Evangelização e liturgia – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com Fri, 01 Jul 2022 12:30:00 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.4 https://i0.wp.com/observatoriodaevangelizacao.com/wp-content/uploads/2024/04/cropped-logo.png?fit=32%2C32&ssl=1 Evangelização e liturgia – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com 32 32 232225030 Um olhar sobre “Desiderio desideravi” a carta apostólica de Francisco sobre a formação litúrgica do povo de Deus https://observatoriodaevangelizacao.com/um-olhar-sobre-desiderio-desideravi-a-carta-apostolica-de-francisco-sobre-a-formacao-liturgica-do-povo-de-deus/ Fri, 01 Jul 2022 12:30:00 +0000 https://atomic-temporary-74025290.wpcomstaging.com/?p=45329 [Leia mais...]]]>  No dia de são Pedro e são Paulo, o papa Francisco presenteou a Igreja com uma carta apostólica em que, como de costume, demonstra seu grande tato pastoral no cuidado de um dos temas mais sensíveis entre grupos católicos desde o Concílio Vaticano II: a Liturgia.

Na verdade, a carta Desiderio desideravi (desejei ardentemente, em tradução livre), para além de uma verdadeira ode ao sentido pleno da liturgia cristã, é também mais um movimento claro do magistério de Francisco em vista do resgate e da confirmação das percepções e definições dos padres conciliares em 1963, quando aprovada a primeira constituição do Vaticano II, a  Sacrosanctum Concilium.

O centro da mensagem do papa é a necessária e contínua formação de todos os fiéis, incluindo os ministros ordenados, no que ele chama de sentido teológico da liturgia e sua importância na vida da Igreja, redescobertos pelo Concílio. Francisco afirma que “com esta carta gostaria simplesmente de convidar a toda a Igreja a redescobrir, cuidar e viver a verdade e a força da celebração cristã. Gostaria que a beleza da celebração cristã e de suas necessárias consequências na vida da Igreja não pareçam desfiguradas por uma compreensão superficial e redutiva de seu valor, ou pior ainda, por sua instrumentalização a serviço de alguma visão ideológica, seja qual for.” (DD 16)

Neste sentido, a carta apostólica está em continuidade com o motu próprio Traditionis custodes através do qual Francisco estabeleceu que “os livros litúrgicos promulgados pelos santos Pontífices Paulo VI e João Paulo II, em conformidade com os decretos do Concílio Vaticano II, são a única expressão da lex orandi do Rito Romano” (TC Art. 1). O próprio papa assinala essa continuidade já no início de sua carta. Não é para menos: o documento, que completará um ano em julho próximo, foi provavelmente um dos mais enfáticos sinais de desacordo do Papa Francisco com grupos eclesiais que, sob a permissão do uso da liturgia romana anterior à reforma de 1970, muitas vezes, favoreciam discursos e práticas abertamente anticonciliares. Às querelas levantadas por grupos neoconservadores em torno do motu próprio, o papa Francisco oferece agora, em sua carta apostólica, um pedido direto: “abandonemos as polêmicas para escutar juntos o que o Espírito diz à Igreja, mantenhamos a comunhão, sigamos fascinando-nos pela beleza da liturgia.” (DD 65)

Mas Desiderio desideravi não se presta a ser apenas uma chamada aos desconfiados ou claramente dissidentes do Vaticano II. Sobretudo, trata-se de um reconhecimento e incentivo do magistério à teologia da liturgia contemporânea, abandonando definitivamente tensões que se mantiveram presentes ao longo dos pontificados anteriores. Nesse sentido, seu ponto alto talvez seja o convite ao resgate da linguagem simbólica. Francisco, aqui, serve-se da obra do teólogo Romano Guardini (aliás, único teólogo referenciado pelo papa em toda carta em meio a documentos pontifícios e padres da Igreja) na afirmação de que a primeira tarefa do trabalho de formação litúrgica é fazer o homem voltar a ser capaz de símbolos. (DD 44)

Francisco atribui a duas realidades já mencionadas em seu programa de governo, a Evangelii gaudium, a perda da capacidade simbólica do homem contemporâneo: o gnosticismo e o neopelagianismo. O primeiro, subjetivismo reducionista que encerra o indivíduo em sua razão ou sentimento e o segundo uma concepção que anula o valor da graça, atribuindo o crescimento espiritual a um esforço meramente pessoal, que redunda em narcisismo e elitismo. (EG 94) Além disso, o papa critica o “espiritualismo abstrato” que, segundo ele, contraria a própria natureza humana que é espírito encarnado. (DD 28)

Como processo, portanto, para uma plena vivência litúrgica, Francisco sugere recuperar o “caminho da Encarnação”, que rejeita qualquer dicotomia entre matéria e espírito e que enxerga nas coisas da criação a semente da graça santificante dos sacramentos. Além disso, há que se educar para uma atitude interior que assimile a força dos gestos e palavras que compõe a vida sacramental, assim como a criança aprende de seu pai a traçar o sinal da cruz e, a partir deste momento, se apropria da força vital deste sinal. (DD 47)

Em outras palavras, o papa nos indica em sua carta apostólica um caminho da experiência litúrgica que exige sim o cuidado com as rubricas e todos os demais elementos da celebração, mas que não se encerra em uma postura funcional, mas reconhece que a celebração é uma forma de arte e, como todo trabalho artístico, exige técnica, mas sobretudo inspiração. Esta inspiração dá-se, no entanto, não por afetações de excessiva criatividade, mas uma profunda comunhão com a ação do Espírito através do seu dinamismo atuante de modo especial na eficácia simbólica da celebração. (DD 48-49)

Embora se dirija a todo o povo de Deus, Francisco não deixa de fazer um aparte aos ministros ordenados, indicando-lhes que seu serviço à comunidade exige uma viva consciência de ser uma presença do Ressuscitado e que, por isso, cumpre que não roubem da celebração a centralidade do altar, cuidando com as tendências de exagerado personalismo que expressam uma “mal dissimulada mania de protagonismo”. (DD 54)

Do ponto de vista dos processos de evangelização, Desiderio desideravi nos aponta um caminho fundamental seja para a catequese de iniciação cristã, seja para a ação pastoral: um maior cuidado da vida litúrgica em nossas comunidades. Este cuidado, ao contrário do que reina em muitos espaços, não é um esteticismo cosmético, um ensaio teatral ou uma ânsia por dar contornos de inovação e atratividade à celebração litúrgica. É preciso confiar no Concílio e, sobretudo, na vida que pulsa dos próprios elementos sacramentais: o pão, o vinho, o fogo, a água, o óleo, etc… Relacionar-se com o gesto, com o corpo, com a luz e o espaço. Relembrar o caminho da Encarnação/Ressurreição que não é o das manifestações apoteóticas, mas do andar junto, do partir do pão.

Francisco, como sempre, recorda-nos que precisamos ser gente e que celebrar em comunidade é encontrarmo-nos, não para uma bela apresentação ou um jantar de gala, mas para a refeição cotidiana: simples, porém vital. Dessa nossa capacidade, de celebrar, depende toda nossa vida cristã, nosso olhar ao próximo, ao mundo e a nós mesmos. Um olhar verdadeiramente sacramental, capaz de enxergar Deus em todas as coisas e todas as coisas em Deus.

A carta ainda não tem tradução oficial para o português, mas pode ser acessada em outras línguas clicando aqui.     

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Matheus Cedric Godinho
É  integrante da equipe executiva do Observatório da Evangelização da PUC Minas. Além disso, é professor de Filosofia e Ensino Religioso e autor de material didático para Educação Básica nas mesmas áreas. Leigo católico, é cofundador da Oficina de Nazaré e membro do Conselho Editorial da Revista de Pastoral da ANEC. 

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Música cristã pode ser cavalo de Troia para mensagens estranhas à fé https://observatoriodaevangelizacao.com/musica-crista-pode-ser-cavalo-de-troia-para-mensagens-estranhas-a-fe/ Thu, 12 Dec 2019 14:22:12 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=33778 [Leia mais...]]]> Assiste-se hoje a uma grande ascensão do pentecostalismo nas Igrejas cristãs. O fenômeno é complexo, gigantesco, largamente estudado e analisado a partir de abordagens teológicas, sociológicas, culturais, psicológicas e, recentemente, com o resultado das últimas eleições o fenômeno alcança também interesse das ciências políticas. No campo da liturgia cristã católica, chama a atenção o influxo das músicas de cunho gospel, oriundas do próprio meio pentecostal católico e, com menor penetração, das músicas gospel oriundas do meio pentecostal evangélico.

Cabe uma pergunta que delimita o interesse desse artigo: o que o repertório musical pentecostal das Igrejas tem a ver com a questão do seu estrondoso crescimento e com a experiência da fé cristã atual? Paradoxalmente, a pergunta comporta certa ironia e certa ingenuidade. É frequente subestimar, ou até suspeitar do aspecto litúrgico e de suas implicações eclesiológicas, o que talvez decorra de uma remota experiência marcada pelo clericalismo e pelo ritualismo de celebrações pouco permeáveis à participação dos fiéis, enrijecida por uma leitura fundamentalista das rubricas. Ademais, os ritos e símbolos sofrem de pungente suspeita, por parte de uma sociedade cada vez mais imediatista, racionalista e pragmática. Os elementos rituais e simbólicos são vistos, em tais horizontes, ou como inofensivos, ou como decorativos, escapando da ordem daquilo que se considera essencial, como a práxis pastoral, a moral, ou mesmo o pensamento teológico de corte especulativo e dogmático.

Uma música é composta de texto, melodia, ritmo e pelos instrumentos musicais, incluindo as vozes. [1] Cada um desses elementos musicais comporta um vasto campo explorado pelos respectivos especialistas. Assim, no campo da letra, os chamados “letristas” irão aprimorar e aprofundar com ferramentas próprias, as possibilidades e limites dessa tarefa. No campo da melodia, associado ao ritmo, os compositores se servirão de outro “texto”. Nas notas musicais com sua extensão melódica, organizadas e dispostas em compassos, tonalidades e combinações harmônicas, irão aprofundar outras tantas possibilidades e limites. Essas ferramentas musicais dos compositores, são como “ingredientes” usados simbioticamente para reforçar ideias, ou textos.

Pouco se pergunta pela motivação de seus autores e talvez aqui se enraíze a ingenuidade frente à essa ciência… Mesmo sendo verdade que música é para se ouvir, ou cantar, a sua principal finalidade musical pode, como uma deusa indiana, esconder uma infinidade de outros braços, dispostos ali para realizar outros interesses. Em geral, as pessoas não se perguntam, ouvindo um réquiem de Mozart, quando foi composta essa monumental obra clássica, em que contexto, ou inspiração que nos brindou com essa maravilhosa realização da arte. O corpo (audição) é que recepciona toda essa história contada e contida naquela partitura. Aos músicos deixamos a nobre tarefa de executá-la, aos musicólogos, num nível mais profundo e distante da maioria, a tarefa de perscrutar a tradução em notas musicais da psicologia e de toda a história do clássico compositor austríaco. Mas não nos enganemos! A melancolia, a tristeza ou mesmo a dor, expressas naquela obra, alcançam pela escrita musical e pela sua leitura (execução instrumental e vocal) – mesmo sem os estudos dos musicólogos – os ouvidos, as emoções e despertam a imaginação de gerações e gerações de ouvintes…

Em termos musicais, a liturgia cristã, desde tempos muito antigos, tratou de delinear seus princípios e propósitos. É o que nos relata o estudioso Xabier Basurko, em sua obra “O canto cristão na tradição primitiva”. [2] De um modo simples e conciso, a clara noção do mistério da fé cristã, celebrado nos ritos da Igreja, foi o eixo aglutinador dos critérios musicais da tradição da Igreja, por muitos séculos. Essa noção relacionou, de modo subordinado, a inspiração ao rito, o texto à Sagrada Escritura, a melodia e o ritmo à participação espiritual dos fiéis, o ofício ao ministério, o individual ao eclesial e a arte ao mistério. Essa unidade evoluiu e percorreu a história da música cristã, até o despontar moderno do valor da subjetividade, que conquistou em nossos dias, uma titânica proeminência. Hoje, no âmbito das celebrações, já não lidamos mais com a subjetividade, pois reina a ditadura do subjetivismo. Em tempos de pós-modernidade, a música “cristã” com todos os seus braços escondidos, alcança nossas assembleias com outros princípios e propósitos. Assim, a noção dada pela tradição é rompida no seu âmago: a música se subordina a outros ditames. A inspiração perde sua referência ritual, o texto descreve a relação pessoal com a experiência religiosa, a melodia e o ritmo obedecem aos ditames das necessidades psicológicas e catárticas, o ofício se submete ao sucesso e à conta bancária, o individual se sobrepõe ao sujeito eclesial, e a arte ignora o mistério. Temos, em nome de uma liberdade expressiva, a completa insubordinação ao mistério e, o que é mais temeroso, dentro das nossas liturgias.

Quais são os propósitos de tais composições? O que oferecem seus compositores? Convém deixar claro a despretensão de julgar a boa vontade de muitos músicos, pois também por eles pode perpassar inadvertidas ambiguidades. Sob uma suposta aura espiritual, ou interesse evangelizador, determinados conteúdos musicais (melodia e letra) podem funcionar como um cavalo de Troia, um belo presente, mas com um conteúdo estranho e até nocivo para a fé. Tomemos como exemplos, algumas músicas como a de Nelsinho Corrêa, claramente composta para a liturgia eucarística / rito da comunhão, onde a proeminência da experiência pessoal da comunhão extingue por completo a referência eclesial tão clara e cara à revelação (cf. 1Cor 10,17). A teologia eucarística que perpassa a música está calcada num viés devocional  Outro exemplo, é o Pai nosso, gravada por Pe Marcelo Rossi, [3] onde a invocação Pai Nosso está emparelhada com “Pai, meu Pai do céu”. Note que o enfoque melódico recai sobre a segunda invocação “Pai, meu Pai…”, de tal modo a reforçar a experiência vertical com Deus, comprometendo a dimensão fraterno-horizontal que a expressão “Pai nosso” em sua originalidade exprime.

Poder-se-ia objetar dizendo, “Mas é só uma música! Que mal há nisso?” Neste casos, a título de exemplo, o conteúdo religioso, abertamente focado na experiência religiosa pessoal desconstrói o âmago da revelação cristã que se dá no horizonte comunitário da fé, de um Deus que é Pai de todos e da Eucaristia como sacramento que edifica a Igreja, comunhão com Deus que resulta e pressupõe a comunhão com os irmãos. Atente-se ainda que, a música, por sua força simbólica, é um dos poucos veículos da teologia para muitos dos fiéis, penetrando até mais profundamente que muitas homilias, formações ou catequeses… Mas qual teologia subjaz e se veicula em tais canções? Como são moldadas as consciências religiosas dos fiéis e qual perspectiva eclesial pode nascer disso?

Difícil referendar uma teoria conspiratória, e mais ainda comprovar uma agenda ideológica de manipulação com finalidades eclesiológicas. Mas não é difícil intuir que algo está mudando o perfil religioso de nossas Igrejas e de nossos fiéis, de uma forma sutil e, quiçá, insidiosa. Sendo a lex orandi (norma da oração) a causa da lex credendi (norma da fé) – e o axioma já foi usado invertidamente com fins ideológicos – no momento, já cabem as perguntas, a observação do modus operandi dessa onda pentecostal que pela musicalidade e pela liturgia movimenta o cristianismo, bem como a observação dos efeitos que isso já produz no seio da Igreja. Como o desafio pentecostal é grande e complexo, convém não aguardar os resultados. A tarefa evangelizadora da Igreja impõe também cuidar e vigiar pela fé recebida.

[1] FONSECA, Joaquim. O canto novo da nação do Divino: Música ritual inculturada na experiência do padre Geraldo Leite Bastos e sua comunidade. São Paulo: Paulinas, 2000, p. 29-47.

[2] BASURKO, Xabier. O canto cristão na tradição primitiva. São Paulo: Paulus, 2005.

[3] Compositor não identificado. Nos sites de divulgação aparecem os seguintes nomes, não claramente indicados como autores: Luis Chaves, Jaidiel, Nei Fernandes…

Sobre o autor:

Pe. Danilo César dos Santos Lima

Padre Danilo César é presbítero da Arquidiocese de Belo Horizonte. Formado em Liturgia pelo Pontifício Instituto Litúrgico, Santo Anselmo, em Roma. Professor de Liturgia na faculdade de teologia da PUC Minas e membro da Comissão episcopal para a Pastoral Litúrgica da CNBB e do Regional Leste II. Membro da Rede Celebra, Rede de Animação Litúrgica e Pároco da Paróquia de Santana, em Belo Horizonte.

Fonte:

www.domtotal.com

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Evangelização e Liturgia https://observatoriodaevangelizacao.com/evangelizacao-e-liturgia/ Wed, 18 Sep 2019 10:00:00 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=31642 [Leia mais...]]]> Segundo o papa Francisco, em sua Exortação Apostólica Evangelii Gaudiumdo ponto de vista da evangelização, não servem as propostas místicas desprovidas de um vigoroso compromisso social e missionário, nem os discursos e ações sociais e pastorais sem uma espiritualidade que transforme o coração. Essas propostas parciais e desagregadoras alcançam só pequenos grupos e não têm força de ampla penetração, porque mutilam o Evangelho” (EG 262). Por isso, dom Geovane inicia seu artigo recordando o Concílio Vaticano II que diz “a liturgia é o coração pulsante da Igreja, porém não esgota toda a sua ação evangelizadora (SC 9)” Ela situa-se no centro da sua atividade missionária qual fonte que rejuvenesce sem cessar a comunidade de fé… Mas “‘Missão, evangelização, pastoreio, liturgia, serviço’ são realidades inseparáveis que expressam o mistério da presença de Cristo agindo no mundo através do seu corpo eclesial. Não podemos descurar nenhum destes aspectos que expressam a sacramentalidade da Igreja… Priorizar um destes elementos constitutivos da Igreja esquecendo-se dos demais, comprometeria seriamente a sua ação pastoral na sociedade.

A relação entre a ação evangelizadora e a ação litúrgica da Igreja deve sempre ser refletida, aprofundada e avaliada por nós cristãos. Neste sentido, vale a pena ler o artigo a seguir do bispo auxiliar da Arquidiocese de Belo Horizonte, dom Geovane Luís da Silva. Confira:

Evangelização e liturgia

Por dom Geovane Luís da Silva

A liturgia é o coração pulsante da Igreja, porém não esgota toda a sua ação evangelizadora (SC 9). Ela não é um elemento acidental ou decorativo no âmbito da missão eclesial; muito pelo contrário, situa-se no centro da sua atividade missionária qual fonte que rejuvenesce sem cessar a comunidade de fé. Parece que ainda hoje não levamos a sério este princípio teológico e pastoral estabelecido pelo Concílio Vaticano II na Constituição Sobre a Sagrada Liturgia (SC 9.10).

‘Missão, evangelização, pastoreio, liturgia, serviço’ são realidades inseparáveis que expressam o mistério da presença de Cristo agindo no mundo através do seu corpo eclesial. Não podemos descurar nenhum destes aspectos que expressam a sacramentalidade da Igreja, pois ela deve anunciar integralmente o evangelho (missão/evangelização), acompanhar e cuidar (pastoreio) daqueles que abraçaram a fé em Cristo e com eles celebrar (liturgia) e viver (serviço) a fé traduzida no amor e na solidariedade para com os mais pobres e sofredores.

Priorizar um destes elementos constitutivos da Igreja esquecendo-se dos demais, seria muito prejudicial aos fiéis e comprometeria seriamente a sua ação pastoral na sociedade, pois estaríamos apresentando um retrato mutilado ou um mosaico incompleto do rosto de Cristo que resplandece na Igreja através da missão, da evangelização, do pastoreio, da liturgia e do serviço.

Esta questão foi retomada recentemente no magistério do papa Francisco, bem ao início do seu pontificado, quando se dirigiu aos fiéis cristãos através da Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, a fim de os convidar para uma nova etapa evangelizadora da Igreja”[1].

1. Celebrar cada passo em frente na evangelização

Evangelii Gaudium em seu artigo 24 condensa o pensamento teológico e pastoral do Papa Francisco sobre a liturgia da Igreja e suas implicações na ação missionária e evangelizadora. No referido artigo aparece o retrato ou mosaico do rosto de Cristo que deve resplandecer através da ação da Igreja no mundo.

A Comunidade Eclesial enquanto sacramento de Cristo deve “primeirear”, envolver-se, acompanhar, frutificar e festejar. No extenso artigo 24 da Exortação Apostólica aparece a intrínseca relação existente entre os elementos que constituem a essência da Igreja: missão, evangelização, pastoreio, liturgia e serviço. Ao final do presente artigo o Papa se refere à dimensão festiva da fé e o faz em estreita conexão com os demais elementos citados anteriormente. Aqui se revela a visão integral do Papa Francisco que não admite descurar nenhum dos aspectos constitutivos da Igreja. Sua visão integral e unitária nos ajuda a valorizar cada ação no âmbito eclesial e a fugir de uma práxis pastoral reducionista.

Analisemos, ainda que brevemente, as últimas frases do artigo 24, onde o papa Francisco fala da relação vital entre evangelização, liturgia e serviço:

“a comunidade evangelizadora jubilosa sabe sempre festejar: celebra e festeja cada pequena vitória, cada passo em frente na Evangelização. No meio desta exigência diária de fazer avançar o bem, a evangelização jubilosa torna-se beleza na liturgia. A Igreja evangeliza e se evangeliza com a beleza da liturgia, que é também celebração da atividade evangelizadora e fonte dum renovado impulso a se dar”.

Aparecem aqui termos teológicos e profundamente significativos para uma justa hermenêutica da ação litúrgica da Igreja.

O Papa nos diz que ‘a comunidade evangelizadora sabe sempre festejar: celebra e festeja.’. A expressão ‘comunidade evangelizadora’ evoca a realidade da missão, pois seria impossível a comunidade evangelizar sem se deixar cativar primeiro pelo anúncio do evangelho. Uma vez evangelizados, evangelizamos.

A obra evangelizadora da Igreja assume também uma forma ritual e celebrativa. A Igreja celebra com júbilo a salvação e faz festa na presença do Senhor. Celebrar e festejar são categorias que evidenciam a dimensão antropológica/humana, teológica/memorial, comunitária e ritual da fé cristã. Ninguém celebra sozinho ou faz festa para si mesmo, pois “a vida se enfraquece no isolamento e se fortalece na doação e na comunhão. Isto é, definitivamente, a missão”. [2] A comunidade que celebra a fé descobre o sentido da sua existência no mundo e se renova no empenho missionário. Isto se dá graças à presença de Cristo na liturgia da Igreja (SC 7), pois é dele que provém toda força e dinamismo missionário.

Qual o motivo da festa? Aqui o papa Francisco deixa claro: “celebra e festeja cada pequena vitória, cada passo em frente na Evangelização”[3]. Deste modo evidencia-se que as pequenas vitórias são fruto e expressão da vitória suprema de Cristo “que venceu o mundo e sua permanente conflitualidade, estabelecendo a paz por seu sangue derramado na cruz”.[4] A liturgia da Igreja é profissão de fé no sentido pascal e de união à Páscoa de Cristo que se dá nas pequenas vitórias. Deste modo “Jesus nos deixa a Eucaristia como memória cotidiana da Igreja, que nos introduz cada vez mais na Páscoa (Lc 22,19). A alegria evangelizadora refulge sempre sobre o horizonte da memória agradecida”[5].

A dimensão estética da liturgia também é evidenciada pelo Papa: “No meio desta exigência diária de fazer avançar o bem, a evangelização jubilosa torna-se beleza na liturgia”.

O quotidiano é o lugar primeiro do encontro com Deus e nele se insere a liturgia da Igreja, como espaço privilegiado para a contemplação da beleza divina. Evidentemente trata-se daquela beleza suprema, o rosto transfigurado e glorioso de Cristo, que dá fundamento aos gestos e palavras da Igreja e não se confunde jamais com o excesso de paramentos, o rubricismo ou o cerimonialismo vazio tão presente nos dias atuais. O excesso de paramentos é sempre expressão de mau gosto; não remetem à beleza suprema, e o rubricismo é muitas vezes sinal de que a liturgia não é expressão autêntica do sentimento interior que brota do coração de quem celebra, quer presidindo ou exercendo outro ministério na assembleia litúrgica.

Para não deixar margens a dúvidas sobre a verdadeira beleza que deve resplandecer na liturgia e a partir da sua celebração, o Papa afirma na sua Exortação Apostólica: “todo cuidado exibicionista da liturgia é expressão evidente de um obscuro mundanismo espiritual que se manifesta hoje em muitas atitudes, mas com a mesma pretensão de dominar o espaço eclesial e transformá-lo numa peça de museu ou numa possessão de poucos” [6].

Há uma relação intrínseca entre evangelização, liturgia e vida. A beleza do rosto de Cristo deve permear toda a nossa existência e se irradiar nestes momentos, aparentemente distintos, mas intimamente relacionados. O anúncio do Evangelho converge naturalmente para a sua celebração na liturgia e tem implicações diretas na vida de quem o acolhe com abertura de coração. “Toda a evangelização está fundada sobre esta Palavra escutada, meditada, vivida, celebrada e testemunhada”.[7]

O evangelho proclamado é celebrado ritualmente, mediante símbolos, gestos, palavras e cânticos; ou seja, o evangelho anunciado se torna sacramento, sinal visível da ternura de Deus agindo no mundo. Na liturgia da Igreja nada acontece à margem da Palavra de Deus (SC 24). Nas palavras do Papa ressoa assim: “A Palavra de Deus ouvida e celebrada, sobretudo na Eucaristia, alimenta e reforça interiormente os cristãos e torna-os capazes de um autêntico testemunho evangélico da vida diária. A Palavra proclamada, viva e eficaz prepara a recepção do Sacramento e, no Sacramento, essa Palavra alcança a sua máxima eficácia”.[8]

A liturgia bem celebrada é fonte de vida para a comunidade evangelizadora, pois a “Igreja evangeliza e se evangeliza com a beleza da liturgia”. Eis aí um constante desafio para todos nós: evangelizar e deixar-se evangelizar![9] Celebrar e deixar-se tocar pelo Ressuscitado na liturgia e na vida! Certamente o cuidado com a liturgia exigirá de todos nós um empenho constante para que o evangelho adquira uma real inserção em nossa vida e nas necessidades concretas da nossa história.[10]

Para explicitar a força transformadora da liturgia, ou melhor, a sua eficácia o Papa recorre à metáfora da ‘fonte’[11]. Segundo ele a “liturgia é também celebração da atividade evangelizadora e fonte de um renovado impulso a se dar”.

Emerge aqui a dimensão espiritual[12], existencial e social da ação litúrgica da Igreja já expressa na Constituição Conciliar do Vaticano II Sobre a Sagrada Liturgia[13]. Em consonância com o pensamento conciliar o papa Francisco afirma que a liturgia é fonte de um renovado impulso para a nossa autodoação ao próximo, pois nela, pela ação do Espírito Santo, se atualiza a autodoação de Cristo ao Pai para a salvação da humanidade. A ação litúrgica é a realidade plena de tudo aquilo que ela mesma significa e faz memória: a morte e ressurreição de Jesus. Por isso ela produz, na vida de quem a celebra com fé, um renovado impulso e desejo de doação levando-a “a tocar a carne sofredora de Cristo no povo”[14]. A entrega de nós mesmos aos irmãos e irmãs mais sofredores é o critério decisivo para comprovar a verdade da liturgia que celebramos em nossas comunidades, pois uma vida autenticamente litúrgica expressa nossa abertura ao anúncio da Palavra e transforma-se em dom para os outros.

Delineia-se no pensamento do papa Francisco uma concepção litúrgica radicada na Escritura, particularmente na tradição profética que atinge sua maturidade nos gestos e palavras proféticos de Jesus. Os profetas do Antigo Testamento, bem como Jesus Cristo, não se opunham ao culto, muito pelo contrário, defendiam-no e não admitiam a banalização ou profanação dos ritos sagrados que expressavam a comunhão do ser humano com Deus.

Na concepção dos profetas liturgia sem misericórdia é culto vazio rejeitado por Deus; e para o papa Francisco, liturgia sem amor ao próximo é a mais refinada expressão do mundanismo espiritual que invade sutilmente o espaço sagrado e distancia cada vez mais a comunidade celebrante do mistério pascal de Cristo, desobrigando-a da vivência ou práxis da misericórdia na relação com o próximo. Disto decorre a seguinte afirmação: a liturgia é sinal inequívoco da acolhida ao Evangelho e vida que escoa no rio da misericórdia para com o próximo.

2. Concepção unitária da ação eclesial

Ao longo da sua Exortação Apostólica o papa Francisco nos oferece algumas indicações pastorais que visam superar os desvios criados por uma concepção reducionista da ação eclesial no mundo.

A Igreja é um reflexo do Ressuscitado agindo no mundo. Ele é o missionário, o evangelizador, o pastor, o liturgo e o servidor por excelência. O seu jeito de ser, o seu modo de agir, os seus gestos e palavras são normativos para a Igreja, sacramento de Cristo.

Quando desvinculamos a Igreja do mistério de Cristo missionário, evangelizador, pastor, liturgo e servidor, corremos o risco de apresentá-la de um modo disforme ou desfigurada e cometemos vários equívocos em nossa práxis pastoral.

2.1 Entusiasmo missionário e evangelizador sem cuidado pastoral

Uma comunidade que prioriza a missão e a evangelização em detrimento do cuidado pastoral quotidiano corre o risco de anunciar o Evangelho aos afastados e não dar o devido acompanhamento a eles quando acolhidos na Igreja. Em contrapartida, uma comunidade que se preocupa somente com aqueles que participam e celebram a fé, mas não se coloca em atitude de saída, está condenada a uma espécie de atrofiamento espiritual e paralisia pastoral. Voltada para si mesma, abre mão da atividade missionária e se contenta apenas com os poucos que conseguiu, às custas de muito sacrifício, manter no seu interior.

A missão/evangelização destina-se sobretudo aos afastados e “está essencialmente relacionada com a proclamação do Evangelho àqueles que não conhecem Jesus Cristo ou que sempre O recusaram”[15]. A pastoral ordinária, por sua vez, destina-se aos que já pertencem à comunidade de fé, àqueles que conservam uma fé católica embora não participem frequentemente no culto. Tal ação visa “incendiar os corações dos fiéis que frequentam regularmente a comunidade, reunindo-se no dia do Senhor, para se alimentarem da sua Palavra e do Pão de vida eterna[16]”.

O olhar da Igreja deve se estender a todos. Ela é chamada a acolher e abraçar os afastados, mas a se comprometer também com aqueles que já frequentam a vida comunitária.

2.2 Celebração da fé sem compromisso social

O esmero litúrgico e sacramental sem compromisso sócio-transformador parece ser a tônica do momento. Também isto é mundanismo espiritual. Pior ainda quando, além de disso, a comunidade opta deliberadamente pela sacramentalização[17] desordenada sem a devida catequese mistagógica.

Este é um sintoma da amnésia teológica de muitos. Esqueceram-se ou desconhecem o princípio norteador estabelecido pelo Vaticano II nesta matéria (SC 9), onde se afirma que a ação da Igreja não se reduz à liturgia. O Concílio já nos alertou contra a ameaça constante do panliturgismo (tudo é liturgia).

Noutros casos confundimos o cuidado pastoral, com relação aos sacramentos, com uma alfândega[18] e caímos no absurdo da seletividade e da burocracia fechando a porta dos sacramentos para a maioria das pessoas e abrindo-a para um suposto grupo de eleitos que preenchem os requisitos da instituição ou correspondem aos caprichos pessoais daqueles que organizam e conduzem a Comunidade Eclesial. Deste modo a Igreja se perde num emaranhado de obsessões e procedimentos pastorais e começamos a “agir como controladores da graça e não como facilitadores[19]”.

O reverso desta atitude, ou seja, a promoção social sem o anúncio do Evangelho e o devido acompanhamento espiritual aos pobres é a pior forma de discriminação para com eles[20]. Agindo assim transformaríamos a Igreja numa ONG qualquer destituída da força da Palavra de Deus.

Na compreensão do papa Francisco

Hoje e sempre os pobres são destinatários privilegiados do Evangelho, e a evangelização dirigida a eles é sinal do Reino que Jesus veio trazer. Há que afirmar sem rodeios que existe um vínculo indissolúvel entre nossa fé e os pobres[21].

A imensa maioria dos pobres possui uma especial abertura à fé; tem necessidade de Deus e não podemos deixar de lhe oferecer a sua amizade, a sua bênção, a sua Palavra, a celebração dos Sacramentos e a proposta de um caminho de crescimento e amadurecimento na fé. A opção preferencial pelos pobres deve traduzir-se, principalmente, numa solicitude religiosa privilegiada e prioritária[22]

Deste modo podemos afirmar que se faz necessário e urgente rever nossas opções no amplo horizonte da missão evangelizadora da Igreja. No dizer do Papa, “do ponto de vista da evangelização, não servem as propostas místicas desprovidas de um vigoroso compromisso social e missionário, nem os discursos e ações sociais e pastorais sem uma espiritualidade que transforme o coração. Essas propostas parciais e desagregadoras alcançam só pequenos grupos e não têm força de ampla penetração, porque mutilam o Evangelho” [23].

Notas:

  • [1] Cf. EG 1
  • [2] Cf. EG 8.10.
  • [3] EG 24
  • [4] EG 229
  • [5] EG 13
  • [6] Cf. EG 95 nos remete ao ensinamento de Bento XVI na Sacramentum Caritatis 23 quando se trata do ministro que age na pessoa de Cristo.
  • [7] EG 174
  • [8] EG 174
  • [9] EG 174
  • [10] EG 95
  • [11] Esta compreensão aparece na SC 10, onde os padres conciliares afirmam: “Todavia, a liturgia é o cume para o qual tende a ação da Igreja e, ao mesmo tempo, é a fonte donde emana toda a sua força”.
  • [12]A liturgia “é a primeira e necessária fonte, da qual os fiéis haurem o espírito verdadeiramente cristão” (SC 14).
  • [13] Esta referência aos aspectos sociais da liturgia e de suas implicações na vida prática aparece nos seguintes artigos da Constituição Conciliar: “Aos que crêem, porém, sempre deve pregar-lhes a fé e […], estimulá-los para toda obra de caridade” (SC 9); “A renovação da Aliança do Senhor com os homens na Eucaristia, solicita e estimula os fiéis para a caridade imperiosa de Cristo” (SC 10). No segundo capítulo, quando se fala da eucaristia usa-se a expressão ‘vínculo de caridade’ (cf. SC 47). A celebração dos sacramentos “prepara os fiéis do melhor modo possível para receberem frutuosamente a graça, cultuarem devidamente a Deus e praticarem a caridade” (SC 59). “A penitência do tempo quaresmal não seja somente interna e individual, mas também externa e social” (SC 110).
  • [14] EG 24. 270
  • [15] EG 14
  • [16] EG 14
  • [17] EG 63
  • [18] EG 47
  • [19] EG 47
  • [20] EG 200
  • [21] EG 48
  • [22] EG 200
  • [23] EG 262

Dom Geovane Luís da Silva
Bispo auxiliar da Arquidiocese de BH

Fonte:

www.arquidiocesebh.org.br

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