risco de se contaminarem com o coronavírus.

Minha tia está desolada. Logo ela que, em Minas, jamais perdeu a procissão do Domingo de Ramos, o lava-pés da Quinta-Feira Santa, a procissão do Senhor morto na Sexta-Feira da Paixão, e a missa de Páscoa no domingo da Ressurreição. Retida em casa, aos 92 anos, lamenta ter que acompanhar toda a liturgia pela TV, e o pior, sem procissões.

Tentei convencê-la (creio que sem sucesso) de que este ano teremos uma Semana Santa muito mais santa. No Domingo de Ramos, quando comemoramos a entrada de Jesus em Jerusalém montado em um burrico, não podemos esquecer que ele está presente nas filas formadas por milhões de pessoas que, em todo o mundo, buscam remédios nas farmácias e atendimento nos postos de saúde.

Jesus também está presente entre enfermeiros e médicos, bombeiros e policiais, que arriscam a vida para salvar pacientes infectados pelo vírus, gesto semelhante ao que Ele teve ao lavar os pés de seus discípulos, rito relembrado pelos católicos na Quinta-feira Santa.

Jesus se encontra nos hospitais superlotados, onde se experimenta a mesma agonia que Ele viveu no Horto das Oliveiras ao se deparar com o risco real de morte.

Jesus, deixado a sós pelos discípulos, e que enfrentou o sofrimento de se sentir abandonado até por Deus, agora se multiplica por bilhões de pessoas isoladas em suas casas e impedidas de encontrar e abraçar seus entes queridos.

Jesus preso e torturado nos calabouços do poder é também aquele que vive no abandono das ruas, sem meios para se isolar, sem acesso ao sistema de saúde, sem condições de se proteger com as medidas essenciais de higiene para escapar da ameaça de morte iminente.

Jesus, entretanto, ressuscita no agricultor que cultiva o que chega às nossas mesas, no caminhoneiro que transporta medicamentos e alimentos, no comerciante que nos assegura bens essenciais.

Jesus se manifesta nos pequenos gestos de solidariedade, como a jovem do apto 404 que, todos os dias, prepara as refeições para a idosa do 302, já que a cozinheira está afastada. Ou como o empresário que fornece diariamente trinta quentinhas às pessoas em situação de rua que circulam por sua vizinhança. Ou como o universitário que se apresentou como voluntário em um hospital público para carregar macas e limpar enfermos.

Temos uma ideia equivocada da presença de Deus entre nós. Em geral, dissociamos Deus de nossa realidade cotidiana. Ele está lá no Céu, invisível aos nossos olhos, e é só alcançável pela fé. Inclusive Seu silêncio diante da pandemia causa indignação em muitos.

Ora, este é um dos temas centrais em A peste, romance de Albert Camus, agora de volta às listas dos mais vendidos. Ali, o silêncio de Deus impele à santidade sem Deus. Camus reflete, em sua narrativa, essa concepção equivocada de um deus que paira acima da humanidade.

Ora, somos todos, homens e mulheres, imagem e semelhança de Deus. Mas carecemos de olhos para reconhecê-Lo no próximo, embora sejamos capaz de identificá-Lo na hóstia consagrada.

“Deus é mais íntimo a nós do que nós a nós mesmos”, disse Santo Agostinho. O próprio Jesus, quando perguntado como haveremos de conhecer Deus após esta vida (Mateus 25, 31-40), respondeu algo surpreendente: não veremos Deus somente do outro lado da vida. Ele já pode e deve ser visto aqui e agora. Basta abrir os olhos e o coração para reconhecê-Lo naquele que tem fome, sede, está doente, desamparado ou oprimido.

Todas as vezes que servimos aos que sofrem é ao próprio Deus que servimos, ainda que não tenhamos fé. Esta é a essência do Cristianismo. Cuidar de um doente vale mais aos olhos de Deus do que todas pomposas celebrações litúrgicas, presididas pelo papa na Basílica de São Pedro, em Roma. Porque, para Deus, o que há de mais sagrado é o ser humano.

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Frei Betto

Frei Betto é religioso dominicano, escritor e assessor das Comunidades eclesiais de base, das pastorais sociais e dos movimentos populares. Ele é autor de “O diabo na corte – leitura crítica do Brasil atual” (Cortez), dentre muitos outros livros.

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A face injusta do Brasil, com a palavra Frei Betto https://observatoriodaevangelizacao.com/a-face-injusta-do-brasil-com-a-palavra-frei-betto/ Thu, 12 Dec 2019 14:02:51 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=33769 [Leia mais...]]]> Ser cristão implica, por fidelidade ao Reino de Deus anunciado-testemunhado por Jesus, um compromisso com a defesa da justiça e da dignidade da vida. Conhecer a face injusta do Brasil ajuda a termos clareza no discernimento das ações evangelizadoras e revela a importância de dar as mãos aos movimentos populares em suas lutas por dignidade cidadã. Confira a reflexão de Frei Betto:

Desde a ditadura militar (1964-1985), nunca houve tantos retrocessos nos direitos humanos no Brasil como agora, sob Bolsonaro. Somos governados por autoridades que insistem na impunidade das forças repressivas, o que representa sinal verde para a eliminação sumária de suspeitos ou mesmo de cidadãos insuspeitos, como os nove jovens assassinados pela PM de São Paulo na favela de Paraisópolis, na madrugada de 1º de dezembro. Apenas no Rio, neste ano de 2019, seis crianças foram mortas por “balas perdidas”.         

Terras demarcadas são invadidas por mineradoras, madeireiras e empresas agropecuárias. Indígenas são assassinados, entre eles o líder Paulo Paulino Guajajara, no Maranhão, a 1º de novembro, por defender a reserva de seu povo da ação de madeireiros ilegais. Os casos de feminicídio se multiplicam; uma mulher é violentada a cada 4 minutos no país.         

O presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, cuja nomeação está sendo contestada pela Justiça, cospe na memoria de Zumbi, herói quilombola, ao declarar que no Brasil não existe racismo, e que “a escravidão foi benéfica para seus descendentes”… No Paraná, o jornalista Aluízio Palmar é processado por denunciar torturas no quartel do 1º Batalhão de Fronteira, em Foz do Iguaçu. O país tem mais de 12 milhões de desempregados e o salário mínimo a vigorar em 2020 foi reduzido duas vezes pelo governo.          

À beira de fazendas e estradas brasileiras, 80 mil famílias se encontram acampadas. O ex-presidente Lula é condenado sem provas. A mídia crítica ao governo é sabotada mediante o cancelamento de anúncios oficiais, e sofrem ameaças as empresas privadas que nela fazem publicidade de seus produtos. Alunos são incentivados a delatar professores que não rezam pela cartilha do Planalto. O mercado de armas e munições é estimulado pelo governo, que jamais condenou as milícias paramilitares que, ao arrepio da lei, disputam territórios com o narcotráfico. 

Além dos direitos humanos, são violados também os direitos da natureza. A floresta amazônica é incendiada criminosamente para abrir espaço ao gado e à soja, enquanto Bolsonaro declara que as queimadas são “um problema cultural”. A Justiça atua com morosidade e leniência na punição dos responsáveis pelas tragédias resultantes do rompimento das barragens de Mariana (MG), em 2015, e Brumadinho (MG), em 2019, que ceifaram 382 vidas. O óleo derramado no litoral brasileiro não é saneado com a urgência e o rigor que a situação exige.         

Segundo Marcelo Neri, da FGV, em dez anos o Brasil tirou 30 milhões de pessoas da pobreza. Porém, entre 2015 e 2017, 6,3 milhões de pessoas voltaram à miséria. Nos últimos três anos, a pobreza aumentou 33%. Segundo o IBGE, 58,4 milhões de pessoas vivem hoje abaixo da linha de pobreza, com renda mensal inferior a R$ 406. A lista de excluídos só aumenta: entre 2016 e 2017 subiu de 25,7% para 26,5 o que significa a exclusão de quase 2 milhões de pessoas. Segundo estes dados, 55 milhões de brasileiros passam por privações, dos quais 40% no Nordeste. Enquanto isso, a renda per capita dos ricos subiu 3%, e a dos pobres desceu 20%. Doenças já erradicadas retornaram e a mortalidade infantil avança sobre as famílias mais pobres.         

Somos uma nação rica, muito rica. Mas sumamente injusta. O PIB brasileiro é de R$ 6,3 trilhões, suficiente para garantir R$ 30 mil per capita/ano para cada um dos 210 milhões de habitantes. Ou R$ 10 mil por mês para cada família de 4 pessoas.         

Direitos humanos  não é “coisa de bandido”  como alardeiam os que jamais pensam nos direitos dos pobres. É um dos mais elevados marcos jurídico e moral de nosso avanço civilizatório. Embora sejam violados sistematicamente por quem se proclama democrata e cristão, são irrevogáveis. Resta, agora, a ONU convocar os países a elaborar e assinar a Declaração Universal dos Direitos da Natureza, nossa “casa comum”, na expressão do papa Francisco.

(Artigo publicado no Jornal O Globo, em 11/12/2019)

Sobre o autor:

Frei Betto

Frei Betto é frade dominicano, escritor e assessor das Comunidades eclesiais de base, CEBs, e dos movimentos populares que defendem a vida e lutam pela dignidade cidadã. É autor de mais de 60 livros e incontáveis artigos nos quais, à luz da fé cristã e da memória da práxis libertadora do Profeta da Galileia, condenado pelo templo de Jerusalém e crucificado pelo Império Romano, Jesus de Nazaré, analisa os acontecimentos das realidade contemporânea. Frei Betto é autor de “Minha avó e seus mistérios” (Rocco), entre muitos outros livros. 

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Reencantar o mundo https://observatoriodaevangelizacao.com/reencantar-o-mundo/ https://observatoriodaevangelizacao.com/reencantar-o-mundo/#comments Fri, 13 Sep 2019 16:19:33 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=31560 [Leia mais...]]]> Illya Prigogine e Isabelle Stengers em “A nova aliança” (Brasília, UNB, 1997) acentuam que a ciência, e a física em particular, desencantaram o mundo. O Universo mítico, outrora alvo de contemplação, se tornou um objeto desvendável. O que antes brilhava aos nossos olhos é, agora, esmiuçado por nossa razão e por nossas mãos (e pés, ao pisar na lua). 

Comemos a maçã do Paraíso. A árvore do conhecimento foi apoderada por nós que, livres das amarras divinas, violamos o Jardim do Éden. Agora supomos saber o que é o bem e o mal, e não raramente confundimos um com o outro.

O pecado original não foi comer o fruto proibido. Proibido era querer possuir a árvore e se julgar dono de seus frutos. O desvio originário consistiu em apropriar-se do que era comum. Apropriar-se da liberdade para si e ignorar os demais. 

Este desencanto, contudo, não esvaziou o mundo de sua aura divina. As religiões e os mitos crescem mundo afora. Afirmam-se como forças políticas. Querem religar o que a ciência desligou. E, muitas vezes, extrapolam suas esferas e negam avanços da ciência, como a voga criacionista nos EUA e a tese, redondamente equivocada, de que a Terra é plana, também em moda no Brasil. Aqui, a homofobia transparece na censura à diversidade de gêneros sexuais, enquanto esdrúxulas concepções regem a nossa política exterior. 

O mundo só pode ser reencantado pelo olhar mítico, sem contudo menosprezar a ciência. A análise fria da ciência pode desvendá-lo, jamais explicá-lo. Sabemos que o cérebro humano pesa 1,5 kg e possui 86 bilhões de neurônios, cada um deles com 10 mil conexões. Mas por que emerge dessa massa encefálica sentimentos tão controversos quanto a alegria e a raiva, e percepção do eu? O que havia antes da explosão do Big Bang?

Nada mais enfadonho do que procurar respostas para todos os mistérios da natureza. A ciência ensina que não há cor fora de mim. A deslumbrante policromia que vejo ao contemplar o nascer e o pôr do sol é apenas efeito da radiação eletromagnética cujas combinações de comprimentos de onda se transformam em cores dentro de minha cabeça. Ainda assim, prefiro acreditar na magia do arco-íris e quem sabe me atreva a buscar o pote de ouro em seus pés…

As ciências respondem aos porquês. Já as religiões não perguntam por que o dia se alterna entre claridade e escuridão, e sim qual a razão de atravessarmos esse breve período de tempo chamado vida. O mito nada indaga, apenas contempla. E, na dúvida, ele mesmo encontra a resposta. O mito é autoexplicativo, extrapola a razão e confunde as verdades de fé. Por isso todo amor é mítico. E nada reencanta uma vida ou o mundo mais do que o amor.

Pode ser que, no futuro, os algoritmos façam os computadores substituírem prefeitos, governadores e presidentes, com mais eficiência e corrupção zero. Contudo, poderão os computadores amar? Bater papo à mesa de refeição? Orar pela manhã?

Com certeza a resposta é negativa. Mas por que os humanos devem se gabar de sua inteligência se dispomos de tecnologias tão avançadas e, no entanto, para a maioria de nós a vida é, ainda hoje, sofrimento, incerteza e angústia?

Frei Betto é escritor, autor do romance “Minas do ouro” (Rocco), entre outros livros.

Fonte:

www.oglobo.com

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Espiritualidade em nossos tempos. Por Pedro A. Ribeiro de Oliveira https://observatoriodaevangelizacao.com/espiritualidade-em-nossos-tempos/ Mon, 10 Jun 2019 18:32:18 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=30699 [Leia mais...]]]>

Por Pedro A. Ribeiro de Oliveira

“Espiritualidade é a força interior, cultivada na oração ou na meditação, que nos mantém vivos”, diz Frei Betto em seu livro Fé e afeto (Vozes, 2019). Nesses tempos em que a força sufocante do capitalismo ameaça transferir nossa vida pessoal para o mundo virtual, precisamos respirar novos ares e oxigenar aquela força interior que nos liga à Divindade Amorosa, a seus filhos e filhas e à comunidade de vida da Terra.

Novos ares para a espiritualidade é o que nos oferece Frei Betto em textos que brotaram de sua vivência e foram lapidados com esmero. Comento aqui alguns desses textos (pp. 96-125) para estimular quem me lê a buscar nessa mesma fonte o alimento para sua vida interior e para a práxis político-libertadora. Eles tratam principalmente a espiritualidade cristã, ou seja, a espiritualidade que animou a vida de Jesus de Nazaré e tem inspirado seus seguidores e seguidoras ao longo da história. Frei Betto segue o método dos primeiros teólogos do cristianismo, que fundamentavam sua teologia na “sistematização de uma experiência à luz da Palavra. Baseada na meditação sobre a Bíblia. É sabedoria antes de aparecer como saber racional. Não se ensinava nas escolas, mas pela vida, pelo testemunho cristão.” Sem desconhecer nem menosprezar outras linhas de vida espiritual, temos aí proveitosas reflexões teológicas para os tempos de hoje.

O ponto de partida é assumir a espiritualidade como “o eixo que perpassa a totalidade de nossa existência e no qual se estabelece a síntese de nossas relações com o mundo, as pessoas, a natureza e com Deus”. A dificuldade, minha e de muita gente, é que as antigas receitas para alimentar esse eixo de vida – retiros, mortificações, orações recitativas e tantas outras formas rituais – separam o seguimento de Jesus da participação nas lutas por Justiça, Paz e Cuidado com a Terra. Sabemos que a espiritualidade é alimentada pela oração, mas como se pode manter a vida de oração no meio das turbulências da vida e das lutas sócio-políticas? Diante dessa dificuldade, Fr. Betto apresenta diferentes formas de oração e transmite sua experiência nas práticas meditativacomunitáriacontemplativa. Apresento aqui minha reflexão sobre cada uma delas com o propósito de ajudar mais gente que quer viver a espiritualidade político-libertadora, mas tem dificuldades para orar. 

Ao escrever sobre a meditação, ensinando maneiras de evitar a dispersão do espírito e entrar em comunhão com o Mistério, Fr. Betto aponta um caminho fascinante para esse encontro direto e pessoal com Deus no mais profundo de si mesmo, de maneira que esse encontro tenha consequências reais para a vida prática. Ele deixa claro que a experiência mística não só não afasta, mas confirma quem está nas lutas que Jesus assumiria no mundo de hoje. Devo, porém, confessar que não consigo embarcar nesse caminho espiritual. Já tentei praticar a meditação, mas minha concentração dura pouco: não consigo impedir que a atenção se volte para a realidade externa e isso causa um sentimento de frustração. Não é este meu caminho de vida espiritual… Mas ainda bem que existem outros caminhos!

Outro caminho, muito importante, é a oração comunitária, excelente oportunidade de encontro com Cristo, que prometeu estar onde dois ou mais estivessem reunidos em Seu nome. Nessa forma de oração eu embarco sem dificuldade e com todo gosto. O problema é que com muita frequência a liturgia em vigor tende a ritualizar de tal modo a ação do Espírito, que acaba por encapsulá-lo. A missa dominical, momento privilegiado de congregar a comunidade cristã, pode perder sua força espiritual quando celebrada por padres que não favorecem a participação da comunidade. Relegada à condição de assistente, ela se limita a cantar e acompanhar a movimentação do celebrante e seus acólitos junto ao altar, enquanto aguarda o esperado momento da comunhão. Embora eu procure me deixar levar pelo entusiasmo da comunidade, que parece sair renovada após cada celebração, devo dizer que ao terminar certas missas me vem o sentimento de frustração. Se fosse esse tipo de missa dominical o principal alimento para minha vida espiritual, certamente ela já teria definhado…

Felizmente, existe mais um caminho, que é a oração contemplativa. Vida contemplativa não é algo de uma “elite espiritual”, separada da massa dos fiéis que deveriam se contentar com a oração recitativa e suas fórmulas estabelecidas, ensina Frei Betto, que conclui dizendo que “a contemplação está ao alcance de toda pessoa de fé”. Abandonada a ideia de que a contemplação exige um espaço de reclusão, como conventos e mosteiros, ela pode ser feita em qualquer tempo e lugar onde esteja sendo posto em prática o Evangelho. Por ser esta minha forma preferida para alimentar a espiritualidade político-libertadora, a leitura veio confirmar essa caminhada explicando que seu segredo está no modo de fazer a oração contemplativa.

A contemplação consiste em perceber nos acontecimentos do nosso tempo a presença real de Jesus ressuscitado atuando junto de nós. Isso supõe dois momentos distintos e complementares. O primeiro é a contemplação propriamente dita: o dom de perceber a presença de Jesus como alguém que está no meio de nós. Porque esse momento corre sempre o risco de subjetivismo – cada pessoa vendo Jesus à sua própria imagem e semelhança – ele precisa ser contrabalançado pelo segundo momento: de interpelação pela Palavra de Deus. Esse Jesus que está no meio de nós não é somente uma presença amiga e consoladora: ele traz uma mensagem que nos interpela e uma missão que nos convoca, e a Bíblia é a fonte onde a encontramos. Os textos da liturgia diária – acessíveis até por internet – que são lidos pela manhã devem retornar ao longo do dia como interpelação à realidade que está sendo vivida. Isso faz encontrar Jesus – e, por meio dele, o Pai-Mãe e o Espírito Santo – em qualquer ocasião em que o Evangelho é colocado em prática. É um encontro prazeroso, mas ao mesmo tempo interpelador: qual é minha missão nesta situação? Ao perceber a missão e minha pequenez diante dela, sou levado a outra forma de oração: pedir a Deus que envie seu Espírito para me conduzir na missão. Nem sempre me deixo conduzir por ele, mas quando deixo que Ele atue em mim, consigo realizar coisas que pareciam ser além da minha capacidade. Acredito ser este um fruto maduro da oração contemplativa. Só posso agradecer ao Fr. Betto por me/nos ajudar a avançar na espiritualidade político-libertadora.

Ao escrever, me dei conta de que há 60 anos conheci o Betto num encontro da JEC – Juventude Estudantil Católica – e que aí nasceu nossa amizade. Bendita amizade! 

Juiz de Fora, Pentecostes, 2019

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