Francisco Orofino – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com Tue, 19 Nov 2019 10:00:41 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.4 https://i0.wp.com/observatoriodaevangelizacao.com/wp-content/uploads/2024/04/cropped-logo.png?fit=32%2C32&ssl=1 Francisco Orofino – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com 32 32 232225030 “O pobre nunca nunca será esquecido”, com a palavra Francisco Orofino https://observatoriodaevangelizacao.com/o-pobre-nunca-nunca-sera-esquecido/ Tue, 19 Nov 2019 10:00:41 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=33270 [Leia mais...]]]> A esperança dos pobres jamais se frustrará (Sl 9,19b)

No dia 17 de novembro, 33º Domingo do Tempo Comum, celebramos o Terceiro Dia Mundial dos Pobres. O papa Francisco sugeriu como lema desta jornada a segunda parte do versículo 19 do Salmo 9. Em sua exortação para este Dia Mundial do Pobre, numa carta enviada a todo o povo santo de Deus, em 13 de junho deste ano, o papa destaca a força atual deste verso bíblico. Diz o papa: “Estas palavras expressam uma verdade profunda que a fé consegue gravar, sobretudo no coração dos mais pobres: a esperança perdida devido às injustiças, aos sofrimentos e à precariedade da vida, será restabelecida” (Mensagem §2). Em sua exortação, Francisco continua refletindo sobre o Salmo 9 e o Salmo 10, destacando as novas formas de escravidão nos dias de hoje, onde famílias são obrigadas a deixar suas terras procurando novas formas de sobrevivência; lembra os jovens que buscam realização profissional, “cujo acesso lhes é impedido por míopes políticas econômicas”; as vítimas de todas as formas de violência, humilhadas em seu íntimo; os milhões de migrantes, instrumentalizados em diferentes posturas políticas, a quem se nega solidariedade e igualdade.

Destacando o rosto de Deus que se revela neste Salmo 9 (Mensagem §5), Francisco lembra que a prática libertadora de Jesus é justamente revelar que Deus nunca se esquece do pobre. Por isso mesmo, o título deste artigo é a primeira parte deste mesmo versículo 19: “o pobre nunca será esquecido” (Sl 9,19a). Jesus é certeza que Deus nos dá de que os pobres nunca serão esquecidos. O Salmo 9 destaca a presença de Deus na luta pela justiça, na defesa do direito dos pobres e no triunfo sobre toda maldade que prejudica a vida dos carentes e necessitados. Firme em seu trono, Deus conduz a história, garantindo força e vida ao povo pobre e indefeso. Este é o programa que Jesus assume em sua vida pública.

Toda a missão de Jesus é “anunciar a Boa Nova aos pobres” (Lc 4,18). Ao enviar seus discípulos em missão, Jesus destaca a cura aos doentes (Lc 9,2), o anúncio da paz (Lc 10,5; Mt 10,13); a expulsão dos demônios (Mc 3,15). Direcionar este anúncio da Boa Nova de Deus aos mais pobres diferenciava Jesus de todos os outros movimentos religiosos dentro da sociedade daquela época.

Para os fariseus, os pobres eram os ignorantes e malditos (Jo 7,49). Numa visão preconceituosa e elitista, para os fariseus os doentes e possessos, vivendo no pecado (Jo 9,34), impediam o triunfo do Reino. Jesus enfrenta esta proposta farisaica vivendo como e com os pobres. Jesus não possui nada para si, nem mesmo uma pedra para reclinar a cabeça (Lc 9,58). Faz um radical discurso contra as riquezas, mandando a pessoa escolher entre Deus e o dinheiro (Mt 6,24). E quando se trata de administrar os bens, é preciso fazê-lo com eficácia, colocando tudo a serviço da vida (Lc 16,9-13).

A pobreza que caracteriza a vida de Jesus e de seus discípulos e discípulas, deve caracterizar também as propostas missionárias da comunidade. Quem parte em missão não pode levar nada consigo, nem dinheiro, nem duas túnicas, nem sacola ou sandália (Mt 10,9-10). Devem levar uma vida pobre (Mt 19,21), convivendo nas casas do povo (Lc 9,4), assumindo a proposta da partilha (Lc 10,7). Dar este testemunho diferente de pobreza era o passo que faltava para uma radicalização nos movimentos populares daquela época. Pela sua proposta concretizada em seu modo de viver, Jesus denuncia o sistema antigo que, em nome de Deus, excluía os pobres da riqueza do Reino. Ao mesmo tempo anuncia um novo começo que, em nome de Deus, acolhe os excluídos. Ele vai até a raiz da proposta de Deus e proclama um novo ano jubilar: é o Ano da Graça do Senhor (Lc 4,19). Deus nunca se esquece do pobre. Sem a acolhida dos pobres a aliança não se refaz. Jesus reafirma que a renovação da aliança começa pelo restabelecimento do direito dos pobres, dos excluídos. Nesta Nova Aliança, Jesus radicaliza a Lei. A raiz de toda a Lei é a prática do amor a Deus e ao próximo (Mt 7,12; 22,37-40).

Nas palavras e gestos de Jesus, Deus chega perto do pobre. Na pregação dos escribas e fariseus, Deus parecia uma figura inacessível, longe do pobre e distante dos marginalizados. Jesus, ao trazer a Boa Nova do Reino, traz Deus para um convívio familiar e íntimo com as pessoas. Jesus traz a Boa Nova que os pobres sempre esperaram. Por isso mesmo suas palavras exercem uma atração muito forte sobre os pobres. Eles percebem e acolhem esta novidade do anúncio de Jesus (Mc 1,22.27; Mt 11,25-26; Lc 10,23-24). E louvam com entusiasmo: “Este é verdadeiramente o profeta que deve vir ao mundo” (Jo 6,14).

O que o papa Francisco espera com estas jornadas mundiais em favor dos pobres é que a Igreja dê continuidade a esta missão de Jesus. Diz ele: “Aos discípulos do Senhor Jesus, a condição que se lhes impõe para serem evangelizadores coerentes é semear sinais palpáveis de esperança. A todas as comunidades cristãs e a quantos sentem a exigência de levar esperança e conforto aos pobres, peço que se empenhem para que este Dia Mundial possa reforçar em muitos a vontade em colaborar concretamente para que ninguém se sinta privado da proximidade e da solidariedade” (Mensagem § 10).

(Os grifos são nossos)

Sobre o autor:

Francisco Orofino

Francisco orofino é biblista, assessor de grupos populares e comunidades eclesiais de base nos municípios da Baixada Fluminense, doutor em Teologia Bíblica pela PUC-Rio e professor de Teologia Bíblica no Instituto Paulo VI, na diocese de Nova Iguaçu (RJ).

Fontes:

www.portaldascebs.org.br

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Chegou a hora dos leigos e leigas? Onde? Para quem? https://observatoriodaevangelizacao.com/chegou-a-hora-dos-leigos-e-leigas-onde-para-quem/ Mon, 05 Mar 2018 20:09:56 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=27503 [Leia mais...]]]> A Igreja Católica lançou no Brasil o Ano do Laicato, que ocorrerá ao longo do ano litúrgico de 2018. Pode ser mais uma oportunidade de retomar o papel do laicato na Igreja “em saída”, como lembram certas falas e documentos. Volta-se, novamente, a falar do protagonismo dos leigos, dentro do modelo de igreja pedido pelo Vaticano II. Soltam-se muitas frases de efeito e reflexões sobre este protagonismo laical. Aponta-se o mundo secular e suas culturas como o campo específico do laicato.

Um ano voltado para o papel do laicato pode ser um momento de avanço pastoral. Os leigos são “o sal da terra e a luz do mundo” (Mt 5,13.14). Mas seria bom também que os leigos e leigas fossem o sal da paróquia e luz da Igreja. O Ano do Laicato bem pode ser um momento propício de os leigos e leigas questionarem o clericalismo que ainda trava a ação pastoral da Igreja. Na sua Carta ao cardeal Marc Ouellet, de março de 2016, o papa Francisco lembra que

“olhar para o Santo Povo fiel de Deus e sentimo-nos parte integrante dele, posiciona-nos na vida e, portanto, nos temas que tratamos de maneira diversa. Isto ajuda-nos a não cair em reflexões que podem, por si só, ser muito úteis, mas que acabam por homologar a vida de nosso povo ou por teorizar de tal modo que a especulação acaba por matar a ação. Olhar continuamente para o povo de Deus salva-nos de certos nominalismos declarativos (slogans) que são frases bonitas, mas não conseguem apoiar a vida de nossas comunidades. Por exemplo, recordo a famosa frase ‘Chegou a hora dos leigos!’…mas parece que o relógio parou!”.

O que se espera de um Ano do Laicato é que o relógio seja colocado de novo em movimento.

O rumo dado à caminhada da Igreja a partir do Vaticano II, ou seja, a eclesiologia proposta por este Concílio, coloca o laicato como o sujeito da evangelização. Tal proposta se choca com a eclesiologia tridentina, que colocava o clero como principal agente da evangelização. Para que o protagonismo dos leigos possa avançar, a Igreja deve enfrentar o clericalismo. Voltando à carta de Francisco:

“Não podemos refletir sobre o tema do laicato ignorando uma das maiores deformações que a América Latina deve enfrentar – e para a qual peço que dirijais uma atenção particular – o clericalismo.”

Na carta, Francisco retoma todo o esforço de denúncia deste desvio feito no Documento de Aparecida. No entanto, a palavra “clericalismo” foi censurada e eliminada do Documento (por exemplo, em DAp 100 b). Não há dúvida de que o Ano do Laicato pode ser uma boa oportunidade em denunciar e trabalhar a mentalidade clericalista presente ainda em grande parte do laicato latino-americano. O mesmo vale para a formação do clero, ainda presa ao modelo tridentino de formar “fora do mundo”, num regime de internato.

Para o Vaticano II, os fiéis leigos são

“cristãos que estão incorporados a Cristo pelo batismo, que formam o povo de Deus e participam das funções de Cristo: sacerdote, profeta e rei. Realizam, segundo sua condição, a missão de todo o povo cristão na Igreja e no mundo” (LG 31; cf. DAp 209).

Portanto, na eclesiologia do Vaticano II o Santo Povo fiel de Deus, leigos e leigas, deve viver as dimensões messiânicas inerentes ao sacramento do batismo. É preciso recuperar a consciência de que, pelo batismo, todos somos sacerdotes e sacerdotisas, profetas e profetisas, reis e rainhas. E exercer estas funções “na Igreja e no mundo”.

Exercemos nosso sacerdócio batismal formando a assembléia celebrativa. Esta congregação dos batizados e batizadas torna-se sacramento da presença de Deus. Como disse Jesus: “onde dois ou mais estiverem reunidos em meu nome, eu estarei no meio deles” (Mt 18,20). É a assembléia celebrativa, congregada em nome da Trindade Santa, que pode dizer com toda força e convicção “O Senhor está no meio de nós!”. Nesta assembléia somos todos e todas co-celebrantes. Pelo batismo somos “consagrados para ser edifício espiritual e sacerdócio santo” (LG 10).

Exercemos nossa profecia batismal no serviço da Palavra de Deus. Leigos e leigas, no seguimento missionário de Jesus, têm a Palavra de Deus como fonte de sua espiritualidade. Esta Palavra é a alma da ação evangelizadora. Conhecer a Palavra é anunciar a Palavra. Desconhecer a Palavra é desconhecer o próprio Cristo. Nossa dimensão profética batismal nos leva a apresentar o Pão da Palavra, sendo necessária a interpretação adequada dos textos bíblicos presentes na liturgia, na catequese e nas várias frentes pastorais. Todo cristão batizado é agente da pastoral bíblica tendo em vista a animação bíblica de toda a pastoral (cf. DAp 248).

O batismo nos torna reis e rainhas. Um grande perigo é reduzir esta dimensão batismal régia à vivência da caridade. Todos temos que viver a caridade a partir das três dimensões messiânicas do batismo. A dimensão batismal régia nos torna a todos, leigos e leigas, co-responsáveis pela condução do povo de Deus, pela manutenção do patrimônio da Igreja e pela organização eclesial. Exercemos esta função régia ocupando cargos na administração ou na coordenação das comunidades, paróquias ou dioceses.

É inegável que houve substanciais avanços no protagonismo dos leigos dentro da vida eclesial. A formação teológica deixou de ser monopólio clerical, surgiram os ministérios, novas formas de organização e as responsabilidades pastorais. Também é certo que qualquer surto de reclericalização acontece em detrimento das conquistas leigas na vida da Igreja. Busca-se anular a participação dos leigos, calando-os e diminuindo-lhes os espaços de comunhão e participação. Como lembra Francisco em sua citada carta:

“O clericalismo leva a uma homologação do laicato, tratando-o como um ‘mandatário’ limita as diversas iniciativas e esforços e, ousaria dizer, as audácias necessárias para poder anunciar a Boa Nova do Evangelho em todos os âmbitos da atividade social e, sobretudo, política. O clericalismo, longe de dar impulso aos diversos contributos e propostas, apaga pouco a pouco o fogo profético do qual a Igreja está chamada a dar testemunho no coração de seus povos”

Viver o Ano do Laicato significa enfrentar o desafio do clericalismo. Não adianta “empurrar” os leigos para as ações missionárias fora do ambiente eclesial enquanto o leigo for considerado “cidadão de segunda categoria” dentro da Igreja. Leigo comprometido não pode ser aquele ou aquela que trabalha obediente e calado nas obras da Igreja. Como lembra Aparecida: “A construção da cidadania, no sentido mais amplo, e a construção da eclesialidade dos leigos, é um só e único movimento” (DAp 215). Leigos e leigas para o mundo, tudo bem! Mas leigos e leigas para a vida da Igreja também!

Francisco Orofino, biblista, assessor de grupos populares e comunidades de base nos municípios da Baixada Fluminense, doutor em Teologia Bíblica na PUC-Rio e professor de Teologia Bíblica no Instituto Paulo VI, na diocese de Nova Iguaçu (RJ).

Fonte:

Portal das CEBs

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“A Bíblia é o grande instrumento de libertação dos leigos”. Entrevista com o biblista Francisco Orofino https://observatoriodaevangelizacao.com/a-biblia-e-o-grande-instrumento-de-libertacao-dos-leigos-entrevista-com-o-biblista-francisco-orofino/ Thu, 01 Sep 2016 14:56:36 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=10163 [Leia mais...]]]> Que tal começar o mês da  Bíblia com uma forte reflexão crítica? Vale a pena ler a provocativa entrevista do biblista brasileiro Francisco Orofino concedida à Luis Miguel Modino e publicada por Religión Digital em 25 08 2016. Tivemos acesso a ela no site do Instituto Humanitas – IHU, com tradução de André Langer. Boa leitura…

Começo de conversa…

Quando se fala de Leitura Popular da Bíblia não se pode prescindir de Francisco Orofino, que, em companhia de Carlos Mesters e da equipe do CEBI (Centro de Estudos Bíblicos), soube encontrar o caminho para que no Brasil a Bíblia tenha chegado às pessoas e seja usada como instrumento diário do trabalho pastoral. A validade do seu trabalho e de sua metodologia comprova-se no fato de que pouco a pouco seus trabalhos foram sendo traduzidos para as diferentes línguas e que esta forma de aproximar o texto Bíblico da vida das pessoas esteja cada vez mais presente em todos os cantos do mundo.

Nesta entrevista, o biblista brasileiro nos mostra a importância de que a Bíblia esteja nas mãos do povo, uma prática consolidada entre nós no contexto do Concílio Vaticano II. Ao mesmo tempo, mostra as consequências que essa Leitura Popular da Bíblia tem, ou poderia ter, para a vida da Igreja no dia a dia.

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Biblista Francisco Orofino

Eis a entrevista.

1. Qual é a importância da Bíblia para a Igreja católica hoje?

Vejo a Bíblia no contexto pastoral latino-americano como o grande instrumento de libertação dos leigos, como uma coisa necessária para que eles possam ter mais poder de decisão na caminhada da Igreja.

Se há uma conquista irreversível do Vaticano II, ao menos no Brasil, é a Bíblia nas mãos do povo. Há iniciativas do Vaticano II em que houve retrocessos durante os 35 anos dos Pontificados de João Paulo II e Bento XVI, como a “reforma litúrgica” devido a reclericalização ou recentralização no clero. No entanto, é irreversível, ao menos na nossa perspectiva pastoral do Brasil, no aspecto da Bíblia nas mãos do povo. Pode chegar o Papa mais fechado, que não vai conseguir retroceder nessa conquista.

A Bíblia nas mãos do povo, no Brasil, é o grande gesto de libertação. Significa que o leigo tem em suas mãos aquilo que, segundo a própria Dei Verbum, é a fonte primeira da Revelação. E se o leigo tem em suas mãos a fonte primeira da Revelação e a lê a partir da sua própria realidade econômica e sociopolítica, esse leigo está fazendo teologia. Para dizer a verdade, a Bíblia nas mãos do povo rompeu o monopólio da teologia, até então restrita ao clero. Ter a Bíblia nas mãos do povo é um gesto de libertação da teologia clerical. Por isso, a Bíblia nas mãos do povo permite o avanço em duas grandes questões do Vaticano II, que sempre vão ser foco de tensão: a questão da desclericalização e da descentralização.

Creio que o papa Francisco, desde a sua experiência latino-americana, toca nessas duas teclas, que ele percebe que foram os pontos fracos das conquistas do Vaticano II. A descentralização, que ele traduz na sinodalidade, e a desclericalização, em relação a que aponta três grandes instrumentos pastorais para o processo de desclericalização: o poder de decisão dos conselhos pastorais paroquiais, os círculos bíblicos e as comunidades eclesiais de base. Portanto, vejo a Bíblia no contexto pastoral latino-americano como o grande instrumento de libertação dos leigos, como uma coisa necessária para que eles possam ter mais poder de decisão na caminhada da Igreja.

2. Isso não cria certas disputas entre o clero e os leigos?

Muitas paróquias, hoje, não admitem a realização de cursos bíblicos, nem círculos bíblicos, nem reflexão bíblica, porque percebem que a Bíblia nas mãos dos leigos é um importante instrumento de conscientização do laicato.

Qualquer coisa cria disputas entre o clero e o leigo. Se você fizer um curso de liturgia em uma paróquia e começar a fazer a proposta litúrgica do Vaticano II, que é o novo enfoque dado à celebração eucarística, como ceia e não como sacrifício – o que enfatizava o Concílio de Trento e o que o clero continua pensando –, tentando recuperar como leigo a dimensão da ceia do Vaticano II, o clero vai reagir. O mesmo acontece no campo da Bíblia, pois o clero tem teologia, mas não tem Bíblia, e quando um leigo vai conhecendo a Bíblia vai enfrentar uma barreira, pois o clero sente que não está capacitado para discutir com eles.

Muitas paróquias, hoje, não admitem a realização de cursos bíblicos, nem círculos bíblicos, nem reflexão bíblica, porque percebem que a Bíblia nas mãos dos leigos é um importante instrumento de conscientização do laicato. Poder é poder e, ou eu começo a combater essas emancipações, ou eu perco meu poder; e o clero não quer perder seu poder. Portanto, sempre vai restringir as iniciativas dos leigos, seja no campo da liturgia ou da formação, principalmente catequética.

No Brasil, segundo o Diretório Nacional da Catequese, todos devem elaborar esquemas catequéticos vivenciais a partir da Bíblia. A maior parte das paróquias pensa que os esquemas catequéticos devem ser doutrinais a partir do catecismo. Muitas paróquias não admitem o uso da Bíblia, querem o uso do Catecismo.

3. Você está dando a entender com sua resposta que o clero nem conhece nem quer conhecer a Bíblia. Por que essa falta de formação bíblica nos estudos teológicos, por que essa falta de interesse para estudar a Bíblia do ponto de vista teológico?

O estudo bíblico passa como uma coisa despercebida, pois o clero não vê a Bíblia como um importante instrumento de evangelização, porque não está interessado nem é formado para evangelizar, mas é formado para administrar.

Porque o clero é formado basicamente para duas coisas: administração dos sacramentos e a parte econômica. Por isso, um pároco tem os dois pontos básicos nessa administração: na dos sacramentos é o único que pode consagrar; na parte econômica é o único que assina cheques. Se você está em uma paróquia e consagra e assina cheques, você manda.

Então, o estudo bíblico passa como uma coisa despercebida, pois o clero não vê a Bíblia como um importante instrumento de evangelização, porque não está interessado nem é formado para evangelizar, mas é formado para administrar. Os padres são sacramentalistas e construtores.

4. A partir disso, poderíamos dizer que a Igreja católica é mais judaica que cristã?

Nossas Igrejas pararam no Primeiro Testamento; raríssimas são as que vivem o Segundo Testamento. Não quero dizer que não existam e de fato existem sacerdotes muito bons, mas em termos institucionais, as Igrejas, ainda que seja por necessidade, ficaram no Primeiro Testamento.

Para a instituição, e isso vale para qualquer tipo de Igreja, inclusive a mais pentecostal, a fundamentação bíblica adequada é o Antigo Testamento. Se você fala do dízimo, Jesus nunca falou disso. O dízimo é uma instituição do Antigo Testamento. Nossas Igrejas pararam no Primeiro Testamento; raríssimas são as que vivem o Segundo Testamento. Não quero dizer que não existam e de fato existem sacerdotes muito bons, mas em termos institucionais, as Igrejas, ainda que seja por necessidade, ficaram no Primeiro Testamento.

5. Partindo da Bíblia, como seria possível afastar-se dessa Igreja Vetero-testamentária, piramidal, para construir uma Igreja mais circular, própria do Novo Testamento, e que foi impulsionada a partir do Vaticano II?

A única maneira de romper a velha estrutura piramidal, centralizada, são as comunidades eclesiais de base… Creio que a comunidade eclesial de base é a verdadeira concretização do conceito de Igreja que aparece na Lumen Gentium: a Igreja é o Povo de Deus congregado em nome da Trindade Santa.

Sou suspeito de falar sobre isso, porque esse é o meu trabalho. Creio que a única maneira de romper a velha estrutura piramidal, centralizada, são as comunidades eclesiais de base. Mas há um problema muito sério nas comunidades eclesiais de base, pois estas têm uma “caminhada” de 45 ou 50 anos, e na cabeça de muitos assessores, eles pensam que as autênticas comunidades eclesiais de base são aquelas dos anos 1960 ou 1970. Temos que ver hoje quem está entrando nas comunidades eclesiais de base, o que está buscando, que tipo de pessoas está procurando as comunidades.

Por isso, creio que a comunidade eclesial de base é a verdadeira concretização do conceito de Igreja que aparece na Lumen Gentium: a Igreja é o Povo de Deus congregado em nome da Trindade Santa. Por isso, temos que buscar pequenas comunidades que vão fazer a sua vida, sua catequese, sua liturgia, em pequenos núcleos. Mas, ao mesmo tempo sentindo-se em rede. Nesse ponto, os pentecostais conseguem isso, são pequenos núcleos, mas têm ao mesmo tempo uma consciência de rede de pertença. Quando há uma convocação, eles vão todos.

Nós teríamos que aprender da pastoral dessas pequenas comunidades. Mas, isso só vamos conseguir se houver de fato uma emancipação dos ministérios laicais frente ao clero. Enquanto os leigos pensarem: eu não vou tomar a iniciativa de criar uma comunidade naquele lugar porque o padre ainda não me disse nada, nunca vamos avançar. Por isso, penso que temos que investir sempre naquilo que é a grande conquista do Vaticano II e que é dito inúmeras vezes, mas que nunca se concretiza, que é o chamado protagonismo dos leigos.

Vejo como uma bênção de Deus a carta que o papa Francisco mandou ao cardeal Marc Ouellet, para que o cardeal a remetesse às Igrejas latino-americanas. Essa carta foi enviada em março e quando chegou maio e o Papa viu que o cardeal ainda não a tinha publicado, ele mesmo tomou a iniciativa de publicá-la. Nela diz claramente que se fala muito de que “chegou a hora dos leigos, mas a impressão que tenho é que o relógio parou”. Por isso, penso que o nosso drama hoje é como fazer avançar o relógio, o protagonismo dos leigos. Dizer que a hora dos leigos chegou é algo de que já estamos cansados de ouvir, mas como se concretiza isso? Creio que as comunidades eclesiais de base, como proposta pastoral, ainda têm sua hora.

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Biblista Francisco Orofino

6. O que foi que parou ou quebrou o relógio?

A história da Igreja nunca é retilínea, uniforme e ascendente, mas pendular. Tivemos 20 anos, de 1958 a 1978, de uma proposta de Igreja com João XXIII e Paulo VI. Depois, tivemos 35 anos de outra proposta de Igreja, com João Paulo II e Bento XVI. Agora, o pêndulo está voltando para o outro lado com Francisco.

 

Em primeiro lugar, o movimento da história, que é pendular. A história da Igreja nunca é retilínea, uniforme e ascendente, mas pendular. Tivemos 20 anos, de 1958 a 1978, de uma proposta de Igreja com João XXIII e Paulo VI. Depois, tivemos 35 anos de outra proposta de Igreja, com João Paulo II e Bento XVI. Agora, o pêndulo está voltando para o outro lado com Francisco. Creio que o que Francisco está fazendo terá continuidade. Talvez não seja uma continuidade natural, porque tampouco houve uma continuidade entre João XXIII e Paulo VI; os dois eram modelos de papado diferente.

Creio que Francisco está abrindo um espaço, colocando o pêndulo de volta. Quem percebeu que o pêndulo chegou ao seu ponto extremo foi Hans Küng, quando escreveu seu último livro e no qual dizia que a Igreja está doente, fazendo um relato da Igreja como se esta fosse um doente terminal.

Se Bento não tivesse renunciado, provavelmente a Igreja teria chegado a um momento extremo. Penso que o próprio Bento, com seu gesto profético, disse que esse modelo acabou e que chegou a hora de encontrar outro caminho, e esse caminho é Francisco. Tudo está voltando, e creio que esse movimento de Francisco deve durar outros 20 anos, pois é um pêndulo, a caminhada da Igreja é pendular. Isso faz parte da história.

7. Você falou dos círculos bíblicos, que é um dos elementos que não podem faltar nas comunidades eclesiais de base, a partir da leitura popular da Bíblia. Como tudo isso repercute na vida de quem vive sua fé nas comunidades eclesiais de base?

A Dei Verbum suscitou um desafio para todas as Igrejas. Nesse desafio existem quatro passos que foram dados: 1. colocar a Bíblia nas mãos do povo; 2. capacitar agentes; 3. encontrar uma metodologia adequada; 4. promover animação bíblica de toda a pastoral.

Em primeiro lugar, quero dar uma resposta mais institucional. A Dei Verbum suscitou um desafio para todas as Igrejas. Nesse desafio existem quatro passos que foram dados. O primeiro: colocar a Bíblia nas mãos do povo, pois não tinha Bíblia, já que não fazia parte da tradição católica ter Bíblia. Um primeiro passo que ainda não chegou a todas as Igrejas, a todas as comunidades, que de fato o leigo tenha sua Bíblia para seu uso pessoal, lê-la, esse é um passo importante na Pastoral Bíblica.

A segunda coisa que considero mais importante é capacitar agentes. Um dos grandes esforços que a Igreja fez nestes últimos anos foi capacitar agentes de Pastoral Bíblica em todos os níveis, desde o nível mais elementar até cursos de grau superior. O primeiro curso de pós-graduação em Bíblia aqui no Brasil é de 1986; antes não havia. A capacitação foi outro grande esforço.

Em terceiro lugar, encontrar uma metodologia adequada. A Leitura Popular da Bíblia é a metodologia adequada dentro do que pede a Pastoral Bíblica a partir da Dei Verbum. Neste ponto devemos muito às várias contribuições surgidas no campo da educação. Aqui no Brasil, principalmente a proposta da educação libertadora de Paulo Freire. A grande contribuição no método de leitura bíblica, adotado pelo Centro de Estudos Bíblicos, o CEBI, a partir daquela grande inspiração nascida de Carlos Mesters.

Mas, temos que dar um quarto passo, que a própria Conferência Episcopal já percebeu, mas que está sendo difícil, que é a animação bíblica de toda a pastoral, o que se está fazendo devagar. A primeira vez que isto foi sistematizado, orientado e assumido institucionalmente foi no Sínodo de 2008, mas até agora as dioceses não têm claro como dar esse passo.

8. O que significa, de fato, a animação bíblica de toda a pastoral?

Uso da Bíblia em quatro grandes campos: 1. na liturgia; 2. na catequese; 3. nas práticas pastorais; 4. na espiritualidade.

 

Penso que seria o uso da Bíblia em quatro grandes campos. Primeiro, na liturgia, e neste ponto o clero tem que colocar na cabeça que o povo tem o direito de receber em cada celebração a mensagem que está nas leituras e não na cabeça do padre. Por isso, já no Sínodo de 2008 havia um pedido unânime para que a Santa Sé desse orientações sobre homilética. Francisco acabou fazendo isso de uma maneira muito bonita na Evangelii Gaudium, onde está muito claro, podendo dizer que, a partir daí, não faz a homilia só quem não quer.

O segundo ponto é o da catequese, pois temos que construir uma catequese vivencial a partir da Bíblia e gradualmente abandonar a catequese doutrinária a partir do Catecismo.

O terceiro ponto seriam as diferentes práticas pastorais a partir da Bíblia, onde entrariam os círculos bíblicos.

Por último, e não por isso menos importante, a espiritualidade dos fiéis a partir da Bíblia, como instrumento de espiritualidade, retiros bíblicos a partir da metodologia da Leitura Orante da Bíblia. Creio que pouco a pouco vamos começar a dar esses passos, mas esses passos nos mostram que temos muitas coisas para fazer.

9. A propósito de Carlos Mesters, sendo você um dos seus principais discípulos e colaboradores, qual é a contribuição dele aqui no Brasil para a Teologia Bíblica, desde a Leitura Popular da Bíblia, e qual é a contribuição para você, em termos pessoais?

Em um estudo acadêmico, ou em um artigo, Carlos pode escrever assim, como disse um biblista importante da École Biblique, assim como também disse dona Maria do Recife. Carlos coloca a contribuição acadêmica do lado da vivência popular e sistematiza seus escritos a partir dessas duas fontes. Esse é seu grande segredo… Essa visão da Bíblia como o livro do povo é algo que falta na Igreja ocidental.

 

Carlos teve duas intuições que são fundamentais: a primeira é que devemos capacitar-nos na Bíblia, o que significa que devemos estudar muito e nos melhores centros. Mesters é formado em Bíblia pela École Biblique de Jerusalém, um dos melhores lugares do mundo de estudo bíblico católico.

Agora, devemos capacitar-nos não para o mundo acadêmico, mas para trabalhar com o povo. O respeito pelas pessoas é o que pede a nossa capacitação. Por isso, Carlos é alguém que estuda muito, o que admiro nele, mas estuda muito para trabalhar com o povo, não para o mundo acadêmico. Aprendi isso dele e sigo-o nesse ponto, me capacito muito para trabalhar com o povo. Tenho muitas reservas em relação ao mundo acadêmico.

A segunda coisa que acho importante na vida e proposta de Carlos é sua capacidade de sistematizar seus trabalhos e dar a essa sistematização a mesma importância que ao mundo acadêmico, que são as contribuições populares. Em um estudo acadêmico, ou em um artigo, Carlos pode escrever assim, como disse um biblista importante da École Biblique, assim como também disse dona Maria do Recife. Carlos coloca a contribuição acadêmica do lado da vivência popular e sistematiza seus escritos a partir dessas duas fontes. Esse é seu grande segredo. Afinal, a Bíblia é o livro do Povo de Deus. E muitas vezes pensamos que a Bíblia é um instrumento acadêmico. E que devemos fazer teses com ela. Creio, com todo o respeito, que se se vai a uma universidade europeia e se compra um livro, ali este é um comentário ao comentário feito por um determinado comentarista. É uma repetição.

Sempre comparo o estudo acadêmico da Bíblia com os índios mascando folha de coca, que vão mastigando e colocando num lado da boca. Depois de um tempo, a bochecha fica enorme, pois vão entrando novas folhas e a bola cresce. Assim é o estudo acadêmico da Bíblia, de vez em quando aparece uma nova folha, mas o que foi acumulado continua dentro da boca.

Essa visão da Bíblia como o livro do povo é algo que falta na Igreja ocidental, pois de fato os poucos trabalhos sobre a Bíblia com grupos cristãos na Europa são traduções dos trabalhos de Carlos Mesters.

10. Por que falta esse trabalho na Europa?

O grande segredo da pastoral bíblica no Brasil é que o povo sente que a Bíblia é algo seu… importante para a sua vida, para dar uma direção à sua vida.

Há duas coisas importantes. Uma vez fizemos um intercâmbio entre o Centro de Estudos Bíblicos e a Igreja luterana da Suécia. Eles queriam começar os círculos bíblicos e algumas equipes do Brasil foram para a Suécia. Ali se encontraram com uma barreira, que eu creio ser intransponível. Na cultura europeia, a Bíblia é um livro institucional. No caso dos luteranos, era ensinada na escola como uma matéria, uma disciplina; no caso dos católicos, é um livro do clero. Portanto, o povo não sente a Bíblia como algo seu, e esse é o grande segredo da pastoral bíblica aqui no Brasil.

Como aqui no Brasil nunca houve Pastoral Bíblica e o povo nunca teve a Bíblia em suas mãos, tinha apenas uma tradição oral da Bíblia desde a época da conquista, o povo sente a Bíblia como algo seu, enquanto que nenhum europeu sente a Bíblia como algo seu, importante para a sua vida, para dar uma direção à sua vida.

Por isso, essa Leitura Popular da Bíblia que fazemos no Brasil não tem uma produção pastoral acadêmica, apesar de que se repete muito o trabalho da Casa da Bíblia na Espanha, por exemplo, que tem várias iniciativas interessantes, mas se choca com a institucionalização do texto, que é do clero, institucional, da Igreja; que o povo não sente como algo seu, não o busca. Aqui no Brasil, não, o povo busca.

Fonte: IHU

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