Faustino Teixeira – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com Mon, 17 Jun 2019 21:39:39 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.4 https://i0.wp.com/observatoriodaevangelizacao.com/wp-content/uploads/2024/04/cropped-logo.png?fit=32%2C32&ssl=1 Faustino Teixeira – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com 32 32 232225030 Documento de Trabalho do Sínodo da Amazônia: pontos de destaque. Por Faustino Teixeira https://observatoriodaevangelizacao.com/documento-de-trabalho-do-sinodo-da-amazonia-pontos-de-destaque-por-faustino-teixeira/ Mon, 17 Jun 2019 21:39:39 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=30738 [Leia mais...]]]> A impressão que tenho do Instrumentum Laboris do Sínodo da Amazônia é positiva. Fiz uma primeira leitura e tenho que voltar com calma para aprofundar alguns pontos ali presentes. Posso elencar alguns passos que considerei importantes:

  1. Em primeiro lugar o tom do documento, de ESCUTA, de abertura e acolhida. Isso achei essencial. Em vários números isso aparece evidenciado. Já na introdução fala-se em “dom da escuta”.
  2. A percepção da Amazônia como “um novo sujeito” (1)
  3. A visão alerta da situação da Amazônia, que gera um clamor contra o desflorestamento, a destruição extrativista etc (5)
  4. Tudo isto gera a necessidade de uma “conversão pastoral”, de uma “conversão ecológica” e de uma “conversão à sinodalidade eclesial” (5)
  5. O rumo para a “conversão ecológica”, para nós aqui essencial, vem nutrido pela Laudato si de papa Francisco (5)
  6. No início da primeira parte do documento, em torno da VOZ DA AMAZÔNIA, volta-se a falar em escuta: ouvir “os povos amazônicos para poder exercer com transparência” o papel profético da igreja (7)
  7. Ao tratar da VIDA, o documento sublinha a importância da ÁGUA, do Rio Amazonas (8). Assinala-se que “o rio Amazonas lança sozinho todos os anos no oceano Atlântico 15% do total de água doce do planeta” (9)
  8. Daí a preocupação expressa, de cuidado com a vida da Amazônia, ela é “a segunda área mais vulnerável do planeta, depois do Ártico” (9)
  9. Estamos diante de um imenso território, que “abrange uma parte do Brasil, da Bolívia, do Peru, do Equador, da Colômbia, da Venezuela, da Guiana, do Suriname e da Guiana Francesa, em uma extensão de 7,8 milhões de quilômetros quadrados” (19)
  10. Isto, no “coração da América do Sul”. Só as florestas amazônicas “cobrem aproximadamente 5,3 milhões de quilômetros quadrados, o que representa 40% da área de florestas tropicais do globo” (10)
  11. A Amazônia é portadora de “abundante biodiversidade”, também no campo cultural (11)
  12. A busca de vida em abundância vem expressa com um termo que a cada dia ganha mais cidadania: “bem viver” (12)
  13. Trata-se de “viver em ´harmonia consigo mesmo, com a natureza, com os seres humanos e com o Ser supremo`” (12)
  14. O documento, por diversas vezes, vai falar da conectividade que liga tudo a tudo: a “conectividade e harmonia das relações entre a água, o território e a natureza, a vida comunitária e a cultura” (13)
  15. Isto tem a ver com o “Bem Viver”, que expressa “a centralidade do caráter relacional-transcendente dos seres humanos e da criação, e supõe ´bem fazer`” (13)
  16. A vida na Amazônia encontra-se AMEAÇADA. Isto “pela destruição e exploração ambiental, pela violação sistemática dos direitos humanos elementares da população amazônica” (14). Eu acrescentaria aqui um outro dado: a violação sistemática contra todas as outras espécies companheiras ali presentes.
  17. O documento denuncia de forma especial as “empresas extrativistas”, que atuam “muitas vezes em conivência ou com a permissividade dos governos locais, nacionais e das autoridades tradicionais (dos próprios indígenas)” (14)
  18. Elenca-se então uma série de ameaças que incluem: a criminalização e assassinato de líderes e defensores do território; a apropriação e privatização de bens da natureza; a concessão feita a madeireiras legais ou permissão de entrada das ilegais; a caça e pesca predatória; os mega projetos hidrelétricos; as concessões florestais e o desmatamento realizado em favor da monocultura; a contaminação resultante do trabalho das indústrias extrativistas, causando problemas e enfermidades; a presença do narcotráfico; os inúmeros problemas sociais associados às ameaças; o alcoolismo, a violência contra a mulher, o trabalho sexual e o tráfico de pessoas (15)
  19. O grande risco que se anuncia, ligado à mudança climática e ao aumento da intervenção humana (chamo aqui de fenômenos do Antropoceno), é aquele de se chegar “a um ponto de não-retorno”, sobretudo se o aquecimento global alcançar um nível de 4% ou o desmatamento atingir o âmbito de 40% (16)
  20. Daí a importância da defesa da vida e da resistência contra a exploração. A oposição reiterada “a uma visão insaciável do crescimento ilimitado, da idolatria do dinheiro, a um mundo desvinculado (de suas raízes, de seu contorno), a uma cultura de morte” (17)
  21. Essas ameaças e agressões geram clamores que são dos povos, mas também da Terra (18)
  22. Nos novos caminhos buscados, a preocupação de estabelecer “relações interculturais onde a diversidade não significa ameaça”. Aliás, esta é uma preocupação constante do papa Francisco, de louvar a diversidade.
  23. Na segunda parte do documento, a atenção volta-se para o TERRITÓRIO. A Amazônia, assinala-se “não é somente um ubi, (um espaço geográfico), mas também um quid, ou seja, um lugar de sentido para a fé ou a experiência de Deus na história” (19)
  24. A Amazônia é o local onde “manifestam-se as ´carícias de Deus` que se encarna na história (19)
  25. É um território onde “tudo está interligado”; onde “o mistério da beleza de Deus” revela-se em cada criatura (20)
  26. É um território onde as partes não subsistem por si, mas encontram-se constitutivamente interligadas, relacionadas, “formando um todo vital” (21)
  27. Essa beleza encontra-se hoje, infelizmente, “ferida e deformada”, compondo um lugar de “dor e violência”, como apontam os relatórios das igrejas locais (23)
  28. Um território que assiste à irrupção do caos: A destruição da natureza, da selva, da vida, dos povos; a contaminação dos rios e terras (23)
  29. O que se percebe, com gravidade, é a “perda maciça da biodiversidade, o “desaparecimento de espécies (mais de um milhão dos oito milhões de animais e vegetais estão em perigo) (23)
  30. É nesse território, apesar de todas as ameaças, que se delineia a proposta do “bem viver”, com uma “esperança para novos caminhos de vida” (24)
  31. Ainda vibra a vida das comunidades amazônicas, entoadas pelo “mantra” de Francisco: “Tudo está interligado” (25)
  32. Toda esta vida deve ser objeto de escuta atenta, de percepção de sua “sabedoria ancestral, reserva viva da espiritualidade e da cultura indígena” (26)
  33. A terceira parte do documento vem dedicada ao TEMPO (Kairós). Afirma-se que a Amazônia vive “um momento de graça”, e a presença do Sínodo é um “sinal dos tempos” (28)
  34. O Sínodo vai ser uma ocasião especial de escuta dos povos originários da Amazônia, que têm muito o que ensinar. São milhares de anos de cuidado com a terra, com a água, com a floresta, de práticas de preservação (29)
  35. Para a igreja coloca-se o desafio da inculturação e interculturalidade. Experiências significativas já aconteceram neste campo (30)
  36. São tempos de responder a desafios graves e urgentes (31), e também tempo de esperança (32)
  37. Trata-se também de um tempo de aprendizagem: “uma grande oportunidade para que a igreja possa descobrir a presença encarnada e ativa de Deus: nas mais diferentes manifestações da criação; na espiritualidade dos povos originários; nas expressões da religiosidade popular, nas diferentes organizações populares que resistem aos grandes projetos” (33).
  38. Animada com a força do Espírito, a igreja “quer aprender, dialogar e responder com esperança e alegria aos sinais dos tempos juntos aos povos da Amazônia (34)
  39. Na quarta parte, apresenta-se o tema do DIÁLOGO, dos novos caminhos de diálogo, de reposicionamento da missão (35-36)
  40. Um diálogo que é sobretudo aprendizagem, um diálogo de “espiritualidades, crenças e religiões amazônicas”. Um diálogo “que exige uma abordagem cordial das diferentes culturas (39)
  41. Um respeito que não significa relativização das convicções, mas envolve o reconhecimento “de outros caminhos que procuram desvendar o mistério insondável de Deus (39)
  42. O diálogo requerido rechaça uma “abertura não sincera ao outro, assim como uma atitude corporativista, que reserva a salvação exclusivamente ao próprio cres”. Estamos aqui num ponto fulcral do documento, que nos faz lembrar o espírito de Assis e a abertura captada em documentos como Diálogo e Anúncio.
  43. O documento se encerra falando do diálogo e resistência, das resistências que a dinâmica dialogal há de encontrar no caminho (41)
  44. Na Conclusão, um toque de esperança no “renovado sentido da missão da igreja na Amazônia”, envolvendo também o desafio da recriação de ministérios adequados para este período histórico” (43)

Fonte:
http://www.sinodoamazonico.va/content/sinodoamazonico/pt/sinodo-pan-amazonico.html

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Leonardo Boff, um dos maiores teólogos brasileiros, celebra hoje seus 80 anos https://observatoriodaevangelizacao.com/leonardo-boff-um-dos-maiores-teologos-brasileiros-celebra-hoje-seus-80-anos/ Fri, 14 Dec 2018 16:23:51 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=29626 [Leia mais...]]]>
Hoje é dia 14/12/2018. Nesta data tão significativa, em que Leonardo Boff completa 80 anos de vida, Faustino Teixeira faz linda homenagem a este magnífico teólogo brasileiro, reconhecido mundialmente como um dos pais da Teologia da Libertação.

Leonardo Boff é um homem marcado pelo cultivo da experiência do amor de Deus e pela opção pelos pobres contra a pobreza. Como discípulo de Jesus libertador, profeta do Reino de Deus, Reino de justiça e fraternidade, Leonardo mergulhou fundo no sentido da “liberdade libertada” de Francisco de Assis e fez de sua vida um contínuo colocar-se a serviço da luta dos mais pobres e excluídos por vida digna e do ensino-aprendizagem da ecologia integral. 

Vale a pena ler, a seguir, a homenagem de Faustino Teixeira, texto elaborado por ocasião da celebração dos 80 anos de Leonardo Boff:

Leonardo Boff: amigo do bem

Por: Faustino Teixeira | 14 Dezembro 2018

“Leonardo fez ao longo da vida quatro grandes balanços: nos 50, 60, 70 e agora aos 80. Minha intenção aqui, neste breve texto, é captar o que ocorreu nesta revisão de vida que Leonardo foi fazendo em cada um desses passos”.

Leonardo Boff

Leonardo Boff é doutor em teologia pela Universidade de Munique, na Alemanha. Foi professor de teologia sistemática e ecumênica com os Franciscanos em Petrópolis e depois professor de ética, filosofia da religião e de ecologia filosófica na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Referência no campo da teologia, é um dos fundadores da Teologia da Libertação. Em 1985, foi condenado a um ano de silêncio obsequioso pelo ex-Santo Ofício, por suas teses no livro Igreja: carisma e poder (Record). A partir da década de 1980, dedicou-se à questão ecológica como prolongamento da Teologia da Libertação. Foi membro da Ordem dos Frades Menores (franciscanos) até 1992, quando pediu seu desligamento da congregação e do sacerdócio, dedicando-se exclusivamente aos estudos teológicos. Agora em 2018, quando celebra seus 80 anos de vida, está lançando Reflexões de um velho teólogo e pensador (Petrópolis: Vozes, 2018).

Eis o artigo:

É tão bonito poder celebrar a vida com alegria e esperança. Esse é o caso do amigo querido, Leonardo Boff, que neste dia 14 de dezembro de 2018 completa 80 anos. Longe daquele espírito sombrio do livro do Eclesiastes, no início do capítulo 12, Leonardo continua lembrando com vigor do Criador que sempre o inspirou e o animou nas veredas da vida. No seu caso, a luz do sol não se obscureceu, mas ganhou um significado novo, de uma proximidade que encanta a todos que o rodeiam.

Leonardo fez ao longo da vida quatro grandes balanços: nos 50, 60, 70 e agora aos 80. Minha intenção aqui, neste breve texto, é captar o que ocorreu nesta revisão de vida que ele foi fazendo em cada um desses passos. Os três primeiros balanços resultaram em textos ou artigos que foram publicados [1]. O último, recém ocorrido, resultou num livro de beleza novidadeira [2].

No balanço dos 50, Leonardo inicia falando do Mistério que faz viver. Aliás, esse é um tema que vai acompanhar esse místico franciscano por toda a sua vida. Dizia na ocasião que

o primeiro sentimento é de perplexidade. Eu ainda existo e continuo no ministério! Quantos em nossa idade já não são e quantos seguirão outros caminhos! Por que estou ainda aí? Isso não se deixa explicar por nada neste mundo” (B50:11). 

Leonardo não imaginava que fosse ultrapassar o tempo de vida de seu pai, que morreu aos 54 anos, justamente no dia em que ele estava de partida para Munique, de navio, onde iria fazer seu doutorado em teologia [3]. E Leonardo tinha nascido fragilizado, “marcado para morrer”, como expressou sua irmã, Íris Boff, em recente depoimento [4]. Aquele “pacotinho de carne” sobreviveu, graças também aos conselhos de uma famosa benzedeira da redondeza e de suas ervas curativas, bem como ao forno de barro em que foi colocado algumas vezes para fazer vibrar a força da vida. Foi, assim, uma “bruxaria” que o salvou [5]. E assim vingou esse menino-teólogo. Ainda como diz sua irmã, foi essa sua iniciação que o preparou para “toda a sorte de intempéries e perigos” para adentrar-se “na densa floresta da consciência humana e planetária” [6].

Voltando ao balanço dos 50, Leonardo escreveu na época que a percepção do Mistério foi crescendo em sua vida:

Mistério é muito mais que um enigma. Como os antigos sabiam melhor que nós, mistério consiste num desígnio cujo último sentido nos escapa, mas que passa por nós, nos usa como um subsistema de algo maior para prosseguir sua trajetória que termina no coração do próprio Deus” (B50:11).

Como lembra Leonardo, é esse Mistério “que faz viver”. Recordou que teve que amadurecer no sofrimento, a acreditar

que não são ideias que mudam o mundo, mas atitudes” e que a mais “penosa” viagem é aquela que fazemos “para dentro de nós mesmos, rumo ao nosso próprio coração” (B50:11).

Relata que sua perplexidade aumenta quando relembra de sua trajetória, desde a infância: “Aquele menino de pés descalços, maldizendo os dias gelados de junho-julho, montado num velho cavalo para ir ao moinho, levando trigo e trazendo farinha para o pão de mamãe, feito no forno de pedras rústicas” (B50:12). Esse menino, tido como um dos mais inteligentes dos irmãos, foi galgando etapas bonitas na sua formação, que culminou num doutorado na Alemanha. Ele diz:

Há alguma razão transcendental que explique por que esse menino magérrimo, que fora dado como perdido e morto aos seis meses, tenha que ir a Roma, enfrentar o ex-Santo Ofício, sentir-se em profunda comunhão de destino com Galileu, Giordano Bruno e outros infinitamente mais sábios e defender a Teologia da Libertação também aplicável à Igreja, para que tenha mais práticas que prédigas sobre a eminente centralidade dos pobres no projeto de Jesus” (B50:12).

E assim, seguiu a vida de Leonardo, e como diz Carlos Drummond, foi ser “gauche na vida”. E ele agradece a todos que favoreceram essa trajetória benfazeja, mas sobretudo a Deus, o Mistério Maior, sem nome, cujos “desígnios são insondáveis, além de surpreendentes”. E ao fazer o balanço de sua vida, agradece, e não tem dificuldade de fazê-lo, pois tem a viva consciência de que o que conta mesmo na vida é viver “a partir dos outros”. Recorda que durante sua condenação, em razão da causa dos oprimidos, recebeu muito apoio e solidariedade: “milhares de cartas e gestos de solidariedade do mundo inteiro” (B50:13). E segue tranquilo em sua consciência de ser, como falou um dia Pablo Neruda, “o portador da esperança dos oprimidos”.

Em sua memória, Boff recorda aqueles que tiveram importância em sua formação, como no caso do teólogo Karl Rahner, que apontou-lhe “um cristianismo para além de todas as fronteiras confessionais, aderente ao mistério do mundo e da pessoa”. Fizeram-se depois amigos e ele, inclusive, tomou sua defesa no momento necessário (B50:13). Sobre ele, recorda.

“Certa vez, já velhinho com 79 anos, sabendo que estava em Munique, tomou o trem em Innsbruck, onde vivia, e veio ver-me para discutir com toda a seriedade e espírito crítico o que significa uma Teologia da Libertação, o que vem a ser um cristianismo popular e uma Igreja na base. Deu-me todo apoio e seguia minhas produções como se fora um filho e afilhado muito querido e também preocupante” (B50:13).

Lembra Boff de outros mestres que encontrou pelo caminho, como Otto Kuss, na área de exegese do Novo Testamento, nos tempos de Munique (1965-1970) e dos amigos da revista internacional de teologia, Concilium, onde atuou por muitos anos. Fala também de seu irmão, Clodovis Boff, também teólogo, que “foi mestre na articulação entre discurso da fé e discurso do mundo, entre compreensão séria e compromisso político com os oprimidos” (B50:14). Agradece ainda as comunidades populares, que assessorou ao longo de décadas de trabalho teológico-pastoral. Reconhece o grande aprendizado que ali recebeu: “Estou seguro de que são eles que levam, de verdade, o sonho de Jesus com radicalidade e coerência pelos séculos afora” (B50:14). E por causa deles, reitera Boff, encontra as razões essenciais para se manter firme no caminho de fidelidade ao projeto de Jesus. 

Na época em que fez o balanço dos 50, final da década de 1980, estava ainda vinculado como frade aos franciscanos, dedicado ao ensino da teologia e à produção literária. Como ele gosta sempre de lembrar, ensinou todos os tratados de teologia sistemática, e aproveitou para escrever sobre eles, bem no estilo alemão. Tinha assumido a cátedra de teologia sistemática no Instituto Franciscano desde 1970: “Obriguei-me a reciclagens, acompanhando a produção mundial em cada área do pensamento sistemático” (B50:15), e sempre numa perspectiva interdisciplinar, tendo em conta as demandas do tempo. Indica que passou “por várias crises criativas”, não vendo nisto um problema, pois “toda crise significa uma chance de acrisolamento e de crescimento, apesar de seu caráter doloroso” (B50:18). Ao lado do ensino, o trabalho de assessoria pastoral. Sublinha que “foi o campo mais difícil e de maior aprendizado”, sobretudo depois de seu regresso ao Brasil, em fevereiro de 1970. Percorreu os rincões mais distantes do Brasil e da América Latina, bem como outros países da Europa, Canadá e Estados Unidos. Tinha uma paixão particular pela Amazônia (B50:20). Viajou também para os países socialistas, como Cuba, União Soviética e China. Lembrava a respeito: “Considero muito mais difícil dar uma assessoria a qualquer diocese com trabalho pastoral popular do que falar em qualquer prestigiosa cátedra de universidades europeias ou norte-americanas” (B50:15).

Outro motivo de alegria foi sua convivência com “bispos verdadeiramente pastores” da igreja latino-americana, que resgataram “a velha tradição que via nos bispos os ´deffensores et advocati populi` (B50:16), em viva consonância com o projeto de Jesus. Menciona ainda o seu trabalho por anos no editorial religioso da Editora Vozes e na redação da Revista Eclesiástica Brasileira (REB). Anos que foram profícuos, com a abertura de espaço para grandes nomes da sociologia, história, antropologia e linguística. Um lindo serviço prestado pela Vozes “à cultura brasileira e à liberdade de pensamento”. Foi quando então aconteceu a repressão romana e todas as suas consequências para os desdobramentos de sua atuação e reflexão. Voltando à sua produção teológica, ele lembra que seus diversos livros foram produzidos não para convencer os outros, mas para “tirar a limpo” suas “indagações de cristão pensante (B50:16). Uma teologia que sempre brotou do coração, tocada pela emoção, “uma paixão acesa” que desperta a paixão dos outros. É o que sempre ouço falar de Leonardo, um teólogo doce e apaixonado, com voz sedutora e um brilho único no olhar. Um livro em particular provocou a admiração de muitos, sempre citado: Os sacramentos da vida e a vida dos sacramentos (1975), que já está na 29ª edição. Em depoimento sobre este livro, diz a teóloga e amiga, Teresa Cavalcanti: “Ali, uma simples caneca de uso caseiro ou um toco de cigarro tornaram-se símbolos da comunidade familiar e da figura do pai. O afeto se acha involucrado nos objetos do cotidiano e remete à relação mais íntima com as pessoas” [7]. Ao falar sobre este livro, Leonardo diz que ali, sim, conseguiu entender de fato a “significação dos sacramentos” (B50:17).

E assim continuou sua jornada, sempre mirando ao alto, com coragem e altivez, mantendo sempre acesa a humildade para não se esquecer de suas raízes simples e evangélicas. Diz ele: “Me transformei num teólogo discutido e contestado, num teólogo suspeito e perseguido, num teólogo amaldiçoado e condenado, num teólogo absolvido e mesmo depois, sob permanente controle” (B50:17). E tudo isto não lhe roubou a ternura, a delicadeza, o cuidado e a hospitalidade. Não guardou nenhuma mágoa ou hostilidade, o que é muito bom. Essa ternura e vigor o acompanham até hoje. E foi também ganhando liberdade, talvez uma das palavras mais nobres que expressam hoje o seu modo de ser: alguém livre e despojado. Dizia: “Um teólogo condenado goza de inestimável liberdade. Ele não tem, com efeito, nada a perder” (B50:17). Na sua bagagem, a frase genial de Antonio Machado: “Caminante, no hay caminho, se hace caminho al andar”. A liberdade para Leonardo é tudo o que de mais importante pode acolher no mundo interior, pois “ser livre é conquistar seu próprio coração” (B50:17).

Em seu balanço aos 50, busca voltar os olhos ao passado e reconhece que “a pessoa não muda porque quer. Muda como forma de adequação a novas situações e como condição de sobrevivência espiritual” (B50:18). É como Boff vê a sua caminhada, um alargar permanente dos horizontes da liberdade. Reconhece que na sua caminhada, grandes mestres do saber o acompanharam, aqueles seminais como Platão, Aristóteles, Agostinho e Boécio, e também os grandes mestres medievais e modernos. Reconhece que o contato com esses mestres fizeram sempre “um bem imenso”, servindo também de “terapia contra todas as mediocridades” que abundam nos campos do saber (B50:18). Fala também da importância de Heidegger em sua formação, que o ajudou a refazer todo o seu caminho da teologia, com base na fenomenologia existencial, depois enriquecida com o marxismo. Sua tese doutoral, sobre a igreja como sacramento, foi publicada em alemão em 1972, e parte dela saiu também em português, na revista Numen do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião (PPCIR) da UFJF, onde Boff atuou por um tempo como professor visitante, quando eu era o coordenador do Programa [8].

No período em que fez o balanço dos anos 50, Boff estava então dedicado a “desenhar as dimensões libertadoras intrínsecas à fé cristã, à experiência de Deus, à doutrina sobre Cristo, sobre o Espírito, sobre a Igreja, sobre a imagem bíblica e cristã do ser humano, a escatologia” (B50:20). Daí nasceram muitos artigos e livros, publicados na ocasião. Fala ainda da importância que teve, na ocasião, o seu encontro com o marxismo: “O encontro com Marx é fundamental para quem fizer uma opção pelos pobres e contra sua pobreza” (B50:21). Fala também de seu trabalho na recuperação da herança franciscana, que o acompanha com emoção até hoje. O franciscanismo, diz, “é naturalmente libertador porque coloca os pobres como a centralidade do carisma e como reveladores de Cristo pobre e servo sofredor” (B50:22). Reconhece que a partir da década de 1980 apercebeu-se que “o verdadeiro problema teológico, na verdade, não é a Igreja, mas o povo e a humanidade”. Em linha semelhante à do teólogo dominicano Edward Schillebeeckx, percebe que a humanidade é a verdadeira história de Deus. Passa então a ver com clareza que “o presbiterato, a vida religiosa e a teologia só possuem sentido radical se nos aproximarem mais diretamente dos demais humanos, companheiros e companheiras de caminhada” (B50:24).


Leonardo durante encontro em Guarema, São Paulo 

Ao final de seu balanço dos 50, assinala a presença de um tema que começava a tocar o seu coração, sobretudo em razão da grande crise ecológica mundial, ou seja, a questão do mistério da criação. A percepção de que “o verdadeiro mistério, este realmente radical, é o mistério do mundo”. Estava aberta a chave que iria fecundar o terreno vindouro de sua nova reflexão teológica: seu cuidado com a questão da preservação da criação. Não podia, porém, deixar de apontar outro tema que foi ganhando corpo em sua reflexão, já naquele tempo: o encontro com o feminino. Reconhece que se trata de uma dimensão fundamental, pois é através dela que podemos redesenhar “um novo rosto de Deus (B50:25). Ele mesmo faz na ocasião uma retrospectiva de sua trajetória nos 25 últimos anos:

Primeiro vem o entusiasmo pela ordem franciscana, depois pelo sacerdócio, em seguida pela teologia; da teologia passei à Igreja, da Igreja ao povo; do povo aos pobres, dos pobres à humanidade; da humanidade ao mistério da criação. Na medida em que o leque ia se abrindo e o horizonte se dilatando, ia também crescendo em mim as dimensões de universalidade e de autêntica liberdade” (B50:25).

Avaliando sua caminhada, Boff se dá conta de dois eixos essenciais que devem alimentar toda caminhada existencial: o amor a Deus e aos outros. Ele diz: “O amor que vai a Deus constitui o mesmo movimento que vai ao outro. Com fina razão disse Jesus que o amor a Deus e o amor ao próximo coincidem” (B50:26). O que faz lembrar um beato e mártir, terciário franciscano, Raimundo Lúlio. Em seu Livro do amigo e do Amado, escrito no século XIII, bem ao estilo dos místicos sufis, dizia em duas passagens:

“À direita do amor reside o Amado, e à esquerda o amigo; por isso, sem passar pelo amor, não se pode alcançar o Amado. / O Amado está de permeio entre o amigo e o amor; por isto o amigo não pode atingir o amor sem atravessar, com pensamentos e desejos, o Amado” [9].

Ao final de sua retrospectiva dos 50, Boff chama a atenção para um dado essencial, que foi descobrindo em seu itinerário: “A vida humana é parecida com uma árvore. Quanto mais sobe a copa mais fundas devem ser as raízes. Quanto mais avançamos na vida, tanto mais retrocedemos às nossas matrizes iniciais” (B50:28). Na base, a presença desse Mistério maior que nos ilumina e aponta os caminhos, do Deus que nos dá “o dom da fé”. Estava aberta a vereda da mística, que vai se firmar cada vez com mais vigor e ternura na vida desse pensador.

Então vem o balanço dos 60, dez anos depois, quando lecionava no PPCIR da UFJF, como visitante. Começa sua revisão de vida, agradecendo a Deus pela existência (B60:141), e dizendo – como Merton – que não sabe o que Deus propõe no seu caminho e quais as razões peculiares de seu chamado: “Nunca me propus um projeto específico. Vivo ao sabor do que me ocorre. Atendo a demandas que me são propostas” (B60:141). Uma beleza, essa gratuidade que acompanha o ritmo de seus momentos, de sua trajetória e empenho. Esse é o Leonardo que conhecemos e que amamos. Fala de seu “ciganismo teológico”, das inúmeras viagens, realizadas por todo canto, atendendo a pedidos de amigos, de igrejas e pastores. Um ciganismo que se revela igualmente “prático”, que o faz mergulhar de vida aberta nas mais distintas veredas, nos incontáveis espaços, seja no mundo dos pobres ou nas academias e espaços culturais.

Reconhece agora que o tempo escapa, que é tempus fugit, ou como diz Rilke, que ele “flutua e desaparece”. Recorda que já em Munique, em seus estudos de pós-graduação, estava mergulhado neste milieu divin, no Mistério de Deus. Um traço que o acompanha desde longe: “Mergulhar no mistério de Deus”. E acrescenta:

Experimentei uma felicidade incomparável, nunca superada por nada no mundo. O efeito mais imediato é a absoluta liberdade interior e a ausência de todo medo. O amor-encontro-com-Deus te enche de tal superabundância de sentido e de certeza que a vida se torna um brinquedo diante dos olhos do Deus-Mãe. Tudo possui asas e por isso é leve. O universo é jovial. Não andamos. Voamos (B60:144).

O seu exercício teológico não foi realizado por obrigação, mas por prazer, no ritmo da alegria. E procurou sempre uma teologia diversa, capaz de evocar a beleza, com fluidez linguística e inspiração poética, pontuada por um método que pudesse garantir sobretudo a liberdade, esse bem maior que pautou sua vida e caminhada (B60: 145). Uma teologia de cara distinta, aberta à criação permanente, mesmo nos momentos mais duros no embate com o Vaticano. Daí o seu carinho particular com os místicos, sobretudo daqueles que trazem no peito o dom da poesia (B60:146). Os que a ele estão mais próximos, sabem dessa paixão antiga pelos místicos das diversas tradições religiosas, a começar pela mística franciscana, peculiar na sua capacidade de amor universal, que “abraça o mundo, acarinha as pessoas e se enternece com todas as criaturas(B60:146).

Assinala seu carinho especial em tratar os temas da Igreja, sempre com o toque crítico, pois nunca esteve em plena sintonia com ela. A iracúndia sagrada foi sua parceira nessas contendas. Retoma o episódio do conflito com o Vaticano, onde assentou-se na cadeira de Galileu [10], do convite ao silêncio obsequioso feito pelo Ministro Geral da Ordem Franciscana durante a Eco-92. Foi quando então resolveu “mudar de trincheira”, mas não de batalha. Uma decisão de dedicar-se de corpo e alma ao “tempo da profanidade e da fragmentação (B60:152). Assume com alegria a sua caminhada com a companheira Márcia, que “comungava e comunga do mesmo amor” (B60:152). O grande teólogo belga, Adolphe Gesché, lembra num de seus livros, que o cristianismo precisa dessa pars paganorum, dessa interface com a paganidade, de certa “ausência cristã” ou “pitada de ateísmo” para poder penetrar com mais densidade no seu Mistério [11].

O tema da ecologia vai ganhando cada vez mais importância na sua teologia, atenta ao ritmo frenético da globalização. É quando ocorre, de forma imperativa, sua preocupação maior com o futuro da Terra, o seu destino que se assomava sombrio. Vislumbrava na passagem do milênio um horizonte nebuloso, de afirmação do homo demens (B60: 155). Daí seu empenho decisivo pela causa da Terra, de construção de um novo paradigma em favor da salvaguarda do criado.

A questão da espiritualidade ganha também força em sua reflexão do período. Dizia: “Comparo-a a uma águia escondida dentro de nós que deve ganhar asas e voar. E ao voar nos carregar para o infinito de nosso desejo, para o coração de Deus que habita nas profundidades de nosso coração e do coração do universo (B60:156). Via essa a missão do teólogo, com suas palavras, presença e escritos, a de “trazer à memória de todos a bem-aventurada presença de Deus em tudo o que existe e vive” (B60:156).


Ilustração especialmente desenhada por Pulika para este artigo

Na ocasião, aos sessenta, comparando-se com a expectativa vital média dos brasileiros, sentia-se já um velho, um sobrevivente. Percebia o tempo escorrer, buscando então concentrar-se nas tarefas mais fundamentais. Já antevia a presença da morte, como possibilidade mais iminente: “O único problema importante de meu futuro é a morte. Com temor e tremor vou ao encontro dela como se vai ao encontro da bem amada” (B60:156). Sentindo-se irmanado a todas as coisas, reconhecia que estava “nascendo a bilhões de anos” e com sua morte ocorreria simplesmente um renascer “para nunca mais morrer”, para se enredar no ritmo do cosmos, no “ritmo da dança divina”.

No balanço dos 70, já fala com mais serenidade da velhice que chega, entendida como uma oportunidade oferecida por Deus para “concluir o que um dia começou: a plasmação de minha própria vida” (B70:439). Recorre ao Salmo 90 para dizer que a vida é como um “sonho matinal”, pontuada pela transitoriedade, assim como a erva. Retoma os marcos de sua caminhada, já lembrada antes aqui neste texto, desde a inserção franciscana até o envolvimento de coração com a irmã e mãe Terra e Gaia. Sinaliza sua vida com uma expressão bonita: “Habitar o mundo franciscanamente” (B60: 440). Sobre o compromisso com a Terra, dizia:

Desde os anos 80 do século passado que se tornou para mim clara esta quaestio magna. Se a Teologia da Libertação quer ser integral, como sempre quis, deve incluir a libertação da natureza e da Terra, chamada por São Francisco de irmã e mãe e pelos modernos, de Gaia. Deve ouvir e articular os dois gritos, o dos pobres e o da Terra. Deve ser uma Ecoteologia da Libertação integral” (B70:443).

Fala em seguida da questão de Deus, também imperativa na sua reflexão, com uma contribuição ousada e original, sobretudo no campo da trindade. Todas as questões silenciam-se diante deste Mistério Maior. Diante Dele revelam-se “relativas” e “fogo fátuo”. Sublinha sua paixão pelo mistério da Trindade, que sempre o desafiou intelectualmente e misticamente. E complementa: “Defrontei-me com o melhor de minha capacidade de pensamento. Creio que contribuí com algo que não estava claramente presente na tradição” (B70:444). E de uma forma ousada: “Sustentei a tese de que o Pai se personalizou em São José, o Filho se encarnou em Jesus, e o Espírito Santo se espiritualizou em Maria”. Ou seja, uma verdadeira família divina. E em seu jardim, em Araras, plantou três coníferas para expressar plasticamente essa Trindade humana e divina. Mas apesar de toda sua reflexão sistemática a respeito, não busca esgotar o Mistério, que permanecia guarnecido: “Deus-Trindade permanece para mim mistério insondável. Termino sempre no nobre silêncio. Mas é um mistério de ternura, de embraçamento e de inenarrável comunhão” (B70:444).

A longa caminhada, adverte Boff, não foi apenas de luzes, mas também de sombras. E diz: “Participo, penosamente, da condition humaine onde vige a porção sim-bólica junto com a porção dia-bólica. Sou teólogo, mas também pecador” (B70:444). Recorda o momento doloroso de seu enfrentamento e “submissão” às altas instâncias doutrinárias da Igreja e sua punição dolorosa. Reconhece, porém, que tudo ocorreu em razão de seu compromisso com “a sagrada causa dos oprimidos, os amados do Pai” (B70:444). Com tudo isso, jamais olhou para trás. Seguindo os passos de Pseudo-Dionísio Areopagita, buscou sempre olhar para o alto [12], sustentado por razões nobres, ainda que em “outra trincheira”.

Conclui seu balanço dos 70 dizendo que ficou uma semente. Apesar das perdas “restou a fé, a esperança, o amor, a vida, alguma experiência e, principalmente, restou a semente” (B70:445). Nas grandes labutas conheceu o “destino da árvore. Ela perdeu a copa e, com isso, o diálogo com o mundo se tornou mais difícil. Perdi o tronco e, assim tive que me fortalecer muito para me manter sustentável. Perdi as raízes e empreendi grande empenho para continuamente me renovar. Perdi a seiva e tive que aprender a conviver com a solidão e a detração. Mas sobrou a semente. Sinto-me hoje apenas semente. E como semente me sinto inteiro. Pois na semente se esconde o frescor da copa, o vigor do tronco, o segredo das raízes e a vitalidade da seiva” (B70:445).

E veio agora, finalmente, o balanço dos 80, celebrado com alegria numa bonita festa em Petrópolis, no dia 07 de dezembro de 2018, quando então foram lançados dois livros, um de testemunho dos amigos [13] e outro como uma espécie de síntese das reflexões de Boff, tecidas a partir de provocações de especialistas nas várias áreas onde ele atuou [14].

O livro de Boff é um livro solto, escrito em 15 dias, sem nota alguma, onde passa em revisão os vários temas que ocuparam a sua reflexão ao longo da vida. Começa falando dos sonhos, passa em seguida para os grandes temas da antropologia teológica, da cristologia [15], da trindade, da Igreja, da ecologia, da ética para a Casa Comum, concluindo com a espiritualidade. O prefácio vem escrito pelo grande pensador marxista, Michael Löwy, que celebra esse precioso livro como “uma síntese da obra e do pensamento de Leonardo Boff” (B80:13).

O que me impressionou muito nesse livro de Leonardo Boff foi a sua sensibilidade ecológica, no sentido mais nobre que podemos conferir à expressão, e também uma preocupação que é comum ao papa Francisco, de pontuar diversas vezes o traço da interligação que permeia todos os seres em sua presença no Tempo [16]. Leonardo Boff, em sintonia com Francisco, vai sublinhar esse traço por diversas vezes: “Todas as coisas estão interligadas entre si” (B80:145) [17]. Leonardo insiste em lembrar que a teologia é provocada a abrir suas malhas, de forma a viver em profundidade a dimensão da multidisciplinaridade. Diz que “o teólogo que só entende de teologia acaba não entendendo sequer a teologia” (B80:32). Há que assumir radicalmente a dimensão globalizante da teologia, assevera, de forma a saber pensar todas as coisas à luz do Mistério sempre maior.

A teologia é habitada por um ser humano que é abertura ilimitada, devendo, assim, seguir os seus rastros. E nesse século XXI, há o desafio de falar de Deus de outra forma, com os recursos imprescindíveis da nova cosmologia (B80:41). Uma teologia que seja tocada pelo fogo do Espírito, com sua lógica de movimento, processo e novidade, que sempre surpreende (B80:67). O teólogo, como todo ser humano, está envolvido numa teia de vida, num campo de relacionamentos, em “redes de energia vibracional”. E toda essa vida está em movimento e ressonância. Não há um mundo pronto, já finalizado, mas em processo contínuo de vitalização. Como diz Tim Ingold, “onde quer que haja vida, há movimento” [18]. O ser humano não está confinado em espaços fechados, mas como num rizoma, ele habita num campo de linhas que não se encerram, mas que são linhas de “fuga ou desterritorialização” [19]. O teólogo é alguém que deve estar sempre aceso, em acordo com o tempo [20], ou seja “vivo para o mundo” [21].

Leonardo Boff, em seu novo balanço, fala de duas cosmologias em tensão: uma cosmologia de conquista e outra de transformação (B80:101-102). A primeira, típica da modernidade pós-cartesiana, é plasmada pelo antropocentrismo e pela hybris, a desmesura ou pretensão arrogante, que busca tudo dominar e controlar. É a cosmologia típica do Antropoceno [22], com todas as terríveis consequências que o acompanham. E Boff assinala algumas dessas consequências, como a destruição das florestas, o desaparecimento das espécies, o aquecimento global, a perda da biodiversidade e erosão do solo (B80:101-102 e 117). Com base no pensamento de James Lovelock, aquele que formulou a teoria de Gaia, Boff sublinha que os riscos de desaparecimento da humanidade são iminentes (B80:156). Pode inclusive ocorrer a situação em que “a Terra não nos queira mais” (B80:144) [23]. Já dizia Isabelle Stengers, que Gaia não é apenas uma mãe bondosa, mas tem também uma face de “intrusão”, que não perdoa os ataques que vem sofrendo nesse sombrio tempo do Antropoceno. Na visão de Stengers, “Gaia é a transcendência que responde, de modo brutalmente implacável, à transcendência igualmente indiferente, porque brutalmente irresponsável” [24].

A segunda cosmologia, da transformação e libertação, é a defendida por Leonardo Boff. A seu ver, ela ganhou expressão viva na Carta da Terra (2000) [25] e na encíclica Laudato Si’, do papa Francisco [26]. Com essa segunda cosmologia, firma-se a importância do cuidado, em lugar da dominação. Boff assinala que hoje, mais do que nunca, se impõe uma ética do cuidado (B80:117), que busca recuperar a re-ligação perdida no Antropoceno. Estudos recentes da antropologia nos indicam um caminho novo, que quebra a ruptura entre cultura e natureza, vislumbrando outros modos de relacionamento com a natureza, entendida em sua dimensão “encantada” e viva. Trata-se de uma ecoantropologia relacional. Uma perspectiva singular, que rompe com a ideia de exclusividade do humano e o situa numa teia de relações, como parte do vivente [27].

Faz-se urgente, diz Boff, um “processo de cura”, que não envolve apenas as religiões, mas todos os humanos, em comunhão com as espécies companheiras [28]. Diz ele: “A cura reside na re-ligação com todas as coisas. Não necessariamente precisa ser mais religioso, mas importa ser mais humilde, sentindo-se parte da natureza, mais responsável por sua sustentabilidade e mais cuidadoso com tudo o que faz” (B80:109).

Há que romper, diz Boff, com a “vaidade (mataiótes)” típica de um ser humano ainda decaído e em processo de amadurecimento. O desígnio de Deus, descrito no livro do Gênesis, quando diz que tudo o que tinha sido feito “era muito bom” (Gn 2,31) é, na verdade, um “desígnio terminal”, como lembrou Boff, com base na reflexão de Ernst Bloch: “O gênesis está no fim, e não no começo” (B80:108). Para poder garantir essa bondade, é necessário muito cuidado, muita cura. O ser humano precisa “voltar à Terra da qual se exilou e sentir-se seu guardião e cuidador (B80:109) [29]. Aí, sim, poderemos ter um “mundo humano que ama a vida, dessacraliza a violência, tem cuidado e piedade para com todos os seres, realiza a justiça verdadeira, social e ecológica” (B80:160). Com esse “retorno”, o ser humano poderá recuperar o seu pathos, seu sentimento de afeto axial, de respeito e reverência pelo criado, numa comunhão profunda com todas as espécies companheiras.

No belo prefácio do livro A queda do céu, de Davi Kopenawa e Bruce Albert, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro assinala que estamos hoje recuperando cosmologias antigas, de povos que são especialistas em “fim de mundo” [30]. E nos damos conta que suas “inquietudes” têm uma base importante de sustentação. Leonardo Boff vai em direção semelhante, ao indicar a importância da escuta do clamor dos indígenas de nossa América, em favor de uma nova reverência à criação (B80:137). Diz Boff com razão, que para a nova música precisamos de ouvidos novos (B80:122). Daí a essencialidade de uma nova ética da compaixão, de um ritmo novo de cuidado e reverência para com todas as espécies companheiras, com sensibilidade e espírito novos. Entender ainda que todos os seres são portadores de direitos característicos, e não apenas nós humanos como mostrou com pertinência Michel Serres (B80:151-152).

Tudo isso envolve a necessidade de uma nova espiritualidade, uma espiritualidade cordial e companheira. Uma espiritualidade habitada pela dinâmica da “florestania”. O papa Francisco falava também em uma “espiritualidade ecológica”. Dizia: “A paz interior das pessoas tem muito a ver com o cuidado com a ecologia e com o bem comum, porque autenticamente vivida, reflete-se em um equilibrado estilo de vida aliado com a capacidade de admiração que leva à profundidade da vida” (LS 216 e 225). E esta espiritualidade, pontua Boff, não é um privilégio dos religiosos, mas de todas “as pessoas consideradas comuns, que vivem a retidão da vida, o sentido da solidariedade e cultivam o espaço sagrado do Espírito, seja em suas religiões e Igrejas, seja no modo como pensam, agem e interpretam a vida (B80:164).

A espiritualidade, como mostrou Dalai Lama – retomado por Boff – é “aquilo que produz no ser humano uma mudança interior” (B80:165); é algo que toca a dimensão profunda do humano e tem a ver com as “qualidades do espírito humano” (B80:166-167) [31]. Para alcançar esse horizonte de um mundo interior renovado, teremos, em casos concretos, que desmontar o edifício religioso que nos cerca e rodeia (B80:185), bem como ampliar nossa capacidade de audição, para captar as energias do Espírito que se irradiam por todo canto. A espiritualidade, indica Boff, “vive da gratuidade e da disponibilidade, vive da capacidade de entendimento e de compaixão, vive da honradez face à realidade e da escuta da mensagem que vem permanentemente dessa realidade(B80:187).

Em sintonia com o pensamento de Raimon Panikkar, Leonardo Boff revela que o desenvolvimento da espiritualidade está intimamente relacionado com nossa capacidade contemplativa, de escuta do Real, dos pequenos sinais e “valores que impregnam o mundo à nossa volta” (B80:188) [32]. Na base da vida espiritual, uma “poderosa e amorosa energia”, que desafia a todos “abrir-se generosamente” ao seu convite. Ao final do livro, Boff sinaliza: “Se a vida pôde surgir num contexto de cuidado, é pelo cuidado permanente, ao longo de todo o tempo em que existir sobre a face da Terra, que a vida se mantém, se reproduz e coevolui” (B80:192). Trata-se de um imperativo essencial, tão bem captado por Milton Nascimento, na canção Coração de estudante: “Há que se cuidar do broto para que a vida nos dê flor e fruto”.

Leonardo Boff e Jon Sobrino, dois grandes teólogos da libertação que completam 80 anos neste mês de dezembro de 2018.

Na bela reflexão de Jon Sobrino no livro de homenagem a Leonardo Boff, ele lembra uma passagem de um livro do amigo franciscano em torno da espiritualidade libertadora, onde Boff fala sobre Jesus. A passagem é linda:

Para mim, o mais importante que se disse de Jesus no Novo Testamento não é tanto que Ele é Deus, Filho de Deus, Messias, mas que passou pelo mundo fazendo o bem, curando a uns e consolando a outros. Como gostaria que se dissesse isso de todos e também de mim” [33].

Curioso é que em outro testemunho no mesmo livro, Waldemar Boff imagina uma situação em que vem indagado para opinar sobre seu irmão franciscano. E a resposta, sempre certeira: “ele foi um homem bom e basta!” [34]. Foi nisto que também pensei, quando li em oração a epístola a Tito que exorta os que creem em Cristo a serem “solícitos na prática do bem”. Digo que o que me veio instantaneamente à mente foi a pessoa do amigo Leonardo, e assim nasceu o título desta minha reflexão que é também testemunho.

Notas do autor:

  • [1] Leonardo Boff. Um balanço de corpo e alma. In: ____. et al. O que ficou… balanço aos 50. Petrópolis: Vozes, 1989; Id. Balanço aos sessenta anos: entre a cátedra de Pedro e a cadeira de Galileu Galilei. Numen, v. 2, n. 2, dezembro de 1999, p. 141-156; Id. A vida aos setenta anos: um sonho matinal. REB, v. 69, n. 274, abril de 2009, p. 439-445 (para facilitar o trabalho, vou inserir três códigos para os artigos citados: para o primeiro B50, o segundo B60 e o terceiro B70).
  • [2] Leonardo Boff. Reflexões de um velho teólogo e pensador. Petrópolis: Vozes, 2018 (o código será B80).
  • [3] Ivonne Helena Boff. Testemunho. In: Maria Helena Aerrochelas & Marcelo Barros (Orgs). Ternura cósmica. Leonardo Boff, 80 anos. Petrópolis: Vozes, 2018, p.27 (irmã de Leonardo Boff). Jon Sobrino recorda o dia em que Leonardo, já em Munique, recebe a carta dos irmãos, com o último toco de cigarro fumado por seu pai antes de morrer (11/08/1965), que se transformou para Boff em sacramento: Jon Sobrino. Carta a Leonardo Boff. In: Ternura cósmica, p. 182-183.
  • [4] Iris Boff. 80 anos de Leonardo. In: Ternura cósmica, p. 24.
  • [5] Ibidem, p. 24.
  • [6] Ibidem, p. 25.
  • [7] Tereza M.P. Cavalcanti. Leonardo Boff. In: Ternura cósmica, p. 415.
  • [8] Leonardo Boff. A Igreja como sacramento e as religiões da terra. Numen, v. 5, n. 1, jan/jun 2002, p. 13-37. Veio acompanhada de um excelente Post Scriptum, onde revê e atualiza algumas reflexões sobre a sua nova compreensão das religiões (ibidem, p. 37-40). A tradução do texto da tese foi feita pelo professor Eduardo Gross, do PPCIR.
  • [9] Raimundo Lúlio. Livro do amigo e do Amado. São Paulo: Loyola, 1989, p. 108 (pensamentos 258 e 259)
  • [10] Ver Leonardo Boff. Igreja: carisma e poder. Rio de Janeiro/São Paulo: Redord, 2005, p. 447-466 (com o relato do processo doutrinário no Vaticano).
  • [11] Adolphe Gesché. O sentido. São Paulo: Paulinas, 135-136 (Deus para pensar 7).
  • [12] Veja: Pseudo-Dionísio Areopagita. Teologia mística. Rio de Janeiro: Fissus, 2005, p. 26 (tradução de Marco Lucchesi).
  • [13] Maria Helena Arrochelas & Marcelo Barros. Leonardo Boff, 80 anos. Petrópolis: Vozes, 2018.
  • [14] Leonardo Boff. Reflexões de um velho teólogo e pensador. Petrópolis: Vozes, 2018 (o livro vai ser citado no texto com o código: B80). Tive a alegria de ter sido um dos que lançaram perguntas a Boff no campo da espiritualidade.
  • [15] Cito aqui um dos livros guias na vida de Leonardo Boff: Jesus Cristo libertador. Petrópolis: Vozes, 1972 (guardo com carinho sua primeira edição).
  • [16] Na sua carta encíclica Laudato si, sobre o cuidado da casa comum, o papa Francisco vai tocar nessa questão por diversas vezes: Laudato si. São Paulo: Paulinas, 2015, nºs 16, 42, 91, 92,117.
  • [17] E também: B80: 100, 105.
  • [18] Tim Ingold. Estar vivo. Ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 122.
  • [19] Giles Deleuze & Félix Guattari. Mil platôs, v. 1. 2 ed. São Paulo: Editora 34, 2011, p. 43.
  • [20] Para usar uma expressão bonita de Caetano Veloso em sua Oração ao tempo.
  • [21] Tim Ingold. Estar vivo, p. 13.
  • [22] Bruno Latour. Face à Gaia. Huit conférences sur le nouveau régime climatique. Paris: La Découverte, 2015, p. 147-147-158 (L´Anthropocène et la destruction de l´image du globe).
  • [23] Boff chega a aventar a hipótese de que chegará o tempo em que deixaremos, nós humanos, “lugar para outras emergências da Terra”: B80:159.
  • [24] Déborah Danowski & Eduardo Viveiros de Castro. Há mundo por vir? Ensaio sobre os meios e os fins. Florianópolis/São Paulo: Cultura e Barbárie/Instituto Sócio Ambiental, 2014, p. 143; Isabelle Stengers. No tempo das catástrofes. São Paulo: Cosac Nayf, 2015, p. 39-40. E ainda: Bruno Latour. Face à Gaia. Huit conférences sur le nouveau régime climatique. Paris: La Découverte, 2015, p. 369 e 186.
  • [25] Leonardo Boff. Do iceberg à arca de Noé. O nascimento de uma ética planetária. Rio de Janeiro: Garamond, 2002, p. 147-159. O papa Francisco também menciona em sua encíclica a Carta da Terra: LS 207.
  • [26] Papa Francisco. Carta encíclica Laudato si. Sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulinas, 2015 (a sigla: LS).
  • [27] Philippe Descola. Oltre natura e cultura. Firenze: Seid, 2014; Id. Outras natureza, outras culturas. São Paulo: Editora 34, 2016, p. 13-27; Eduardo Kohn. Comment pensent les forêts. 2 ed. Le Kremlin-Bicêtre: Les Belles-Lettres, 2017, p. 27-28 e 40-41.
  • [28] Uma singular expressão tomada de Donna Haraway: Manifeste des espèces de compagnie. Chiens, humains et autres partenaires. Villefranche-De-Rouergue: Éditions de l´éclat, 2010; Id. When species meet. Minneapolis: Minnesota University Press, 2008. Sobre o tema cf. também a entrevista concedida por Donna Haraway a Sandra Azerêdo: Companhias multiespécies nas naturezaculturas. In: Maria Ester Maciel (Org.). Pensar/escrever o animal. Ensaios de zoopoética e biopolítica. Florianópolis: Editora ufsc, 2011, p. 389-391; Vinciane Despret & Jocelyne Porcher. Être bete. Arles: Actes Sud, 2007.
  • [29] Papa Francisco fala em “administrador responsável”: LS 116.
  • [30] Davi Kopenawa & Bruce Albert. A queda do céu. Palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 35. Uma reflexão com base em Bruno Latour: Enquête sur les modes d´existence. Une anthopologie des modernes. Paris: La Découverte, 2012, p. 452.
  • [31] Dalai Lama. Uma ética para o novo milênio. Rio de Janeiro: Sextante, 2000, p. 32-33.
  • [32] Ver também: Raimon Panikkar. Mistica pienezza di vita. Mistica e spiritualità, tomo 1. Milano: Jaca Book, 2008, p. 11-12; Id. L´esperienza della vita. La mistica. Milano: Jaca Book, 2005, p. 15 e 58-59.
  • [33] Jon Sobrino. Carta a Leonardo Boff. In: Ternura cósmica, p. 183-184.
  • [34] Waldemar Boff. Querido irmão. In: Ternura cósmica, p. 21.

Sobre o autor:

Faustino Teixeira

Professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora, Minas Gerais – PPCIR-UFJF. É doutor e pós-doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana, de Roma.  É autor de Caminhos da mística (São Paulo: Paulinas, 2018), Em que Creio Eu  (São Paulo: Terceira Via, 2017), Finitude e Mistério. Mística e Literatura Moderna (Rio de Janeiro: Mauad, 2014).  Também organizou, entre outros, Nas teias da delicadeza (São Paulo: Paulinas, 2006), As religiões no Brasil: continuidades e rupturas (Petrópolis: Vozes, 2006), este em parceria com Renata Menezes, e  As orações da humanidade (Petrópolis: Vozes, 2018), em parceria com Volney Berkenbrock.

(os grifos são nossos)

Fonte:

IHU

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29626
Estar simplesmente presente: Merton e a vida contemplativa https://observatoriodaevangelizacao.com/estar-simplesmente-presente-merton-e-a-vida-contemplativa/ Mon, 10 Dec 2018 15:37:52 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=29533 [Leia mais...]]]> O legado da mística de Thomas Merton, monge trapista que se converteu ao cristianismo em 1938, “é enorme” e “de fundamental importância para o nosso tempo atual, de desgaste da compaixão, de indiferentismo, fundamentalismos e fixações identitárias”, diz o teólogo Faustino Teixeira à IHU On-Line, ao comentar a obra do místico recordando os 50 anos de sua morte no dia de hoje, 10 de dezembro de 2018.

Thomas Merton é para mim uma das figuras mais importantes do século XX, que apontou de forma fundamental o perfil de uma mística profundamente ligada ao tempo e desperta para o amor a Deus e ao próximo”.

Entre os elementos essenciais da mística de Thomas Merton, Teixeira menciona a contemplação, o diálogo e a compaixão. De um lado, explica, a contemplação era entendida por ele como “experiência compatível e integrável com todas as coisas”, “um dom”, “uma tomada de consciência repentina, um despertar à infinita Realidade que existe dentro de tudo que é real”; de outro, diz, Merton “apreciava muito a ‘nota dominante da solidão’, como expressão essencial de pobreza e humildade, bem como a atenção com o trabalho no campo. Foi ali, no campo, que Merton aprendeu o que há de mais profundo na experiência contemplativa”. Além de um “místico multifacetado”, Teixeira frisa que Thomas Merton foi “sobretudo um monge”, um “itinerante alternativo” que “mudou a forma de olhar, entender e viver a mística nos séculos XX e XXI”, conclui.

Vale a pena conferir toda a entrevista:

Entrevista especial com Faustino Teixeira

Thomas Merton

01. Quem foi Thomas Merton? Como ocorreu o seu processo de conversão ao cristianismo e seu ingresso na Ordem dos Trapistas?

Faustino Teixeira – Thomas Merton é para mim uma das figuras mais importantes do século XX, que apontou de forma fundamental o perfil de uma mística profundamente ligada ao tempo e desperta para o amor a Deus e ao próximo. Seu processo de conversão está descrito de forma maravilhosa no livro A montanha dos sete patamares, de 1948 [1]. A conversão ocorreu em 1938, mas mesmo antes alguns flertes importantes ocorreram com o cristianismo como em sua viagem a Roma, em 1933, num longo período de férias. Foi uma experiência marcante para ele, sobretudo o encanto com a arte bizantina, o impacto exercido nele pelos mosaicos bizantinos. Relata em sua biografia que foi em Roma que “se formou sua concepção de Cristo” [2]. Foi um período de muita paz interior. Numa passagem de seu diário, belíssima, relata a visão que teve de seu pai, que morrera há pouco mais de um ano. Em determinado momento, sentiu sua presença viva junto a si, como se ele tivesse comunicado uma “luz interior de Deus” em sua alma. Relata na ocasião que deveria ter seguido esta intuição, o que não ocorreu no período sequencial de sua sombria vida em Cambridge. Sobre a experiência relatou: “A única coisa que me parece moralmente certa é que isto foi realmente uma graça, e uma grande graça. Se a tivesse seguido, minha vida teria sido bem diferente e menos miserável nos anos a seguir” [3].

O marco da conversão aconteceu depois, em 1938, precedido de três experiências importantes: a leitura de William Blake – alguém que tinha “algo da graça de Deus” [4]; o impacto do contato com o livro O espírito da filosofia medieval, de Etienne Gilson, e o encontro com o monge hindu Brachamari. A leitura de Gilson possibilitou a Merton um olhar distinto sobre o Deus misericordioso, podendo assim alcançar o largo espectro da experiência religiosa [5]. Ao abrir o livro de Gilson, Merton foi tocado de admiração, para além daquele “medo” que alimentava sobre a igreja católica. O que extraiu daquelas páginas foi algo que revolucionou a sua vida, sobretudo “um conceito inteiramente novo de Deus – um conceito que me mostrou logo que a crença dos católicos não era absolutamente o resíduo vago e um tanto supersticioso de uma época não científica, como eu imaginava” [6]. Com Brachamari recebeu um conselho decisivo: “Existem muitos e belos livros místicos escritos por cristãos. Você deveria ler As confissões, de Santo Agostinho, e a Imitação de Cristo”. E Merton relata: “É um tanto irônico que eu me tenha voltado espontaneamente para o Oriente em minhas leituras sobre o misticismo, como se não houvesse nada ou muito pouco na tradição cristã” [7]. E isto dito por um monge hindu. Aos poucos foi sendo tomado por um impulso novo, de avançar na experiência cristã: resolveu “ir a uma missa pela primeira vez na vida”. Já tinha entrado em igrejas, mas nunca havia assistido uma missa [8]. Ao padre Ford, da igreja de Corpus Domini, na rua 121 na Broadway, expressa o desejo de ser católico, e o batismo veio na sequência.

A decisão pelo sacerdócio aconteceu simultaneamente ao processo de aprofundamento de sua vida religiosa. Depois de tomar conhecimento de várias ordens religiosas, optou pelos franciscanos. Esse projeto não teve continuidade, em razão de um acontecimento de sua vida pregressa, um filho que tivera durante sua moradia em Cambridge [10]. Aos poucos foi amadurecendo a decisão pela Trapa, com a positiva acolhida do Abade de Gethsemani, Dom Frederic, depois que Merton fez um retiro na abadia no tempo do natal. A acolhida ocorreu em 1941. Um ano antes, durante uma visita a Cuba, Merton teve também uma experiência mística bonita, na basílica de Nossa Senhora do Cobre, ao ouvir o brado de crianças no momento nobre da consagração da missa: “Creo en Diós”. E afirmou sobre o episódio: “Então, repentina e definitivamente como o brado das crianças, mil vezes mais radiante, formou-se em minha mente uma certeza, uma compreensão de que havia acontecido sobre o altar a presença de Deus pelas palavras da consagração, de modo a fazê-lo pertencer a mim”. Em seguida veio uma iluminação, que durou um único instante: “O céu está bem presente diante de mim: o céu, o céu” [11] .

02. O que caracteriza a mística de Thomas Merton? Ainda nesse sentido, qual é a diferença da mística dele em relação à mística medieval?

Faustino Teixeira – Merton foi um místico multifacetado. Foi alguém diferente, com uma abertura acadêmica, interdisciplinar e multirreligiosa. Mas foi sobretudo um monge. É a partir desta ocular que ele vê o mundo, que compreende a vida e reforça sua abertura ao canto das coisas. Como bem mostrou Sibélius Pereira em sua tese doutoral [11], que tive o prazer de orientar, Merton foi um monge que resgata o amplo campo da vida monástica, dos padres do deserto e do monaquismo antigo, da ortodoxia católica, da patrística grega e latina, da rica tradição cisterciense e da mística alemã e espanhola. E junto com tudo isto, a bonita leitura da tradição zen-budista, incentivada por D.T. Suzuki. Na obra As águas de Siloé (1949), estimulado pelo abade Dom Frederic, Merton discorre amplamente sobre as raízes dessa tradição monástica que veio ser coroada pelos Cistercienses, dedicando-se em particular à abordagem das características centrais da vida cisterciense.

Em outra obra, A vida silenciosa (1957), Merton busca introduzir o leitor aos traços cotidianos da vida monástica na variedade de suas formas. Discorre sobre os aspectos da vida cenobítica e também da vida eremítica. Destaca o papel de São Bento na raiz dessa experiência espiritual. Abordando-as a Regra de São Bento, indica como ele valorizava as “coisas materiais mais humildes”, tratadas sempre com reverência [12]. Todas as realidades criadas são tratadas com respeito e cuidado, e o são não por causa delas em si, mas por pertencerem a Mistério de Deus [13]. Com respeito aos cistercienses, Merton buscou mostrar o traço da “pura caridade” que marca a sua reforma, bem como a especificidade da vida contemplativa como uma vida no Espírito [14]. E o que o agradava na vida trapista era a marca da solidão, da “solidão sonora”, para utilizar uma expressão cara a João da Cruz [15]. Ele apreciava muito a “nota dominante da solidão”, como expressão essencial de pobreza e humildade, bem como a atenção com o trabalho no campo. Foi ali, no campo, que Merton aprendeu o que há de mais profundo na experiência contemplativa.

Em outra obra, O signo de Jonas, um diário que cobre o período da sua vida entre 1946 e 1952, Merton fala de seu trabalho como “marcador de árvores”, uma experiência singular em sua vida. Dizia no livro sobre sua vida entre as árvores: “Marco-as com tinta, e, em troca, os bosques me educam com seu silêncio” . Dizia ainda que “ser tocado pelas coisas” é algo simplesmente maravilhoso, essa mistura com as coisas, captando sua alegria, que se conjuga com o Mistério de Deus [17]. Na natureza, a transparência de Deus: “Nenhum escrito sobre as dimensões da solidão, de meditação da vida pode dizer algo que já não tenha sido dito melhor pelo vento nos pinheiros” [18]. Em sua vida, marcada pela presença no campo, foi captando a profundidade do silêncio e da solidão: “Agora que eu os conheço melhor (meus irmãos), sou capaz de ver a profundidade da solidão que há em cada pessoa humana” [19]. Como ocorre em muitas de suas obras, Merton expressa seu pensamento como uma oração: “Pensam que eu tenho uma vida espiritual? Não a tenho, sou indigência, sou silêncio, sou pobreza, sou solidão, pois renunciei à espiritualidade para achar Deus, é Ele quem prega em voz alta nas profundezas de minha indigência” [20].

Assim vai tecendo Merton, com as malhas da vida, a sua compreensão de contemplação, de vida mística, sempre pontuada pelo toque da compaixão. A importância nodal em sua vida deste “ponto” onde se concentram todas as solidões, que é a “Palavra única, pronunciada em silêncio”, que congrega “toda a Cidade de Deus” [21]. E a partir deste ponto, o exercício de abertura aos outros. Dizia que é no “ermo profundo” que conseguia encontrar a delicadeza da experiência do amor para com seus irmãos [22]. Revisando uma obra que tinha escrito em março de 1949 sobre a contemplação, Merton escreve um de seus mais preciosos trabalhos: Novas sementes de contemplação (1961). Acrescenta algo de novo no título para marcar a peculiaridade de sua reflexão, e na introdução assinala que agora é um “livro inteiramente novo” [23]. É quando então Merton mostra a diferença de sua visão sobre o tema, a originalidade de sua reflexão com respeito a outros místicos anteriores. No primeiro capítulo já destila a novidade de sua visão:

A contemplação é a mais alta expressão da vida intelectual e espiritual do homem. É a própria vida do intelecto e do espírito plenamente despertada, plenamente ativa, plenamente consciente de que está viva. É um espanto espiritual, uma admiração. Um temor espontâneo, reverencial, diante do caráter sagrado da vida, do ser” [24].

Em sua nova perspectiva, Merton entende a contemplação como experiência compatível e integrável com todas as coisas. Trata-se, antes de tudo, de um dom, de “uma tomada de consciência repentina, um despertar à infinita Realidade que existe dentro de tudo que é real” [25]. A vida contemplativa é movida por singular “ressonância”, onde todas as coisas reverberam movidas pela Presença irradiadora “daquele que está oculto mas Vivo” [26]. Não é, absolutamente, experiência solipsista, mas profundamente sonora, na medida em que se irradia para os outros e para as espécies companheiras. Envolve, sim, humildade e desapego, no sentido de esvaziar-nos para poder “ver e usar todas as coisas em e para Deus” [27]. Daí a beleza dos santos, diz Merton, aqueles seres ensolarados que, por estarem absortos em Deus, são capazes “de ver e apreciar as coisas criadas” [28].

03. De que modo a busca da interioridade e pelo amor a Deus é expressa na mística de Merton?

Faustino Teixeira – Um dado curioso e instigante na vida de Merton nos ajuda a compreender o caráter ativo de sua contemplação. Poderíamos chamar isso de equilíbrio interior. Merton dizia que “a felicidade não é questão de intensidade, mas de equilíbrio, de ordem, de ritmo e de harmonia” [29]. Na medida em que ele avançava em seu mundo interior, num ritmo de equilibração, ele também dilatava as esferas da caridade, hospitalidade, cuidado e compaixão. Isto ocorria concomitantemente: o avanço no mundo interior e a abertura aos novos horizontes, tanto da experiência da alteridade como da sintonia inter-religiosa. 

Livros de Thomas Merton (Foto: Reprodução)


04. Qual é a importância do silêncio e da contemplação na mística de Thomas Merton?

Faustino Teixeira – Merton indica que o passo inicial para qualquer experiência contemplativa é a busca da integração do mundo interior. Aí está o segredo: “A primeira coisa que você deve fazer é tentar recuperar sua unidade natural fundamental, reintegrar seu ser fragmentado em um todo simples e aprender a viver como uma pessoa unificada” [30]. É no silêncio, no cultivo da vida interior, que a experiência de Deus vai se tecendo, pacientemente. É todo um trabalho laborioso de purificação do coração. É o passo do trabalhar-se a si mesmo, de forma a garantir o espaço bonito da experiência da doação. Merton cita o caso dos padres do deserto, que fizeram um tal exercício não “para ganhar alguma coisa, mas para doar-se a si mesmos”. A vida contemplativa, diz Merton, não é algo impossível e destinado a alguns privilegiados, mas está aí diante de nós, disponível. Basta apenas abrir os olhos e estar atentos aos pequenos detalhes do cotidiano, ao ritmo da vida. Abrir-se à contemplação é estar disponível a uma vida de simplicidade e liberdade. Não se busca nada de especial, mas simplesmente estar aí. E os exemplos que ele dá são tirados da dinâmica do dia a dia:

Andar pela rua, varrer o chão, lavar os pratos, escolher feijões, ler um livro, dar um passeio pela mata – tudo pode ser enriquecido pela contemplação e pelo obscuro sentido da presença de Deus. Essa contemplação é justamente mais pura porque a pessoa não ‘olha’ para ver se ela está lá. Esse ‘caminhar com Deus’ é uma das mais simples e mais completas maneiras de viver uma vida de oração, e uma das mais seguras. Ela nunca chama a atenção de ninguém, muito menos a atenção de quem a vive; e aquele que a vive logo aprende a não querer ver nada de especial em si mesmo. Esse é o preço da liberdade” [31]. 

A solidão autêntica, diz Merton, é uma experiência integradora, marcada pela liberdade e pela acolhida. Ela “abarca tudo”, nada deixa escapar, e vem delineada pelo toque da delicadeza e do cuidado. Diz Merton em página de seu diário, que nada conta para a solidão senão o amor, uma “total abertura da liberdade”. Indica que “amor e solidão são o solo da verdadeira maturidade e liberdade. A solidão que é apenas solidão e nada mais (i.e, que exclui tudo que não é solidão) não tem valor. A verdadeira solidão é “plenitude do amor que não rejeita nada e ninguém, que se abre para Todos e Tudo” [32]. Merton diz que o seu espaço de vida, contemplação e atuação é “o mundo criado e redimido por Deus” [33]. Mas isto requer, e como, atenção plena. Não se requer apenas concentração, mas sobretudo “estar presente” [34]. Essa foi sua grande lição na vida de eremita, que começou a acontecer em sua vida a partir de julho de 1965. Mas já antes, quando era mestre de noviços, dentre os quais estava Ernesto Cardenal, já captava esse toque zen da contemplação. Dizia que a verdadeira vida espiritual está conectada com tudo e não envolve muita ascese. Basta estar aí. A seu ver, “a vida do contemplativo era simplesmente viver, como o peixe na água” [35].

A vida contemplativa envolve o afinamento dos sentidos para perceber o canto do universo. No caso de Merton, um acontecimento foi essencial para esse despertar. Ocorreu em março de 1958, em Louisville, em pleno centro comercial, quando então se dá conta de que a experiência contemplativa implica o amor a todas as pessoas, e de que sua solidão não é sua. A descrição que faz é belíssima, e está no livro Reflexões de um espectador culpado (1966):

Aconteceu então, subitamente, como seu eu visse a secreta beleza de seus corações, a profundeza de seus corações onde nem o pecado, nem o desejo, nem o autoconhecimento podem penetrar. Isto é, o cerne da realidade de cada um aos olhos de Deus. Se ao menos todos eles pudessem ver-se como realmente são. Se ao menos pudéssemos ver-nos uns aos outros deste modo, sempre. Não haveria mais guerra, nem ódio, nem crueldade, nem ganância… Suponho que o grande problema é que cairíamos todos de joelhos, adorando-nos uns aos outros” [36].

Foi quando então, por influxo de Louis Massignon e da mística sufi, captou o significado do “ponto virgem” (le point-vierge), aquele pontinho de nada, de pura verdade, aquela faísca que habita o íntimo de cada um, aquele “ponto como vazio, intocado pelo pecado e pela ilusão, um ponto de pura verdade, uma centelha que pertence inteiramente a Deus” [37]. E esse pontinho pode também ser percebido na aurora, quando ocorrem os primeiros pios dos pássaros, quando o céu “ainda está desprovido de luz real”. É o momento nobre do início da manhã, ou melhor, da madrugada, quando o Mistério Maior abre os olhos da criação. Trata-se daquele “momento mais maravilhoso do dia”, quando então “a criação em sua inocência pede licença para ‘ser’ de novo, como foi na primeira manhã que uma vez existiu”. O ponto virgem é esse “ponto cego e suave”, que habita o “entre”, na divisória de trevas e luz [38].

05. Como a mística de Teresa de Ávila e os Exercícios Espirituais de Inácio de Loyola influenciaram Thomas Merton? Além desses, quais foram os outros místicos que exerceram influência sobre a mística dele?

Faustino Teixeira – Thomas Merton lembra a presença desses místicos em sua vida. Fala da importância dos exercícios espirituais de Santo Inácio na sua biografia, quando adquiriu o livro pela primeira vez e dedicou-se à sua reflexão e meditação [39]. Outros importantes místicos estiveram na fonte de sua inspiração, como João da Cruz, Jan Ruusbroec, São Bernardo de Claraval e Mestre Eckhart [40]. Dedicou-se a dar um curso aos noviços sobre a mística cristã, que está registrado numa excelente publicação inglesa [41].

Em seu “trabalho de cela”, uma experiência fundamental para Merton, quando busca estar atento ao diversificado som da voz de Deus espraiado em toda criação, a presença dos místicos foi essencial. Destaco aqui o influxo de Mestre Eckhart, cuja presença acompanha a experiência zen de Merton. Vale lembrar a citação que Merton faz de Eckhart numa passagem de seu livro Zen e as aves de rapina (1968), quando aborda o tema do essencial esvaziamento visando a pureza do coração. Menciona uma passagem clássica do Sermão Alemão 52 de Eckhart: “O homem deve ser tão vazio de todas as coisas e de todas as obras, tanto interiores como exteriores, a ponto de ser um lugar próprio onde Deus possa atuar” [42]. Isto para dizer que o verdadeiro esvaziamento que a mística exige implica um desvencilhar-se do lugar mesmo onde Deus possa atuar, pois reservar um “lugar” seria manter acesa a distinção. A vida contemplativa, em sua profundidade, envolveria assim um operar despido da consciência que Deus ali opera [43]. Junto a Eckhart a presença da mística zen, se assim a podemos denominar. Nesse caso, o exercício essencial do VER. O Zen, como diz Merton, “nada ensina, apenas nos possibilita um despertar-nos e tornar-nos conscientes” [44]. O zen nada explica, continua Merton, ele “apenas vê” [45].

Não se pode deixar de mencionar aqui a presença viva de Rainer Maria Rilke na vida e na reflexão de Merton. Penso aqui em particular naquele precioso convite que faz Rilke em sua sétima elegia de Duíno do adentrar-se no mundo interior, condição ímpar para que o mundo exista [46]. Em página de seu diário, de novembro de 1965, Merton expressa esse seu amor a Rilke: “As Elegias de Duino e os Quatro Quartetos falam de minha própria vida, meu próprio ser, meu destino, meu cristianismo, minha vocação, minha relação com o mundo do meu tempo, meu lugar nele etc.” [47].

06. Entre as orações escritas por Thomas Merton, quais delas melhor expressam a sua mística?

Faustino Teixeira – No meu livro que acaba de sair publicado pela Vozes, As orações da humanidade (2018), em parceria com Volney Berkenbrock, escolhemos dez orações de Thomas Merton, mas uma em especial gostaria de destacar, que expressa de forma singular o traço de buscador de Merton [48]:

Senhor, meu Deus
Não tenho ideia de aonde estou indo.
Não vejo o caminho adiante de mim.
Não posso saber com certeza onde terminará.
Nem sequer, em verdade, me conheço.
E o fato de eu pensar que estou seguindo tua vontade,
Não significa que realmente o esteja.
Mas acredito que o desejo de te agradar te agrada, de fato.
E espero ter esse desejo em tudo que estiver fazendo.
Espero jamais vir a fazer alguma coisa
Distante desse desejo.
E sei, que se agir assim,
Tu hás de me levar pelo caminho certo,
Embora eu nada possa saber sobre o mesmo.
Portanto, hei de confiar sempre em ti,
Ainda que eu possa parecer
Estar perdido e sob a sombra da morte.
Não hei de temer, 
Pois tu sempre estás comigo,
E nunca hás de deixar 
Que eu enfrente meus perigos sozinho.

07. Como as obras de Etienne Gilson e Jacques Maritain influenciaram o pensamento teológico de Thomas Merton?

Faustino Teixeira – Sobre o influxo de Etienne Gilson já falamos antes. Foi a partir da leitura de um de seus livros, O espírito da filosofia medieval, que Merton toma contato com uma visão positiva do cristianismo, ainda que antes ele tenha tido a vontade de jogar o livro pela janela do trem, pois não se tinha dado conta de que era um livro de filosofia católica. Da repugnância inicial, ele foi tomado de impacto pela leitura do livro, e dele conseguiu encontrar elementos que revolucionaram sua vida, sobretudo o conceito de Deus [49]. Sobre Jacques Maritain, a relação foi de grande amizade. Maritain chegou a visitar Merton em Gethsêmani no ano de 1966. Há uma larga correspondência entre os dois, que cobre o período de 1949 a 1967, e está registrada num dos tomos de suas cartas [50].

Com Maritain, Merton abre o seu coração a respeito das restrições e censuras que vinha sofrendo com suas publicações na Trapa, sobretudo as que se relacionavam com a mística zen. Dizia em passagem de uma carta a Maritain, de junho de 1960: “Desejo ardentemente a solidão nos bosques do mosteiro. Paradoxalmente a consigo encontrar no meu diálogo com os não católicos” [51]. Ele se abre com o amigo, falando da riqueza das outras tradições religiosas: “Existem tantas pessoas sérias, de boa vontade, interessadas na mística não cristã, e justamente para serem mais profundamente si mesmas”. Mais adiante vai citar o exemplo de Louis Massignon [52]. E menciona o zen-budismo: “Eu mesmo estou interessado no zen, e consigo compreender o quanto ele se aproxima do que há de verdade na vida espiritual, mas também na arte e na vida mesma” [53]. Merton fala também de sua alegria na leitura do diário de Raissa, mulher de Maritain. Não consegue expressar com palavras o bem que essa leitura lhe proporcionou: “Eu leio na solidão dos bosques. Cada frase escancara o nosso coração para Deus” [54]. 

Thomas Merton e Dalai Lama

08. Como e por que Merton aderiu ao movimento pacifista da década de 1960 e qual foi sua contribuição nas críticas à guerra do Vietnã? Como foi sua participação no movimento?

Faustino Teixeira – Gosto de falar em três apelos interiores que marcaram a trajetória de Thomas Merton: a contemplação, o diálogo e a compaixão [55] . Merton foi um dos principais artífices de uma “ecumene da compaixão” um apaixonado pela Paz entre os povos. Um de seus livros mais representativos a respeito foi Paz na era pós-cristã. O livro não conseguiu ser publicado enquanto Merton vivia, em razão das censuras impostas por seus superiores na Trapa. O livro era para ser publicado em 1962, mas isto não ocorreu. Como assinala Jim Forrest no prefácio da obra, a palavra “Paz” era uma palavra suspeita na ocasião, e quem a utilizava era visto como “vermelho” ou “simpatizante” [56]. O livro foi proibido de ser publicado pelo abade Dom Gabriel Sortais. Os estudiosos de Merton sublinham o influxo dessa obra no Concílio Vaticano II [57]. No livro há duros ataques às armas nucleares, entendidas como contrárias à moralidade cristã. E Merton não poupa suas críticas: “Toda guerra nuclear, e de fato toda destruição em massa de cidades, populações, nações e culturas, seja por quais meios isso acontecer, é um crime da maior gravidade, proibido a nós não só pela ética cristã, mas por todo código moral sério e são” [58].

Quanto à guerra do Vietnã, suas críticas também foram muito duras. Recebeu em Gethsêmani o monge vietnamita Thich Nhat Hanh, no final de maio de 1967, que tinha sido expulso de seu país em razão de seu posicionamento crítico. Em torno dessa amizade foi publicado um belo livro [59].

09.  Nos últimos anos de sua vida, Merton se dedicou às religiões asiáticas, com destaque para o Zen-Budismo. Que tipo de diálogo ele propunha entre as religiões e a mística asiática e o cristianismo?

Faustino Teixeira – Podemos, de fato, sinalizar esse grande interesse de Merton pelo Oriente. Dizia ele num artigo, cujo trecho que nos interessa foi publicado em livro: “Nossa abertura ao budismo, ao hinduísmo e às grandes tradições da Ásia oferece-nos , creio, uma chance única de aprender um pouco mais sobre as potencialidades de nossas próprias tradições ocidentais” [60]. O interesse de Merton pelo budismo vem de agosto de 1938, embora uma reflexão mais sistematizada só ocorreu depois de 1957. Para isso foi de fundamental importância a sua relação com Suzuki, que foi duradoura, tendo os dois se encontrado em 1964. Merton chegou a convidar o monge zen para escrever um prefácio ao seu livro sobre os padres do deserto, mas isso foi recusado por seus superiores, que argumentaram que uma tal coisa poderia favorecer umacommunicatio cum infideli (comunicação com um infiel). E Merton reclama disto com Maritain [61]. Em torno à relação de Merton com o budismo, há uma obra preciosa: Merton y Buddhism, de 2007 [62]. Há também alguns outros clássicos livros de Merton envolvendo o budismo e o taoísmo.

10. Como se dá a recepção do legado de Merton hoje e qual a sua importância para os nossos dias?

Faustino Teixeira – Estamos comemorando no dia 10 de dezembro os 50 anos da morte de Thomas Merton, ocorrida em 1968, em razão de um acidente com um ventilador elétrico, quando estava em viagem pela Ásia. Foi uma comovente surpresa para todos, num momento de grande abertura do mestre trapista. Em janeiro de 2015, celebrou-se também o centenário de seu nascimento, com inúmeras publicações celebrativas. Aqui no Brasil saiu publicado um livro dedicado ao acontecimento [64]. O legado de Merton é enorme, sendo de fundamental importância para o nosso tempo atual, de desgaste da compaixão, de indiferentismo, fundamentalismos e fixações identitárias. Merton é símbolo de abertura e liberdade, de kenosis e compaixão. Seu convite à viagem ao mundo interior e à abertura aos outros é fantástico e provoca as raízes mais profundas do coração. Merton é um impulso aberto para novos estudos e trabalhos, dissertações e teses, com temas inusitados e essenciais para lidar com os desafios de nosso tempo. Em princípios de 1949 ele alimentava um sonho de ser “vagabundo”. Em carta de 1967 a uma jovem – Suzanne Burovich -, descreveu a si mesmo como um “monge hippie”. E olha que esse itinerante alternativo mudou a forma de olhar, entender e viver a mística nos séculos XX e XXI.

Notas:

  • [1] Há três edições brasileiras do livro: Thomas Merton. A montanha dos sete patamares. São Paulo/Rio de Janeiro: Mérito, 1958 (sexta edição), seguida da edição da Vozes, em 2005 e depois da Petra, em 2018. As citações aqui utilizadas seguem a edição da Vozes, com a sigla MSP. (Nota do entrevistado)
  • [2] MSP, p. 102. (Nota do entrevistado)
  • [3] MSP, p. 104. (Nota do entrevistado)
  • [4] MSP, p. 81 e 173. (Nota do entrevistado)
  • [5] MSP, p. 186. (Nota do entrevistado)
  • [6] MSP, p. 157-158. (Nota do entrevistado)
  • [7] MSP, p. 180-181. (Nota do entrevistado)
  • [8] MSP, p. 188. (Nota do entrevistado)
  • [9] Jim Foreste. Thomas Merton. Scrittore e monaco, uomo di pace e di dialogo. Roma: Città Nuova, 1995, p. 46. Em torno da decisão dos franciscanos cf. MSP, p. 268-270. Ver também: William H. Shannon & Christine M. Bochen & Patrick F, O´Connell. Diccionario de Thomas Merton. Mensajero: Bilbao, 2015, p. 358 (utilizaremos a sigla DTM). (Nota do entrevistado)
  • [10] MSP, p. 257-258. (Nota do entrevistado)
  • [11] Sibélius Cefas Pereira. Thomas Merton. Contemplação no tempo e na história. São Paulo: Paulus, 2014, p. 25 (utilizaremos a sigla CTH). (Nota do entrevistado)
  • [12] Thomas Merton. A vida silenciosa. 3 ed. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 39. (Nota do entrevistado)
  • [13] Ibidem, p. 40. (Nota do entrevistado)
  • [14] Ibidem, p. 96. (Nota do entrevistado)
  • [15] Ibidem, p. 97. (Nota do entrevistado)
  • [16] Thomas Merton. O signo de Jonas. São Paulo/Rio de Janeiro: Mérito, 1954, p. 381. (Nota do entrevistado)
  • [17] Ibidem, p. 391. Dizia em seu diário: “Eu sou um franciscano. Minha espécie de espiritualidade é estar nos bosques, sob as árvores”: MSP, p. 300. (Nota do entrevistado)
  • [18] Thomas Merton. Amor e vida. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 17. (Nota do entrevistado)
  • [19] Thomas Merton. O signo de Jonas, p. 380. (Nota do entrevistado)
  • [20] Ibidem, p. 377. (Nota do entrevistado)
  • [21] Ibidem, p. 303. (Nota do entrevistado)
  • [22] Ibidem, p. 304. (Nota do entrevistado)
  • [23] Thomas Merton. Novas sementes de contemplação. Rio de Janeiro: Fisus, 2001, p. 1. (Nota do entrevistado)
  • [24] Ibidem, p. 9. (Nota do entrevistado)
  • [25] Ibidem, p. 10. (Nota do entrevistado)
  • [26] Ibidem, p. 11. (Nota do entrevistado)
  • [27] Ibidem, p. 29. (Nota do entrevistado)
  • [28] Ibidem, p. 30. (Nota do entrevistado)
  • [29] Thomas Merton. Nenhum homem é uma ilha. Campinas: Verus, 2003, p. 117. (Nota do entrevistado)
  • [30] Thomas Merton. A experiência interior. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 7. (Nota do entrevistado)
  • [31] Ibidem, p. 94. (Nota do entrevistado)
  • [32] Patrick Hart & Jonathan Montaldo. Merton na intimidade. Sua vida em seus diários. Rio Janeiro: Fisus, 2001, p. 315. (Nota do entrevistado)
  • [33] Ibidem, p. 296. (Nota do entrevistado)
  • [34] Ibidem, p. 291. (Nota do entrevistado)
  • [35] Ernesto Cardenal. Vida perdida. Memórias 1. Madrid: Trotta, 2005, p. 144. (Nota do entrevistado)
  • [36] Thomas Merton. Reflexões de um espectador culpado. Petrópolis: Vozes, 1970, p. 183. (Nota do entrevistado)
  • [37] Ibidem, p. 183. (Nota do entrevistado)
  • [38] Ibidem, p. 151. (Nota do entrevistado)
  • [39] MSP, p. 243-247. (Nota do entrevistado)
  • [40] Veja: Thomas Merton. L’esperienza interiore. Note sulla contemplazione. Cinisello Balsamo: San Paolo, 2005, p. 142-153. (Nota do entrevistado)
  • [41] Thomas Merton. An Introduction to Christian Mysticism. Initiation into the Monastic Tradition 3. Michigan: Cistercian Publications, 2008 (edited with Introduction by Patrick F. O’Connel). (Nota do entrevistado)
  • [42] Mestre Eckhart. Sermões Alemães 1. Bragança Paulista/Petrópolis: São Francisco/Vozes, 2006, p. 290. (Nota do entrevistado)
  • [43] Thomas Merton. Zen e as aves de rapina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972, p. 14. (Nota do entrevistado)
  • [44] Ibidem, p. 49. (Nota do entrevistado)
  • [45] Ibidem, p. 53. (Nota do entrevistado)
  • [46] Rainer Maria Rilke. Elegias de Duíno. 6 ed. São Paulo: Biblioteca Azul, 2013, p. 63. (Nota do entrevistado)
  • [47] Patrick Hart & Jonathan Montaldo. Merton na intimidade, p. 302. (Nota do entrevistado)
  • [48] A oração também foi publicada na seção de espiritualidade do IHU, nas Orações Inter-Religiosas, com ilustração de Pulika. Originalmente esta oração foi publicada no livro de Thomas Merton: Na liberdade da solidão. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 66. A versão utilizada aqui foi da tradução do Mosteiro da Virgem, em Petrópolis. (Nota do entrevistado)
  • [49] MSP, p. 157-158. (Nota do entrevistado)
  • [50] Veja o livro: Thomas Merton. Il coraggio della verità. Casale Monferrato: Piemme, 1997, p. 65-129. (Nota do entrevistado)
  • [51] Ibidem, p. 86. (Nota do entrevistado)
  • [52] Ibidem, p. 112. (Nota do entrevistado)
  • [53] Ibidem, p. 77. (Nota do entrevistado)
  • [54] Ibidem, p. 88. (Nota do entrevistado)
  • [55] Faustino Teixeira. Buscadores de diálogo. Itinerários inter-religiosos. São Paulo: Paulinas, 2012, p. 29-41. (Nota do entrevistado)
  • [56] Thomas Merton. Paz na era pós cristã. Aparecida: São Paulo, 2007, p. 8. (Nota do entrevistado)
  • [57] Ibidem, p. 20 e22. (Nota do entrevistado)
  • [58] Ibidem, p. 76 e 94. (Nota do entrevistado)
  • [59] Robert H. King. Ed. Thomas Merton and Thich Nhat Hanh. (Nota do entrevistado)
  • [60] Gilles Farcet. Thomas Merton, un trappiste face à l’Orient. Paris: Albin Michel, 1990, p. 19. Ver também: Thomas Merton. Reflexiones sobre Oriente. La filosofia oriental a la luz del misticismo occidental. Barcelona: Oniro, 1997. (Nota do entrevistado)
  • [61] Thomas Merton. Il coraggio della verità, p. 82. (Nota do entrevistado)
  • [62] Bonnie Bowman & Thurston. Merton & buddhism. Louisville: Fons Vitae, 2007. (Nota do entrevistado)
  • [63] O já citado Zen e as aves de rapina (original de 1968); Id. Místicos e mestres zen. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972 (o original é de 1961); Id. A via de Chuang Tzu. 3 ed. Petrópolis: Vozes, 1977. (Nota do entrevistado)
  • [64] Mertonianum 100. Comemoração do centenário de Thomas Merton. São Paulo: Riemma, 2015. (Nota do entrevistado)

Sobre o entrevistado:

Faustino Teixeira (Foto: Arquivo Pessoal)


Faustino Teixeira é professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora, Minas Gerais – PPCIR-UFJF. É doutor e pós-doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana, de Roma.  É autor de Caminhos da mística (São Paulo: Paulinas, 2018), Em que Creio Eu  (São Paulo: Terceira Via, 2017), Finitude e Mistério. Mística e Literatura Moderna (Rio de Janeiro: Mauad, 2014).  Também organizou, entre outros, Nas teias da delicadeza (São Paulo: Paulinas, 2006), As religiões no Brasil: continuidades e rupturas (Petrópolis: Vozes, 2006), este em parceria com Renata Menezes, e  As orações da humanidade (Petrópolis: Vozes, 2018), em parceria com Volney Berkenbrock.

Fonte:

IHU

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Uma santidade inserida no tempo: a chamada de Francisco https://observatoriodaevangelizacao.com/uma-santidade-inserida-no-tempo-a-chamada-de-francisco/ Thu, 17 May 2018 14:36:15 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=28079 [Leia mais...]]]> Por Faustino Teixeira

Hoje, 09 de abril de 2018, veio divulgada a Exortação Apostólica Gaudete et Exsultate (GE) do papa Francisco. A data do documento é 19 de março, por ocasião da solenidade de São José. Trata-se de uma exortação que abre pistas essenciais para o chamado à santidade. O mote é bem claro, vindo do evangelho de Mateus: “Alegrai-vos e exultai” (Mt 5,12). Uma palavra que vem dirigida “aos que são perseguidos ou humilhados por causa dele” (GE 1). O objetivo vem apresentado logo no início: “O meu objetivo é humilde: fazer ressoar mais uma vez a chamada à santidade, procurando encarná-la no contexto atual, com os seus riscos, desafios e oportunidades, porque o Senhor escolheu cada um de nós ´para ser santo e irrepreensível na sua presença e amor` (Ef 1,4)”.

Não se trata de um tratado sobre a santidade, mas de um convite, de uma chamada à santidade (GE 2). O documento compõe-se de cinco capítulos: A Chamada à santidade (I); Dois inimigos sutis da santidade (II); À luz do mestre (III); Algumas características da santidade no mundo atual (IV); Luta vigilância e discernimento (V).

A partir de uma primeira leitura do documento busco aqui sublinhar alguns pontos que me chamaram a atenção neste primeiro momento, o que não significa que esta leitura seja a definitiva nem que exclua outras possibilidades de pontuação. Falo aqui do que me tocou de forma particular. Minha intenção é deixar o texto falar, comentando aqui e ali o que me chamou a atenção.

 

A Chamada à santidade (I)

O documento parte da referência à carta aos Hebreus, mencionando as várias testemunhas que nos encorajam no caminho da santidade, como Abraão, Moisés e Sara, entre tantos outros. Estamos, assim, rodeados de uma “nuvem de testemunhas” que nos ajudam a avançar e não nos deter no caminho (GE 3). Os santos estão, na verdade, “ao pé da porta”, e não se reduzem aos santos beatificados ou canonizados. Eles são os testemunhas tocados pelo Espírito, e este “derrama a santidade por toda parte, no santo povo fiel de Deus” (GE 6).

Os santos estão por todo canto, “no povo paciente de Deus”, entre mulheres e homens simples, aqueles que vivem bem “perto de nós”, como “um reflexo da presença de Deus” (GE 7). São pessoas muitas vezes anônimas: “Certamente, os eventos decisivos da história do mundo foram essencialmente influenciados por almas sobre as quais nada se diz nos livros de história” (GE 8). A santidade é o que há mais singelo na igreja, o seu “rosto mais belo”, mas encontra-se também fora de seu reduto, em áreas diversificadas (GE 9).

O papa Francisco nos recorda que pessoa alguma deve desanimar-se diante de modelos de santidade que aparecem como inatingíveis. Isto porque “a vida divina comunica-se ´a uns de uma maneira e a outros de outra`” (GE 11). Isto me faz lembrar Teresa de Ávila, no quinto livro das Moradas, capítulo terceiro, quando busca animar suas irmãzinhas no caminho da santidade, sobretudo àquelas que têm dificuldade de alcançar as mercês sobrenaturais. O caminho que ela indica é o mais cotidiano e vizinho: a prática do amor a Deus e o amor ao próximo. Insiste sobre a importância deste itinerário: guardando com firmeza esses dois mandamentos garante-se a profunda união com Deus (V M 3,7). E complementa Teresa: “E convencei-vos: quanto mais adiantadas estiverdes no amor ao próximo, tanto mais o estareis no amor de Deus” (V M 3,8).

Na visão de Francisco, para trilhar o caminho da santidade “não é necessário ser bispo, sacerdote, religiosa ou religioso” pois é um âmbito que se abre para todas as pessoas: “Todos são chamados a ser santos”, e isto nas simples ocupações do dia-a-dia (GE 14). A santidade brota e se irradia nos pequenos gestos, sempre “sob o impulso da graça divina” (GE 18).

O horizonte para o buscador deve ser sempre muito claro: o reino de Deus e sua justiça. Firma-se aqui para Francisco um dado que é fundamental: “Não se pode conceber Cristo sem o Reino que Ele veio trazer”. Identificar-se com o Cristo é também comprometer-se com o seu projeto de vida, com o horizonte almejado, de um reino de amor, justiça e paz para todos (GE 25).  Nesse projeto vital, nesta atividade que santifica, são essenciais os momentos de quietude e silêncio diante do Mistério maior. Francisco insiste na importância dos momentos de solidão sonora, em que se detém a corrida febril da vida para “recuperar um espaço pessoal, às vezes doloroso mas sempre fecundo, onde se realize o diálogo sincero com Deus” (GE 29). É o momento onde nos detemos para enfrentar “a verdade de nós mesmos” e nos deixamos “invadir pelo Senhor”. Sem tais momentos de desaceleração a própria missão sai prejudicada, quando então “o compromisso esmorece, o serviço generoso e disponível começa a retrair-se. Isto desnatura a experiência espiritual” (GE 30). Trata-se do “espírito de santidade”, imprescindível para a caminhada nos rastros do Mistério (GE 31). Francisco é bem claro: “Cada cristão, quanto mais se santifica, tanto mais fecundo se torna para o mundo” (GE 33).

 

Dois inimigos sutis da santidade (II)

Nesse capítulo, Francisco chama a atenção para dois riscos presentes no caminho da santidade: o gnosticismo e o pelagianismo. No primeiro caso, a tentação de se fechar no campo subjetivo, “onde apenas interessa uma determinada experiência ou uma série de raciocínios e conhecimentos que supostamente confortam e iluminam”, mas que na verdade enclausuram a pessoa no âmbito da imanência (GE 36). No segundo caso, a tentação de atribuir centralidade ao esforço pessoal, deixando em segundo plano o mistério da graça.

Na verdade, segundo Francisco, com o pelagianismo firma-se uma “vontade sem humildade”, uma perspectiva que não reconhece devidamente “que a nossa realidade é fruto dum dom” (GE 55). Para Francisco, “só a partir do dom de Deus, livremente acolhido e humildemente recebido, é que podemos cooperar com os nossos esforços para nos deixarmos transformar cada vez mais” (GE 56). Aqui situa-se o desafio maior, de deixar-se “pertencer a Deus”.

 

À luz do Mestre (III)

Neste momento, Francisco busca retomar os ditos  de Jesus, como caminho singular para a compreensão e exercício da essência da santidade. Fala no desafio de “voltar às palavras de Jesus”, pois ali se encontra a chave de entendimento da santidade. O caminho está traçado numa resposta simples: fazer cada um “aquilo que Jesus disse no sermão das bem aventuranças” (GE 63). As bem-aventuranças guardam o segredo maior da santidade. O papa discorre sobre cada bem aventurança e assinala a importância da pureza de coração, da mansidão, da misericórdia, da fome e sede da justiça etc. O amor verdadeiro, insiste Francisco, é aquele que brota de um coração puro (GE 85-86). Fala também da virtude do perdão: “Jesus não diz ´felizes os que planejam vingança`, mas chama felizes aqueles que perdoam e o fazem ´setenta vezes sete`(Mt 18,22)” (GE 82). Recorda ainda o valor dos pacíficos, daqueles “que cuidam de semear a paz por todo lado” (GE 88). São eles “fonte de paz”, e não é nada fácil construir a paz evangélica, uma paz “que não exclui ninguém; antes, integra mesmo aqueles que são um pouco estranhos” (GE 89).

Viver a santidade é sobretudo “abraçar diariamente o caminho do Evangelho” (GE 94). Isto não é nada fácil! Trata-se de um caminho que num momento ou outro vai deparar-se com as incompreensões e a perseguição. A regra magna para a santidade vem ditada no capítulo 25 do evangelho de Mateus: “Tive fome e me destes de comer, tive sede e me destes de beber, era migrante e me acolhestes, esta nu e me vestistes, estava enfermo e me visitastes, estava encarcerado e fostes ver-me” (MT 25,35-36). A santidade é algo bem terrenal, distante do êxtase que revira os olhos, e bem próxima do gesto que desvela o rosto do outro.

A santidade firma-se no solo da oração, não há dúvida, mas indica uma oração que alimenta “uma doação diária de amor”. A oração deve frutificar no âmbito da misericórdia: “O melhor modo para discernir se o nosso caminho de oração é autêntico será ver em que medida a nossa vida se vai transformando à luz de misericórdia” (GE 105). A misericórdia torna-se, assim, o “critério para individuar” os que são de fato verdadeiros filhos de Deus.

 

Algumas características da santidade no mundo atual (IV)

Neste capítulo, Francisco busca destacar os traços espirituais indispensáveis para o exercício da santidade, ou seja, para “compreender o estilo de vida a que o Senhor nos chama” (GE 110). Dentre as características indicadas sublinha a paciência e a mansidão, o traço da “solidez interior” (GE 112). Sublinha também a importância da humildade. Destaca ainda o traço da alegria e o sentido do humor. Indica que “o santo é capaz de viver com alegria e sentido de humor. Sem perder o realismo, ilumina os outros com um espírito positivo e rico de esperança” (GE 122). Para esta alegria busca inspiração nos profetas e em Maria. Nada impede a dinâmica da alegria, esta força de resiliência que vence os momentos difíceis e encontra o ritmo de luz nas frestas do tempo: “Nada pode destruir a alegria sobrenatural, que se ´adapta e transforma, mas sempre permanece pelo menos como um feixe de luz que nasce da certeza pessoal de, não obstante o contrário, sermos infinitamente amados`” (GE 125). Ao lado da alegria, a ousadia e o ardor. A santidade, indica Francisco, “é ousadia, é impulso evangelizador que deixa uma marca no mundo” (GE 129). Seu impulso vem de Jesus: “Olhemos para Jesus! A sua entranha de compaixão não era algo que o ensimesmava, não era uma compaixão paralisadora, tímida ou envergonhada, como sucede muitas vezes conosco. Era exatamente o contrário: era uma compaixão que o impelia fortemente a sair de si mesmo a fim de anunciar, mandar em missão, enviar a curar e libertar” (GE 131).

Em sua prática, Jesus se alimentava do Deus sempre maior, do Deus que é novidade, que impele à saída e que nos convoca ao êxodo e ao movimento, a “mover-nos para ir mais além do conhecido, rumo às periferias e aos confins. Leva-nos aonde se encontra a humanidade mais ferida e aonde os seres humanos, sob a aparência da superficialidade e do conformismo, continuam à procura de resposta para a questão do sentido da vida” (GE 135).

A experiência da santificação ocorre em comunidade, é o que nos lembra Francisco. É um caminho comunitário, de criação de um espaço teologal que faculte a experiência do Senhor ressuscitado (GE 142). Os buscadores são despertados ao exercício de atenção aos “pequenos detalhes do amor” (GE 144-145), onde vigora o cuidado mútuo e o exercício de discernimento do projeto do Pai. Tudo isto num clima constante de oração: “O santo é uma pessoa com espírito orante, que tem necessidade de comunicar com Deus” (GE 147). Francisco adverte que não pode haver santidade sem oração. Todos buscadores necessitam de um “silêncio repleto de presença adoradora” (GE 149).

Luta, vigilância e discernimento (V)

No último capítulo de sua Exortação Apostólica, Francisco fala sobre a “luta permanente” que anima a vida cristã. Trata-se de um projeto que requer força, coragem e resistência diante das amarras do mal (GE 158). O maligno está aí, sempre por perto, com suas maquinações. Há que resistir com vigor contra suas artimanhas. Como antídoto, trilhar com serenidade “o progresso no bem, o amadurecimento espiritual e o crescimento do amor” (GE 163). Requer-se igualmente o exercício contínuo de discernimento, não apenas nos momentos extraordinários, mas também na luta do dia-a-dia. Há que permanecer em estado de atenção ao Senhor, de “obediência ao evangelho”. Este caminho de atenção nos coloca em sintonia fina com a liberdade de espírito, em atitude de escuta do Senhor, dos outros e da realidade (GE 172).

Sem dúvida, estamos diante de um documento de atualidade inédita, que abre caminhos novidadeiros para a nossa ação profética no tempo, que aponta pistas fundamentais para viver a dinâmica da santidade. Tudo em límpida sintonia com o caminho de coerência de Francisco, cuja nota essencial é dar continuidade ao projeto de vida do evangelho.

Fonte:

fteixeira-dialogos.blogspot.com.br

 

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A singularidade do ser cristão https://observatoriodaevangelizacao.com/a-singularidade-do-ser-cristao/ Mon, 19 Mar 2018 19:12:11 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=27621 [Leia mais...]]]> Por Faustino Teixeira

No sábado, 17/03/2018, conversava longamente com meu irmão, Pulika, versado na prática inter-religiosa. E ele me indagou sobre o traço mais singular que caracterizaria o cristianismo. Sua questão era saber os motivos peculiares que garantiriam a beleza do cristianismo. Minha resposta veio imediata: o amor aos outros. Mencionava a clássica passagem do evangelho de Marcos, com a resposta de Jesus a um escriba: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Mc 12,31). Segundo a narrativa de Marcos, para Jesus não poderia haver mandamento maior, junto com o amor ao Mistério Maior. Na verdade, como disse Karl Rahner numa de suas obras clássicas sobre o tema, “só quem ama o próximo pode saber quem é realmente Deus”. Pulika rebateu meu argumento dizendo que esta convocação não era assim específica do cristianismo, ocorrendo também de forma viva em outras tradições religiosas. E fomos juntos levantando novos argumentos para buscar a especificidade da dinâmica cristão.

Durante a leitura litúrgica do quinto domingo da quaresma, ontem, fui novamente provocada a buscar uma resposta à indagação de meu irmão. Em passagem do evangelho de João, um grupo de gregos lança uma interrogação, que também é a nossa: “Senhor, queremos ver Jesus” (Jo 12, 21). Sim, ver o que Jesus traz de novidade e que faz brilhar os olhos dos cristãos e estimulá-los para seguir em missão. Como pontuou de forma linda o documento Diálogo e Anúncio, toda missão centra-se nesse “centro do mistério do amor”. O desejo de compartilhar com os outros a alegria de um encontro funda-se nesse mesmo amor (DA 83).

Voltamos aqui à indagação lançada por José Antonio Pagola no início de seu livro sobre Jesus (Jesus, aproximação histórica): “Quem foi Jesus? Que segredo se esconde neste galileu fascinante, nascido há dois mil anos numa aldeia insignificante do Império romano e executado como um malfeitor perto de uma antiga pedreira, nos arredores de Jerusalém, quando beirava os 30 anos?” Pagola indica que Jesus foi o que de melhor produziu a humanidade, irradiando um admirável potencial de luz e esperança. E mais, “é difícil aproximar-se dele e não sentir-se atraído por sua pessoa. Jesus traz um horizonte diferente para a vida, uma dimensão mais profunda, uma verdade mais essencial. Sua vida converte-se num chamado a viver a existência a partir de sua raiz última, que é um Deus que só quer para seus filhos e filhas uma vida mais digna e feliz”.

Tudo isto me sugere buscar novos argumentos para sinalizar a singularidade do cristianismo, a partir do caminho de Jesus. Lanço algumas hipóteses:

  1. A convocação ao Amor Solidário: “Tive fome e me destes de comer. Tive sede e me destes de beber. Era forasteiro e me recolhestes. Estive nu e me vestistes, doente e me visitastes, preso e viestes ver-me” (Mt 25,35-36),
  2. A centralidade da Misericórdia: “Quando o pai viu-o, encheu-se de compaixão, correu e lançou-se-lhe ao pescoço cobrindo-o de beijos” (Lc 15,20)
  3. O toque essencial da alegria: “Eis que eu vos anuncio uma grande alegria, que será para todo o povo” (Lc 2,10)
  4. O amor incondicional, também aos inimigos: “Amai os vossos inimigos, fazei o bem aos que vos odeiam, bendizei os que vos amaldiçoam, orai por aqueles que vos difamam” (Lc 6,27-28)
  5. A abertura gratuita ao outro. E aqui sublinho sua particular atenção às mulheres. Ele as acolhia todas, sem distinção alguma. Numa sociedade fortemente patriarcal, ela as tornava visíveis. São protagonistas em suas parábolas: “Jesus lhe diz: ´Dá-me de beber!” (Jo 4,7)
  6. O radical respeito à diversidade: “Em verdade vos digo que, em Israel, não achei ninguém que tivesse tal fé. Mas eu vos digo que virão muitos do oriente e do ocidente e se assentarão à mesa no Reino dos céus, com Abraão, Isaac e Jacó” (Mt 8, 11)
  7. Um amor gratuito, que não busca recompensa: “Olhai as aves do céu: não semeiam, nem colhem, nem ajuntam em celeiros (…). Aprendei dos lírios do campo, como crescem, e não trabalham nem fiam” (Mt 6, 26.28)
  8. A convocação à humildade e ao despojamento: “Se queres se perfeito, vai, vende os teus bens e dá aos pobres, e terás um tesouro nos céus. Depois, vem e segue-me” (Mt 19, 21); “Todo o que exalta será humilhado, e quem se humilha será exaltado” (Lc 18, 14)
  9. O exercício da comunhão: “Aquele que quiser tornar-se grande entre vós seja aquele que serve, e o que quiser ser o primeiro dentre vós, seja o vosso servo” (Mt 20,27)
  10. Disponibilidade ao Mistério sempre maior: “Vem a hora em que nem neste monte nem em Jerusalém adorareis ao Pai (…). Vem a hora – e é agora – em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade” (Jo 4, 21-23).

Essas são algumas pistas que fui buscando resgatar no poço precioso do cristianismo, a partir dos gestos e práticas de Jesus. São os traços que destacam a fragrância singular da tradição cristã e que faz brotar essa alegria única no coração. Interessante constatar essa vitalidade evangélica na prática do papa Francisco, que escolheu justamente centrar sua atuação na simplicidade dos gestos de Jesus. Quando ele esteve no Brasil, em julho de 2013, sua fala no santuário de Aparecida resume bem o que também acredito, quando falou de três simples posturas que devem marcar o cristão: conservar a esperança, deixar-se surpreender por Deus e viver na alegria.

Sobre o autor

a1s1ooFaustino Teixeira é professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora – PPCIR-UFJF, pesquisador do CNPq e consultor do ISER-Assessoria. É pós-doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana. Entre suas publicações mais recentes encontram-se Na fonte do Amado: malhas da mística cristã (São Paulo: Fonte Editorial, 2017); Buscadores cristãos no diálogo com o Islã (São Paulo: Paulus, 2015); Cristianismo e diálogo inter-religioso (São Paulo: Fonte editorial, 2014); Cristianismos e Teologia da Libertação (São Paulo: Fonte editorial, 2014); Teologia e pluralismo religioso (São Bernardo do Campo: Nhanduti Editora, 2012).

Fonte:

fteixeira-dialogos.blogspot.com.br

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A história das CEBs no Brasil https://observatoriodaevangelizacao.com/a-historia-das-cebs-no-brasil/ Fri, 19 Jan 2018 09:00:00 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=27206 [Leia mais...]]]> Faustino Teixeira

PPCIR-UFJF / ISER-Assessoria

Introdução

As Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) constituem uma das experiências mais significativas e ricas oferecidas pela Igreja brasileira à Igreja universal. Este novo modo de ser Igreja que vai se afirmando no Brasil expressa o grande dinâmismo de nossa vida eclesial[1], revelando e apontando facetas singulares de uma Igreja comprometida com a afirmação da vida e com a causa dos pobres. No início da década de 80, o teólogo Karl Rahner lamentava a situação de inverno na Igreja, mas já acenava para a presença alternativa do cristianismo que pulsava na América Latina,  marcado pelo empenho e testemunho, uma experiência “rica de grandes esperanças”.[2] De fato, a experiência das CEBs favoreceu a gênese de um novo rosto de Igreja, caracterizado pelos traços da comunhão, compromisso e participação e pontuado pela dinâmica do seguimento de Jesus Cristo. Ao longo destes quase quarenta anos de caminhada, as CEBs do Brasil têm sinalizado o imperativo essencial da opção pelos pobres e de seu direito de cidadania na sociedade e na Igreja. Trata-se de uma convocação dirigida a todo o povo de Deus, no sentido de caminhar na perspectiva da Igreja dos pobres: “todos são chamados a viver intensamente a comunhão fraterna e a integração entre fé e história a partir da realidade e da vida concreta”.[3] Durante o seu itinerário, as CEBs foram acumulando experiência e enfrentando novos desafios, assim como incompreensões e resistências. Talvez a maior riqueza desta experiência eclesial encontra-se na sua potencialidade dialogal e na sua capacidade de gênese permanente, que indica sua disponibilidade de abertura aos novos horizontes que vão se apresentando ao longo da história.

 

  1. Uma história de fé e vida

As CEBs no Brasil nasceram no contexto da rica fermentação popular que marcou o início da década de 60. Neste período, o contexto sócio-cultural e eclesial nacional foi pontuado pela presença viva de movimentos como a Ação Católica (em especial a JUC, JEC e JOC) e o Movimento de Educação de Base (MEB). Tais movimentos lançaram as primeiras sementes de uma compreensão crítica do evangelho e da incidência da fé na história. Criaram as condições para a redefinição da atuação crítica dos cristãos no interior da Igreja e da sociedade brasileira, apontando questões-chaves que prenunciaram e anteciparam os temas que emergiriam em seguida com a teologia da libertação e as comunidades eclesiais de base. O golpe militar de 1964 e seus desdobramentos posteriores bloqueou este processo, mas não impediu a dinâmica de rearticulação da pastoral popular na periferia das grandes cidades e no âmbito rural. As CEBs nascem nesta difícil conjuntura política, como pequena “flor sem defesa”, de forma simples e despojada, suscitando a afirmação da palavra dos pobres e excluídos a partir da reflexão bíblica. Da conjuntura eclesial mais ampla vinha a motivação decisiva. Vivia-se o clima primaveril do pós-concílio, secundado em seguida pelos novos desafios da Conferência de Medellín (1968).

Nos anos 70, a experiência das CEBs irradia-se por todo o Brasil, vivendo um momento de grande vitalidade. Pela força do testemunho e exemplo muitas experiências passaram a ser difundidas, e estavam garantidas pela radicalidade evangélica. Buscava-se uma Igreja renovada, que pudesse assumir os problemas, as dificuldades e as alegrias dos empobrecidos: uma comunidade adulta, comprometida com Cristo, mas igualmente com o povo e a sua libertação; uma comunidade animada pelo Espírito e marcada pela vida de comunhão e de ajuda fraterna. Neste período surgem os Encontros Intereclesiais de CEBs, que foram fundamentais para o amadurecimento e incremento da experiência.

Durante a década de 80 as CEBs brasileiras estarão diante de uma série de novos desafios, relacionados às mudanças de conjuntura que ocorreram tanto no campo político como eclesial. Um dos temas centrais neste período relaciona-se à questão da identidade eclesial das CEBs . Os novos ventos da conjuntura eclesiástica internacional não sopravam mais a favor da experiência em curso. Inaugurava-se um tempo de “restauração” na Igreja católica, com repercussões dolorosas para toda a pastoral libertadora latino-americana, e as CEBs em particular. A lógica do movimento centralizador assumido por Roma a partir deste período deixará rastros na Igreja brasileira. As experiências mais inovadoras estarão no centro das atenções, das críticas e incompreensões. Em muitos casos, as CEBs serão o alvo predileto dos ataques, mas visava-se sobretudo o processo de evangelização em curso no Brasil e sua crítica contundente das injustiças sociais. As resistências e ataques impetrados visavam obstruir ou eclipsar a Igreja brasileira, que neste período emergia como uma igreja criativa e profética aos olhos dos demais países. As dificuldades e incompreensões foram crescendo em ritmo proporcional à dinâmica de centralização e uniformidade do modelo eclesiástico vigente.[4]

A partir do final dos anos 80,  novos horizontes e desafios foram despontando e ampliando o campo de interesse das comunidades, como os temas da cultura, etnia, gênero, subjetividade, ecologia, espiritualidade, ecumenismo etc. São temas que vão “ampliando sua visão, às vezes com dificuldade, mas sempre no marco de suas opções irrenunciáveis diante do conflito social”[5]. A ampliação de horizontes não significou uma perda de vitalidade das comunidades, estas continuam “vivas e a caminho”. A dureza e a conflitividade que acompanham o avanço neoliberal, bem como a retração eclesiástica, podem provocar aqui ou ali uma certa “desaceleração”, mas isto não significa uma perda de vitalidade da experiência. Os diversos encontros regionais das CEBs e os relatos divulgados pelos animadores de todo o Brasil manifestam a presença de um dinamismo real, só captado por aqueles que acompanham de perto a experiência e que acreditam na força de sua espiritualidade.

 

  1. Uma experiência de conversão no modo de ser Igreja

O novo modo de ser Igreja nas CEBs representa para seus participantes uma mudança significativa no campo da experiência religiosa. Pode-se falar com pertinência em conversão, enquanto mudança acentuada na maneira pessoal e coletiva de se viver a experiência da própria religião.[6] A modalidade da figura do convertido nas CEBs diferencia-se de outras duas modalidades identificadas com o fenômeno, ou seja, do convertido como aquele que muda de religião, ou aquele que descobre uma religião sem jamais ter pertencido a nenhuma. O caso das CEBs evidencia a trajetória de indivíduos que se reafiliam a uma mesma tradição, que redescobrem uma nova identidade religiosa, até então mantida formalmente. A inserção nas CEBs significa para seus membros a entrada num “regime forte de intensidade religiosa”, que provoca em âmbito vital uma reorganização ética e espiritual.[7]

Os participantes das comunidades passam a compartilhar de uma nova identidade, reorganizam seu “aparelho de conversa” sob novas bases. Como traço substancial da nova internalização favorecida pelas CEBs encontra-se uma nova relação com o sagrado, que implica agora a centralidade da conscientização, um novo compromisso ético e político e a ênfase na participação em lutas populares. O sentimento de pertença à comunidade traz consigo uma nova visão de mundo, uma nova simbologia e outras práticas coletivas. Aderir à caminhada é identificar-se com um novo modo de ser católico que pressupõe coerência e compromisso ético e social no projeto de afirmação da vida.

No processo de mudança que envolve a nova perspectiva eclesial ocorrem transformações significativas, o que pode ser exemplificado na dinâmica de participação. As CEBs instauram novas formas de participação dos leigos na vida de fé, nos serviços e na organização da comunidade. Eles passam a se sentir sujeitos eclesiais, rompendo o anterior “monopólio clerical” de poder, e assumem com responsabilidade os diversos serviços que vão brotando das necessidades históricas. Vale destacar a presença substantiva das mulheres, cuja participação e visibilidade nas CEBs é irradiante e fundamental, atuando em todos os campos da experiência.  Pesquisas realizadas nos anos 80/90 no Brasil com dioceses envolvendo experiências de CEBs revelaram, porém, que esta dinâmica participativa encontra limites bem definidos, que sinalizam a fragilidade institucional das comunidades. Constata-se a carência de mecanismos que favoreçam a influência de decisão dos leigos em âmbito mais amplo que o meramente local.

Esta participação não se restringe ao campo eclesial, mas desdobra-se no empenho na sociedade. As CEBs sublinham como essencial o vínculo que articula o seguimento de Jesus com a luta em favor da transformação da sociedade. O critério da humanização é decisivo na práxis das CEBs e em sua forma de compreender o valor da experiência religiosa. As comunidades sempre pontuaram a centralidade do testemunho em favor do Reino de Deus, que passa necessariamente pela afirmação de vida dos pequenos e excluídos. A abertura ao social constitui um traço congênito das CEBs. Esta disposição e exigência nasce da própria relação motora entre fé e vida presente na hermenêutica bíblica popular vigente nas comunidades. Em conseqüência deste compromisso, não poucos animadores e agentes das CEBs sofreram a experiência do martírio. Esta atestada “prática martirial” presente nas CEBs constitui expressão da radicalidade evangélica que vem marcando a experiência deste seus primórdios. E estes mártires estão vivos na memória das CEBs: em suas celebrações, nas palavras, nas relíquias e tantos outros símbolos que adornam as casas, as roupas e os templos de seus membros. Como sublinha Dom Pedro Casaldáliga, “um povo ou uma Igreja que se esquecem de seus mártires não merecem sobreviver”.[8]

 

  1. A centralidada da Bíblia

Um elemento que se destaca em todas as reflexões pertinentes sobre as CEBs é o lugar conferido à Bíblia nas experiência das comunidades. Ela constitui o “núcleo fundante” da CEBs, o elemento identificador de sua eclesialidade. Trata-se da base de sustentação e  vitalidade das comunidades, do núcleo conformador do universo motivacional dos empobrecidos. Foi a partir da reflexão bíblica que as primeiras comunidades de base emergiram, com os círculos bíblicos ou os grupos de evangelho, nos anos 60, e esta referência fundamental continuou acompanhando toda a trajetória comunitária.

Com as CEBs instaura-se uma nova hermenêutica bíblica, propiciadora de uma leitura libertadora da Palavra de Deus. Trata-se de uma interpretação dinamizada pela opção em favor dos pobres, que traduz uma íntima ligação da Palavra com a vida do povo. A leitura bíblica vem enriquecida pelo con-texto da comunidade e pelo pre-texto da realidade. O resultado é sempre novidadeiro e mobilizador. Os problemas reais que afetam a vida do povo ganham uma nova iluminação pela Palavra, que lida em comunidade, suscita sentido e orientação na caminhada. Com a nova perspectiva, os pobres passam a reconhecer na Bíblia um livro familiar, que reflete como espelho a sua própria realidade; e reapropriam-se desta palavra que passa a significar para eles fonte de animação e vida. Nos últimos anos, as CEBs tem enriquecido a sua leitura popular com o aprofundamento da dimensão orante da Palavra: a Bíblia torna-se matéria de oração e de aprofundamento da espiritualidade. Ao lado da postura de familiaridade com a Palavra, aprofunda-se sua dimensão de gratuidade e de alteridade.

Com base na reflexão bíblica, as CEBs possibilitam uma espiritualidade integradora, identificada como espiritualidade do seguimento de Jesus. Trata-se de uma experiência espiritual animada pela relação dinâmica de três elementos: de inserção e compromisso no mundo dos empobrecidos, e de proximidadecom o Senhor da história; uma experiência que envolve simultaneamente a consciência da presença de Cristo no irmão pobre e a abertura à gratuidade do mistério de Deus, que faculta uma presença mais decisiva e despojada no âmbito da história.

 

  1. Uma identidade em construção

Para determinados setores da mídia e da intelectualidade, as CEBs estariam hoje vivendo uma situação de esgotamento e crise. No caso brasileiro, o argumento normalmente utilizado para explicar tal “refluxo” refere-se ao crescimento dos núcleos pentecostais evangélicos e a irradiação da renovação carismática católica. De fato, há que reconhecer que o crescimento das vertentes pentecostais evangélicas tem provocado uma mudança no campo religioso brasileiro, com incidência no enfraquecimento do “caráter de definidor hegemônico de verdade e da identidade institucional” tradicionalmente assumido pela Igreja católica.[9]

Ao estar inserida neste mesmo campo, as CEBs deparam-se igualmente com esta questão do crescimento pentecostal, que vem percebido não necessariamente como uma ameaça, mas como um desafio para a ampliação de sua acolhida ecumênica e inter-religiosa. Este tema fundamental tem aparecido de forma viva nos últimos Intereclesiais de CEBs. Durante o IX Intereclesial, realizado na cidade de São Luis do Maranhão (1997), um dos blocos temáticos tratou justamente da questão do diálogo com os pentecostais e carismáticos católicos. Sublinhou-se o desafio da busca da convivência cotidiana e do exercício dialogal comum nas ações e lutas concretas a favor do povo.

As CEBs nunca tiveram a pretensão de uma abrangência massiva, mas sempre privilegiaram o trabalho comunitário, que é qualitativo e garantidor dos laços de fraternidade entre seus membros. O raio de envolvimento de sua presença pastoral foi sempre limitado, não atingindo mais que 9% da população local das dioceses animadas pela experiência comunitária. As formas de participação nas CEBs ocorrem de forma diferenciada. A grande força motora encontra-se nos núcleos de animadores e animadoras. Outra forma de pertencimento ocorre com os núcleos de participantes que se envolvem em uma ou mais de suas atividades. Há também os praticantes,  aqueles que reduzem sua participação às celebrações eucarísticas. São os núcleos dos animadores (as) e participantes que conferem maior visibilidade às CEBs, um núcleo que não ultrapassa 9 % da população local. Um dos desafios enfrentados pelas CEBs, identificado com a pastoral de massas, consiste em buscar integrar de forma mais definida aqueles que se encontram distanciados do núcleo dinâmico das comunidades.[10]

O acompanhamento dos Encontros Intereclesiais de CEBs permite situar o processo de construção da identidade eclesial das comunidades. Embora não representem propriamente o cotidiano das experiências em curso, já que expressam o seu momento celebrativo e festivo, tais encontros propiciam acompanhar sua dinâmica eclesial e as tendências presentes e em curso. A experiência dos Encontros Intereclesiais de CEBs nasceu no ano de 1975, visando uma maior articulação das comunidades espalhadas pelo Brasil. A experiência ganhou continuidade nos anos seguintes, expressando a riqueza e a vitalidade das comunidades. O X Intereclesial aconteceu no ano de 2000, na cidade de Ilhéus (BA), congregando cerca de 3063 pessoas. O que se observa não é uma crise das CEBs, mas uma retomada de sua inserção social e eclesial a partir dos novos desafios que acompanham a entrada do novo milênio. Como indicou um dos assessores da experiência, “as CEBs são vitais porque experimentais, ágeis e pluriformes”.[11] Não constituem experiências fossilizadas ou engessadas, mas sempre antenadas e abertas aos novos horizontes. Para além das limitações de sua consciência real, elas abrem-se para a consciência possível, indicando os repertórios inusitados e fundamentais para a vida da Igreja no tempo atual.

O último Intereclesial de Ilhéus foi um termômetro preciso do atual momento das CEBs, sinalizando as grandes questões que envolvem a experiência.[12] A questão ecumênica e inter-religiosa vai se firmando em bases mais serenas, sinalizando uma dinâmica de acolhida da alteridade. A presença cada vez mais incisiva das religiões afro-brasileiras e da questão indígena tem provocado nas CEBs o desafio de uma reflexão alternativa sobre a inculturação. Esta vem compreendida não como mera adaptação, mas como interpretação criadora. Na dinâmica do encontro com tais tradições propicia-se uma reinterpretação do conteúdo do próprio cristianismo, favorecendo a emergência de um novo rosto de Igreja. Uma nova sensibilidade macro- ecumênica tem motivado as CEBs a ampliar seus braços, de forma a poder abraçar mais intensamente a diversidade, reconhecendo-a como expressão da riqueza multiforme do Deus sempre maior. E na comunhão das diversidades a busca de um compromisso comum e mais decisivo em defesa da vida ameaçada.

O Encontro de Ilhés sinalizou igualmente a importância do aprofundamento da ministerialidade das CEBs. O sonho de uma Igreja toda ministerial sempre acompanhou as comunidades, mas vem sendo cada vez mais acentuado nos últimos anos. Em contraponto com a tendência centralizadora vigente na Igreja católica, as CEBs apontam teimosamente numa direção diversa, acreditando no sonho de uma Igreja participativa e toda ministerial. A defesa deste quesito foi reforçada em Ilhéus pela palavra das mulheres, que sublinharam a necessidade de uma maior partilha e distribuição de poder na Igreja, e de forma particular a sua presença nas várias instâncias de serviços e decisões. Relacionado à questão ministerial, emergiu também o tema do direito à Eucaristia nas CEBs. Trata-se de um dos temas mais delicados, mas que vem sendo acentuado com vitalidade na experiência das comunidades brasileiras. As CEBs definem-se como comunidades celebrativas, mas encontram-se ainda privadas da possibilidade eucarística. Os dados estatísticos apontam um índice de 70% de celebrações dominicais sem padre nas comunidades do Brasil. Esta situação provoca uma séria questão para a teologia e a disciplina eclesiástica, como lembrou outro assessor das CEBs: “o problema de aprofundar a questão do que significa a presença real eucarística nas celebrações sem ministros ordenados”.[13] A experiência ministerial presente nas CEBs convoca a urgência de uma reflexão mais aprofundada sobre o protagonismo dos leigos e o campo de atuação e exercício dos novos ministérios, não ordenados.

As CEBs permanecem vivas e teimosas no seu sonho de um projeto de Igreja mais consoante com o seguimento de Jesus e o horizonte do Reino de Deus, de uma Igreja que faz a opção pela história e pelos excluídos desta história, de uma Igreja solidária e acolhedora, de uma Igreja testemunho. Os ventos eclesiásticos não são os mais favoráveis, mas as comunidades estão acostumadas a sobreviver nas situações mais difíceis e foram aprendendo na história as artimanhas que mantêm acesa a chama de sua esperança.

(Artigo histórico publicado na revista Concilium, v. 296, n. 3, 2002, pp. 38-46)

Notas:

[1] CNBB, As comunidades eclesiais de base na Igreja do Brasil, 4 ed.,São Paulo, Paulinas 1986, n. 1.

[2] Karl RAHNER, Confessare la fede nel tempo dell’attesa, Roma, Città Nuova 1994, p. 230.

[3] CNBB, As comunidades eclesiais de base na Igreja do Brasil, n. 51.

[4] Dom Celso QUEIRÓZ, Igreja no Brasil – Anos 80. Evolução da CNBB: documentos e posições, Rio de Janeiro, Mimeo, agosto de 1985, p. 6.

[5] Luiz Alberto Gómez de SOUZA, As CEBs vão bem, obrigado, Revista Eclesiástica Brasileira 60 (2000) 107.

[6] Faustino TEIXEIRA, A espiritualidade nas CEBs, em Clodovis BOFF et alii, As comunidades de base em questão, São Paulo, Paulinas 1997, p. 208-209.

[7] Danièle HERVIEU-LÉGER, Le pèlerin et le converti: la religion en mouvement, Paris, Flammarion 1999, p. 124-125.

[8] Pedro CASALDÁLIGA & José Maria VIGIL, Espiritualidade da libertação, Petrópolis, Vozes 1993, p. 182.

[9] Pierre SANCHIS, O repto pentecostal à “cultura católica brasileira”, em Alberto ANTONIAZZI et alii, Nem anjos nem demônios: interpretações sociológicas do pentecostalismo, Petrópolis, Vozes 1994, p. 36.

[10] Pedro A. Ribeiro de OLIVEIRA, CEB: unidade estruturante de Igreja, em Clodovis BOFF et alii, As comunidades de base em questão, Op.cit., p. 145-146.

[11] Luiz Alberto Gómez de SOUZA, As CEBs vão bem, obrigado, Art.cit., p. 107.

[12] Faustino TEIXEIRA, O resgate e a afirmação de um sonho: o X Encontro Intereclesial de CEBs, Perspectiva Teológica 88 (2000) 393-413.

[13] João Batista LIBÂNIO, O X Encontro Intereclesial de CEBs: leitura teológica, em Revista Eclesiástica Brasileira 60 (2000) 552.

Sobre o autor

a1s1ooFaustino Teixeira é professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora – PPCIR-UFJF, pesquisador do CNPq e consultor do ISER-Assessoria. É pós-doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana. Entre suas publicações mais recentes encontram-se Na fonte do Amado: malhas da mística cristã (São Paulo: Fonte Editorial, 2017); Buscadores cristãos no diálogo com o Islã(São Paulo: Paulus, 2015); Cristianismo e diálogo inter-religioso (São Paulo: Fonte editorial, 2014); Cristianismos e Teologia da Libertação (São Paulo: Fonte editorial, 2014); Teologia e pluralismo religioso (São Bernardo do Campo: Nhanduti Editora, 2012).

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Jerusalém: capital de Israel ou cidade da paz? https://observatoriodaevangelizacao.com/jerusalem-capital-de-israel-ou-cidade-da-paz/ Thu, 07 Dec 2017 12:46:58 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=27071 [Leia mais...]]]> “Jerusalém é cidade santa não apenas para Israel, mas também para cristãos e muçulmanos. Os palestinos a nomeiam como al-Quds, a Santa. E assim também a consideram judeus e cristãos. É uma cidade que se destaca entre tantos outros espaços considerados sagrados. É a cidade que abrigou o Templo consagrado por Salomão; e a cidade que abriga a rocha de onde Mohammad ascendeu aos céus; e também a cidade que guarda o túmulo de Jesus Cristo. Ela é uma cidade das três grandes tradições monoteístas. Deve, sobretudo, ser um símbolo bonito da PAZ entre as religiões.

Como mostrou com clareza o teólogo dominicano Claude Geffré, que foi diretor da Escola Bíblica de Jerusalém, esta cidade é um símbolo da coexistência pacífica entre os seres humanos. A seu ver, é uma cidade que não deixa ninguém indiferente pela sua força simbólica, e no plano ideal pode realizar aqui mesmo uma antecipação do que deverá ser a Jerusalém celeste, da Paz Universal.”

Sobre o autor

a1s1ooFaustino Teixeira é professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora – PPCIR-UFJF, pesquisador do CNPq e consultor do ISER-Assessoria. É pós-doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana. Entre suas publicações mais recentes encontram-se Na fonte do Amado: malhas da mística cristã (São Paulo: Fonte Editorial, 2017); Buscadores cristãos no diálogo com o Islã(São Paulo: Paulus, 2015); Cristianismo e diálogo inter-religioso (São Paulo: Fonte editorial, 2014); Cristianismos e Teologia da Libertação (São Paulo: Fonte editorial, 2014); Teologia e pluralismo religioso (São Bernardo do Campo: Nhanduti Editora, 2012).

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Papa Francisco sobre os cuidados com os doentes e com sua dignidade diante do fim da vida https://observatoriodaevangelizacao.com/papa-francisco-sobre-os-cuidados-com-os-doentes-e-com-sua-dignidade-diante-do-fim-da-vida/ Tue, 28 Nov 2017 16:14:39 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=26959 [Leia mais...]]]> Quando a pessoa humana está diante do limiar de enfrentar a morte, o que é mais sábio oferecer aos doentes: a obstinação terapêutica contra a morte ou o cuidado com a sua dignidade diante do mistério último da vida? Em que medida um e outro? Como garantir a centralidade da pessoa que está doente em suas relações familiares e de amizade e não fazer das técnicas contra a morte um negócio para uns poucos privilegiados? E você, diante da luz do Evangelho, o que pensa sobre isso?

No artigo a seguir, Faustino Teixeira reflete sobre o tema a partir da provocante mensagem do papa Francisco sobre esta temática:

O caminho essencial de uma proximidade responsável

Accompanying

O tema do fim da vida é sempre muito desafiante e complexo. Uma questão que sempre me interessou, com suas inúmeras ramificações e desdobramentos, entre eles o direito a uma morte com dignidade. Lendo o artigo do historiador italiano, Alberto Melloni, publicado no jornal La Repubblica e depois traduzido pelo IHU-Notícias (21/11/2017), fui novamente convocado ao tema. Tudo a partir de uma excelente mensagem do papa Francisco dirigida aos participantes do Encontro Regional Europeu da “World Medical Association” em torno da questão do fim da vida, em novembro de 2017[1].

Com grande sabedoria, Francisco supera os empecilhos tradicionais em torno da temática da eutanásia e busca encontrar um caminho novo, de sabedoria evangélica, evitando o léxico costumeiro que fala em “desligar as máquinas” ou coisas semelhantes, para abordar uma questão tão delicada como a dignidade daquele que sofre. O pontífice busca uma “contribuição de sabedoria”, partindo do patrimônio bíblico e evangélico, complexificando o debate e dando um toque singular em toda a dinâmica que acompanha o processo de encontro com a “Irmã Morte”.

Como apontou com acerto Melloni, a mensagem de Francisco faculta uma “mudança de ritmo” no discurso do magistério a respeito do tema, levantando “o problema do viver a morte como um direito moral”[2].  Em sua tomada de posição, Francisco recorre a duas expressões importantes e que se tornaram familiares no magistério da Igreja ao longo do século XX: “suplemento” (Bergson) e “integral” (Maritain). Como indica Melloni, o “suplemento” que Francisco sugere “não é de ética, mas de ´sabedoria`. Não é portanto, o recurso a um mecanismo moral ou moralista, mas a sapientia cordis que sabe que as dimensões éticas também devem ser medidas sabendo que, por trás de cada palavra, há o mistério da existência”.

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A mensagem de Francisco tem um encaminhamento bem preciso, e vamos buscar aqui sublinhar alguns dos pontos destacados por ele em sua mensagem. O papa reconhece inicialmente a riqueza que acompanha os desenvolvimentos técnicos da medicina, com todo a aperfeiçoamento da capacidade terapêutica. Os brilhantes esforços no sentido da luta contra o sofrimento e a doença, bem como da melhora da saúde. Um papel certamente muito positivo, reconhece Francisco. São intervenções técnicas cada vez mais eficazes, mas que nem sempre trazem ações resolutivas: “podem sustentar funções biológicas tornadas insuficientes, ou mesmo substituí-las, mas isto não equivale a promover a saúde. Ocorre assim um suplemento de sabedoria, pois hoje é mais insidiosa a tentação de insistir com tratamentos que produzem potentes efeitos sobre o corpo, mas que nem sempre servem ao bem integral da pessoa”.

Francisco lembra o magistério de Pio XII, num discurso realizado na década de 1960, destinado aos anestesistas e reanimadores, quando sublinhou que “não há obrigação de empregar sempre todos os meios terapêuticos potencialmente disponíveis e que, em casos bem determinados, é lícito abster-se (…). É portanto moralmente lícito renunciar à aplicação de meios terapêuticos, ou suspendê-los, quando o seu empenho não corresponde àquele critério ético e humanista que em seguida será definido como ´proporcionalidade` do coração”. Trata-se de uma decisão “que se qualifica moralmente como renúncia à ´obstinação terapêutica`”.

Não são questões de fácil resolução, mas procedimentos que sinalizam importantes juízos no campo da moralidade, que envolvem singular e atento discernimento. É o que lembra Francisco em sua mensagem. Não há que aplicar de forma mecânica regras gerais, mas analisar com cautela “as circunstâncias e as intenções dos sujeitos envolvidos”. Na visão do papa, “a dimensão pessoal e relacional da vida – e também do morrer – que é igualmente um momento extremo do viver – deve ter, no cuidado e no acompanhamento do doente, um espaço adequado à dignidade do ser humano”. Não se pode perder de vista em momento algum a “pessoa doente”, aquela que ocupa o lugar principal. O paciente não pode ficar fora das decisões que envolvem o seu destino. Com base no Catecismo da Igreja Católica, Francisco lembra que é sobretudo ao paciente, em diálogo com os médicos, que cabe “avaliar os tratamentos que a ele vêm propostos”, bem como sua “proporcionalidade” nas situações concretas. Não é um procedimento fácil, mas que se torna cada vez mais necessário, sobretudo quando se percebe que a relação terapêutica se torna a cada dia mais fragmentária, isolando o ato médico da sua relacionalidade essencial.

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Francisco toca ainda numa outra questão extremamente problemática nos tempos atuais, relacionada aos custos da saúde e da desigualdade terapêutica. Reconhece que que os tratamentos se fazem cada vez mais especializados e onerosos, excluindo parte importante da população de sua cobertura. Como assinala, “tratamentos progressivamente mais sofisticados e custosos tornam-se acessíveis a faixas cada vez mais restritas e privilegiadas de pessoas e de populações, levantando sérias questões sobre a sustentabilidade dos serviços sanitários. Uma tendência que se pode dizer sistêmica ao incremento da desigualdade terapêutica”. Trata-se de algo que se visibiliza em âmbito global, sinalizando que o acesso aos cuidados terapêuticos corre o risco de “depender mais da disponibilidade econômica das pessoas que das efetivas exigências de cura”.

Diante desta complexa situação, onde incidem diversos fatores na prática clínica, Francisco insiste sobre a importância fundamental da retomada de uma “proximidade responsável”, lembrando com pertinência da passagem evangélica do bom samaritano (Lc 10,25-37). Lembra que nestas situações que envolvem o “limite humano supremo” não se pode subtrair a dinâmica da relação, que envolve valores essenciais como o amor e a proximidade. Mesmo sabendo que a cura nem sempre pode ser garantida, é necessário manter aceso o ritmo do cuidado com aquele que vive esta experiência do limite, respeitando seus direitos e sobretudo sua dignidade. Francisco fala da importância da medicina paliativa, que se empenha no combate “a tudo o que torna o morrer mais angustiante e sofrido, ou seja, a dor e o sofrimento”. Não há que sustentar uma inútil obstinação contra a morte, mas “viver a morte como um direito moral”. Ela é também portadora de um Mistério que nos escapa. Daí a necessidade deste “suplemento de sabedoria” para lidar com a questão.

[1] http://w2.vatican.va/content/francesco/it/messages/pont-messages/2017/documents/papa-francesco_20171107_messaggio-monspaglia.html (acesso em 21/11/2017).

[2] Fim da vida: a dimensão da sabedoria. Artigo de Alberto Melloni. IHU-Notícias, 21/11/2017: http://www.ihu.unisinos.br/573819-fim-da-vida-a-dimensao-da-sabedoria-artigo-de-alberto-melloni (acesso em 21/11/2017).

Sobre o autor

a1s1ooFaustino Teixeira é professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora – PPCIR-UFJF, pesquisador do CNPq e consultor do ISER-Assessoria. É pós-doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana. Entre suas publicações mais recentes encontram-se Na fonte do Amado: malhas da mística cristã (São Paulo: Fonte Editorial, 2017); Buscadores cristãos no diálogo com o Islã (São Paulo: Paulus, 2015); Cristianismo e diálogo inter-religioso (São Paulo: Fonte editorial, 2014); Cristianismos e Teologia da Libertação (São Paulo: Fonte editorial, 2014); Teologia e pluralismo religioso (São Bernardo do Campo: Nhanduti Editora, 2012).

Fonte:

Diálogos 

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