Francisco de Aquino Júnior – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com Tue, 05 Oct 2021 02:37:37 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.3 https://i0.wp.com/observatoriodaevangelizacao.com/wp-content/uploads/2024/04/cropped-logo.png?fit=32%2C32&ssl=1 Francisco de Aquino Júnior – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com 32 32 232225030 “Por uma Igreja missionária-sinodal”, com a palavra o teólogo Francisco de Aquino Júnior https://observatoriodaevangelizacao.com/por-uma-igreja-missionaria-sinodal/ Tue, 05 Oct 2021 02:37:37 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=41789 [Leia mais...]]]> Desde o início do seu ministério como bispo de Roma, o papa Francisco tem provocado e convocado a Igreja a um processo de renovação/conversão pastoral em vista de uma maior fidelidade à sua missão evangelizadora no mundo (EG 19-49). Sua Exortação Apostólica Evangelii Gaudium é um convite a uma “nova etapa evangelizadora” com indicação de “caminhos para o percurso da Igreja nos próximos anos” (EG 1). O Sínodo dos Bispos para a Região Pan-Amazônica (2019), a criação da Conferência Eclesial da Amazônia (2020), a Assembleia Eclesial da América Latina e do Caribe (2021) e o próximo Sínodo dos Bispos sobre sinodalidade (2023) são parte e expressão fecunda e eficaz desse processo de renovação eclesial em curso. Trata-se de um processo de renovação/conversão missionária-sinodal.

Renovação/conversão missionária

A “nova etapa evangelizadora” de que fala Francisco consiste fundamentalmente numa “transformação missionária da Igreja” (EG, cap. I). Ela existe para a missão. Ela é missionária por sua própria natureza (AG 2). E sua missão é a mesma de Jesus: “tornar o Reino de Deus presente no mundo” (EG 176). Esta é a eterna novidade da Igreja e toda renovação/reforma da Igreja deve se realizar a partir e em vista dessa missão.

Trata-se de um processo de descentramento eclesial (interesses institucionais) e de saída para as periferias do mundo (rostos concretos com dores, esperanças, lutas) para anunciar a Boa Notícia do reinado de Deus:

  • manifestar a ternura de Deus;
  • ungir as feridas;
  • regar a esperança;
  • cultivar a solidariedade;
  • animar as lutas por direito.

Francisco tem falado muito de uma “Igreja em saída para as periferias”. Não se trata de qualquer saída para qualquer lugar e para qualquer coisa. Trata-se de “sair da própria comodidade e ter a coragem de alcançar todas as periferias que precisam da luz do Evangelho” (EG 20). Ao falar de uma “Igreja em saída”, ele retoma o processo de renovação conciliar que fala da Igreja como “sacramento de salvação” ou “sinal e instrumento do Reino de Deus” no mundo (LG 1, 9, 48). Ao falar de “saída para as periferias”, insiste no “lugar privilegiado dos pobres no povo de Deus” (EG 197-201) ou no que se convencionou chamar a partir da América Latina de “opção preferencial pelos pobres” (EG 198): uma “forma especial de primado da caridade cristã, testemunhada por toda a Tradição da Igreja” (João Paulo II) que está “implícita na fé cristológica naquele Deus que se fez pobre por nós, para enriquecer-nos com sua pobreza” (Bento XVI). É nesse sentido que Francisco fala de uma “Igreja pobre para os pobres”, insistindo que “a nova evangelização é um convite a reconhecer a força salvífica dos pobres e a colocá-los no centro do caminho da Igreja” (EG 198). Este é o cerne da “transformação missionária da Igreja” de que fala Francisco. Trata-se de “voltar à fonte e recuperar o frescor original do Evangelho” (EG 11).

Renovação/conversão sinodal

A conversão missionária da Igreja diz respeito à totalidade do povo de Deus na diversidade de seus carismas e ministérios. Como ensina o Concílio Vaticano II, pelo batismo, todos os cristãos são “ungidos” com o Espírito Santo e dotados com um “senso da fé”, pelo qual “recebe a Palavra de Deus, penetra-a mais profundamente e mais plenamente a aplica na vida” (LG 12). Isso faz da Igreja uma comunidade, na qual “reina entre todos verdadeira igualdade quanto à dignidade e ação comum de todos os fiéis na edificação do Corpo de Cristo” (LG 32). E é nesse sentido que Francisco fala de sinodalidade ou Igreja sinodal: o “caminhar juntos” do Povo Santo de Deus na comum dignidade e missão (igualdade fundamental) e na riqueza e complementaridade de seus carismas e ministérios (diversidade carismático-ministerial).

O texto fundamental aqui é o discurso de Francisco por ocasião dos 50 anos de instituição do Sínodo dos Bispos no dia 17 de outubro de 2015 (Este discurso está disponível no site do Vaticano). Ele afirma que a sinodalidade é uma “dimensão constitutiva da Igreja” que “nada mais é que o ‘caminhar juntos’ do rebanho de Deus pelas sendas da história ao encontro de Cristo Senhor”. Recorda com o Concílio que o fundamento desse “caminhar juntos” é a “unção” do Espírito e o “senso sobrenatural da fé” que ela confere a todos os batizados. Insiste que em virtude dessa “unção” e desse “senso da fé” todo batizado é um “sujeito ativo da evangelização”, o que “impede uma rígida separação entre Igreja docente e Igreja discente”. Antes de qualquer diferença na Igreja, como ensina o Concílio, “reina entre todos verdadeira igualdade quanto à dignidade e ação comum” (LG 32). E isso, diz ele, “oferece-nos o quadro interpretativo mais apropriado para compreender o próprio ministério hierárquico” que deve ser um “serviço” ao Povo de Deus.

Francisco reconhece que sinodalidade “é um conceito fácil de exprimir em palavras, mas não é assim fácil pô-lo em prática”. E oferece algumas orientações para um processo sinodal:

  • a) “uma Igreja sinodal é uma Igreja da escuta: cada um à escuta dos outros e todos à escuta do Espírito Santo”;
  • b) “o caminho sinodal começa por escutar o povo […] continua escutando os pastores […] e culmina na escuta do bispo de Roma”;
  • c) níveis de exercício da sinodalidade: Igrejas particulares, instancias intermediárias, Igreja universal;
  • d) “numa Igreja sinodal, o Sínodo dos Bispos é apenas a manifestação mais evidente dum dinamismo de comunhão que inspira todas as decisões eclesiais”;
  • e) “o compromisso de edificar uma Igreja sinodal está cheio de implicações ecumênicas” e é como “estandarte erguido entre as nações”.

A criação da Conferência Eclesial da Amazônia (junho de 2020) e a realização da Assembleia Eclesial da América Latina e do Caribe (novembro de 2021), enquanto organismo e evento de toda a Igreja e não apenas dos bispos, avançam ainda mais na direção de uma Igreja verdadeiramente sinodal, na qual a totalidade do povo de Deus aparece como “sujeito” eclesial.

Renovação/conversão missionário-sinodal

Conversão missionária e conversão sinodal são dois aspectos do mesmo processo de renovação evangélica da Igreja: A Igreja só se renova na missão de anúncio/realização do reinado de Deus que é um reinado de fraternidade, justiça e paz. E essa missão compete à totalidade do povo de Deus na diversidade e complementaridade de seus carismas e ministérios. Trata-se, portanto, de um processo de renovação/conversão missionária (“Igreja em saída para as periferias”) sinodal (“caminhar juntos” de todo povo de Deus), no qual a missão é compreendida e vivida de modo sinodal e a sinodalidade é compreendida e vivida em perspectiva e dinamismo missionários.

Mas é preciso ficar muito atento para não banalizar ou distorcer o sentido profundo da missão e do dinamismo sinodal da Igreja. Toda insistência aqui é pouca. missão da Igreja é “tornar o Reino de Deus presente no mundo” (EG 176). Isso significa que ela tem que se preocupar e se envolver com os problemas do mundo e fermentar a sociedade com a força e o dinamismo do Evangelho de Jesus Cristo. Por isso, Francisco tem falado tanto de “opção preferencial pelos pobres”, de “fraternidade e amizade social” e do “cuidado da casa comum”. E a sinodalidade eclesial se dá precisamente nessa missão. Quando se perde isso de vista, termina em burocratismo, ativismo e disputa de poder. Falando dos organismos de participação na Igreja, Francisco adverte que “só na medida em que estes organismos permanecerem ligados a ‘baixo’ e partirem do povo, dos problemas do dia-a-dia, é que pode começar tomar forma uma Igreja sinodal”. É nesse sentido que falamos com Francisco de uma renovação missionária-sinodal da Igreja.

(Adaptação e grifos, Edward Guimarães, para o Observatório da Evangelização)

Sobre o autor:

Prof. dr. pe. Francisco de Aquino Júnior (Foto. Camilla Moreira, Observatório da Evangelização)

Francisco de Aquino Júnior possui graduação em Teologia e Filosofia, mestrado e doutorado em Teologia. É professor da Faculdade Católica de Fortaleza (FCF) e da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP); presbítero da Diocese de Limoeiro do Norte – CE. Dentre seus livros merecem destaque: Teologia como intelecção do reinado de Deus (A) – O método da Teologia da Libertação segundo Ignacio Ellacuria. São Paulo: Loyola, 2010; A dimensão socioestrutural do Reinado de Deus, São Paulo: Paulinas, 2011; Teoria Teológica. Práxis Teológica. Sobre o método da Teologia da Libertação. São Paulo: Paulinas, 2012; Viver segundo o espírito de Jesus Cristo. Espiritualidade como seguimento. São Paulo: Paulinas, 2014; Pastoral social. Dimensão socioestrutural da caridade cristã. Brasilia: Edições CNBB, 2016; O caráter práxico-social da teologia. Tópicos fundamentais de epistemologia teológica. São Paulo: Loyola, 2017; Nas Periferias do Mundo. Fé, Igreja, Sociedade. São Paulo: Paulinas, 2017; Organizações populares. São Paulo: Paulinas, 2018; Teologia em saída para as periferias. São Paulo: Paulinas/ Unicap, 2019; com Maurício Abdala e Robson Sávio, é organizador do livro: Papa Francisco com os movimentos populares. São Paulo: Paulinas, 2018; com Agenor Brighenti, é organizador do livro: Pastoral Urbana. Novos caminhos para a Igreja na cidade. Petrópolis: Vozes, 2021.

Fonte:

www.portaldascebs.org.br

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Igreja e sociedade – Sinodalidade e ação social e política com o prof. pe. Francisco Aquino Júnior https://observatoriodaevangelizacao.com/igreja-e-sociedade-sinodalidade-e-acao-social-e-politica-com-o-prof-pe-francisco-aquino-junior/ Thu, 30 Sep 2021 20:06:09 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=41668 [Leia mais...]]]> O Vicariato Episcopal para a Ação Social, Política e Ambiental promove formação online  cujo tema será “Igreja e sociedade: Sinodalidade  a ação social e política” no dia 1° de outubro das 09hs às 10:30h.

Professor da Universidade Católica de Pernambuco e doutor em Teologia, Padre Francisco Aquino Junior fará assessoria da formação aos voluntários das pastorais sociais da Arquidiocese de Belo Horizonte.

Inscrições aqui: formulário.

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“Esperança contra toda desesperança”, com a palavra o teólogo Francisco Aquino Júnior https://observatoriodaevangelizacao.com/esperanca-contra-toda-desesperanca-com-a-palavra-o-teologo-francisco-aquino-junior/ Mon, 20 Sep 2021 22:15:46 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=41361 [Leia mais...]]]> Como tanto insistiu Paulo Freire, a esperança é uma dimensão fundamental da vida humana. Aquela dimensão que faz de nossa vida uma obra inacabada e uma tarefa permanente. É a dimensão utópica da vida. Aquilo que nos desinstala, que nos mobiliza, que nos põe a caminho... Vivemos tempos difíceis e até dramáticos… Mas, precisamente neste tempo, somos chamados a dar testemunho de uma esperança ativa e criativa, provada na cruz, regada com sangue martirial, sustentada e dinamizada pelo Espírito do Senhor que “a partir de baixo” vai reciclando/refazendo/recriando a vida.”

Confira a reflexão do teólogo Aquino Júnior:

Esperança contra toda desesperança

Vivemos tempos difíceis e até dramáticos: O crescimento da extrema direita com sua política antissocial de desmonte do que resta de políticas sociais e de aversão aos direitos humanos tem levado a um aumento escandaloso da pobreza e das mais diversas formas de violação dos direitos humanos (feminicídio, racismo, homofobia etc.). Com o agravante de que tudo isso se dá com a cumplicidade – até militante – de amplos setores das igrejas cristãs e de seus pastores, destruindo a herança mais importante da tradição judaico-cristã para a civilização ocidental: o ser humano criado à “imagem e semelhança de Deus” ou a dignidade fundamental de todo ser humano. Mas, precisamente neste tempo, somos chamados a dar testemunho de uma esperança ativa e criativa, provada na cruz, regada com sangue martirial, sustentada e dinamizada pelo Espírito do Senhor que “a partir de baixo” vai reciclando/refazendo/recriando a vida.

A esperança é uma dimensão fundamental da vida humana

Como tanto insistiu Paulo Freire, a esperança é uma dimensão fundamental da vida humana. Aquela dimensão que faz de nossa vida uma obra inacabada e uma tarefa permanente. É a dimensão utópica da vida. Aquilo que nos desinstala, que nos mobiliza, que nos põe a caminho. É uma “necessidade ontológica” e, enquanto tal, um “imperativo existencial e histórico”. Sem esperança a vida humana se torna impossível. “A desesperança nos imobiliza e nos faz sucumbir ao fatalismo onde não é possível juntar as forças necessárias ao embate recriador do mundo”. Por isso, dizia: “sem poder negar a desesperança como algo concreto e sem desconhecer as razões históricas, econômicas e sociais que a explicam, não entendo a existência humana e a necessária luta para fazê-la melhor sem esperança e sem sonho”.

A desesperança nos imobiliza e nos faz sucumbir ao fatalismo onde não é possível juntar as forças necessárias ao embate recriador do mundo[…] Sem poder negar a desesperança como algo concreto e sem desconhecer as razões históricas, econômicas e sociais que a explicam, não entendo a existência humana e a necessária luta para fazê-la melhor sem esperança e sem sonho”.

Paulo Freire

O homem é “um ser da esperança que, por ‘n’ razões, se tornou desesperançado”. Mas a esperança renasce sempre de novo, quando menos se espera e de onde menos se espera. E a razão última ou a fonte última dessa esperança, como indicou o papa Francisco na encíclica Laudato Si’, é a presença salvífica e re-criadora do Espírito de Deus no mundo. Ele “encheu o universo de potencialidades que permitem que, do próprio seio das coisas, possa brotar sempre algo novo” (LS, 80). Por isso, “nem tudo está perdido”. Não se deve esquecer jamais que “os seres humanos, capazes de tocar o fundo da degradação, podem também se superar, voltar a escolher o bem e regenerar-se, para além de qualquer condicionamento psicológico e social que lhe seja imposto”. Nada é definitivo nesse mundo.Não há sistemas que anulem, por completo, a abertura ao bem, à verdade e à beleza, nem a capacidade de reagir que Deus continua a reanimar no mais fundo dos nossos corações” (LS, 205).

Não há sistemas que anulem, por completo, a abertura ao bem, à verdade e à beleza, nem a capacidade de reagir que Deus continua a reanimar no mais fundo dos nossos corações”.

Papa Francisco, Laudato Si’, n. 205

A esperança sozinha não transforma o mundo

Mas, atenção, a esperança sozinha não transforma o mundo. Não basta querer e sonhar. É preciso ousar, arriscar, inventar… Nas palavras de Paulo Freire, “a esperança é necessária, mas não é suficiente […]. Pensar que a esperança sozinha transforma o mundo e atuar movido por tal ingenuidade é um modo excelente de tombar na desesperança, no pessimismo, no fatalismo”.

“a esperança é necessária, mas não é suficiente […]. Pensar que a esperança sozinha transforma o mundo e atuar movido por tal ingenuidade é um modo excelente de tombar na desesperança, no pessimismo, no fatalismo”.

Paulo Freire

Que esperança que transforma o mundo?

A esperança que transforma o mundo é uma esperança ativa/criativa que se faz resistência e luta cotidianas. 

  • Resistência crítica: na denúncia, no enfrentamento e na luta contra toda forma de opressão, injustiça, exploração e negação de direitos. 
  • Resistência criativa: na construção de novos padrões e novas formas de atividade econômica (agroecologia, economia solidária, tecnologias sociais etc.), de novas relações de gênero, da cultura da solidariedade, de articulação das forças populares, de cultivo da dimensão místico-espiritual.

E todo esse processo, adverte Ignacio Ellacuría, teólogo-mártir salvadorenho, é marcado por uma tensão fecunda entre o “ideal utópico” e sua “moderação realista”.

  • O “ideal utópico” impede o fatalismo, o conformismo e a resignação diante das injustiças, bem como o pragmatismo político que é fruto de conchavos e negociatas com as elites.
  • A “moderação realista”, por sua vez, “sem perder seu ideal utópico, o modera conforme as possibilidades históricas”. Isso exige lucidez, discernimento e sabedoria.

A vida não funciona na base do “tudo ou nada”

Sim, a vida não funciona na base do “tudo ou nada”. Um passo para frente ou mesmo para trás pode ser decisivo para novas conquistas. E, de novo, é importante perceber a dimensão estritamente espiritual desse processo, através do qual o Espírito do Senhor, que é Espírito de vida e que “atua a partir de baixo”, vai reciclando, refazendo, recriando a vida. Esperemos, pois, esperançando: resistindo-recriando!

Sobre o autor:

Prof. dr. pe. Francisco de Aquino Júnior (Foto. Camilla Moreira, Observatório da Evangelização)

Francisco de Aquino Júnior possui graduação em Teologia e Filosofia, mestrado e doutorado em Teologia. É professor da Faculdade Católica de Fortaleza (FCF) e da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP); presbítero da Diocese de Limoeiro do Norte – CE. Dentre seus livros merecem destaque: Teologia como intelecção do reinado de Deus (A) – O método da Teologia da Libertação segundo Ignacio Ellacuria. São Paulo: Loyola, 2010; A dimensão socioestrutural do Reinado de Deus, São Paulo: Paulinas, 2011; Teoria Teológica. Práxis Teológica. Sobre o método da Teologia da Libertação. São Paulo: Paulinas, 2012; Viver segundo o espírito de Jesus Cristo. Espiritualidade como seguimento. São Paulo: Paulinas, 2014; Pastoral social. Dimensão socioestrutural da caridade cristã. Brasilia: Edições CNBB, 2016; O caráter práxico-social da teologia. Tópicos fundamentais de epistemologia teológica. São Paulo: Loyola, 2017; Nas Periferias do Mundo. Fé, Igreja, Sociedade. São Paulo: Paulinas, 2017; Organizações populares. São Paulo: Paulinas, 2018; Teologia em saída para as periferias. São Paulo: Paulinas/ Unicap, 2019; com Maurício Abdala e Robson Sávio, é organizador do livro: Papa Francisco com os movimentos populares. São Paulo: Paulinas, 2018; com Agenor Brighenti, é organizador do livro: Pastoral Urbana. Novos caminhos para a Igreja na cidade. Petrópolis: Vozes, 2021.

Fonte:

www.portaldascebs.org.br

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As maiores vítimas da violência, com a palavra o teólogo Francisco de Aquino Júnior https://observatoriodaevangelizacao.com/as-maiores-vitimas-da-violencia-com-a-palavra-o-teologo-francisco-de-aquino-junior/ Fri, 20 Aug 2021 14:07:52 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=40176 [Leia mais...]]]> Não “estamos todos no mesmo barco”. Na “melhor” das hipóteses, estamos todos no mesmo oceano de violência generalizada. Mas, enquanto alguns estão em iates, outros estão em barcos, outros estão agarrados a um tronco e milhares já morreram afogados num mar de sangue. Enquanto alguns são protegidos, outros são exterminados – até pelo próprio Estado. É falso e cínico o discurso ideológico de universalização da violência que trata todas as pessoas como igualmente vítimas da violênciaNão estamos todos no mesmo barco! Não somos igualmente vítimas da violência! Por isso não se pode tratar todos da mesma forma: onde há dois pesos, tem que haver duas medidas. No centro de nossas preocupações tem que está sempre a defesa dos direitos das maiores vítimas da violência. Elas são, n’Ele, juízes e senhores de nossas vidas, Igrejas e sociedades (Mt 25, 31-46).

Confira a reflexão do teólogo Francisco de Aquino Júnior

As maiores vítimas da violência

O ambiente de violência generalizada em que nos encontramos faz com que ninguém esteja completamente imune ou protegido. De uma forma ou de outra, a violência atinge todas as pessoas, ainda que seja pelo sentimento comum de insegurança e medo. Nem mesmo a classe média/alta está livre. Basta ver a busca por condomínios fechados e o crescimento do mercado de segurança privada.

Mas não nos iludamos: Se a violência de alguma forma atinge todas as pessoas, não atinge todas as pessoas na mesma proporção e intensidade. Não “estamos todos no mesmo barco”. Na “melhor” das hipóteses, estamos todos no mesmo oceano de violência generalizada. Mas, enquanto alguns estão em iates, outros estão em barcos, outros estão agarrados a um tronco e milhares já morreram afogados num mar de sangue. Enquanto alguns são protegidos, outros são exterminados – até pelo próprio Estado. É falso e cínico o discurso ideológico de universalização da violência que trata todas as pessoas como igualmente vítimas da violência.

Mesmo entre as maiores vítimas da violência (pobres, negros, indígenas, mulheres, população LGBT etc.) há diferenças que não se podem negar nem minimizar. É verdade que há muitas formas de violência (econômica, racial, de gênero, sexual etc.) e nenhuma delas pode ser banalizada e minimizada. E é verdade que essas diversas formas de violência estão muito mais implicadas umas nas outras do que parece, formando um tecido social extremamente violento. Mas é verdade também que quando qualquer dessas formas de violência está associada à violência econômica, que nega as condições materiais de reprodução da vida, ela adquire dimensões e proporções muito mais graves: Entre uma mulher rica e uma mulher pobre, entre um gay rico e um gay pobre, entre um negro rico (coisa muito mais rara) e um negro pobre, por exemplo, há diferenças consideráveis que não se podem minimizar. Nem se pode banalizar nenhum tipo de violência, nem se pode colocá-las todas no mesmo nível.

É curioso que o discurso de universalização da violência tende a tratar todas as pessoas como vítimas da violência, mas não como sujeitos da violência. Aqui a violência não aparece como um fato universal que diz respeito a todas as pessoas: ela tem classe e raça. Violenta é a população pobre e negra das periferias que está encarcerada ou é candidata nata ao encarceramento ou mesmo ao extermínio: são “bandidos”, são uma ameaça à sociedade, devem ser exterminados – “bandido bom é bandido morto”! A elite que se proclama vítima da violência dos bandidos (medo, assalto, agressão etc.) não se reconhece como sujeito da violência (econômica, psíquica, estatal/policial etc.) contra os pobres. Mesmo uma mulher que é vítima do machismo ou um gay que é vítima de homofobia nem sempre se reconhece como sujeito de violência contra a empregada doméstica ou contra os pobres em geral. A tentação é sempre responsabilizar o outro pela violência. E o outro normalmente é o que se encontra numa situação de dominação: a mulher, o gay, o negro e, sobretudo e em última instância, o pobre.

O discurso de universalização da violência (todos são igualmente vítimas!) é sempre um discurso classista-racista (os pobre e negros são os responsáveis pela violência!). O resultado dessa lógica perversa se traduz numa cultura de preconceito, desprezo, aversão e violência contra as vítimas e em políticas públicas de defesa dos interesses das elites e criminalização da pobreza e dos pobres.

Atenção: Não estamos todos no mesmo barco! Não somos igualmente vítimas da violência! Por isso não se pode tratar todos da mesma forma: onde há dois pesos, tem que haver duas medidas. No centro de nossas preocupações tem que está sempre a defesa dos direitos das maiores vítimas da violência. Elas são, n’Ele, juízes e senhores de nossas vidas, Igrejas e sociedades (Mt 25, 31-46).

Sobre o autor:

Prof. dr. pe. Francisco de Aquino Júnior (Foto. Camilla Moreira, para o Observatório da Evangelização)

Francisco de Aquino Júnior possui graduação em Teologia e Filosofia, mestrado e doutorado em Teologia. É professor da Faculdade Católica de Fortaleza (FCF) e da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP); presbítero da Diocese de Limoeiro do Norte – CE. Dentre seus livros merecem destaque: Teologia como intelecção do reinado de Deus (A) – O método da Teologia da Libertação segundo Ignacio Ellacuria. São Paulo: Loyola, 2010; A dimensão socioestrutural do Reinado de Deus, São Paulo: Paulinas, 2011; Teoria Teológica. Práxis Teológica. Sobre o método da Teologia da Libertação. São Paulo: Paulinas, 2012; Viver segundo o espírito de Jesus Cristo. Espiritualidade como seguimento. São Paulo: Paulinas, 2014; Pastoral social. Dimensão socioestrutural da caridade cristã. Brasilia: Edições CNBB, 2016; O caráter práxico-social da teologia. Tópicos fundamentais de epistemologia teológica. São Paulo: Loyola, 2017; Nas Periferias do Mundo. Fé, Igreja, Sociedade. São Paulo: Paulinas, 2017; Organizações populares. São Paulo: Paulinas, 2018; Teologia em saída para as periferias. São Paulo: Paulinas/ Unicap, 2019; com Maurício Abdala e Robson Sávio, é organizador do livro: Papa Francisco com os movimentos populares. São Paulo: Paulinas, 2018; com Agenor Brighenti, é organizador do livro: Pastoral Urbana. Novos caminhos para a Igreja na cidade. Petrópolis: Vozes, 2021.

Fonte:

www.portaldascebs.org.br

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A Igreja no mundo urbano: “fermento de fraternidade na cidade” https://observatoriodaevangelizacao.com/a-igreja-no-mundo-urbano-fermento-de-fraternidade-na-cidade/ Sat, 12 Jun 2021 12:06:44 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=39740 [Leia mais...]]]> Conduzido pelo dom Joaquim Mol, o encontro virtual webinar “Igreja no Brasil Painel” contou com a presença do teólogo pe. prof. dr. Francisco de Aquino Júnior, autor do livro “Pastoral Urbana: novos caminhos da Igreja no Brasil”, e do assessor das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) na Comissão Episcopal Pastoral para o Laicato da CNBB, o teólogo prof. dr. Celso Pinto Carias.

Em maio de 2019, a 57ª Assembleia Geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), refletiu sobre a evangelização do mundo urbano, uma reflexão que faz parte das atuais Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil, para o quadriênio 2019-2023.  A temática também foi trabalhada no 14º Intereclesial das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), realizado em 2018, em Londrina (PR).

Sobre as palavras de dom Joaquim Mol

Segundo o presidente da Comissão Episcopal Pastoral para a Comunicação da CNBB, o objetivo destes encontros virtuais mensais é “refletir e compartilhar assuntos e realidades importantes para a vida dos cristãos e cristãs, e para todos que de boa vontade, desejam ver e vivenciar a Igreja em saída para as periferias e também desejam ver e vivenciar um Brasil melhor, um outro Brasil possível”, insistindo em que “aqui nós trabalhamos à luz do Magistério do papa Francisco e da CNBB. Assim vamos conectando, formando redes, de partilha de conhecimento, de fé, de boas práticas evangelizadoras, de boas práticas sócio transformadoras”.

O mundo urbano é uma realidade muito presente no Brasil, pois 85% dos brasileiros vivem nas cidades. As cidades brasileiras sofrem cada vez mais as consequências do baixo crescimento econômico, do alto desemprego, segundo dom Mol. Ele define o atual como “um tempo em que se recuou muito as políticas públicas e sociais determinadas pela receita do neoliberalismo, assumida pelo Governo Federal e por vários governos estaduais”.

Tudo isso provoca, segundo o bispo auxiliar de Belo Horizonte, reitor da PUC Minas e coordenador do Observatório da Evangelização, que as cidades brasileiras sofram com a violência, a dificuldade na mobilidade, a especulação imobiliária, que tira os mais pobres dos lugares principais das cidades. O bispo se perguntou como ser Igreja nas periferias das cidades brasileiras, com seus impactos sociais, econômicos, ambientais, que gera exclusão social e degradação do meio ambiente.

Dom Mol apresentou o padre Francisco Aquino Junior, como um dos maiores teólogos pastoralistas da Igreja do Brasil, e Celso Pinto Carias, teólogo leigo, assessor nacional das CEBs, homem experimentado na caminhada eclesial, cheio de esperança e confiante que devemos avançar no processo de “comunitarização” eclesial, porque não há Igreja sem comunidade, insistia o bispo.

Sobre a reflexão de Francisco de Aquino Junior

A revolução industrial marcou o crescimento das cidades, segundo Francisco Aquino Junior, tendo a desigualdade e a segregação como elementos que as definem. O modo de vida na cidade vai se gestando baseada nos bens, nas relações entre as pessoas, na realização das pessoas nessas relações e na satisfação de suas necessidades. “Essa forma segregacionista de organização da cidade, ela repercute nas relações que as pessoas vão estabelecendo umas com as outras. Ela repercute nos valores e nas práticas que vão se tornando cotidianas na vida das pessoas, e ela repercute na realização ou frustração da vida humana”, insiste o teólogo.  

Ele se perguntou como entender a Igreja em meio disso, lembrando o número 41 das atuais Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil, onde diz que “é tarefa da Igreja fazer com que o Evangelho de Jesus Cristo chegue ao coração das pessoas, às estruturas sociais e às diversas culturas”. Aquino Junior lembra o princípio da fraternidade, uma ideia impulsada pelo papa Francisco, que leve a “se relacionar de uma forma harmoniosa, saudável”, o que deve repercutir na cultura, algo “relevante no contexto que a gente está vivendo, de tanta tensão, de tanta polarização, de tanto ódio, de tanta aversão aos direitos humanos, de tanta guerra nas redes sociais, às vezes verdadeiras milícias digitais que vão tomando conta de nossas comunidades”.

O papel da Igreja na cidade é fazer com que “o Evangelho chegue no coração das pessoas e interfira na sociedade, configure por dentro a cultura”, segundo o pastoralista, que citando Paulo VI insistiu em que a evangelização não pode ser verniz. O caminho privilegiado para isso, segundo as Diretrizes, é a comunidade como lugar de vida fraterna, onde a gente sabe que não está sozinho, a comunidade como lugar de acolhida e de consolo, daqueles que vivem momentos de angustia e de desespero, como fermento de fraternidade na cidade, colaborando no processo de democratização e as lutas por direitos.

No coração da cidade, a Igreja se constitui como lugar onde se aprende a viver como irmão e como fermento de fraternidade, resgatando e afirmando os valores fundamentais do Evangelho, a dignidade e a democratização da cidade, algo que vai fazer com que a Igreja se constitua como hospital de campanha, como casa de portas abertas, como fermento de transformação, segundo Aquino Junior. 

Pensar a Igreja na cidade implica considerar as cidades concretas onde a gente está, com uma desigualdade profunda, que nega a grande parte da população as condições necessárias para uma vida digna, decente, o que gera tensão, violência e frustrações. Aquino Junior lembrou a insistência do Papa Francisco de que “no centro da fé cristã está a fraternidade”, a forma cristã de viver a filiação divina. Ele resumiu o papel da Igreja na cidade em ser “comunidade em torno da Palavra, do Pão e da Caridade, com a missão de ser fermento de fraternidade, renovando a cidade a partir de dentro com a força do Evangelho”.

Sobre a reflexão de Celso Pinto Carias

Não há uma preocupação do direito à cidade, também insistiu o assessor nacional das CEBS. Ele refletiu a partir de exemplos concretos, lembrando uma conversa com dom Sérgio Castriani, falecido recentemente, em que o então arcebispo de Manaus dizia saber muito bem como trabalhar nas comunidades ribeirinhas, mas que o grande desafio era Manaus, se questionando sobre o desafio de articular as periferias.

Essa vida na cidade se concretiza na vida do povo, como aconteceu com seu irmão motorista de ônibus naquele tempo que foi convidado para ser padrinho de batismo e não conseguia participar dos encontros de preparação a serem realizados durante três domingos, pois na cidade o domingo não é mais dia de folga para muita gente.

Segundo o professor da PUC-Rio, falando sobre a realidade do mundo urbano, “estamos demorando, do ponto de vista da evangelização a buscar mecanismos que atendam esse desafio”. Ele refletiu sobre a evangelização superficial, sobre o fato de que “a gente não vai às raízes das questões que perpassam o processo de evangelização, que é um diálogo com profundidade”. Celso Carias se perguntou o que significa ser família nessa realidade urbana? O trabalhador passa muitas horas foras de casa, sem folga, sem condições de cuidar das relações familiares. Junto com isso, o fato de que muitas mulheres são chefes de família, o que o leva a afirmar que o modelo tradicional de família exclui muita gente.

O teólogo insiste na necessidade de repensar o modelo, tendo como ponto de partida as Diretrizes, pensando o que significa fazer missão, ser comunidade, articular a paróquia. Nesse ponto lembrou de José Comblin, que em 1989, numa assessoria à CNBB, foi um dos primeiros a levantar a questão da evangelização da cidade. Lá, o teólogo belga falava sobre a burocratização das paróquias, que podem se tornar verdadeiros cativeiros paroquiais. Nesse ponto se referia ao Documento 100 da CNBB, que segundo ele ainda não foi bem recebido, se questionando sobre quantas paroquias no Brasil funcionam enquanto rede de comunidades, insistindo que “esse é o caminho”. Segundo Carias, “a comunidade precisa ser o lugar do encontro”, e junto com isso “esse lugar onde as pessoas sejam reconhecidas na sua condição humana” e “espaços de solidariedade e de festa”.

Essa forma de organizar a vida, que concentra bens, que segrega pessoas, ela é alimentada por uma forma de individualismo muito aguçado em que cada um deve pensar em si mesmo”, afirma Aquino Junior. Ele refletiu sobre a tentativa de que as pessoas se despreocupem pelos outros, de romper vínculos de solidariedade, de tornar as pessoas insensíveis ao sofrimento dos outros, criando a cultura da indiferença, a cultura do descartável. Segundo ele, “o individualismo acompanha e justifica a lógica do capitalismo”.

Diante disso, o que torna a vida possível na cidade diante de tantas tragédias são os vínculos que se criam: família, amigos, vínculos afetivos, os grupos. Nessa realidade, a Igreja deve ser lugar de vínculo, de fraternidade num nível que vai além do sangue, alargando os vínculos que se fundamentam num Deus que é amor e comunhão Trinitária. Nesse contexto, “a Igreja é chamada a ser sinal de reconciliação dos seres humanos entre si e com Deus”, segundo o teólogo. Ele vê a Igreja como “lugar de vínculos fundado no Mistério amoroso de Deus e na ação do Espírito que é quem reúne”. Frente à lógica do ódio, cada vez mais presente na sociedade brasileira, a Igreja, nesse contexto, tem que ser fermento de fraternidade.

Diante da questão do pentecostalismo, Celso Carias partiu da ideia de que a espiritualidade pentecostal é uma espiritualidade legítima. Por outro lado, ele afirmou que “a teologia que sustenta o mundo pentecostal permite uma flexibilidade que pode ser utilizada por aqueles que são mal-intencionados”, o que deu lugar ao neopentecostalismo. Na sua opinião, a lógica do poder precisa de um mecanismo que o sustente.

Daí a necessidade de não esquecer que o centro é o caminho de Jesus, é o Reino de Deus, para não ser utilizado pelos centros de poder. O caminho a seguir deve vir do fato de ter a coragem de dialogar, mesmo diante da dificuldade de fazê-lo, inclusive com espaços pentecostais dentro da Igreja católica. Na sua opinião, a paróquia não deveria ser lugar de oferta de um único modelo espiritual, o que ajudaria a superar essa crise que estamos passando no momento.

Para assistir à live na íntegra:

Sobre o autor:

Luis Miguel Modino

Luis Miguel Modino – Padre diocesano de Madri, missionário fidei donum na Amazônia, residindo atualmente em Manaus – AM. Faz parte da Equipe de Comunicação da REPAM. Correspondente no Brasil de Religión Digital e colaborador do Observatório da Evangelização e em diferentes sites e revistas.

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Direitos Humanos dos encarcerados. Contra os sentimentos/pensamentos monstruosos da Xuxa, com a palavra o teólogo Francisco de Aquino Júnior https://observatoriodaevangelizacao.com/direitos-humanos-dos-encarcerados-contra-os-sentimentos-pensamentos-monstruosos-da-xuxa-com-a-palavra-o-teologo-francisco-de-aquino-junior/ Sat, 15 May 2021 05:29:32 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=39478 [Leia mais...]]]> No dia 26 de março a Xuxa participou de uma live promovida pela Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro sobre defesa dos direitos dos animais. Um tema importante e necessário, sobretudo quando consideramos as condições de criação intensiva, manejo e abate de animais pelas grandes indústrias. Mais uma causa nobre e humanitária defendida pela Xuxa. Ela tem defendido os direitos das crianças e adolescentes, das mulheres e da população LGBTQIA+. E nessa live assume a defesa dos animais.

O estranho e absurdo é que, defendendo os direitos dos animais, ela se volta contra os direitos das pessoas encarceradas, defendendo ideias e propostas monstruosas de fazer dos encarcerados cobaias de experimentos:

– “com remédios e coisas, eu tenho um pensamento que pode parecer muito ruim para as pessoas, que pode parecer desumano”

– “eu acho que existem muitas pessoas que fizeram muitas coisas erradas que estão aí pagando seus erros ad aeternum, para sempre em prisão, que poderiam ajudar nesses casos aí, de pessoas para experimentos”

– “pelo menos serviriam para alguma coisa antes de morrer, para ajudar a salvar vidas com remédios e com tudo. Aí vem o pessoal dos Direitos Humanos e dizer que não podem ser usados… Acho que poderiam usar ao menos um pouco da vida delas para ajudar outras pessoas. Provando remédios, vacinas, provando tudo nessas pessoas para ver se funciona”

Várias pessoas reagiram nas redes sociais contra essas ideias monstruosas defendidas pela Xuxa. Manifestaram indignação por tratar animais com mais dignidade e direitos que seres humanos. Lembraram que isso foi praticado nos campos de concentração nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. Falaram da situação carcerária no Brasil: mais de 760 mil pessoas empilhadas, das quais mais de 60% são negras, cerca de 40% sequer foram julgadas, cerca de 30% estão presas por “tráfico” de droga (em geral, os que fazem o delivery dos papelotes, ou entregar do varejo – não os grandes traficantes), pouco mais de 10% são acusadas de crime contra as pessoas. Defenderam que prisão não é para vingar, matar ou torturar, mas para recuperar, humanizar e ressocializar e que, para defender os animais, não é preciso agredir os seres humanos.

Diante de tantas reações, ela gravou um vídeo se desculpando, afirmando que se expressou mal, reconhecendo que há muitas falhas no sistema prisional e que se ela condena essas pessoas está “sendo tão ruim quanto as outras pessoas que maltratam outras vidas”. E diz que, ao se referir aos encarcerados, não pensou em questão social (pobres) ou racial (negros), mas “na pessoa que estupra uma criança”, como se nesse caso não tivesse problema usar pessoas como cobaia. O estupro é uma monstruosidade que não tem desculpa nem perdão. Mas a pessoa que comete esse crime monstruoso deve ser tratada sempre com dignidade. Do contrário, como reconhece a própria Xuxa, nós nos tornamos tão “ruins” quanto elas. Não se combate crime com crime, monstruosidade com monstruosidade. Isso nos desumaniza como pessoas e como sociedade.

Infelizmente é assim que muita gente pensa: “bandido bom é bandido morto”, “direitos humanos é defender crime”. E o mais trágico é isso ter se tornado política de governo no Brasil. Mas o mais absurdo mesmo é pessoas que se dizem cristãs serem contra os direitos humanos e a favor de tortura, pena de morte e terem sentimentos e pensamentos tão monstruosos/nazistas como esse defendido pela Xuxa. A vida é dom de Deus. Atentar contra a vida humana – mesmo de um estuprador – é atentar contra a obra criadora de Deus e contra o Evangelho de fraternidade, justiça e paz de Jesus Cristo.

Estamos com a Xuxa na defesa dos animais. Mas estamos radicalmente contra seus sentimentos/pensamentos monstruosos/nazistas contra os encarcerados – mesmo os que cometeram a monstruosidade do estupro. A defesa dos animais não pode se dar às custas dos direitos humanos. Como bem afirma o papa Francisco na encíclica Laudato Si’ sobre o cuidado da casa comum: “Devemos ter a preocupação de que os outros seres vivos não sejam tratados de forma irresponsável, mas deveriam indignar-nos sobretudo as enormes desigualdades que existem entre nós, porque continuamos a tolerar que alguns se considerem mais dignos do que outros” (LS 90).

Contra os maus tratos de animais!

Pelos direitos humanos de todos os humanos!

Pelos direitos humanos dos encarcerados!

Sobre o autor:

Prof. dr. pe. Francisco de Aquino Júnior (Foto. Camilla Moreira, para o Observatório da Evangelização)

Francisco de Aquino Júnior possui graduação em Teologia e Filosofia, mestrado e doutorado em Teologia. É professor da Faculdade Católica de Fortaleza (FCF) e da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP); presbítero da Diocese de Limoeiro do Norte – CE. Dentre seus livros merecem destaque: Teologia como intelecção do reinado de Deus (A) – O método da Teologia da Libertação segundo Ignacio Ellacuria. São Paulo: Loyola, 2010; A dimensão socioestrutural do Reinado de Deus, São Paulo: Paulinas, 2011; Teoria Teológica. Práxis Teológica. Sobre o método da Teologia da Libertação. São Paulo: Paulinas, 2012; Viver segundo o espírito de Jesus Cristo. Espiritualidade como seguimento. São Paulo: Paulinas, 2014; Pastoral social. Dimensão socioestrutural da caridade cristã. Brasilia: Edições CNBB, 2016; O caráter práxico-social da teologia. Tópicos fundamentais de epistemologia teológica. São Paulo: Loyola, 2017; Nas Periferias do Mundo. Fé, Igreja, Sociedade. São Paulo: Paulinas, 2017; Organizações populares. São Paulo: Paulinas, 2018; Teologia em saída para as periferias. São Paulo: Paulinas/ Unicap, 2019; com Maurício Abdala e Robson Sávio, é organizador do livro: Papa Francisco com os movimentos populares. São Paulo: Paulinas, 2018; com Agenor Brighenti, é organizador do livro: Pastoral Urbana. Novos caminhos para a Igreja na cidade. Petrópolis: Vozes, 2021.

Fonte:

www.portaldascebs.org.br

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“Armemos os nossos filhos com as armas do diálogo”, com a palavra o teólogo Francisco de Aquino Júnior https://observatoriodaevangelizacao.com/armemos-os-nossos-filhos-com-as-armas-do-dialogo-com-a-palavra-o-teologo-francisco-de-aquino-junior/ Tue, 23 Mar 2021 11:21:16 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=38998 [Leia mais...]]]> “Quando se fala de violência, pensa-se logo em homicídio, assalto, agressão física e encarceramento[…]. Mas não se deve esquecer que quando alguém chega a praticar ou sofrer esse tipo de violência já praticou ou sofreu muitas outras formas de violência (econômica, social, policial, sexual, psicológica, verbal etc.). Agressão física e homicídio não são um fato isolado, mas expressão extrema de um processo ou de uma cultura de violência. Ninguém nasce violento. Aprende-se a ser violento […]. A violência não é um dado natural, mas um processo cultural. Além de ineficaz (violência gera violência) e imoral (defesa da violência, combater o crime de forma criminosa), esse tipo de política é radicalmente anti-evangélica: atenta contra a fraternidade, promove ódio, intolerância, inimizade e violência, banaliza e leva à eliminação da vida que é dom de Deus. A paz é fruto da justiça e da fraternidade e se alcança através do diálogo e da política.”

Confira a reflexão do prof. pe. Francisco de Aquino Júnior:

Armemos os nossos filhos com as armas do diálogo

Vivemos numa sociedade profundamente violenta. E a violência se dá de muitas formas (verbal, psíquica, física, econômica, social, política, cultural, sexual, religiosa, digital etc.), causando injustiça, exclusão, dor, sofrimento e morte. É verdade que no ambiente de violência generalizada em que vivemos, ninguém está completamente imune. Mas se a violência atinge todas as pessoas, nem que seja pelo sentimento comum de insegurança e medo, não atinge igualmente a todas pessoas. A violência tem classe, cor, sexo… Basta ver a população encarcerada e as vítimas da violência policial.

Quando se fala de violência, pensa-se logo em homicídio, assalto, agressão física e encarceramento. E os números são assustadores. O Atlas da Violência 2020 revela que em 2018 foram assassinadas no Brasil 57.956 pessoas. Segundo o Departamento Penitenciário Nacional, no primeiro semestre de 2019 a população carcerária do Brasil chegou 773,1 mil.  Mais de 66% dessa população era negra. Mas não se deve esquecer que quando alguém chega a praticar ou sofrer esse tipo de violência já praticou ou sofreu muitas outras formas de violência (econômica, social, policial, sexual, psicológica, verbal etc.). Agressão física e homicídio não são um fato isolado, mas expressão extrema de um processo ou de uma cultura de violência. Ninguém nasce violento. Aprende-se a ser violento. A violência não é um dado natural, mas um processo cultural.

No contexto de violência generalizada em que vivemos, a tentação maior é combater violência com violência: grito com grito, intolerância com intolerância, agressão com agressão e, no limite, eliminação do inimigo. Tornou-se comum, mesmo entre pessoas “religiosas”, afirmações do tipo “bandido bom é bandido morto”, “direitos humanos é defender bandidagem”, “bandido tem que sofrer”. E tem se tornado cada vez mais comum a prática de linchamentos com apoio de amplos setores da sociedade. Chegamos ao extremo de se tolerar, no parlamento, a defesa explicita de tortura e de torturadores, e de eleger um presidente que defende tortura, torturadores e milícias. O que era prática de pessoas e/ou grupos isolados tem se tornado cada vez mais política de governo.

É o próprio chefe do Estado que dissemina ódio e preconceito, desmonta políticas de defesa dos Direitos Humanos, estimula a violência policial, defende e promove o armamento da população e promulga decretos e portarias que facilitam a posse e o porte de armas. Desde o início de seu governo já formam publicadas mais 30 decretos e portarias sobre o tema. O decreto mais recente permite, entre outras coisas, que atiradores e caçadores comprem até 60 e 30 armas, respectivamente, sem autorização expressa do Exército, que cidadãos comuns podem ter até 6 armas, que policiais, agentes e guardas prisionais podem ter até 8 armas, e autoriza o aumento da compra de munição. Trata-se de um projeto político de armamento da população e de combate à violência com mais violência.

Além de ineficaz (violência gera violência) e imoral (defesa da violência, combater o crime de forma criminosa), esse tipo de política é radicalmente anti-evangélica: atenta contra a fraternidade, promove ódio, intolerância, inimizade e violência, banaliza e leva à eliminação da vida que é dom de Deus. A paz é fruto da justiça e da fraternidade e se alcança através do diálogo e da política. Nunca através da intolerância, da violência e do crime – menos ainda de uma política criminosa.

Compêndio de Doutrina Social da Igreja adverte que “o enorme aumento das armas representa uma ameaça grave para a estabilidade e a paz” (CDSI 508), afirma que “medidas apropriadas são necessárias para o controle da produção, venda, importação e exportação de armas leves e individuais, que facilitam muitas manifestações de violência” e insiste que “é indispensável e urgente que os governos adotem regras adequadas para controlar a produção, o acúmulo, a venda e o tráfico de tais armas” (CDSI 511). E o papa Francisco, em sua encíclica Fratelli Tutti sobre a fraternidade e a amizade social, falando da importância do diálogo e da cultura do encontro, insiste na importância e necessidade de “gerar processos de encontro”: “Armemos os nossos filhos com as armas do diálogo, Vamos ensinar-lhes o bom combate do encontro” (FT 217).

O Brasil precisa de vacina, diálogo e justiça social, e não de armas!

Sobre o autor:

Prof. dr. Francisco de Aquino Júnior (Foto. Camilla Moreira, para o Observatório da Evangelização)

Francisco de Aquino Júnior possui graduação em Teologia e Filosofia, mestrado e doutorado em Teologia. É professor da Faculdade Católica de Fortaleza (FCF) e da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP); presbítero da Diocese de Limoeiro do Norte – CE. Dentre seus livros merecem destaque: Teologia como intelecção do reinado de Deus (A) – O método da Teologia da Libertação segundo Ignacio Ellacuria. São Paulo: Loyola, 2010; A dimensão socioestrutural do Reinado de Deus, São Paulo: Paulinas, 2011; Teoria Teológica. Práxis Teológica. Sobre o método da Teologia da Libertação. São Paulo: Paulinas, 2012; Viver segundo o espírito de Jesus Cristo. Espiritualidade como seguimento. São Paulo: Paulinas, 2014; O caráter práxico-social da teologia. Tópicos fundamentais de epistemologia teológica. São Paulo: Loyola, 2017; Nas Periferias do Mundo. Fé, Igreja, Sociedade. São Paulo: Paulinas, 2017; Teologia em saída para as periferias. São Paulo: Paulinas/ Unicap, 2019.

Fonte:

www.portaldascebs.org.br

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“Paz na rua – Paz da rua ‘O Espírito do Senhor atua a partir de baixo’”, com a palavra o teólogo Francisco de Aquino Júnior https://observatoriodaevangelizacao.com/paz-na-rua-paz-da-rua-o-espirito-do-senhor-atua-a-partir-de-baixo-com-a-palavra-o-teologo-francisco-de-aquino-junior/ Mon, 08 Mar 2021 12:08:00 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=38670 [Leia mais...]]]> A paz não é uma ideia ou um sentimento genérico e abstrato; não é mera ausência de guerra ou agressão física; não é algo intimista nem meramente individual; não é algo que se espera e se recebe de braços cruzados […] A expressão “paz” está associada aos bens mais importantes da vida humana, isto é, aquilo que é necessário para viver com dignidade: alimento, saúde, moradia, trabalho, companhia, afeto, lazer, serenidade, esperança, Deus… Por isso mesmo, está ligada aos anseios humanos mais profundos […] Enquanto síntese dos bens e dos anseios mais profundos e fundamentais da vida humana, a paz tem sempre nos pobres e marginalizados seu critério e sua medida. Tanto no que diz respeito ao diagnóstico da paz numa determinada sociedade (presença ou ausência de paz), quanto no que diz respeito ao projeto de construção da paz (o que deve ser feito, como deve ser feito, por onde começar…). Os pobres e marginalizados são, assim, os juízes da paz (julgamento, veredicto) e os principais artesãos/sujeitos da paz (projeto, tarefas, caminhos, moderadores) […] A paz só é possível na fraternidade. Só há fraternidade na justiça. E os pobres e marginalizados são sempre os juízes e os mestre da paz. É neste sentido que falamos não apenas de “paz na rua” (vivida na rua), mas de “paz da rua” (construída a partir e em função da rua). Isso soa absurdo ou mesmo escandaloso, é verdade. É o escândalo da salvação que nasce na periferia e manifesta seu poder na cruz. É a lógica do Deus de Jesus, cujo Espírito “age a partir de baixo”. A verdadeira paz vem de baixo: das ruas, dos lixões, dos viadutos…

Confira a reflexão do teólogo prof. Francisco de Aquino Júnior:

Paz na rua – Paz da rua

“O Espírito do Senhor atua a partir de baixo!”

Prof. dr. pe. Francisco de Aquino Júnior

A expressão “paz” está associada aos bens mais importantes da vida humana, isto é, aquilo que é necessário para viver com dignidade: alimento, saúde, moradia, trabalho, companhia, afeto, lazer, serenidade, esperança, Deus…  Por isso mesmo, está ligada aos anseios humanos mais profundos. É como uma síntese dos bens e anseios fundamentais da vida humana. Não por acaso, é uma das expressões mais utilizadas – em festas de natal, ano novo, aniversário, em despedidas, como saudação – para exprimir o desejo ou os votos de uma vida boa e feliz para si e para os outros: “muita paz”, “fique em paz”, “vá em paz”, “tenha paz”, “viva em paz”. A liturgia do dia primeiro de janeiro, “Dia Mundial da Paz”, recorda uma fórmula antiga de benção em Israel que conclui precisamente com uma súplica de paz: “O Senhor volte para ti o seu rosto e te dê a paz” (Nm 6, 26)!

Esse é o sentido amplo e profundo da expressão bíblica shalom: ausência de guerra, harmonia e bem estar interior, relacionamento com as pessoas e com Deus, prosperidade, saúde, justiça, felicidade, salvação… Envolve todos os âmbitos ou dimensões da vida e tem em Deus seu princípio e seu fim. A tradição profética, em especial, insiste muito na relação entre paz e justiça: a paz é fruto da justiça (Is 32, 17). E a justiça tem a ver, antes de tudo, com o direito dos pobres e marginalizados: “praticai a justiça e o direito, livrai o oprimido do opressor, não exploreis o migrante, o órfão e a viúva, não derrameis sem piedade sangue inocente neste lugar” (Jr 22, 3).

A paz, que tem a ver com os bens e anseios mais profundos da vida humana e que é inseparável da justiça enquanto garantia dos direitos dos pobres e marginalizados, é dom de Deus e tarefa nossa. Por ser dom de Deus, suplicamos constantemente a paz: dá-nos Senhor a paz! Por ser dom, é algo que só pode ser acolhido e vivido na doação de si. Enquanto “dom de Deus”, portanto, a paz é algo que é dado para ser feito. É tarefa cotidiana e permanente; tarefa que envolve todas as dimensões da vida; tarefa de todas as pessoas; tarefa que tem nos pobres e marginalizados seu critério e sua medida.

Enquanto síntese dos bens e dos anseios mais profundos e fundamentais da vida humana, a paz tem sempre nos pobres e marginalizados seu critério e sua medida. Tanto no que diz respeito ao diagnóstico da paz numa determinada sociedade (presença ou ausência de paz), quanto no que diz respeito ao projeto de construção da paz (o que deve ser feito, como deve ser feito, por onde começar…). Os pobres e marginalizados são, assim, os juízes da paz (julgamento, veredicto) e os principais artesãos/sujeitos da paz (projeto, tarefas, caminhos, moderadores).

O mundo dos pobres e marginalizados é muito amplo e complexo: muitos rostos, muitas histórias, muitas formas e níveis de violência e sofrimento, muitas formas de resistência e criatividade… Pensemos, aqui, concretamente, na população em situação de rua. Dados recentes do Instituto de Pesquisa Aplicada (IPEA) estimam que de 2012 a 2020 houve um aumento de 140% da população em situação de rua do país, passando de 92.515 pessoas (2012) para 221.869 pessoas (2020). Convém destacar que isso é apenas “estimativa” e que esses dados se referem a março de 2020 – antes de pandemia[1]. Não é preciso insistir aqui nas condições (econômicas, sociais, culturais, psicológicas, afetivas, religiosas etc.) sub-humanas em que vivem essas pessoas… Mas se falar dessa situação é desconcertante, mais desconcertante ainda é falar de paz a partir dessa situação. E, no entanto, essa é a única forma honesta, verdadeira, autêntica e evangélica de falar de paz: a partir daqueles/as a quem mais é negada a paz, a partir daqueles/as que mais necessitam de paz, a partir daqueles/as que são os principais sujeitos/artesãos paz.

Sem dúvida nenhuma, a rua é lugar de violência: todas as formas possíveis e imagináveis de violência (econômica, social, cultural, policial, gênero, racial, religiosa etc.); violência da sociedade contra o povo da rua; violência introjetada e reproduzida pelo próprio povo da rua; violência pandêmica ou generalizada. Mas a rua é também lugar de paz. E quem desenvolve algum trabalho com a população em situação de rua pode comprovar isso de muitas maneiras: a resistência e teimosia em viver; a criatividade para ganhar a vida; as diversas formas de trabalho; a partilha de comida, roupa, papelão, cigarro, cachaça; as trocas de informação sobre pontos de doação ou centros de referência; o cuidado dos doentes; as festas, os cantos, as rodas de cachaça; as amizades, os namoros e os vínculos conjugais; as ocupações de prédios e viadutos; as cooperativas de catadores; o movimento da população de rua; as lutas por políticas públicas de assistência social, de moradia e contra a violência policial; as comunidades de fé; as rezas e celebrações… Tudo isso é sinal/expressão da vivência e construção cotidianas de paz na rua. E é isso que nos permite falar de “paz na rua”. O teólogo salvadorenho Jon Sobrino se refere a essa luta cotidiana pela vida como uma espécie de “santidade primordial” ligada à vocação primeira e fundamental de todo ser humano que é “viver e dar vida”. E o papa Francisco vê nesses artesãos da paz verdadeiros “santos ao pé da porta”.

A partir da rua podemos entender melhor em que consiste a paz e como construir a paz no mundo. A paz não é uma ideia ou um sentimento genérico e abstrato; não é mera ausência de guerra ou agressão física; não é algo intimista nem meramente individual; não é algo que se espera e se recebe de braços cruzados. A paz diz respeito aos bens e anseios necessários a uma vida digna: alimento, saúde, moradia, trabalho, companhia, afeto, lazer, serenidade, esperança, Deus… A paz é dom de Deus e tarefa nossa. A paz é inseparável da justiça, entendida como garantia dos direitos dos pobres e marginalizados, de modo que eles são, do ponto de vista ético-evangélico, os principais sujeitos e artesãos da paz e o critério e a medida de paz de uma sociedade: o que fizerem ou não fizerem a um destes é a mim que fizeram ou não fizeram (Mt 25, 31-46).

Neste sentido, a rua não é apenas um lugar onde se vive e constrói a paz (paz na rua), mas também o critério e a medida de construção da paz numa sociedade (paz da rua). Não nos iludamos:

enquanto não forem radicalmente solucionados os problemas dos pobres, renunciando à autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira e atacando as causas estruturais da desigualdade social, não se resolverão os problemas do mundo e, em definitivo, problema algum[2].

Papa Francisco

A paz só é possível na fraternidade. Só há fraternidade na justiça. E os pobres e marginalizados são sempre os juízes e os mestre da paz. É neste sentido que falamos não apenas de “paz na rua” (vivida na rua), mas de “paz da rua” (construída a partir e em função da rua). Isso soa absurdo ou mesmo escandaloso, é verdade. É o escândalo da salvação que nasce na periferia e manifesta seu poder na cruz. É a lógica do Deus de Jesus, cujo Espírito “age a partir de baixo”. A verdadeira paz vem de baixo: das ruas, dos lixões, dos viadutos…

[1] Cf. IPEA. Nota Técnica: Estimativa da População em Situação de Rua no Brasil (setembro de 2012 a março de 2020). Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/200612_nt_disoc_n_73.pdf

[2] FRANCISCO. Exortação Apostólica A alegria do Evangelho. São Paulo: Paulinas, 2013, Nº. 202.

(Grifos e adaptação para o Observatório da Evangelização, Edward Guimarães)

Sobre o autor:

Prof. dr. Francisco de Aquino Júnior (Foto. Camilla Moreira, para o Observatório da Evangelização)

Francisco de Aquino Júnior possui graduação em Teologia e Filosofia, mestrado e doutorado em Teologia. É professor da Faculdade Católica de Fortaleza (FCF) e da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP); presbítero da Diocese de Limoeiro do Norte – CE. Dentre seus livros merecem destaque: Teologia como intelecção do reinado de Deus (A) – O método da Teologia da Libertação segundo Ignacio Ellacuria. São Paulo: Loyola, 2010; A dimensão socioestrutural do Reinado de Deus, São Paulo: Paulinas, 2011; Teoria Teológica. Práxis Teológica. Sobre o método da Teologia da Libertação. São Paulo: Paulinas, 2012; Viver segundo o espírito de Jesus Cristo. Espiritualidade como seguimento. São Paulo: Paulinas, 2014; O caráter práxico-social da teologia. Tópicos fundamentais de epistemologia teológica. São Paulo: Loyola, 2017; Nas Periferias do Mundo. Fé, Igreja, Sociedade. São Paulo: Paulinas, 2017; Teologia em saída para as periferias. São Paulo: Paulinas/ Unicap, 2019.

Fonte:

www.portaldascebs.org.br

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“Ecumenismo popular: Fraternidade e justiça social”, com a palavra o teólogo prof. Francisco de Aquino Júnior https://observatoriodaevangelizacao.com/ecumenismo-popular-fraternidade-e-justica-social-com-a-palavra-o-teologo-prof-francisco-de-aquino-junior/ Mon, 15 Feb 2021 13:36:15 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=38123 [Leia mais...]]]> Há experiências e práticas importantes de convivência, diálogo e colaboração entres cristãos de diferentes Igrejas. Não no nível das discussões doutrinais, mas no nível da convivência fraterna, da solidariedade e das lutas por direitos. Quem não teve ou conhece experiências desse tipo entre familiares, vizinhos, conhecidos, membros de movimentos e organizações populares? Essas experiências mostram como a fé, quando não é desvirtuada, faz-nos viver como irmãos e não como inimigos[...] as práticas ecumênicas concretas nas lutas diversas em defesa da vida tem sido um sinal da presença amorosa atuante de Deus no meio de nós e de que a gente pode viver como irmãos: não “apesar da fé”, mas “por causa da fé”. É importante recordar que a fé, antes de ser confissão de doutrina e práticas religiosas, é adesão a Jesus Cristo e seu Evangelho que nos faz viver como filhos de Deus e irmãos uns dos outros. É um modo de vida que se concretiza na fraternidade com todos e no compromisso com os pobres e marginalizados. E é precisamente aqui que nasce, enraíza-se e se desenvolve o que chamamos de ecumenismo popular: na vida fraterna e na luta pela justiça social.

Confira a reflexão do teólogo prof. Francisco de Aquino Júnior:

ECUMENISMO POPULAR: FRATERNIDADE E JUSTIÇA SOCIAL

A fé nos faz celebrar juntos como irmãos as lutas da caminhada em defesa da vida digna para todos.

Campanha da Fraternidade (CF) desse ano de 2021 tem como tema “Fraternidade e Diálogo: Compromisso de amor” e como lema “Cristo é nossa paz: Do que era dividido fez uma unidade”. E será uma campanha ecumênica, promovida por várias Igrejas cristãs. Ela nos recorda que “a fraternidade e o diálogo são compromissos de amor porque Cristo fez uma unidade daquilo que era dividido”.

Essa CFE acontece num momento trágico de nossa sociedade: em plena pandemia da Covid-19. Uma pandemia que escancarou e aprofundou a histórica pandemia da desigualdade social. E num contexto de polarização e intolerância na sociedade e desgoverno no país. Nossa geração nunca viveu uma situação como essa. Ela perpassa as relações familiares, afetivas, eclesiais, sociais e políticas e tem como eixo articulador ou válvula de escape o “ser a favor” ou “ser contra” o desgoverno brasileiro. É como se todos nossos preconceitos e sentimentos de raiva e ódio explodissem… No meio de uma situação de inimizade como essa, somos chamados à fraternidade e ao diálogo. A começar pelo diálogo e fraternidade entre os próprios cristãos e as Igrejas cristãs.

Registro da presença da diversidade religiosa em “Caminhada contra a intolerância religiosa e paz entre as pessoas de distintas tradições religiosas.

Embora o ecumenismo tenha sido um dos “objetivos principais” do Concílio Vaticano II; embora o papa João Paulo II tenha insistido que “a procura da unidade dos cristãos não é um ato facultativo ou oportunista, mas uma exigência que dimana do próprio ser da comunidade cristã”; embora tenha havido muito diálogo e atividades comuns entre várias Igrejas cristãs e até se tenha chegado a acordos doutrinais importantes entre elas; o ecumenismo parece algo distante de nossas comunidades e, para muita gente, parece algo impossível. O mais comum entre as Igrejas é se tratarem como inimigas e concorrentes. E a culpa, claro, sempre é do outro que não quer dialogar…

No entanto, apesar dessa postura negativa generalizada, há experiências e práticas importantes de convivência, diálogo e colaboração entres cristãos de diferentes Igrejas. Não no nível das discussões doutrinais, mas no nível da convivência fraterna, da solidariedade e das lutas por direitos. Quem não teve ou conhece experiências desse tipo entre familiares, vizinhos, conhecidos, membros de movimentos e organizações populares? Essas experiências mostram como a fé, quando não é desvirtuada, faz-nos viver como irmãos e não como inimigos.

Aqui na Diocese de Limoeiro do Norte – CE, por exemplo, a Caritas diocesana tem vivido e promovido experiências intensas e fecundas nesse sentido. O trabalho com famílias camponeses (quintais produtivos, tecnologias sociais, casas de semente, feiras populares, intercâmbios, assembleias populares, ocupações etc.), com catadores de material reciclável e com ocupações urbanas tem reunido pessoas de diferentes Igrejas, favorecendo a convivência fraterna e a lutas por direitos. Nesses encontros e nessas organizações, as pessoas discutem os problemas, organizam as lutas e rezam juntas. Os encontros sempre começam e/ou terminam com oração – sinal de que a verdadeira fé não cria inimizade, mas fraternidade. Parece inacreditável ver catadores/as das Igrejas Católica, Universal, Deus é Amor, Assembleia de Deus rezando juntos; ou camponeses de diferentes Igrejas rezando juntos no Acampamento Zé Maria do Tomé ou nas articulações de economia popular solidária.

Infelizmente, isso não é o mais comum entre cristãos e Igrejas. Mas as práticas ecumênicas concretas na lutas diversas em defesa da vida tem sido um sinal da presença amorosa atuante de Deus no meio de nós e de que a gente pode viver como irmãos: não “apesar da fé”, mas “por causa da fé”. É importante recordar que a fé, antes de ser confissão de doutrina e práticas religiosas, é adesão a Jesus Cristo e seu Evangelho que nos faz viver como filhos de Deus e irmãos uns dos outros. É um modo de vida que se concretiza na fraternidade com todos e no compromisso com os pobres e marginalizados. E é precisamente aqui que nasce, enraíza-se e se desenvolve o que chamamos de ecumenismo popular: na vida fraterna e na luta pela justiça social.

Em Jesus Cristo que é a nossa paz, que derrubando os murros da separação, fez uma unidade do que era dividido, busquemos e promovamos o diálogo e a colaboração entre cristãos de diferentes Igrejas: vivendo a fraternidade e lutando por justiça social.

(Grifos e adaptação para o Observatório da Evangelização, Edward Guimarães)

Sobre o autor:

Prof. dr. Francisco de Aquino Júnior (Foto. Camilla Moreira, para o Observatório da Evangelização)

Francisco de Aquino Júnior possui graduação em Teologia e Filosofia, mestrado e doutorado em Teologia. É professor da Faculdade Católica de Fortaleza (FCF) e da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP); presbítero da Diocese de Limoeiro do Norte – CE. Dentre seus livros merecem destaque: Teologia como intelecção do reinado de Deus (A) – O método da Teologia da Libertação segundo Ignacio Ellacuria. São Paulo: Loyola, 2010; A dimensão socioestrutural do Reinado de Deus, São Paulo: Paulinas, 2011; Teoria Teológica. Práxis Teológica. Sobre o método da Teologia da Libertação. São Paulo: Paulinas, 2012; Viver segundo o espírito de Jesus Cristo. Espiritualidade como seguimento. São Paulo: Paulinas, 2014; O caráter práxico-social da teologia. Tópicos fundamentais de epistemologia teológica. São Paulo: Loyola, 2017; Nas Periferias do Mundo. Fé, Igreja, Sociedade. São Paulo: Paulinas, 2017; Teologia em saída para as periferias. São Paulo: Paulinas/ Unicap, 2019.

Fonte:

www.portaldascebs.org.br

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Igreja na cidade: lugar e fermento da fraternidade, com a palavra o teólogo e professor Francisco de Aquino Júnior https://observatoriodaevangelizacao.com/igreja-na-cidade-lugar-e-fermento-da-fraternidade-com-a-palavra-o-teologo-e-professor-francisco-de-aquino-junior/ Mon, 08 Feb 2021 14:39:59 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=37972 [Leia mais...]]]> Esse contexto de desigualdade socioespacial, violência pandêmica, solidão e desespero que caracteriza nossas cidades provoca a Igreja a pensar e centrar-se naquilo que constitui o centro de sua missão no mundo: a vivência e propagação da fraternidade como expressão por excelência da comunhão com Deus. A vivência do amor fraterno não é um ponto entre outros na Igreja, mas o modo cristão de ser humano, a forma de viver a comunhão com Deus, a marca fundamental da fé ou da vida cristã: ‘Nisso conhecerão que sois meus discípulos: se tiverdes amor uns para com o outros’ (Jo 13,35). […] Certamente, a vivência da fraternidade e a construção de um mundo fraterno não se dão apenas na Igreja nem são tarefas exclusivas da Igreja. Menos ainda numa sociedade plural como é a sociedade urbana, onde a religião é um espaço e uma referência entre outros e onde o próprio universo religioso é bastante plural (diversidade de igrejas, tradições e experiencias religiosas). Mas, no meio dessa pluralidade toda e em interação e colaboração com ela, a Igreja tem uma dupla tarefa/missão: ser lugar/sinal de fraternidade e ser mediação/instrumento de fraternidade.

Confira a pertinente reflexão do teólogo e professor Francisco de Aquino Júnior:

IGREJA NA CIDADE: LUGAR E FERMENTO DA FRATERNIDADE

Vivemos em sociedades urbanas. A grande maioria da população (sobre)vive em cidades de médio e grande porte. Quando falamos de cidade ou de mundo urbano, falamos de uma forma de organização social do espaço que, por sua vez, produz um modo ou estilo de vida. O grande paradoxo da cidade é que se, por um lado, ela aparece como lugar de possibilidade de vida (trabalho, saúde, educação, lazer, encontro, liberdade, novidade etc.), por outro lado, ela se configura como um lugar onde essas possibilidades são negadas a uma grande parte da população (desemprego, falta de moradia, serviços sociais precários ou ausência deles, discriminação, violência, solidão etc.). A desigualdade socioespacial é a característica mais determinante do processo de urbanização de nossas sociedades. Isso produz um ambiente de frustração, angústia, desespero e violência generalizada, cuja consequência mais visível e trágica são os altos índices de homicídio entre a população pobre e negra das periferias. Frente a essa situação de violência pandêmica, o Estado reage com mais violência através uma política de criminalização e encarceramento massivo da população pobre e negra das periferias.

Lixão. Wilson Dias. Arquivo: Agência Brasil.

Enquanto “sacramento de salvação” ou “sinal e instrumento do reinado de Deus”, a Igreja deve ser na cidade lugar e fermento de fraternidade. Deve ser um espaço onde se experimenta a fraternidade e onde se aprende a viver como irmãos (lugar de acolhida, encontro, compaixão, solidariedade, diálogo, perdão etc.). E sua missão fundamental é contagiar e fermentar o mundo com esse modo de vida fraterna. Daí o duplo caráter profético que a Igreja pode e deve exercer na cidade: ser lugar/sinal de fraternidade e ser mediação/instrumento de fraternidade. Nisso residem simultânea e inseparavelmente sua identidade mais profunda e sua missão fundamental.

Se a fraternidade é a característica e a missão fundamental da Igreja em todos os tempos e lugares, a desigualdade socioespacial, a violência generalizada, o anonimato e a solidão que caracterizam nossas cidades tornam a fraternidade ainda mais necessária e urgente em nosso mundo. São os dois pontos ou momentos de nossa reflexão.

1. Desigualdade socioespacial, violência, solidão e desespero

Falar da cidade ou do mundo urbano é falar de uma forma de organização social do espaço (geografia, estruturas, economia, política, religião, meios de comunicação social, entidades sociais etc.) que, por sua vez, produz um modo ou estilo de vida muito peculiar (ritmo/rotina, relações, valores, cosmovisões etc.). Trata-se de uma realidade complexa e dinâmica, constituída por uma multiplicidade de elementos, aspectos, processos, relações e instituições em tensões, interações e conflitos.

Não podemos fazer aqui uma abordagem ampla da cidade que contemple seus vários elementos, aspectos e processos. Queremos simplesmente destacar três traços ou características de nossas cidades que tornam ainda mais relevante e urgente a missão da Igreja de ser lugar e fermento de fraternidade.

a) Desigualdade socioespacial

A desigualdade visível. Foto: HÉLVIO ROMERO/Estadão Conteúdo

A característica mais marcante do processo de urbanização de nossa sociedade e/ou de construção e gestão de nossas cidades é o que algumas urbanistas brasileiras têm chamado de “desigualdade socioterritorial” (Raquel Rolnik) ou “segregação territorial” (Ermínia Maricato). Trata-se de uma forma de ocupação e organização social do espaço que oferece e garante um conjunto de equipamentos, serviços e possibilidades para um setor privilegiado da sociedade, ao mesmo tempo em que nega ou precariza esses equipamentos, serviços e possibilidades para a grande maioria da população. É um modelo de “urbanização desigual”, pensado e gerido em função do capital e que segrega grande parte da população, excluindo-a dos bens, serviços e possibilidades da cidade. Seu resultado é uma cidade para poucos; uma cidade na qual a exclusão/segregação social é a forma habitual de inclusão/integração de grande parte da população.

É importante não esquecer que o processo de urbanização de nossas sociedades se deu no contexto e/ou em função do processo de industrialização que se desenvolveu na Europa a partir da segunda metade do século XVIII. Uma parcela cada vez maior da população vai se concentrando em torno ou nos arredores das fábricas em condições muito precárias ou mesmo subumanas. Assim vão nascendo e/ou crescendo as cidades modernas: em função do capital (fábrica/serviços) e de forma segregadora (centro/elite X periferia/pobres). Na Europa, a organização e as lutas da classe operária levaram à conquista de um conjunto de direitos trabalhistas e sociais que resultou num processo significativo de democratização das cidades. Entre nós, não obstante conquistas sociais importantes, o modelo de “urbanização desigual” manteve-se praticamente inalterado, sem universalização de serviços básicos e com aumento e aprofundamento da segregação socioespacial. Basta ver a situação das periferias de nossas cidades e o aumento da população em situação de rua nos grandes centros urbanos.

b) Violência pandêmica

No contexto mais amplo da desigualdade socioespacial que caracteriza nossas cidades está um fenômeno novo, tipicamente urbano, conhecido como “violência urbana”. Suas formas são diversas: furtos, tiroteios, homicídios, gangues, tráfico, milícias, violência policial, agressão no trânsito, espancamento de moradores de rua, negros e população LGBTQI+, feminicídio, fake news e milícias digitais, entre outras. E seus índices são assustadores. Basta ver as taxas de homicídio e de encarceramento. Mas é importante também atentar para suas principais vítimas: pobres e negros.

É claro que a violência não é um fenômeno novo nem exclusivo da cidade, mas adquiriu aí dimensões, proporções e características novas e assustadoras. E é claro que a desigualdade não é a única causa da violência. Mas, além de ser uma forma de violência, desencadeia e/ou cria um ambiente fecundo para muitas outras formas de violência, interagindo com elas e agravando-as ainda mais. Acrescente-se a isso a forma violenta e segregacionista como o Estado vem enfrentando a situação de violência pandêmica de nossas cidades: “substituição gradual da rede de assistência do Estado de bem-estar social pela ‘rede de arrasto’ da polícia, dos tribunais e das prisões” (Loïc Wacquant).

c) Solidão e desespero

Solidão na cidade. Fonte da imagem: WeHeartIt

Ligados à desigualdade socioespacial e à violência pandêmica estão a solidão e o desespero de uma parcela significativa e crescente da população de nossas cidades: trabalhadores desempregados, jovens sem perspectiva, vítimas do tráfico, dependentes químicos, idosos abandonados e explorados, mulheres violentadas, população em situação de rua, dentre outros. Basta ver os índices de pessoas com depressão e o “sucesso” do pentecostalismo, centrado em questões subjetivo-existenciais.

É curioso: O lugar da multidão é, para muita gente, o lugar da solidão (está junto não é está próximo!); o lugar das possibilidades se torna para muita gente o lugar do desespero (existência de possibilidade não significa acesso a elas!). A vida é um processo dinâmico, cuja realização se dá na interação bens-relações-sentido. O desafio é garantir os bens necessários, promover relações saudáveis e viver com alegria e esperança.

2. Fraternidade e amizade social

Esse contexto de desigualdade socioespacial, violência pandêmica, solidão e desespero que caracteriza nossas cidades provoca a Igreja a pensar e centrar-se naquilo que constitui o centro de sua missão no mundo: a vivência e propagação da fraternidade como expressão por excelência da comunhão com Deus. A vivência do amor fraterno não é um ponto entre outros na Igreja, mas o modo cristão de ser humano, a forma de viver a comunhão com Deus, a marca fundamental da fé ou da vida cristã: “Nisso conhecerão que sois meus discípulos: se tiverdes amor uns para com o outros” (Jo 13,35).

A Encíclica Fratelli Tutti do papa Francisco “sobre a fraternidade e a amizade social” insiste naquilo que é a característica e missão fundamental da Igreja e a necessidade e urgência maiores de nosso tempo: “todos irmãos”. Ela é uma “humilde contribuição para a reflexão, a fim de que, perante as várias formas atuais de eliminar ou ignorar os outros, sejamos capazes de reagir com um novo sonho de fraternidade e amizade social que não se limite a palavras” (FT 6).

Certamente, a vivência da fraternidade e a construção de um mundo fraterno não se dão apenas na Igreja nem são tarefas exclusivas da Igreja. Menos ainda numa sociedade plural como é a sociedade urbana, onde a religião é um espaço e uma referência entre outros e onde o próprio universo religioso é bastante plural (diversidade de igrejas, tradições e experiencias religiosas). Mas, no meio dessa pluralidade toda e em interação e colaboração com ela, a Igreja tem uma dupla tarefa/missão: ser lugar/sinal de fraternidade e ser mediação/instrumento de fraternidade.

a) Lugar/sinal de fraternidade

Padre Júlio Lancelotti, profeta da dignidade das pessoas em situação de rua, coloca flores no lugar de pedras que tinham sido instaladas pela Prefeitura sob viadutos de SP. Foto: Henrique de Campos/Divulgação

Enquanto comunidade dos seguidores de Jesus, a Igreja deve ser lugar de encontro com Ele e de escuta e vivência de seu Evangelho que é a manifestação da bondade de Deus (Pai) em sua ação salvífico-libertadora (reinado de Deus). Ela deve ser um lugar onde se se aprende a viver como irmãos, a servir, a ser suporte uns para os outros, a perdoar, a amar até os inimigos, a fazer o bem até a quem faz o mal, a ser humilde, a ter compaixão com os caídos à beira do caminho e com a humanidade sofredora, a acolher os que são banidos da convivência social e tratados como impuros e pecadores.

Está em jogo, aqui, um modo de vida, dinamizado pela lógica do amor fraterno que nos faz irmãos uns dos outros e filhos de Deus. É que a relação filial com Deus se vive, manifesta-se e é medida pela relação fraterna com os irmãos. Deus é amor e quem vive em Deus só pode viver no amor com os irmãos (1Jo 4,7-21). Essa é a marca fundamental do ser cristão (Jo 13,34) e a exigência fundamental da fé (Jo 15,12), cujo critério e cuja medida são sempre o fazer-se próximo dos caídos à beira do caminho (Lc 10,25-37) ou o fazer ou não fazer aos pequenos e pobres (Cf. Mt 25,31-46).

Isso é tão claro na Escritura que é difícil alguém negar abertamente. Em princípio, todos estão de acordo com isso. Mas quando a gente olha para a vida concreta de nossas comunidades, não é preciso fazer muito esforço para perceber que no centro da vida de nossas comunidades estão a reprodução e o crescimento institucional (culto, doutrina, templo, dízimo, ministros, fiéis etc.) e não a vivência e propagação da fraternidade. Sem falar que muitas vezes nossas comunidades se tornam lugar de preconceito, intolerância, ódio e até aversão aos direitos humanos. O grande desafio é fazer da fraternidade o centro da vida de nossas comunidades: fraternidade entre os membros da comunidade, fraternidade com que não são de nossa comunidade e, sobretudo, fraternidade com os pobres, marginalizados e sofredores da sociedade. Isso faz da Igreja lugar (onde se vive) e sinal (que manifesta) do reinado de fraternidade, justiça e paz anunciado por Jesus.

b) Mediação/instrumento de fraternidade

Papa Francisco e a atenção generosa com os doentes. Foto: AFP/ Getty Imagens.

A Igreja não existe para si, mas para a missão. Ela é missionária por sua própria natureza. Como insistiu a Conferência de Aparecida em 2007 e como insiste a I Assembleia Eclesial da América Latina e do Caribe a ser realizada no México em novembro de 2021, “somos todos discípulos missionários em saída”. E nossa missão é tornar presente o reinado de Deus nesse mundo; ser fermento, sal e luz do reinado de fraternidade, justiça e paz anunciado/realizado por Jesus de Nazaré.

Isso se dá, antes de tudo, pela vivência do Evangelho na comunidade. A primeira e a mais fundamental forma de anúncio do reinado de Deus é sua vivência em comunidade. Na medida em vivemos como irmãos, propagamos a fraternidade no mundo. Esse foi o impacto primeiro da Igreja no mundo: “Vede como eles se amam” (Tertuliano). E continua sendo a forma autenticamente evangélica de propagação da Igreja. Noutras palavras, a Igreja se torna mediação/instrumento de fraternidade na medida em que se constitui como lugar/sinal de fraternidade.

A partir dessa vivência comunitária da fraternidade, a Igreja vai buscando/criando caminhos e meios de propagação da fraternidade no mundo: convivência fraterna com cristãos de outras Igrejas, crentes de outras religiões e não crentes; atenção às situações de sofrimento e injustiça social no bairro e na cidade; criação de ministérios e organismos de serviço aos idosos, doentes, encarcerados, enlutados, migrantes, população em situação de rua, vítimas do tráfico etc.; acolhida e consolo das pessoas em situações de sofrimento as mais diversas; apoio e colaboração com movimentos e organizações populares na luta pelos direitos dos pobres e marginalizados, dentre outros.

Dessa forma, a Igreja se torna verdadeiramente fermento/sal/luz de fraternidade na cidade e, assim, sinal e instrumento do reinado de Deus nesse mundo – verdadeiro Evangelho para a humanidade sofredora.

(Grifos e adaptação para o Observatório da Evangelização, Edward Guimarães)

Sobre o autor:

Prof. dr. Francisco de Aquino Júnior (Foto. Camilla Moeira, para o Observatório da Evangelização)

Francisco de Aquino Júnior possui graduação em Teologia e Filosofia, mestrado e doutorado em Teologia. É professor da Faculdade Católica de Fortaleza (FCF) e da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP); presbítero da Diocese de Limoeiro do Norte – CE. Dentre seus livros merecem destaque: Teologia como intelecção do reinado de Deus (A) – O método da Teologia da Libertação segundo Ignacio Ellacuria. São Paulo: Loyola, 2010; A dimensão socioestrutural do Reinado de Deus, São Paulo: Paulinas, 2011; Teoria Teológica. Práxis Teológica. Sobre o método da Teologia da Libertação. São Paulo: Paulinas, 2012; Viver segundo o espírito de Jesus Cristo. Espiritualidade como seguimento. São Paulo: Paulinas, 2014; O caráter práxico-social da teologia. Tópicos fundamentais de epistemologia teológica. São Paulo: Loyola, 2017; Nas Periferias do Mundo. Fé, Igreja, Sociedade. São Paulo: Paulinas, 2017; Teologia em saída para as periferias. São Paulo: Paulinas/ Unicap, 2019.

Fonte:

www.portaldascebs.org.br

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