Fratelli Tutti – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com Wed, 11 May 2022 20:35:44 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.4 https://i0.wp.com/observatoriodaevangelizacao.com/wp-content/uploads/2024/04/cropped-logo.png?fit=32%2C32&ssl=1 Fratelli Tutti – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com 32 32 232225030 A memória necessária, o perdão e o horizonte de Fratelli Tutti https://observatoriodaevangelizacao.com/a-memoria-necessaria-o-perdao-e-o-horizonte-de-fratelli-tutti/ Wed, 11 May 2022 20:35:44 +0000 https://atomic-temporary-74025290.wpcomstaging.com/?p=44948 [Leia mais...]]]> O ato de rememorar é referido a uma lembrança ao que já aconteceu no passado, por isso ele é inseparável do tempo, pois, já implica algo que aconteceu em determinado momento. No entanto, existe uma diferença fundamental entre a lembrança e a memória. A lembrança retoma os fatos em ordem como se não tivesse acontecido um passado, a coisa não vem mais e a imagem da coisa que vem. As lembranças são sempre no plural, já a memória é tratada no singular e com capacidade. O Papa Francisco nos ensina a dimensão da memória e sua relação intrínseca ao perdão: De quem sofreu muito de maneira injusta e cruel, não se deve exigir uma espécie de «perdão social». A reconciliação é um facto pessoal, e ninguém pode impô-la ao conjunto duma sociedade, embora a deva promover. Na esfera estritamente pessoal, com uma decisão livre e generosa, alguém pode renunciar a exigir um castigo (cf. Mt 5, 44-46), mesmo que a sociedade e a sua justiça o busquem legitimamente. Mas não é possível decretar uma «reconciliação geral», pretendendo encerrar por decreto as feridas ou cobrir as injustiças com um manto de esquecimento. Quem se pode arrogar o direito de perdoar em nome dos outros? É comovente ver a capacidade de perdão dalgumas pessoas que souberam ultrapassar o dano sofrido, mas também é humano compreender aqueles que não o podem fazer. Em todo o caso, o que nunca se deve propor é o esquecimento (FT, 246).

O ato de perdoar pressupõe tempo e luto, mas não se limita a essas instâncias, pois está vinculado a uma aposta no sujeito capaz. Por isso, inclui reconciliação, dom e generosidade. Dessa maneira, está situado entre o trabalho da lembrança e do luto, recontextualizando-os a partir da lógica do dom, da superabundância, para além da reciprocidade, como acontece na dimensão da justiça. Nesse contexto, o ato de perdoar demonstra não apenas uma indeterminação do futuro, mas também o passado que pode ser alterado, pois há uma alteração de sentido. A memória na condição de forma mais significativa para expressar o que aconteceu, é imprescindível no caminho do reconhecimento do indivíduo, que transmite suas experiências e sua existência. Ou seja, o testemunho é compreendido como essencial na passagem da memória para a história, abrindo espaço para um campo hermenêutico. A memória é tão importante de ser pensada quanto à história, não podemos fazer história sem fazer e entender a memória. Por isso, é importantíssimo pensá-la também em uma dimensão reflexiva. Portanto, temos a noção de que o tempo existe, porque existe a memória, que nos permite pensar em tais fatos que estão às vezes presos no decorrer do tempo, se temos a noção de ser é porque à medida que o tempo foi se passando, fomos descobrindo esta noção, com isso não posso e nem consigo pensar na memória sem pensar no tempo como base fundamental para se pensar memória e depois a história. Com essa concepção de memória, o humano é capaz de realizar algo, pois o hábito já o tornou confiante em seus atos, em suas teorias. Sendo assim, o “perdão difícil” é pensado como horizonte, como antecipação da memória feliz ou reconciliada.

Por outro lado, algumas lembranças o tempo não é capaz de esquecer, como os pequenos ou grandes momentos de felicidade e às vezes não esperamos lembrar daquilo que acreditávamos ter perdido para sempre. A observação da sociedade contemporânea, na sua prática, revela então duas forças: de um o lado, os resquícios da justiça real, presentes na graça e emprego da anistia, que tende a tudo esquecer; de outro, uma recusa a nada esquecer, como no caso da imprescritibilidade. O perdão não se alinha ao lado do esquecimento. O esquecimento e o perdão designam separadamente e conjuntamente, o horizonte de toda nossa pesquisa. Separadamente, na medida em que lhes implica cada um uma problemática distinta: para o esquecimento aquela da memória e da fidelidade do passado: para o perdão, aquela da culpabilidade e da reconciliação com o passado (RICOEUR, 2007, p. 536).

Assim, se existem fórmulas jurídicas que conferem efeitos benéficos, no sentido de eximir ou atenuar penalidades, outras foram construídas como resposta enérgica para combater os genocídios e preservar os direitos humanos após a Segunda Guerra, e hoje constituem o regime jurídico dos denominados crimes contra a humanidade. A imprescritibilidade destes crimes, por exemplo, é uma medida de exceção, porque em decorrência dela, a qualquer tempo, o responsável pode ser perseguido, pode ser punido, pode ter a pena executada e, portanto, saldada a dívida com o Direito e a sociedade. A dívida, em suma, poderá ser sempre cobrada pela justiça, e esta é uma das grandes provas da problemática do perdão. Aqueles que perdoam de verdade não esquecem, mas renunciam a deixar-se dominar pela mesma força destruidora que os lesou. Quebram o círculo vicioso, frenam o avanço das forças da destruição. Decidem não continuar a injetar na sociedade a energia da vingança que, mais cedo ou mais tarde, acaba por cair novamente sobre eles próprios. Com efeito, a vingança nunca sacia verdadeiramente a insatisfação das vítimas. Há crimes tão horrendos e cruéis que, fazer sofrer quem os cometeu, não serve para sentir que se reparou o dano; não bastaria sequer matar o criminoso, nem se poderiam encontrar torturas comparáveis àquilo que pode ter sofrido a vítima. A vingança não resolve nada (FT, 251).

            Na perspectiva da experiência do perdão e da esperança fundada na cruz e na ressurreição, bem como com a liberdade como o ser libertado e curado no encontro com Deus, podemos concluir que: no encontro com Deus experimentamos, pela fé, um perdão que pela primeira vez nos revela nossos pecados. Ele nos liberta e capacita para o encontro com o outro. Ou seja, a graça de Deus está sempre presente, contígua a qualquer momento histórico, assim como subversiva a ele. Não é a autotranscendência humana universal que se torna explícita durante os eventos e as narrações sobre a salvação, mas a manifestação visível da doação gratuita e universalmente presente em Deus, permitindo que nos tornemos receptáculos vivos em vez de reiterarmos nossos modos de apropriação do outro que nos forma, o qual é revelado como puramente gratuito. No entanto, uma das intuições reveladas pela doutrina do pecado original nos mostra que o dano da queda foi incidido exatamente em nossa capacidade de receber gratuitamente.

             É essa lógica que reorganiza em um sentido poético o horizonte da regra de ouro, pois o conteúdo desta exige o poder da imaginação, bem como a abertura a novas possibilidades de significados. Dessa maneira, a justaposição da regra de ouro e do mandamento do amor na narrativa bíblica exige uma saída poética, podendo esta ser desenvolvida em duas dimensões: na simbólica, como no Sermão da Montanha e também no Sermão da Planície, onde é desenvolvido o primado do dom sobre a obrigação. Por outro lado, no plano teórico há uma articulação da economia do dom com a economia da reciprocidade, permitida pelo dom que gera obrigação.

            Na Encíclica Fratelli Tutti, Papa Francisco insiste na importância e na dinâmica do perdão como elemento civilizatório à humanidade. Dessa maneira, podemos destacar dois caminhos estabelecidos como vias do perdão: o caminho da alteridade e o caminho do reconhecimento. O segundo se mostra mais fundamental, pois é nele que encontramos a retomada bíblica da Regra de Ouro e a lógica que servirá de base ao perdão: a lógica da superabundância.

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Prof. René Dentz
É
 católico leigo, professor do departamento de Filosofia, curso de Psicologia-Praça da Liberdade na PUC-Minas, onde também atua como membro da equipe executiva do Observatório da Evangelização. Psicanalista, doutor em Teologia pela FAJE, com pós-doutorado pelas Université de Fribourg/Suíça, Universidade Católica Portuguesa e PUC-Rio. É comentarista da TV Horizonte e da Rádio Itatiaia. Autor de 8 livros, dentre os quais “Horizontes de Perdão” (Ideias e Letras, 2020) e “Vulnerabilidade” (Ideias e Letras, 2022). Pesquisador do Grupo de Pesquisa CAPES “Mundo do trabalho, ética e teologia”, na FAJE-BH.

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“Fratelli Tutti”, a política melhor, com a palavra pe. Élio Gasda, SJ https://observatoriodaevangelizacao.com/fratelli-tutti-a-politica-melhor-com-a-palavra-pe-elio-gasda-sj/ Thu, 10 Jun 2021 12:50:44 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=39702 [Leia mais...]]]> Estudos da Encíclica Fratelli Tutti

O prof. Élio Gasda SJ apresenta aqui uma análise do capitulo 5 da Encíclica Fratelli Tutti, do papa Francisco. Ele destaca os principais pontos do documento, no qual Francisco caracteriza a melhor política.

O papa Francisco aponta que a MELHOR POLÍTICA é aquela que promove o bem comum, com especial atenção aos mais pobres e excluídos da sociedade e que não submete as ações políticas à economia e ao mercado.

Sobre o autor:

Prof. dr. Élio Gásda, SJ

Élio Gasda é jesuíta, doutor em Teologia, professor e pesquisador na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – Faje. Sua reflexão teológica sobre os desafios e urgências da contemporaneidade, à luz da Fé, da Ética e dos princípios estruturantes da Doutrina Social da Igreja, vem contribuindo significativamente na caminhada do movimentos populares, as pastorais sociais, grupos diversos e lideranças comprometidas com a transformação das estruturas injustas da sociedade e a cultura da paz fundada na justiça e na fraternidade. Além de inúmeros artigos, dentre seus livros destacamos: Trabalho e capitalismo global: atualidade da Doutrina social da Igreja (Paulinas, 2001); Cristianismo e economia (Paulinas, 2016). O Observatório da Evangelização tem publicado aqui alguns de seus artigos.

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“Todos irmãos: a fraternidade como alicerce para nova cultura”. Com a palavra dom Vicente de Paula Ferreira https://observatoriodaevangelizacao.com/todos-irmaos-a-fraternidade-como-alicerce-para-nova-cultura-com-a-palavra-dom-vicente-de-paula-ferreira/ Sat, 05 Dec 2020 12:25:41 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=36936 [Leia mais...]]]>

“Em tempos de pandemia, as máscaras vão caindo e, logo, percebemos quem são os que cuidam e os que passam adiante”

Por dom Vicente de Paula Ferreira, C.Ss.R

Ao publicar sua mais recente Encíclica, Fratelli Tutti, Papa Francisco comenta: “entrego esta encíclica social” (FT, n. 6). O texto nasce em plena pandemia e em diálogo com o líder muçulmano Imã Ahmad Al-Tayyeb. Nele encontramos balizas para a cultura universal da amizade e da fraternidade. Destacamos, então, as linhas gerais do documento, considerando que, se a Evangelii Gaudium nos convida a uma conversão eclesial e a Laudato Si’ a uma conversão ecológica, Fratelli Tutti lança perspectivas para uma conversão cultural.

As primeiras páginas do documento apresentam as sombras de um mundo fechado, marcado por sonhos desfeitos em pedaços, no qual “reacendem-se conflitos anacrónicos que se consideravam superados, ressurgem nacionalismos fechados, exacerbados, ressentidos e agressivos” (FT, n. 11). Globaliza-se o domínio dos mais fortes, com discursos neocolonialistas, que protegem as grandes organizações financeiras, dissolvendo as identidades das culturas regionais mais frágeis. Desta forma, a política se enfraquece diante de poderes financeiros transnacionais. A perda da consciência histórica, com negações de eventos dolorosos como as guerras e ditaduras, obstrui a capacidade de construir a história a partir de aprendizados adquiridos. Soma-se a isso a falta de projetos coletivos, o que resulta numa cultura do descarte mundial, tanto humano quanto ambiental. Os direitos humanos, não suficientemente universais, agrava questões como a desigualdade social, o direito das mulheres, a escravidão.

No bojo desses desafios, é preciso pensar outra globalização. As conquistas científicas e tecnológicas trouxeram muitos ganhos para a sociedade. No entanto, temos que nos envergonhar porque, enquanto poucos acumulam riquezas, milhões de crianças morrem de fome. Os avanços de nossa sociedade global não significa maior inclusão social, o que faz Francisco exclamar: “como seria bom se, enquanto descobrimos novos planetas longínquos, também descobríssemos as necessidades do irmão e da irmã que orbitam ao nosso redor!»” (FT, n. 31). A Pandemia do coronavírus desmascarou, ainda mais, as seguranças falsas de nossa cultura e estampou entre nós que não nos salvamos sozinhos. “A tribulação, a incerteza, o medo e a consciência dos próprios limites, que a pandemia despertou, fazem ressoar o apelo a repensar os nossos estilos de vida, as nossas relações, a organização das nossas sociedades e sobretudo o sentido da nossa existência” (FT, n. 33). Não podemos, por exemplo, continuar tratando os migrantes como pessoas menos importantes. É um contratestemunho quando cristãos também partilham dessa mentalidade ao invés de defenderem a dignidade inalienável de toda pessoa humana.

Outro perigo muito comum é a fragilidade da comunicação virtual que muitas vezes dispensa gestos, expressões, silêncios, linguagem corpórea, fundamentais no encontro entre pessoas. Isso pode até ter aparência de solidez, mas não consegue construir um «nós». A conexão digital não é suficiente para unir a humanidade. É dramático notar, por exemplo, que “aquilo que ainda há pouco tempo uma pessoa não podia dizer sem correr o risco de perder o respeito de todos, hoje pode ser pronunciado com toda a grosseria, até por algumas autoridades políticas, e ficar impune.” (FT, n. 45).

Já sabemos que não atravessamos uma época de pequenas mudanças, mas que o próprio conceito de época é que está mudando, no meio de uma crise poliédrica. Para enfrentar esses desafios, Papa Francisco nos apresenta a parábola do bom samaritano (Lc 10, 25-37), que faz abrir o diálogo diante do real, num tempo imprevisto. Na perspectiva do Antigo Testamento, colhemos o seguinte: «quando vindimares a tua vinha, não rebusques o que ficou; deixa-o para o estrangeiro, o órfão e a viúva. Lembra-te que foste escravo na terra do Egito» (Dt 24, 21-22).” (FT, n. 61). E, assim, o Novo Testamento resume os mandamentos: «Aquele que não ama o seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê» (1 Jo 4, 20).

O sofrimento do outro deve alterar as rotas de nossa viagem. Em tempos de pandemia, as máscaras vão caindo e, logo, percebemos quem são aqueles que cuidam e aqueles que passam adiante. Na parábola, os salteadores são a realidade imposta, diante da qual não adianta uma atitude de lamentação apenas. A violência já fez o seu estrago e diante dela o sacerdote e o levita são indiferentes. Não são capazes de compreender o que São João Crisóstomo tão bem disse: «Queres honrar o Corpo de Cristo? Não permitas que seja desprezado nos seus membros, isto é, nos pobres que não têm que vestir, nem O honres aqui no templo com vestes de seda, enquanto lá fora O abandonas ao frio e à nudez».

Na sociedade de Jesus, próximo era o vizinho, pertencente ao mesmo grupo. Na parábola, essa visão é rompida porque os samaritanos eram considerados pelos judeus como impuros, perigosos por habitarem uma região contagiada por rituais pagãos. Diante das provocações da parábola, Papa Francisco lamenta: “às vezes deixa-me triste o facto de, apesar de estar dotada de tais motivações, a Igreja ter demorado tanto tempo a condenar energicamente a escravatura e várias formas de violência”. (FT, n. 86). É um contratestemunho que, depois de tantas atrocidades, ainda haja pessoas cristãs se autorizando, em nome da fé, a deferem nacionalismos fechados, atitudes xenófobas.

A vivencia autêntica da fé cristã é geradora de um mundo novo. “O amor ao outro por ser quem é, impele-nos a procurar o melhor para a sua vida. Só cultivando esta forma de nos relacionarmos é que tornaremos possível aquela amizade social que não exclui ninguém e a fraternidade aberta a todos” (FT, n. 94). É preciso abrir-se aos que estão nas periferias geográficas e existenciais e corrigir as noções equivocadas de um amor universal que a globalização atual tenta impor. Pretender uniformizar o todo não dá conta das diferenças e acaba por construir uma fantasiosa igualdade. O outro não é uma ideia abstrata, mas alguém que nos interpela a sair de uma pauta mínima das esmolas, para buscarmos programas que possibilitem que a vida desabroche integralmente, em abundância. Nesse ponto, Papa Francisco repropõe algo fundamental, a função social da propriedade, lembrando que o direito universal dos bens da terra vem antes do direito à propriedade privada. “O princípio da subordinação da propriedade privada ao destino universal dos bens e, consequentemente, o direito universal ao seu uso é uma «regra de ouro» do comportamento social e o «primeiro princípio de toda a ordem ético-social». (LS, n. 93). Ou seja, sem terra, teto e trabalho para todos não haverá cultura da fraternidade e da amizade.

A fraternidade universal, portanto, não é uma abstração, é caminho a ser percorrido com atitudes concretas de um coração aberto ao mundo inteiro. Quanto aos migrantes, acolher, proteger, promover e integrar são verbos fundamentais. Quando bem integrados, são uma bênção, um dom para a cultura local. “Se nos preocupa o desaparecimento dalgumas espécies, deveria afligir-nos o pensamento de que em qualquer lugar possam existir pessoas e povos que não desenvolvem o seu potencial e a sua beleza por causa da pobreza ou doutros limites estruturais.” (FT, n. 137). Por ser a cultura o conjunto que sustenta a vida das pessoas, olhá-la em sua amplitude não significa descartar as tradições locais. É necessário promover o intercâmbio entre local e universal. Se não pode existir uma globalização que elimina a diferença, também não pode existir a diferença que, por ser fechada, elimina os valores universais.

A melhor política deve empenhar-se em vencer a erva daninha do populismo. Quando alguém usa o poder para manipular projetos em favor de grupos fechados e egoístas, perde-se o sentido de povo aberto, em construção. Assim, as estratégias do liberalismo vigente troca a vida das pessoas pelo mercado. E é um problema grave porque ele, ao criar exclusões, ainda persegue os Movimentos Populares, a poesia social, segundo Papa Francisco. Exemplo disso é que no século XXI temos uma perda dos Estados Nacionais para estruturas econômico-financeiras transnacionais que dominam a própria política. Sabendo que “a sociedade mundial tem graves carências estruturais que não se resolvem com remendos ou soluções rápidas meramente ocasionais” (FT, n. 179), é urgente o empenho em desenvolver parâmetros de boa política.

Sendo a síntese da fé cristã, a caridade não se restringe a um saudável cultivo de boas amizades ou a gestos concretos de ajuda aos mais próximos. Ela é um movimento maior que se destina a transformar a realidade a partir de compromissos estruturais de defesa da vida de todos e do meio ambiente. O ápice da caridade é a construção de uma sociedade justa e fraterna. Portanto, não é uma boa política transformar os pobres em massa domesticada e inofensiva, o que muita forma de caridade acaba fazendo. O combate a fome e ao tráfico de pessoas é urgência que não pode mais ser procrastinada e isso não se faz apenas com boa vontade, mas com esforço político qualificado.

A boa política tem como escopo o diálogo e a amizade social. O diálogo paciente, silencioso ajuda o mundo a viver melhor. As guerras fazem barulho com suas destruições; o diálogo constrói a paz. O diálogo é a ponte de uma nova cultura. O diálogo busca, em comum, a verdade fundamental para todos. “Aceitar que há alguns valores permanentes, embora nem sempre seja fácil reconhecê-los, confere solidez e estabilidade a uma ética social” (n. 147). O consenso deve buscar a verdade em suas feições mais radicais. “Que todo o ser humano possui uma dignidade inalienável é uma verdade que corresponde à natureza humana, independentemente de qualquer transformação cultural” (FT, n. 213).

Importante destacar, para nós brasileiros, que o Papa Francisco, ao apresentar a urgência de uma nova cultura da amizade, inicie com um verso do Samba da Bênção, de Vinícius de Moraes. “A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro na vida”. E acrescenta: “o poliedro representa uma sociedade onde as diferenças convivem integrando-se, enriquecendo-se e iluminando-se reciprocamente, embora isso envolva discussões e desconfianças” (FT, n. 215). A cultura de um povo é o seu modo de viver. Por isso, “um pacto social realista e inclusivo deve ser também um pacto cultural, que respeite e assuma as diversas visões do mundo, as culturas e os estilos de vida que coexistem na sociedade” (FT, n. 219). E a amabilidade é ingrediente indispensável para tal pacto, que deve ser construído no cotidiano da existência de cada um.

Somos chamados a gerar a cultura do encontro. A busca pela paz não significa apenas combater as guerras. É também fundamental a promoção da justiça social, cuidando sobretudo dos mais pobres e vulneráveis. Sendo o perdão tema fundamental do cristianismo, é necessário entendê-lo bem para evitar leituras fatalistas. “Somos chamados a amar a todos, sem exceção, mas amar a um opressor não significa consentir que continue a ser tal; nem levá-lo a pensar que é aceitável o que faz. Pelo contrário, amá-lo corretamente é procurar, de várias maneiras, que deixe de oprimir, tirar-lhe o poder que não sabe usar e que o desfigura como ser humano” (FT, n. 241).

Além disso, ninguém pode pretender “encerrar por decreto as feridas ou cobrir as injustiças com um manto de esquecimento” (FT, n. 246). Nunca devemos perder a memória histórica dos fatos que nos envergonham como seres humanos. Manter a memória das vítimas, inclusive das que sobrevivem pela prática do bem e do perdão, é encontrar a face de transbordamento do perdão, que vai além dos horrores sofridos. “O perdão é precisamente o que permite buscar a justiça sem cair no círculo vicioso da vingança nem na injustiça do esquecimento” (FT, n. 252). Um exemplo concreto a ser reforçado é o empenho das Nações Unidas no combate as guerras, que se tornam, com armas nucleares potentes, de riscos incontroláveis. Nesse aspecto, Papa Francisco é assertivo: “todos os cristãos e homens de boa vontade estão chamados hoje a lutar não só pela abolição da pena de morte, legal ou ilegal, em todas as suas formas, mas também para melhorar as condições carcerárias, no respeito pela dignidade humana das pessoas privadas da liberdade” (FT, n. 268).

Por fim, as religiões devem estar a serviço da fraternidade no mundo. O diálogo entre as religiões a partir de um fundo transcendente, que nos leva a todos a aprofundar a dignidade da vida em sua integralidade, é fundamental. A liberdade religiosa para os crentes de todas as religiões é alicerce indispensável sem o qual não haverá paz no mundo. Em tantos casos, o próprio nome de Deus é usado para justificar a violência, mas isso não encontra “fundamento algum nas convicções religiosas fundamentais, mas nas suas deformações” (FT, n. 282).

Sobre o autor:

Dom Vicente de Paula Ferreira, CSSR é bispo auxiliar da Arquidiocese de Belo Horizonte, bispo referencial nas regiões episcopais de Nossa Senhora do Rosário e de Nossa Senhora Aparecida, e do vicariato episcopal para ação missionária. Na CNBB, ele é membro da Comissão Ecologia Integral e Mineração e preside a Comissão Episcopal Pastoral Ação Missionária do Regional Leste II. Ele é doutor em Ciências da Religião e é autor de livros, artigos, poemas e canções.

Fonte:

www.cnbbleste2.org.br

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A Fratelli tutti, um novo paradigma de sociedade mundial: de senhor (dominus) a irmão (frater). https://observatoriodaevangelizacao.com/a-fratelli-tutti-um-novo-paradigma-de-sociedade-mundial-de-senhor-dominus-a-irmao-frater/ Mon, 16 Nov 2020 14:07:18 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=36390 [Leia mais...]]]> Não é difícil de perceber que o papa Francisco com a encíclica social Fratelli tutti rejeita o atual modo de viver na Casa Comum, pois afirma “Se alguém pensa que se trata apenas de fazer funcionar o que já fazíamos, ou que a única lição a tirar é que devemos melhorar os sistemas e regras já existentes, está negando a realidade” (n. 7).

Diretamente afirma “que é uma ilusão enganadora, pensar que podemos ser onipotentes e esquecer que nos encontramos todos no mesmo barco” (n. 30). Em função disso adverte: “ninguém se salva sozinho, só é possível salvar-nos juntos” (n. 32).) Num twitter em fins de outubro declarou: “Ou nos salvamos todos ou ninguém se salva”.

1. A rejeição do paradigma dominante

Como se depreende, rejeita o atual sistema mundialmente integrado. Em vários outros lugares faz afirmações semelhantes. Não se trata mais de melhorar mas de realmente de “sonhar e de pensar numa humanidade diferente” (n. 127). Urge construir “um novo vínculo social” (n. 66).

Ataca diretamente as quatro pilastras que sustentam a atual ordem mundial: o mercado em termos de economia, o neoliberalismo em termos de política, o individualismo em termos de cultura e a devastação da natureza, em termos de ecologia: “O mercado, por si só, não resolve tudo, embora às vezes nos queiram fazer crer neste dogma de fé neoliberal. Trata-se dum pensamento pobre, repetitivo, que propõe sempre as mesmas receitas perante qualquer desafio que surja. O neoliberalismo reproduz-se sempre igual a si mesmo… como única via para resolver os problemas sociais” (n. 168). O individualismo é apresentado “como o vírus mais difícil de vencer; não é capaz de gerar um mundo melhor para toda a humanidade… como se, acumulando ambições e seguranças individuais, pudéssemos construir o bem comum” (n. 105). Em termos de ecologia, inagurou o antropoceno e o necroceno.

Conclusão: encontramo-nos atualmente num mundo “sem um projeto para todos”(n. 15; n. 31). Sem um projeto para todos ficamos reféns do projeto privado dos mais fortes que instauram uma perversa opressão econômica, social e cultural sobre todas as sociedades humanas.

2. Um paradigma que nega o humano em nós

Este sistema é perverso, pois, nega o humano em nós; não tem sensibilidade e empatia para com as grandes maiorias empobrecidas e condenadas à altíssima taxa de iniquidade social, consequência da perda da soberania alimentar expressa na fome ou na subnutrição endêmicas e da escassez de água potável. Poucos grupos se apropriam individual ou corporativamente de grande parte dos bens e serviços naturais.

Esse sistema não se afina com a natureza humana que é essencialmente cooperativa e solidária, como nos ensinam as neurociências. O ser humano, de verdade, emerge como um ser de relação, voltado em todas as direções. Esse modo de habitar a Casa Comum nega uma das constantes cosmológicas, que preside o universo, que sustenta todos os seres, das galáxias mais distantes, das estrelas, da nossa Terra e até de cada um nós, comprovando que tudo está relacionado com tudo e que ninguém existe fora da relação (Laudato Si’, n. 86; 117). Tudo isso é rejeitado, prática e teoricamente, por este sistema perverso que chegou a introduzir uma nova era geológica, o antropoceno e o necroceno. Vale dizer, ele é o grande Satã da Terra ao invés de ser seu anjo bom e cuidador. Fez-se o meteoro rasante que mata e assassina vidas da humanidade e da natureza.

3. Os fundamentos da alternativa da Fratelli tutti

É neste contexto de um sistema à deriva, com um futuro sem futuro, que o papa Francisco propõe uma alternativa, fundada em princípios e valores ausentes na atual ordem, em plena crise sistêmica. Onde ele busca os valores e princípios, capazes de lançar as bases para um modo de habitar a Casa Comum, novo e alternativo? Busca-o naquilo que é o mais humano nos humanos, pois só aí se encontra uma base sólida, sustentável e universalizável. Esses valores, pelo fato de serem essencialmente humanos, estão presentes em todos os homens e mulheres das mais diferentes culturas.

Esses valores não estavam ausentes no paradigma vigente. Mas eram vividos apenas subjetivamente, nas relações curtas e na privacidade da vida. A novidade do Papa foi generalizar e universalizar o que era subjetivo e individual.

Então, o amor deixa de ser uma experiência somente entre dois seres que mutuamente se atraem, para emergir como amor social. Da mesma forma, a amizade ganha uma expressão social, “pois não exclui ninguém” (n. 94) a fraternidade entre todos os humanos é sem fronteiras, incluindo, no espírito de São Francisco, os demais seres da natureza; a cooperação aberta a todos os países e a todos os seres; o cuidado, começando por si mesmo (n. 117) e expandindo-se para tudo que existe e vive; da mesma forma, a compaixão, a justiça social e a capacidade de perdão. Todo esse mundo de excelências está presente no ser humano.

No paradigma dominante, eram vividos nas relações interpessoais ou em pequenos grupos; na encíclica ganharam agora uma dimensão social, política e universal. Onde encontraríamos uma saída para a nossa crise paradigmática senão na própria realidade essencial do ser humano e na teia de relações que enlaça todos os seres?

4. A dimensão social e universal da fraternidade e do amor

Essa dimensão social e universal da fraternidade supera o antigo modo de ser individualista e reducionista. Inaugura o novo nunca antes ensaiado na sua dimensão social e planetária, a não ser em pequenas comunidades de religiosos e de religiosas e em geral entre povos originários. Sua ausência no paradigma da modernidade se revela como um vazio doloroso, uma cultura geral entregue ao individualismo solipsista, uma vida sem enraizamento e uma terrível solidão.

A sociedade mundial tem graves carências estruturais que não se resolvem com remendos ou soluções rápidas meramente ocasionais. Há coisas que devem ser mudadas com reajustamentos profundos e transformações importantes” (n. 179). O seu propósito era acumular sem limites, no pressuposto de que os recursos naturais também seriam sem limites. Tal pressuposição se revela falsa. A Laudato Si’ a denuncia como “uma mentira” (n. 161).

O motor é a competição, com a apropriação privada dos benefícios, excluindo os demais, mostrando-se excludente, com gritantes desigualdades em todo os campos. No entanto, sustenta a encíclica, “a interdependência entre todos nos obriga a pensar um único mundo”(n.164), “capaz de assegurar a alimentação e a paz, de garantir a salvaguarda do ambiente, de regulamentar o fluxo migratório; para isso urge a presença de uma verdadeira autoridade política mundial” (LS n. 175), superando os soberanismos ultrapassados, como reafirma na Fratelli Tutti: “Se a sociedade se reger primariamente pelos critérios da liberdade de mercado e da eficiência, não há lugar para as pessoas, e a fraternidade não passará duma palavra romântica” (n. 109)

Essa forma de construir a sociedade nacional e internacional devastou a natureza a ponto de termos encostado nos limites intransponíveis e superado aquelas nove fronteiras planetárias que, que segundo um documento da ONU, sustentam a vida e que, se violadas, podem produzir o colapso da civilização. Verificou-se também, cientificamente, a assim chamada Sobrecarga da Terra (The Earth Overshoot), vale dizer, os bens naturais básicos para reproduzir a vida se esgotaram. Se continuamos a cobrar-lhe o que já não pode oferecer, responde com mais aquecimento global, com eventos extremos, com desertificação dos solos e outras calamidades. A Terra entrou no vermelho e no cheque especial. Um planeta limitado não suporta um projeto ilimitado.

Esse sistema contradiz o princípio cosmológico e o axioma básico da física quântica e da nova antropologia de que todos os seres se encontram intra-retro-relacionados, todos dependem uns dos outros, se entreajudam e incorporam elementos novos por um processo permanente de simbiose. Tudo vem construído de redes de relações, de energias e de informações que estão permanentemente interagindo entre si. Não existe nenhum gene egoísta ou um ser desgarrado da teia das relações universais.

Lamentavelmente, não há consciência disso tudo, no sistema produtivista, devastador da natureza e cruel face ao destino dos demais semelhantes. Hoje atingiu tal grau de contradições internas que não encontra em seu arsenal, instrumentos próprios para dar conta de seus problemas. É refém de si mesmo. Ao levar avante a sua lógica interna poderá conhecer uma tragédia de proporções nunca dantes vistas, com a possibilidade de pôr fim ao processo civilizatório humano e talvez a nossa própria espécie.

Não se pode negar que, junto aos grandes benefícios que tal projeto da tecnociência aportou às comodidades da vida, produziu também o princípio de autodestruição com armas químicas, biológicas e nucleares. Por várias formas diferentes pode destruir a vida humana sobre a Terra e afetar gravemente a biosfera.

Mais e mais se impõe a convicção de que o mundo assim como está não pode ser levado a diante. Chegamos à beira do abismo que nos poderá tragar.

Neste contexto de ausência de alternativas intrassistêmicas, a humanidade busca freneticamente um caminho que permita sua continuidade neste planeta. Nesse ponto, se antecipa a Fratelli tutti com uma proposta a arrojada.

Ou voltamos à nossa humanidade essencial e aí encontramos os fundamentos seguros para um novo ensaio civilizatório, ou, como diz a Carta da Terra “arriscaremos a nossa destruição e a destruição da diversidade da vida” (Preâmbulo).

A proposta do Papa é uma atitude de confiança no ser humano e em suas potencialidades. Ele foi feito para o amor, para a amizade, para a solidariedade, para a compaixão, para o cuidado da Mãe Terra e de tudo o que existe e vive. A pandemia de covid-19 que, pela primeira vez atingiu toda a espécie humana e somente ela (não os gatos e cães domésticos e outros) representa um inequívoco sinal de que a Mãe Terra-Gaia deu uma resposta ao antropoceno, aquela prática humana dizimadora de vidas em massa: necroceno, seja no reino da natureza seja no âmbito humano.

Encontramo-nos numa encruzilhada: “ou fazemos uma aliança global de cuidar da Terra e de uns e de outros, ou enfrentaremos situações, que nas palavras de Sigmunt Baumann “podem nos levar a engrossar o cortejo daqueles que rumam em direção de sua própria sepultura”.

Se bem observamos, o que nos ajudou a enfrentar a Covid-19 não foram os mantras do capitalismo e do neoliberalismo, mas a centralidade da vida, a interdependência de todos com todos, a solidariedade e a cooperação entre os povos, para além dos soberanismos ultrapassados, o cuidado de uns com os outros, com a natureza e a Mãe Terra.

Se nos tivéssemos regido pela cultura do capital com a ausência de valores humanitários, todos teríamos uma sorte trágica.

Aqui reside a alternativa do papa Francisco que, para salvar a Terra, a vida e a humanidade, se põe a desentranhar o humano de nossa humanidade. O destino comum nos conclama a um novo começo, o que requer um novo coração, uma nova consciência, uma nova relação, terna e fraterna, entre os seres humanos e com os demais irmãos e irmãs da natureza.

5. A proposta alternativa do Papa na forma de um sonho

O Papa apresenta seu projeto alternativo como “uma humilde contribuição” em forma de um “novo sonho” (n. 6). Sonho deve ser entendido não como algo irreal, meramente onírico, mas segundo a Bíblia como uma manifestação de Deus ou como entre os gregos, como uma mensagem divina ou segundo o discurso psicanalítico em C. G. Jung “uma antecipação de realizações futuras, uma concretização prévia de possibilidades”.

Esta é a formulação da alternativa: “um novo sonho de fraternidade e amizade social …que se abre ao diálogo com todas as pessoas de boa vontade” (n. 6). Fraternidade e amizade social com todas as suas ressonâncias: amor social, solidariedade, cooperação, cuidado, cultura do encontro e do diálogo, o mundo sem fronteiras e sem muros, política com ternura e gentileza. Repetindo: a fraternidade e o amor social serão os eixos estruturadores de toda a sua proposta assinalada no título Fratelli tutti: irmãos, todos. O Papa se dá conta do inusitado da proposta, reconhecendo: “parece uma utopia ingênua, mas não podemos renunciar a este sublime objetivo” (n. 190).

6. Contraposição de dois paradigmas: senhor & irmão

Para entender melhor a novidade desta proposta paradigmática, seria esclarecedor se a compararmos com o paradigma subjacente ao atual sistema global e imperante já há mais de dois séculos: o dos tempos modernos.

É assente entre pensadores, filósofos, cientistas sociais e de outras áreas do pensamento que o ideal a ser perseguido e gerador dos tempos modernos, já projetado pelos pais fundadores do século XVI e XVII (Descartes, Galileo Galilei, Newton, Francis Bacon, Copérnico e outros) é o saber como poder e a vontade de poder: poder entendido como dominação do outro, das classes, dos povos, das culturas da África, da Ásia e das Américas, da natureza, das ínfimas partes da matéria (bóson de Higgs) e da própria vida (código genético). Para conferir eficácia ao saber e ao poder foi criada a tecno-ciência. Ela está preponderantemente a serviço do poder econômico, político e ideológico, ao mercado, e somente em seguida à vida. Na Laudato Si’ o Papa a submete à rigorosa crítica (nn. 106-114). Na Fratelli tutti afirma com severidade: “a política não deve submeter-se à economia e esta não deve submeter-se aos ditames e ao paradigma eficientista da tecnocracia” (n. 177). A ciência deve ser feita com consciência e a técnica com critérios éticos em vista do bem comum.

O poder como dominação significou historicamente uma devastação das culturas como aquelas mesoamericanas e dos povos originários, uma tentativa de homogeneização dos hábitos de pensar, de agir e das diversas culturas, liquidando com as suas diferenças. Tal projeto perturbador ocasionou guerras que dizimaram mais de 200 milhões de pessoas e que encontrou sua máxima expressão na Shoah, “símbolo dos extremos aonde pode chegar a malvadez humana” (n. 247): os seis milhões de judeus e outros condenados às câmaras de gás pelo nazismo. Pesarosamente constata “no nosso mundo vive-se uma guerra mundial aos pedaços” (n. 259).

A figura é do ser humano como dominus, senhor e dono (maître et possesseur) de tudo. A natureza e a própria Terra (mera res extensa) não possuem valor algum em em si mesmas, apenas na medida em que se ordenam ao ser humano. Ele está acima da natureza e não se entende como parte dela ou ao pé dela. Nas palavras da Fratelli tutti: “é a pretensão de sermos senhores absolutos da própria vida e de tudo o que existe” (n. 34).

Em contraposição a este paradigma do dominus, a Fratelli tutti apresenta o paradigma do frater, do irmão (e da irmã, soror) donde se deriva a fraternidade universal (a sororidade universal). Incluindo os dois gêneros, seria a irmandade universal, todos, homens e mulheres, irmãos e irmãs.

Dito numa linguagem pedestre: o paradigma do dominus, do senhor e dono é representado pelo punho cerrado para submeter, enquanto o frater é a mão aberta e estendida para a carícia essencial e para se entrelaçar com outras mãos.

Aqui reside a grande virada paradigmática proposta pela Fratelli tutti. Não é mera projeção sonhática. Capta as tendências de nossa época e afirma que existe “um anseio mundial de fraternidade” (n. 8). Belamente sustenta que “aqui está um ótimo segredo para sonhar e tornar a nossa vida uma bela aventura… é juntos que se constroem os sonhos. Sonhemos como uma única humanidade, como caminhantes da mesma carne humana, como filhos e filhas desta mesma Terra…todos irmãos e irmãs” (n. 8).

Explicitamente assevera o Francisco de Roma que se inspirou em Francisco de Assis “o santo do amor fraterno…que se sentia irmão do sol, do mar e do vento…que andou junto dos pobres, abandonados, doentes, descartados, dos últimos” (n. 2). Consequentemente Francisco de Assis “suscitou o sonho de uma sociedade fraterna…; libertou-se de todo o desejo de domínio sobre os outros” (n. 4).

Esse sonho de um medieval, chamado de “o primeiro depois do Único (Jesus de Nazaré)” “o melhor dos homens que o Ocidente gerou” (Toymbee), é que a Fratelli tutti procura traduzir para os dias atuais.

É importante enfatizar esta contraposição de paradigmas. Urge fazer a transição do dominus para o frater se quisermos enfrentar com sucesso as ameaças que pesam sobre o sistema-Terra e o sistema-vida, assinaladas no primeiro capítulo “as sombras de um mundo fechado” (nn.9-55). Na epidemia de Covid-19 “ficou evidente a incapacidade de agir em conjunto”(n.7); “a sociedade cada vez mais globalizada torna-nos vizinhos, mas não nos faz irmãos” (n. 12); pode fazer-nos sócios, “aquele que é associado para determinados interesses” (n. 102) mas não próximos no sentido da parábola do bom samaritano (n. 102) detalhadamente analisada pelo Papa (nn. 63-86).

7. As ressonâncias da fraternidade e do amor social

O Papa apela para o princípio da esperança (Ernst Bloch) que é mais que uma virtude pois é ela “que nos fala duma realidade que está enraizada no mais fundo do ser humano, independentemente das circunstâncias concretas e dos condicionamentos históricos em que vive…; ela nos abre aos grandes ideais” (n. 55). Como tem afirmado com frequência aos movimentos sociais: “não esperem nada de cima, pois vem sempre mais do mesmo ou ainda pior”. Assinala que “É possível começar por baixo, caso a caso, lutar pelo mais concreto e local, até ao último rincão da pátria e do mundo” (n. 78). Mas “não façamos sozinhos, individualmente…; nós estamos chamados a convidar outros e a encontrar-nos num «nós» mais forte do que a soma de pequenas individualidades” (n. 78).

A fraternidade se funda no fato ”de que todos os seres humanos foram criados iguais nos direitos, nos deveres e na dignidade e chamados a conviver entre si como irmãos” (n. 5). O amor fraterno “abre-se a uma dimensão universal” (n. 6). Possui um vínculo essencial com todos os seres vivos com os quais o ser humano comunga do mesmo código genético, o que o torna parente, primo, irmão e irmã com todos os seres da natureza: “a vida subsiste onde há vínculos, comunhão e fraternidade” (n. 87)

Só haverá “a fraternidade conscientemente cultivada, quando há uma vontade política de fraternidade, traduzida numa educação para a fraternidade, para o diálogo e para a descoberta da reciprocidade e enriquecimento mútuo” (n.103). Com ênfase diz a Fratelli tutti “enquanto houver uma pessoa descartada não poderá haver a festa da fraternidade” (n. 110).

Nesse ponto o papa Francisco faz uma severa advertência, de uma provável bifurcação da humanidade, de “um cisma” (n. 31), coisa que já foi aventada por notáveis sociólogos que analisam a condição atual do mundo. “Nunca se dirá que não sejam humanos, menos importantes e menos humanos” (n. 39).

Para obviar esta terrível possibilidade da bifucação, confere um lugar especial à amizade social que “se estende para além das fronteiras” (n. 99). É a amizade social que “torna possível o desenvolvimento de uma comunidade mundial, capaz de realizar a fraternidade a partir de povos e nações que vivam a a amizade social; ela torna necessária uma política melhor, a política colocada ao serviço do verdadeiro bem comum” (n. 154).

Mas o acento maior é conferido ao ao amor, “condição para possibilitar uma verdadeira abertura universal” (n. 99). Releva enfatizar, que “pela sua própria dinâmica, o amor exige uma progressiva abertura, maior capacidade de acolher os outros, numa aventura sem fim, que faz convergir todas as periferias rumo a um sentido pleno de mútua pertença” (n. 95) porquanto “ela implica um caminho eficaz de transformação da história que exige incorporar tudo: instituições, direito, técnica, experiência, contribuições profissionais, análise científica, procedimentos administrativos” (n. 164).

Tal afirmação é carregada de significado: “Esta caridade política supõe ter maturado um sentido social que supere toda a mentalidade individualista: “A caridade social leva-nos a amar o bem comum e a buscar efetivamente o bem de todas as pessoas, consideradas não só individualmente, mas também na dimensão social que as une”(182). E coloca sua marca registrada na centralidade do amor: “Esta caridade, coração do espírito da política, é sempre um amor preferencial pelos últimos, que subjaz a todas as ações realizadas em seu favor (187). Esse amor faz do distante um próximo e do próximo um irmão e uma irmã.

O novo paradigma da fraternidade e do amor social se desdobra no amor em sua concretização pública, no cuidado dos mais frágeis, na cultura do encontro e do diálogo, na política como ternura e amabilidade.

Quanto à cultura do encontro, toma a liberdade de citar o poeta brasileiro Vinicius de Moraes em seu Samba da Bênção de 1962, onde diz: “A vida é a arte do encontro embora haja tantos desencontros na vida” (n.215).

A política não se reduz à conquista do poder de estado nem à divisão dos poderes. Afirma de forma surpreendente: “Também na política há lugar para o amor com ternura: aos mais pequenos, aos mais débeis, aos mais pobres; eles devem enternecer-nos e têm o ‘direito’ de nos encher a alma e o coração; sim, são nossos irmãos e como tais temos que amá-los e assim tratá-los” (n.194) E se pergunta que é a ternura e responde: “é o amor que se faz próximo e concreto; é um movimento que procede do coração e chega aos olhos, aos ouvidos, às mãos” (n.196). Isso nos faz recordar a frase de Gandhi, uma das inspirações do Papa, ao lado de São Francisco, Luther King, Desmond Tutu: “a política é um gesto de amor para com povo, o cuidado das coisas comuns”.

Junto com a ternura comparece a amabilidade que nós traduziríamos por gentileza, virtude específica de São Francisco de Assis. Assim define a amabilidade: “um estado de ânimo que não é áspero, rude, duro, senão afável, suave, que sustenta e fortalece; uma pessoa que possui esta qualidade ajuda aos demais para que sua existência seja mais suportável” (n.223). Eis um desafio aos políticos, feito também aos bispos e padres: fazer a revolução da ternura.

A solidariedade que outrora nos fez dar o salto da animalidade para a humanidade, é, por isso, uma das notas essenciais do humano e do social. Ela “se expressa concretamente no serviço que pode assumir formas muito diversas e de tomar para si o peso dos outros; em grande parte é cuidar da fragilidade humana” (n.115). Essa solidariedade se mostrou ausente e só depois eficaz no combate à covid-19. Ela impede a divisão da humanidade entre o ‘meu mundo’, os ‘outros’ e ‘eles’, pois “muitos deixam de ser considerados seres humanos com uma dignidade inalienável e passam a ser apenas “eles” (n.27). E conclui com um grande desejo: “Oxalá no final não haja “os outros” mas apenas um “nós” (n.35).

8. Passos para a transição do “senhor” para o “irmão”

Como fazer essa travessia do senhor para o irmão? O texto abre com uma frase rica de consequências: “O mundo existe para todos, porque todos nós, seres humanos, nascemos nesta Terra com a mesma dignidade (n.118). Todos somos filhos e filhas da Mãe Terra, mais ainda, segundo a Laudato Si’, somos todos Terra (n.2).

Em seguida assinala um processo: “o bem, o amor, a justiça e a solidariedade não se alcançam de uma vez para sempre; hão de ser conquistados cada dia” (n.11).

Neste particular a encíclica não oferece grandes detalhes e com razão. Muitos são os ecossistemas nos vários continentes e países e não existe uma fórmula comum. Cada ecorregião possui suas singularidades face à quais devem-se definir os passos para uma transição efetiva. Isso é deixado, deliberadamente, para a iniciativa dos cidadãos.

Mas decididamente encoraja: “é possível começar por baixo e caso a caso, lutar pelo mais concreto e local, até ao último rincão da pátria e do mundo” (n.78). Entretanto, remete-se a dois temas, um constante na doutrina social da Igreja e o outro representa a ponta da discussão ecológica atual, a subsidiariedade, e a região e o biorregionalismo.

A Fratelli tutti recolhe “o princípio de subsidiariedade que abrange a participação e a ação das comunidades, a organização de nível menor” (n.175) e para apoiar os movimentos que nascem de baixo: tudo que uma instância inferior puder fazer, não o faça a instância superior. Com isso, abre caminho para iniciativas de pequenos grupos, à agricultura familiar e comunitária, à economia circular, à agroecologia e à uma democracia participativa e não apenas delegatícia.

A outra categoria à qual dedica vários parágrafos é o cultivo da região ou do biorregionalismo, pois é “o local, que nos faz caminhar com os pés por terra” (n.142). Aprofunda a ideia e sustenta que “temos de assumir intimamente o local, pois tem algo que o global não possui: ser fermento, enriquecer, colocar em marcha mecanismos de subsidiariedade. Portanto, a fraternidade universal e a amizade social dentro de cada sociedade são dois polos inseparáveis e ambos essenciais (n.142). Há que se articular sempre o local com o global para ter uma experiência integradora nesta fase nova da humanidade: “Não é possível ser saudavelmente local sem uma sincera e cordial abertura ao universal, sem se deixar interpelar pelo que acontece noutras partes, sem se deixar enriquecer por outras culturas, nem se solidarizar com os dramas dos outros povos”(146).

Esta articulação entre o local com o global permite o surgimento da comunidade mundial que não é o resultado da soma os vários países, mas sim, a própria comunhão que existe entre eles e a mútua inclusão (n.137).

Para dar corpo ao sonho de uma fraternidade universal e de amor social, convoca todas as religiões pois “elas oferecem uma contribuição valiosa na construção da fraternidade e para a defesa da justiça na sociedade” (n.271).

No final evoca a figura do irmãozinho de Jesus, Charles de Foucauld, que no deserto do norte da África junto à população muçulmana queria ser “definitivamente o irmão universal” (n.287). Fazendo seu este propósito o papa Francisco observa: “Só identificando-se com os últimos chegou a ser o irmão de todos; que Deus inspire esse sonho em cada um de nós. Amém” (n.288).

Conclusão: homem universal, um irmão entre irmãos

Estamos inequivocamente diante de um grande sonho, na linha das grandes utopias humanas. Face à gravidade da situação atual, parece, não termos outra alternativa senão consultar o que há de melhor em nossa humanidade e dela extrair um projeto comum que nos poderá salvar.

De todos os modos, estamos diante de um homem, o papa Francisco, que por seu exemplo e palavra se alçou à altura de um dos maiores líderes espirituais e políticos da humanidade, senão o maior de todos. Despojou-se dos títulos inerentes à sua alta função como Papa e fez-se irmão de todos para falar como irmão entre irmãos. A exemplo de seu patrono Francisco de Assis, transformou-se também num homem universal, acolhendo a todos e se identificando com os mais vulneráveis e invisíveis de nosso mundo, cruel e sem piedade. Ele suscita a esperança de que podemos e devemos alimentar o sonho da fraternidade sem fronteiras e do amor universal. Move-o a fé de que “Deus criou tudo por amor e que é o apaixonado amante da vida” (Sab 11, 26). Espera que Ele não permitirá que a humanidade, já entronizada no Reino da Trindade pela ressurreição e ascensão de um irmão nosso, Jesus de Nazaré, desapareça assim tão miseravelmente. Iremos ainda viver e brilhar.

Ele fez a sua parte. Compete a nós não deixar que o sonho seja apenas sonho, mas seja aquilo que ele significa, o antecipador de realidades futuras e possíveis: o começo seminal de uma nova forma de habitar juntos, como irmãos e irmãs e com a natureza, na mesma Casa Comum. Teremos tempo e sabedoria para esse salto? O tempo o dirá. Seguramente continuarão as “sombras vastas”. Mas temos uma lâmpada na Fratelli tutti. Ela não dissipa todas as “vastas sombras”. Apenas nos ilumina o caminho a ser percorrido por todos. E isto nos basta.

Sobre o autor:

Leonardo Boff

Leonardo Boff é ecoteólogo, filósofo e escritor e autor de “Francisco de Assis e Francisco de Roma” (Editora Mar de Ideias, Rio 2015), dentre tantos outros livros.

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“Como pastor, fiquei impressionado com a Encíclica Fratelli Tutti”, COM A PALAVRA CLÁUDIO RIBEIRO https://observatoriodaevangelizacao.com/como-pastor-fiquei-impressionado-com-a-enciclica-fratelli-tutti-com-a-palavra-claudio-ribeiro/ Thu, 05 Nov 2020 10:34:56 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=36195 [Leia mais...]]]> A última Encíclica lançada pelo papa Francisco, “Fratelli tutti”, tem sido motivo de muitos debates enriquecedores, ganhando ampla cobertura da mídia e sendo, por alguns, classificada como a “Encíclica laica”.

Para compreendê-la a partir de uma perspectiva ecumênica, conversamos com o pastor metodista Claudio Ribeiro, que também é doutor em Teologia pela PUC-Rio e professor de Teologia e Ciências da Religião. 

Prof. dr. pastor Cláudio de Oliveira Ribeiro

Confira a entrevista do Conic: 

1. Recentemente, o papa Francisco escreveu a Encíclica “Fratelli tutti”. Nela, propõe que as religiões estejam a serviço da fraternidade no mundo. De que modo isso é inovador nos dias de hoje, onde temos cada vez mais grupos defendendo justamente o oposto?

Pr. Claudio: Como pastor evangélico, fiquei, mais uma vez, profundamente impressionado e grato pelos conteúdos apresentados pelo papa Francisco na Encíclica Fratelli Tutti. Já tinha tido esse mesmo sentimento por ocasião da promulgação da Encíclica Laudato Si’. Naquela oportunidade, tive o prazer de organizar um livro com reflexões e depoimentos de lideranças evangélicas do Brasil, de diferentes ramos, incluindo pentecostais; o espírito de acolhida e gratidão deu o “tom” das avaliações contidas na obra. Trata-se de Evangélicos e o Papa: olhares de lideranças evangélicas sobre a Encíclica Laudato Si’, do Papa Francisco (Ed. Reflexão, 2016). A preocupação com a sustentabilidade da vida constitui uma base ecumênica singular.  

Agora, de forma similar, Fratelli Tutti, ao apresentar uma ampla visão sobre o diálogo e a justiça no mundo, incluindo as dimensões da economia, da política, das comunicações e das religiões, reforça a dinâmica ecumênica já apresentada no século 20 no contexto das comunidades evangélicas e ortodoxas que integram o Conselho Mundial de Igrejas e de diversos grupos católicos precursores de uma variedade de movimentos pela paz, justiça e libertação social. Neste sentido, parece-me que a palavra-chave é que Fratelli Tutti é necessária, oportuna e importantíssima, especialmente em função da polarização vivida no mundo fruto da violência de grupos que não aceitam os processos democráticos, nem o empoderamento dos pobres, das mulheres e demais grupos que anseiam por condições justas e que fecham os olhos para as injustiças sociais. O fato de o Papa valorizar outras fés na elaboração e na apresentação da Encíclica é um elemento que renova nossas esperanças e utopias. 

2. Em um dos trechos do documento é dito o seguinte: “Aquilo que ainda há pouco tempo uma pessoa não podia dizer sem correr o risco de perder o respeito de todos, hoje pode ser pronunciado com toda a grosseria” – uma clara alusão às mídias sociais. De algum modo, tais mídias sociais contribuíram para dificultar “o confronto entre as diferenças”?

Pr. Claudio: O papa Francisco tem nos dado exemplos de comunicabilidade e amabilidade. Isto é um excelente testemunho! Considero que a violência que marca as comunicações interpessoais, diretas ou pela Internet, hoje, são causadas pelo sistema econômico excludente e gerador de injustiças.

As mídias, assim como outros espaços como as diversas instituições e até mesmo comunidades religiosas, reproduzem essa violência criada pelo sistema econômico. Por isso, uma educação para o respeito é sempre necessária e urgente.

A internet pode ser um bom espaço para isso. Milhões de pessoas seguem o papa Francisco pelo Twitter. Isso é ótimo! Mas, penso que é possível avançar rumo a uma comunicação mais dialógica. Por exemplo, o papa Francisco não segue ninguém no Twitter, diferentemente de outras personalidades destacadas no mundo, como o ex-presidente dos EUA Barack Obama, que, pelo mesmo canal, têm milhões de seguidores e segue outros tantos.  

3. Fazendo gancho com a pergunta anterior, como a Igreja (comunidades cristãs) poderia ser um antídoto a esse distanciamento que não propicia o encontro dos diferentes? E por qual motivo não tem tido êxito?

Pr. Claudio: As comunidades cristãs, historicamente, sempre foram um espaço privilegiado de comunicação e diálogo. Isto se dá tanto no nível das bases quanto em espaços institucionais. É fato que ambiguidades e contradições não faltaram e estão aí cada vez mais presentes. Fratelli Tutti vem reforçar as iniciativas do próprio papa Francisco desde o início do seu pontificado na direção do encontro, da alteridade, da crítica social e do amor. 

Eu não diria que as comunidades cristãs não têm tido êxito nesta tarefa. Talvez não estejam tendo a visibilidade devida. Ou estejamos em uma transição de etapas nesta luta dificílima entre “Davi e Golias”.  Pode ser que precisemos de um olhar mais apurado: ver o que as mulheres negras estão fazendo nas áreas mais pobres das cidades, tanto em comunidades católicas quanto evangélicas, mas também no conjunto das religiões e da sociedade, ver os posicionamentos dos grupos LGBT+, olhar com atenção as ações das juventudes, sobretudo nas áreas periféricas.

As atitudes do papa Francisco têm sido excelentes, mas é preciso olhar o mundo de maneira mais ampla. A solidariedade vivida por esses grupos, em comunidades religiosas, cristãs e não cristãs, e por agrupamentos não religiosos, se fronteiriza com a Fratelli Tutti.  Nela, o Papa chamou a atenção de que “encontramo-nos mais sozinhos do que nunca neste mundo massificado, que privilegia os interesses individuais e debilita a dimensão comunitária da existência. Em contrapartida, aumentam os mercados, onde as pessoas desempenham funções de consumidores ou de espectadores. O avanço deste globalismo favorece normalmente a identidade dos mais fortes que se protegem, mas procura dissolver as identidades das regiões mais frágeis e pobres, tornando-as mais vulneráveis e dependentes. Desta forma, a política torna-se cada vez mais frágil perante os poderes econômicos transnacionais que aplicam o lema ‘divide e reinarás’”. 

4. Na encíclica, Francisco também usa o termo “dogma de fé neoliberal”. Podemos dizer que o neoliberalismo é, de algum modo, uma “religião”?

Pr. Claudio: Vários estudiosos têm feito esta comparação, especialmente a partir dos pensamentos dos filósofos Walter Benjamim e Giorgio Agamben e do teólogo Paul Tillich. É fato que o neoliberalismo econômico hoje tem mais força na organização e mobilização da vida das pessoas dos que todas as religiões juntas.

Daí a importância de se criticar o sistema capitalista, como fez o papa Francisco, ao dizer que “o mercado, por si só, não resolve tudo, embora às vezes nos queiram fazer crer neste dogma de fé neoliberal. Trata-se dum pensamento pobre, repetitivo, que propõe sempre as mesmas receitas perante qualquer desafio que surja. O neoliberalismo reproduz-se sempre igual a si mesmo, recorrendo à mágica teoria do ‘derrame’ ou do ‘gotejamento’ – sem a nomear – como única via para resolver os problemas sociais. Não se dá conta de que a suposta redistribuição não resolve a desigualdade, sendo, esta, fonte de novas formas de violência que ameaçam o tecido social”. 

5. Outro ponto do documento faz referência às estratégias políticas de “semear o desânimo e despertar uma desconfiança constante” entre os povos como estratégia de dominação e conquista, tendo como consequência nações cada vez mais polarizadas. Mas essas estratégias não são, necessariamente, novidades. Então, por qual motivo, na sua opinião, o papa fez questão de frisar isso?

Pr. Claudio: O papa Francisco é um líder espiritual de profunda sensibilidade humana e atento aos sinais dos tempos. Ele se sente bem ao lado de outras lideranças que buscam a justiça e a paz neste mundo e não sabe disfarçar o constrangimento quando precisa receber outras que investem na cultura do ódio e nas formas de dominação. Recentemente, tornou-se muito popular na Internet a divulgação de fotos do papa Francisco onde este quadro comparativo era bastante visível.

Não é à toa que na Fratelli Tuttii ele afirme que “a história dá sinais de regressão. Reacendem-se conflitos anacrônicos que se consideravam superados, ressurgem nacionalismos fechados, exacerbados, ressentidos e agressivos. Em vários países, certa noção de unidade do povo e da nação, penetrada por diferentes ideologias, cria novas formas de egoísmo e de perda do sentido social mascaradas por uma suposta defesa dos interesses nacionais”.  

6. Alguns movimentos criticaram o título da Encíclica, afirmando que ela tinha um viés machista por não ter usado uma linguagem inclusiva (Fratelli tutti = todos irmãos). Na sua visão, tal crítica está adequada?

Pr. Claudio: Tempos atrás, o líder de uma destacada banda de rock disse com certo humor e saudável ironia que: “se a pessoa mais progressista que temos hoje no mundo é o Papa é porque este mundo está mal mesmo”. Se isso for um fato, talvez tenhamos que admitir que, considerando o fechamento pelo qual as igrejas passaram nas últimas três décadas, as grandes demandas da sociedade no plano das desigualdades econômicas e os limites que as esferas eclesiásticas têm, a Encíclica não ter um título mais inclusivo pode não ser tão grave assim.

Eu ficaria mais feliz se fosse uma expressão que articulasse a sororidade e a fraternidade. Acho que homens e mulheres que acreditam no diálogo e no valor do pluralismo devem(os) trabalhar nesta direção. Penso que as eventuais críticas ao título da Encíclica são adequadas se considerarem os aspectos que descrevi acima. O conteúdo e o espírito da Encíclica são inclusivos e, sobretudo neste momento de crescimento de visões que nos lembram práticas fascistas e violentas, eles devem ser valorizados. 

Fonte:

www.conic.org.br

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Para uma aproximação e visão de conjunto da Carta Encíclica Fratelli Tutti do papa Francisco https://observatoriodaevangelizacao.com/para-uma-aproximacao-e-visao-de-conjunto-da-carta-enciclica-fratelli-tutti-do-papa-francisco/ Fri, 30 Oct 2020 19:27:23 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=36149 [Leia mais...]]]> O Observatorio da Evangelização compartilha aqui esta síntese criativa da nova Carta Encíclica Fratelli Tutti, mesmo sem ter tido acesso à autoria, pela criatividade e capacidade de instigar para a leitura e estudo deste importante documento.

Confira:

Fonte:

Desconhecemos até então a autoria.

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Para uma visão geral da Carta Encíclica “Fratelli Tutti” do Papa Francisco https://observatoriodaevangelizacao.com/para-uma-visao-geral-da-carta-enciclica-fratelli-tutti-do-papa-francisco/ Fri, 30 Oct 2020 18:37:25 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=36129 [Leia mais...]]]> Para motivar a leitura deste importante Documento da Igreja, a recente Carta Encíclica Fratelli Tutti do papa Francisco, o Observatório da Evangelização publica aqui este significativo instrumental elaborado pelo Setor Juventude da Diocese de Valência.

Confira:

Fonte:

Diocese de Valência

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“Oração ao Criador”, do papa Francisco em sua Fratelli Tutti https://observatoriodaevangelizacao.com/oracao-ao-criador-do-papa-francisco-em-sua-fratelli-tutti/ Wed, 28 Oct 2020 02:20:38 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=36120 [Leia mais...]]]> Senhor e Pai da humanidade, 

que criastes todos os seres humanos com a mesma dignidade, 

infundi nos nossos corações um espírito fraterno. 

Inspirai-nos o sonho de um novo encontro,

de diálogo,

de justiça

e de paz. 

Estimulai-nos a criar sociedades mais sadias

e um mundo mais digno, 

sem fome,

sem pobreza,

sem violência,

sem guerras. 

Que o nosso coração se abra 

a todos os povos e nações da terra, 

para reconhecer o bem

e a beleza que semeastes em cada um deles, 

para estabelecer laços de unidade,

de projetos comuns, 

de esperanças compartilhadas.

Amém. 

FRANCISCO, Oração ao Criador. In: Fratelli Tutti, p. 111-112

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Papa Francisco reza no túmulo de São Francisco e LANÇA hoje, diretamente de Assis, A sua nova Encíclica sobre a Fraternidade e a amizade SOCIAL: FRATELLI TUTTI https://observatoriodaevangelizacao.com/papa-francisco-reza-no-tumulo-de-sao-francisco-e-lanca-hoje-diretamente-de-assis-a-sua-nova-enciclica-sobre-a-fraternidade-e-a-amizade-social-fratelli-tutti/ Sat, 03 Oct 2020 13:24:17 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=35853 [Leia mais...]]]> Do mundo inteiro, cristãos e pessoas de boa vontade têm um encontro marcado com o Papa Francisco em Assis, neste sábado, dia 3 de outubro de 2020. A Rádio Vaticano/Vatican News transmitirá a missa presidida pelo Papa junto ao túmulo de São Francisco, na cidade de Assis, ao vivo a partir das 14h55, horário local e 09h55 no horário de Brasília. Será possível acompanhar a cerimônia através do site vaticannews.va/pt e do canal no YouTube e no Facebook, com comentários em português.

Devido à situação sanitária, por responsabilidade social, é desejo do Papa Francisco que a visita a Assis se realize de forma privada, sem a participação dos fiéis. Ao final da cerimônia, o Papa assinará sua nova encíclica, “FRATELLI TUTTI”, sobre a fraternidade e a amizade social. Concluído o evento, o Santo Padre regressará ao Vaticano.

Para ler a Encíclica sobre a fraternidade e a amizade social Fratelli Tutti, em português, clique no título abaixo:

Papa Francisco reza no túmulo de São Francisco de Assis.

O Papa em Assis. A fraternidade no caminho da Igreja em saída

Pela primeira vez, um Papa deixa o Vaticano para assinar uma Encíclica. Trata-se de um gesto bastante simbólico, pois, neste sábado, 3 de outubro de 2020, Francisco dirige-se a cidade de Assis, centro de irradiação de uma espiritualidade que ultrapassa os limites do cristianismo católico, cujo nome escolheu quando foi escolhido para ser o Papa.

O Vaticannews colheu as expectativas para este documento com o bispo auxiliar de Milão dom Paolo Martinelli ofm, ex-reitor do Instituto Franciscano de Espiritualidade da Pontifícia Universidade Antonianum, e com o padre jesuíta Luigi Territo, estudioso de Teologia Fundamental e Teologia Islâmica na Faculdade de Teologia “Italia Meridionale”.

Confira:

A assinatura em Assis é sinal de uma Igreja que se pensa em movimento e em saída

Para destacar o significado deste gesto o dom Paolo Martinelli sublinha que foi o lugar onde Francisco deu origem a uma experiência de vida espiritual, cujo coração fundamental foi justamente o reconhecimento do ser irmãos uns dos outros. Já para o padre Luigi Territo o gesto de Francisco indica o valor de uma Igreja que encontra sua identidade ativamente na dinâmica “em saída”. Como o Papa gosta de repetir: “Ele parece dizer ao mundo que há uma prioridade mística e espiritual da experiência de fé sobre todas as formas institucionais de nossas crenças. Assis representa tudo isso, e não apenas para os cristãos, onde existe a memória histórica de um santo que viveu como os pequenos do Evangelho, totalmente confiado ao Pai e por isso reconhecido como um irmão de todos”.

Papa Francisco reza no túmulo de São Francisco de Assis.

O papa Francisco já vem concretizando um Magistério impregnado de fraternidade

Recordando as encíclicas do papa Francisco, lembra Paolo Martinelli:

Pode-se facilmente rastrear as sementes que de alguma forma prepararam o terreno para o tema da Fratelli tutti. Refiro-me ao texto da Evangelii gaudium, na qual em algumas passagens Francisco fala de uma mística de convivência, de união, de encontro, de tomar um ao outro pela mão, de se apoiar um ao outro e de levar uma relação de fraternidade a todas as pessoas. Vejo uma profunda ligação, pelo menos considerando o título, com esse texto fundamental e programático de seu pontificado“.

O Martinelli sublinha a ideia de estarmos unidos uns aos outros para o reconhecimento misterioso da presença de Deus em cada um de nós. Uma mística que sabe perceber Deus dentro das relações fraternas.

Mas também em Christus Vivit, a exortação dirigida aos jovens após o Sínodo, há a valorização do estilo de abertura a todos, da atenção ao ser humano concreto de cada pessoa, da sinceridade, da coragem, da confiança mútua: os fundamentos de um poderoso sentimento de fraternidade“.

E aqui a citação de Francisco de Assis é apropriada: “Quando ele escreveu seu testamento, ele escreve: ‘O Senhor me deu irmãos…”.

Uma Encíclica que lança definitivamente a Igreja na perspectiva de abertura e acolhida de todos como irmãos e irmãs

Padre Luigi Territo compartilha a referência ao texto da Evangelium Gaudium em que o Papa fala de uma Igreja que sabe dar o primeiro passo, que sabe tomar a iniciativa sem medo, vai em busca dos afastados, na encruzilhada dos caminhos:

Não é tanto a questão da fraternidade da reciprocidade, mas o conceito de uma Igreja que não espera, que se lança em direção a seus irmãos, que marca um caminho. Neste sentido, a Igreja para o Papa é precisamente o fermento da fraternidade. Vejo isso também na Amoris Laetitia, e na Laudato si’: há a ideia do acompanhamento de toda a humanidade, do amor conjugal, dos casais feridos, o acompanhamento dos excluídos, a preocupação com as feridas da Terra. Em resumo, a ideia da Igreja que cuida de toda a humanidade“.

Como a Encíclica Fratelli Tutti concebe a fraternidade?

Um sentimento, um valor, uma disposição mental, um mandamento, um estilo de vida, um presente? Para Luigi Territo:

Do ponto de vista cristão é acima de tudo uma responsabilidade no sentido forte do termo. Uma resposta decisiva e consciente a um modo de vida que Jesus nos mostrou. Um rosto de Deus que Jesus mostrou, fraterno, acolhedor, aberto, não moralista, e também, se quisermos, uma resposta ao chamado original na Gênesis: ‘O que você fez com seu irmão?’ Não é coincidência que o Documento de Abu Dhabi também comece com ‘Em nome de Deus…’. Não em nome da coexistência social, da paz, da solidariedade. Mas em nome de Deus. No sentido cristão, então, é uma resposta a um chamado de fraternidade“.

Dom Paolo Martinelli recorda uma das intuições fundamentais da Laudato si’, na qual se repete que tudo está em relação:

Do ponto de vista vital da estrutura do existente, tudo nos chama a acolhermo-nos uns aos outros. É emblemática a experiência de São Francisco de Assis, que vive uma profunda familiaridade com tudo e todos. No sentido cristão, há o reconhecimento de que o que Cristo vem revelar é o mistério do Pai que nos quer um a um, originais, únicos e irrepetíveis. Isto nos permite recomeçar sempre, em todos os relacionamentos”.

Distinção importante entre fraternidade e pseudo-comunitarismo

O caminho da fraternidade universal não é isento de dificuldades e riscos, pois o inimigo está sempre à espreita. Dom Martinelli adverte que :

Qualquer afirmação ideal que nos impele a uma tensão do bem não pode nos garantir a priori das dificuldades e também dos confrontos que possam acontecer. O interessante é cultivar este estilo e este reconhecimento do bem que o outro é como algo a mais de mim. Jamais poderia dizer, contigo tudo acabou e tenho que matá-lo. Disso nasce o perdão e a misericórdiaSe a fraternidade exclui, significa que já existe o germe da doença. É necessário, portanto, educar-se para reconhecer o bem do outro como uma riqueza inesgotável. Esta foi a experiência de São Francisco, que no início foi muito excludente [e cita a história do leproso, do qual ele fugia] até sentir-se realmente um irmão universal de todos“.

Luigi Territo também adverte:

Há também formas de fraternidade que excluem. Um exemplo são os fundamentalismos. Em vez disso, o sentimento íntimo de fraternidade é o de se tornar próximo. Há formas de incompreensão da fraternidade que são formas erradas de pensar o comunitarismo, formas de pseudo-fraternidade que selecionam e distinguem a humanidade em diferentes classes, que rejeitam, que excluem em nome de uma fraternidade nacional, étnica, religiosa“.

Os líderes religiosos e a expectativa da nova Encíclica

Às vezes as religiões são utilizadas de forma manipuladora. Esta Encíclica poderá marcar a vocação de construir uma coexistência pacífica, vocação própria de toda religião?

Nas palavras Luigi Territo:

Creio que o Papa esteja seguindo um caminho, há um contínuo processo de diálogo e construção de pontes, como ele gosta de dizer. No documento de Abu Dhabi, por exemplo, afirma que não há alternativa no mundo em que vivemos. Por isso acredito que ‘Fratelli tutti’ continuará este processo que é feito, sim, de um magistério de escritos, mas também é feito de um magistério de gestos de fraternidade. Creio que os líderes religiosos estejam esperando por esta Encíclica com curiosidade, interesse e esperança, sabendo que o Papa propõe um caminho comum”.

Nas palavras de Paolo Martinelli:

Somos filhos de uma época em que a relação entre sociedade civil e religião tem sido problemática. Não é que para nos darmos bem com todos, temos que colocar nossa experiência religiosa entre parênteses. Isto não é possível, pois é justamente no reconhecimento da experiência religiosa e da estima mútua que podemos ser enriquecidos“.

(Adaptação e grifos: Edward Guimarães para o Observatório da Evangelização)

Acompanhe a missa e assinatura da Encíclica Fratelli Tutti:

Fonte:

www.vaticannews.va

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