Família hoje – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com Thu, 12 Aug 2021 11:25:56 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.4 https://i0.wp.com/observatoriodaevangelizacao.com/wp-content/uploads/2024/04/cropped-logo.png?fit=32%2C32&ssl=1 Família hoje – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com 32 32 232225030 A graça de ser pai e de ser mãe: uma missão desafiante que vem passando por profundas transformações – 3ª parte https://observatoriodaevangelizacao.com/a-graca-de-ser-pai-e-de-ser-mae-uma-missao-desafiante-que-vem-passando-por-profundas-transformacoes-3a-parte/ Thu, 12 Aug 2021 11:25:56 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=40096 [Leia mais...]]]> A graça de ser pai e o ser mãe hoje
Registro de família – 2021

Para compreender e refletir sobre o ser pai e o ser mãe atualmente precisamos ter presente e considerar, com seriedade, as profundas mudanças culturais dos últimos tempos. Uma das características mais marcantes das sociedades contemporâneas ocidentais é a centralidade crescente da subjetividade na vida das pessoas: é a emergência da cultura da individualidade. Isso significa concretamente que, cada vez mais cedo, as experiências de sermos indivíduos e sujeitos, os construtores de nossa vida e de nossa história, vão sendo favorecidas.

Com isso, no contexto atual a construção da identidade de cada pessoa –  ainda que sempre marcada por nossas vivências e relações no seio da família, da comunidade e da sociedade – é impulsionada como busca e conquista crescente da autonomia, exercício do livre arbítrio e da individualidade nas diversas escolhas e tomadas de decisão cotidiana. Oferecer a cada criança um espaço de vivências na família, na escola, na comunidade, na religião… no qual ela se sinta amada, acolhida, cuidada e dialogicamente orientada é decisivo.

Vivemos em outro contexto sociocultural

Consideremos como marco histórico de mudança de época, as transformações que eclodiram a partir dos anos 60 do século passado. De lá para cá, houve um crescente despertar da consciência da individualidade. Desse modo, com o senso da individualidade passamos culturalmente a desejar intensamente, e cada vez mais cedo, assumir o controle e exercer o nosso poder interior: poder de tomar iniciativa, de decidir, de participar, de ser ouvido, respeitado e reconhecido em nossa singularidade. O ser humano, de certa forma, passou a não suportar que ninguém além de dele mesmo – nem os pais, nem professores, nem a Igreja, nem o Estado, nem qualquer outra autoridade –, decida, de forma coercitiva, os rumos de nossa própria vida. Sobre o que vamos pensar ou deixar de pensar, o que vamos fazer ou deixar de fazer é considerado como um âmbito que pertence exclusivamente a cada um de nós. Eis a conquista da autonomia!

No final dos anos 70, Belchior e José Luiz Penna, em contexto de ditadura militar, conseguiram expressar esta experiência subjetiva, de forma lapidar, na letra da canção Comentário a respeito de John:

Saia do meu caminho
Eu prefiro andar sozinho
Deixem que eu decida a minha vida
Não preciso que me digam
De que lado nasce o Sol
Porque bate lá meu coração.

Sim, o coração do homem e da mulher que passaram pela revolução da subjetividade busca, quase que instintivamente, assumir o leme do barco da própria vida. Além de querer, tem a pretensão de saber encontrar sozinho a direção do Sol. Esta não é a experiência de alguns apenas, mas a condição humana predominante no contexto cultural urbano na família, na comunidade e na sociedade. Esta condição cultural foi intensificada com a revolução tecnológica das mídias digitais: Internet, smartphone e redes sociais virtuais. Uma definição popular de “digital”: tudo está ao alcance de minhas mãos. A geração que já nasceu neste contexto que dá poder ao indivíduo conectado demonstra ter outra percepção, e muito diferente, nos processos de ensino-aprendizagem. Embora sejamos seres de relação, que aprendem a ser uns com os outros, a relação social dialógica e de mútuo respeito e reconhecimento da dignidade de cada indivíduo será decisiva.

Mas atenção, junto com o senso da individualidade vem sempre a tentação do individualismo. Trata-se da ilusão de podermos ignorar a existência do outro como igual, de desprezar o que pensa diferente, de ignorar a necessidade de estabelecer limites para que possa haver a relação entre pessoas iguais em dignidade, de ignorar a necessidade de respeito ao pacto social. Por isso, mais do que nunca, como nos mostrou Paulo Freire, passa a ser decisiva uma “educação como prática de liberdade”, ou seja, uma educação que acontece em contexto de respeito e reconhecimento mútuo (ninguém suporta mais o autoritarismo: um querer impor ou mandar no outro), de diálogo entre iguais (nada de um querer ensinar para o outro sem ouvir e aprender junto) e de cultivo da consciência de que todos somos iguais em dignidade, humana e cidadã, direitos e deveres.

A pessoa que passou pela revolução da subjetividade – a partir do final dos anos 60 – ou já nasceu no novo contexto cultural por ela criado e transformado pelas mídias digitais, não suportará viver com tranquilidade ou não se sentirá feliz e realizado, sem ser tratado como indivíduo, ou seja, como uma pessoa humana com a dignidade de ser única, livre e capaz de contribuir, de participar e de decidir nos diversos âmbitos em que está inserida. Quer gostemos ou não, a subjetividade foi e ainda está sendo uma revolução cultural transformadora. Ela está a provocar bem mais que uma época de mudanças, mas uma mudança de época na história da humanidade. E já afetou, de forma irreversível, todos os âmbitos da vida: o da individualidade, da família, da escola, do trabalho, da sociedade em geral e, portanto, da religião, do ser Igreja.

O que mudou no modo de ser pai e de ser mãe no contexto atual?

Não é difícil perceber que o jeito de ser pai e de ser mãe de antigamente não funciona bem no contexto atual nem quando é imposto às pessoas. Isso acontece por múltiplas razões. E não é porque estamos perdendo os valores tradicionais de família ou por causa das influências diabólicas da TV e da Internet ou porque os filhos hoje são mais rebeldes do que no passado. Essas são explicações de quem está perdido. A nosso ver, a razão mais decisiva está na libertação da mulher da opressão da cultura patriarcal. Isso provocou e continua a provocar mudanças profundas não apenas na autocompreensão e percepção da mulher. Há um impacto que provocou e continua a provocar crises de identidade e de mentalidade, na autocompreensão e percepção da mulher e do homem. A libertação da mulher das garras do machismo está provocado a libertação do homem também. Não dá mais para ser mulher e mãe ou ser homem e pai como antigamente. Hoje visivelmente constatamos somos muito diferentes de nossos avós. Aqui não se trata de julgar como melhores ou piores, mas diferentes.

A principal mudança cultural visível é que a mentalidade patriarcal dominante passou a ser colocada em xeque pela mulher, bem como pela nova sensibilidade humana que emergiu da revolução da subjetividade. Atualmente criamos as condições culturais para concretizar a igual dignidade entre homens e mulheres. É claro que o machismo continua a existir, não dá para esconder isso debaixo do tapete, mas ele tem cada vez menor poder de convencimento. Aconteceu e continua a acontecer, não sem violência, a emancipação da mulher e a crescente conquista cultural da igual dignidade de gênero. Somos diferentes sim, mas não desiguais na dignidade, no valor, nos direitos e nos deveres.

O espaço da rua e da casa passam a ser divididos e compartilhados, de forma crescente, pelos dois. O homem não é mais o único “provedor”, pois a mulher foi para o mercado de trabalho e, às vezes, chega a conquistar maior salário do que o homem. A mulher não é mais a única “do lar”, pois em muitos lares o homem assume e divide as tarefas domésticas, como também participa mais de perto da criação, da lida diária e da educação dos filhos.

Atualmente, a tendência é que haja maior diálogo, flexibilidade, intercâmbio e corresponsabilidade entre os membros da família. As transformações culturais nos levam a crer que, cada vez mais, os lugares, as funções e os papeis de homem e de mulher, de pai e de mãe, com as devidas diferenças, precisarão ser discutidos, definidos e construídos em cada unidade familiar em clima de respeito mútuo, diálogo e adaptação a cada realidade. Não há mais um padrão cultural dominante como foi durante muito tempo o modelo patriarcal.

Hoje, é visível que os modelos e arranjos familiares se diversificaram muito. De modo que cada unidade familiar, por sua feição e situação específica, tende a ser única. As histórias de vida de quem forma cada família vem provocando mudanças. Embora não se possa generalizar, percebemos que a tendência geral é apostar na emergência de uma cultura do diálogo e do respeito mútuo, com divisão das tarefas familiares e definição conjunta dos papeis e funções de pai e de mãe. Observamos que quando isso não acontece, os vínculos familiares facilmente se desintegram.

Um objetivo que precisa ser abraçado por todos

Em um ponto todos precisamos estar de acordo e ficar atentos: o grande desafio da vida em família, infelizmente, foi e continua a ser, e de muitos modos, a violência doméstica. Todos precisamos assumir o compromisso ético sociopolítico de combater, e de forma contínua coibir não deixando impune, as várias facetas da violência doméstica. Esta é uma espécie de herança maldita da cultura patriarcal.

Esta cultura continua a se perpetuar por mentalidades e práticas. Há ditados e frases machistas que continuam profundamente enraizados em muitas cabeças entre nós. Tais como: “em briga de homem e mulher, ninguém pode meter a colher”; “ele é ciumento, porque me ama”; “homem que é homem não leva desaforo para casa”; “ela apanhou porque mereceu”; “aqui manda quem pode, obedece quem tem juízo”; “é de pequeno que se torce o pepino”; “eu bato, mas é para o bem, para corrigir, para educar, dói mais em mim do que nele” etc. Estas ideias e tantas outras, tão questionáveis, entranhadas nas mentes das pessoas, vem justificando e legitimando o uso da violência na família e tem feito muitas vítimas. Muitas mulheres são agredidas, violentadas e, muitas vezes, mortas, por aqueles que deveriam ser parceiros e companheiros na vida a dois. Muitos filhos e filhas, desde a mais tenra idade, igualmente, são vítimas de maus tratos, covardemente são agredidos e machucados pelos próprios pais, por aqueles que deveriam ser afetuosamente os guardiões, cuidadores e educadores para a vida adulta em sociedade. Infelizmente ainda há muita aceitação, tolerância e impunidade com a violência praticada no seio da família, da comunidade e da sociedade.

Tendências da dinâmica familiar hoje

Na prática, o ser pai e o ser mãe se tornam hoje tarefas cada vez mais próximas e com grande interação e intercâmbio nas lidas cotidianas. Cada vez mais, pais e mães trabalham fora e, de forma alternada, vão para a cozinha, fazem a comida, lavam a louça, arrumam a casa, dão banho nas crianças, trocam a roupa, levam para a escola, pegam no colo, brincam com os filhos etc.

O modo como se concretizam as relações de poder entre as pessoas – na família, na comunidade e na sociedade – precisa ser sempre refletido no contexto em que vivemos. O poder pode ser exercido de muitos modos, por exemplo, desde a forma dialógica e democrática até a forma autoritária e impositiva, com recurso ao uso da violência.

A relação entre pais e filhos também não pode ser mais vivida como antigamente. A autoridade de pai e mãe não é espontânea, nem inquestionável em sua concretização cotidiana. Em contexto de subjetividades afloradas, ela precisa ser construída com carinho, firmeza, coerência, limite e diálogo. Os filhos e filhas precisam ser respeitados como sujeitos, pessoas vocacionadas à autonomia e ao exercício da liberdade e da responsabilidade, mas também precisam aprender e internalizar valores e limites. Eles estão em processo crescente de formação e precisam ser envolvidos, de forma crescente, na prática do diálogo familiar, com respeito mútuo e escuta uns dos outros.

Os pais e mães precisam ser pais e mães para seus filhos e filhas, e não simplesmente colegas. Os filhos e as filhas precisam contemplar na pessoa de seus pais e mães – ou de substitutos na falta dos primeiros – uma boa referência de pessoas adultas, exemplos de caráter e de honestidade, do que significa ser homem e mulher. Isso é decisivo nos primeiros anos de vida, pois “criança vê, criança aprende”. Quando os filhos e as filhas crescem eles conquistarão outros referenciais, mas os pais e as mães funcionam como verdadeiras “plataforma de lançamento” para a vida.

Que tal refletirmos melhor sobre este assunto? Considere as seguintes questões:

  • Uma coisa é certa: não dá mais para ser pai e ser mãe hoje do mesmo modo que antigamente. Quais as grandes diferenças entre o modo de exercer o dom de ser pai e de ser mãe antigamente e hoje?
  • Como estamos lidando com a cruz da violência doméstica hoje? Em que precisamos melhorar para que não haja mais violência no seio da família?
  • Que outras mudanças aconteceram na dinâmica da vida em família que o texto acima não explicita?
  • Quais os maiores desafios para exercer bem hoje o dom de ser pai ou de ser mãe?

Sobre o autor:

Edward Guimarães

Teólogo leigo pastoralista e professor. Nascido em 1968, casado há dezenove anos e pai de uma menina de seis anos. Ele é o secretário executivo do Observatório da Evangelização – PUC Minas

]]>
40096
A graça de ser pai e de ser mãe: uma missão desafiante que vem passando por profundas transformações – 1ª parte https://observatoriodaevangelizacao.com/a-graca-de-ser-pai-e-de-ser-mae-uma-missao-desafiante-que-vem-passando-por-profundas-transformacoes-1a-parte/ Mon, 09 Aug 2021 14:29:02 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=40083 [Leia mais...]]]>
Registro de família
(Imagem pública disponível em muitas publicações na Internet)

Na perspectiva da fé, temos que dizer, o desafio de ser pai ou de ser mãe, mais que uma simples condição biológica instintiva, é um grande dom divino que foi entregue a nós. Trata-se da graça de participar diretamente do dinamismo da obra da criação. Por isso quanto maior a consciência dessa missão singular, acreditamos que, com fé e a graça divina, melhor poderemos assumi-la e contribuir no projeto salvífico de Deus.

Deus não nos criou prontos, mas vocacionados para a liberdade. Livres para acolher a proposta da aliança de amor com Ele e de dar uma resposta acolhendo o dom de participarmos criativamente da obra da criação. Isso significa concretamente que somos seres de liberdade e responsabilidade para construir um projeto de vida pessoal e coletivo e, como uma casa que se planeja e se constrói em mutirão, ir nos construindo juntos, mas cada um de forma singular, ao longo da vida. Nunca estaremos totalmente prontos. Sempre poderemos, com a graça de Deus, aperfeiçoar e melhorar o projeto inicial.

Ninguém é uma ilha isolada. Ninguém consegue executar o projeto e construir a si mesmo de forma isolada. Criados a imagem e semelhança do próprio Deus, somos criados por amor, com amor e para o amor.  Amar é o verbo da vida. Aprender a amar é a nossa grande lição e meta. Nossa vocação primeira é a de aprender a estabelecer relações de afeto, de cuidado, de partilha, de respeito e de amor.

No projeto de Deus, a família, a comunidade e a sociedade são mediações fundamentais na medida em que se consolidam, cada qual com suas características próprias, como verdadeiros espaços criativos de ensino-aprendizagem da arte de viver e conviver: acolher e ser acolhido, de relacionar consigo e com o outro, de cuidar e de ser cuidado, de ouvir e ser ouvido, em fim, de amar e ser amado.

A família no projeto de Deus

Nascemos totalmente dependentes do cuidado de nossos genitores ou de substitutos, na falta destes. Nenhuma pessoa conseguiria sobreviver sem receber determinados cuidados básicos de afeto, proteção, alimentação e higiene em seus primeiros anos de vida. Em muitas espécies, isso não acontece ou quando acontece é muito diferente do que acontece entre os seres humanos. Estamos convencidos de que essa dependência não é defeito.

Essa total dependência inicial é estruturante e revela muito sobre a nossa condição humana: somos, na verdade, interdependentes. Vejamos. Por não nascemos prontos e independentes dos cuidados dos outros, ainda que com o precioso dom de aprender a aprender e de forma contínua, o que realmente define a nossa trajetória para o futuro terá que ser construído ao longo de nossa vida e dependerá muito do que aprendemos no meio em que vivemos. Ninguém nasce determinado ou com o destino traçado. Somos vocacionados para a liberdade, mas dependentes de educação. Isso revela a dimensão de corresponsabilidade social da vida humana.

Essa total dependência inicial revela também a nossa fragilidade e vocação para os vínculos de amor. A qualidade do vínculos familiares, de amizade, de comunidade, os pactos sociais de respeito mútuo, cooperação e trocas são decisivos ao longo de toda a nossa vida. Definem o nosso processo de desenvolvimento humano. De modo muito específico, a qualidade dos vínculos entre pais e filhos faz toda a diferença na vida humana. A família é responsável em grande parte pelo alicerce de nossa construção. O fato de sermos cuidados e recebermos atenção, afeto e amor, nos primeiros anos sobretudo, promovem o desenvolvimento da base afetiva para aprendermos a amar e cuidar uns dos outros ao longo da vida. Nesse sentido, ela faz parte do projeto do Criador.

Então, temos que dizer, que a autossuficiência, o isolamento e o egoísmo serão sempre ilusões e desvios de nossa condição humana fundamental. Somos constitutivamente criados enquanto seres de relação, seres com sensibilidade afetiva e vocacionados ao servir e amar. Por tudo isso somos chamados a refletir sobre a complexa realidade familiar e, mais precisamente, sobre o complexo desafio de ser pai e de ser mãe hoje.

Antes de continuarmos, que tal refletir e trocar ideias sobre um assunto que é central na família, o dom de ser pai e de ser mãe?

  • Como era o ser pai e o ser mãe antigamente?
  • Como é o ser pai e o ser mãe no contexto atual?

Sobre o autor:

Edward Guimarães

Teólogo leigo pastoralista, professor e pai de uma menina de seis anos. É o secretário executivo do Observatório da Evangelização – PUC Minas.

]]>
40083