Evangelii Nuntiandi – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com Thu, 05 Jul 2018 14:34:07 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.4 https://i0.wp.com/observatoriodaevangelizacao.com/wp-content/uploads/2024/04/cropped-logo.png?fit=32%2C32&ssl=1 Evangelii Nuntiandi – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com 32 32 232225030 Qual o conteúdo da evangelização? Anunciar-testemunhar o núcleo da fé cristã e a libertação integral do homem https://observatoriodaevangelizacao.com/qual-o-conteudo-da-evangelizacao-anunciar-testemunhar-o-nucleo-da-fe-crista-e-a-libertacao-integral-do-homem/ Thu, 05 Jul 2018 14:34:07 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=28496 [Leia mais...]]]> A terceira parte da importante Exortação Apostólica de Paulo VI, de 1975, em sua busca de receber o conteúdo do Concílio Vaticano II e, sobretudo, após o importante Sínodo de 1974, trata do conteúdo da ação evangelizadora da Igreja: ser fiel à revelação do amor de Deus manifestado a nós, pela força do Espírito Santo, na vida de Jesus de Nazaré.

Vale a pena debruçar-se sobre o texto deste importante Documento da Igreja e extrair dele a clareza com que aborda o conteúdo da evangelização: anunciar-testemunhar o núcleo central da fé cristã, atentos ao necessário compromisso com a libertação integral da pessoa humana. Esta busca de clareza quanto ao conteúdo da evangelização tornar-se urgente quando temos presente que, no contexto atual, na vida de muitos cristãos e em diversos movimentos e práticas eclesiais parece reinar grande confusão. Por um lado, importa dizer que evangelização não tem nada a ver com esse neoproselitismo apologético católico que impede qualquer nível de respeito aos membros de outras igrejas e tradições religiosas, não reconhecimento da positividade do pluralismo religioso, do cultivo de tolerância, de concretização de diálogo fraterno,  senso de universalidade e gratuidade do amor de Deus. Por outro, urge afirmar que evangelização também não tem nada a ver com esse espiritualismo intimista que aliena as comunidades cristãs, reduz a vida cristã ao culto sacramental. Além disso, impede o necessário compromisso do cristão com a transformação das estruturas injustas da sociedade, bem como com a superação dessa cultura geopolítica que globaliza padrões de indiferença seja para com o drama os refugiados, seja para com o dos empobrecidos. E, ao contrário, faz com que muitos cristãos cultivem postura de benevolência e aceitação da atual concentração de renda nas mãos de poucos e de uma economia especulativa sem qualquer função ou responsabilidade social.

O CONTEÚDO DA EVANGELIZAÇÃO

(EN 25-39)

Conteúdo essencial e elementos secundários

25. Na mensagem que a Igreja anuncia, há certamente muitos elementos secundários. A sua apresentação depende, em larga escala, das circunstâncias mutáveis. Também eles mudam. Entretanto, permanece sempre o conteúdo essencial, a substância viva, que não se poderia modificar nem deixar em silêncio sem desnaturar gravemente a própria evangelização.

Sobre o conteúdo da evangelização a Evangelli Nuntiandi pede clareza dos evangelizadores no discernimento entre o que permanece, por ser conteúdo fundamental, e o que muda, por estar ligado às “circunstâncias mutáveis”, tais como os elementos vinculados ao contexto cultural e histórico.

Testemunho dado do amor do Pai

26. Não é supérfluo, talvez, recordar o seguinte: evangelizar é, em primeiro lugar, dar testemunho, de maneira simples e direta, de Deus revelado por Jesus Cristo, no Espírito Santo. Dar testemunho de que no seu Filho ele amou o mundo; de que no seu Verbo Encarnado ele deu o ser a todas as coisas e chamou os homens para a vida eterna. Esta atestação de Deus proporcionará, para muitos talvez, o Deus desconhecido, (55) que eles adoram sem lhe dar um nome, ou que eles procuram por força de um apelo secreto do coração quando fazem a experiência da vacuidade de todos os ídolos. Mas ela é plenamente evangelizadora, ao manifestar que para o homem, o Criador já não é uma potência anônima e longínqua: ele é Pai.

Vede que prova de amor nos deu o Pai: sermos chamados filhos de Deus. E nós o somos“; (56) e portanto, nós somos irmãos uns dos outros em Deus.

Evangelizar é, antes de tudo, testemunhar o conteúdo central da revelação cristã: o Criador, pela força do Espírito Santo, na vida humana de seu Filho Jesus, revelou-nos que é Pai amoroso e que chama toda a criação a participar da vida eterna com Ele.

No centro da mensagem: a salvação em Jesus Cristo

27. A evangelização há de conter também sempre, ao mesmo tempo como base, centro e ápice do seu dinamismo, uma proclamação clara que, em Jesus Cristo, Filho de Deus feito homem, morto e ressuscitado, a salvação é oferecida a todos os homens, como dom da graça e da misericórdia do mesmo Deus.(57)

E não já uma salvação imanente ao mundo, limitada às necessidades materiais ou mesmo espirituais, e que se exaurisse no âmbito da existência temporal e se identificasse, em última análise, com as aspirações, com as esperanças, com as diligências e com os combates temporais; mas sim uma salvação que ultrapassa todos estes limites, para vir a ter a sua plena realização numa comunhão com o único Absoluto, que é o de Deus: salvação transcendente e escatológica, que já tem certamente o seu começo nesta vida, mas que terá realização completa na eternidade.

Neste número, a Evangelli Nuntiandi deixa ainda mais claro o cerne do conteúdo da evangelização: a salvação é dom da graça e da misericórdia de Deus e é oferecida a todos (universal). A salvação inicia nesta vida e terá a sua realização plena na comunhão com Deus na eternidade.

Sob o sinal da esperança

28. Por conseguinte, a evangelização não pode deixar de comportar o anúncio profético do além, vocação profunda e definitiva do homem, ao mesmo tempo em continuidade e em descontinuidade com a sua situação presente, para além do tempo e da história, para além da realidade deste mundo cujo cenário passa e das coisas deste mundo, de que um dia se manifestará uma dimensão escondida; para além do próprio homem, cujo destino verdadeiro não se limita à sua aparência temporal, mas que virá também ele a ser revelado na vida futura.(58) A evangelização contém, pois, também a pregação da esperança nas promessas feitas por Deus na Nova Aliança em Jesus Cristo: a pregação do amor de Deus para conosco e do nosso amor a Deus, a pregação do amor fraterno para com todos os homens, capacidade de doação e de perdão, de renúncia e de ajuda aos irmãos, que promana do amor de Deus e que é o núcleo do Evangelho; a pregação do mistério do mal e da busca ativa do bem. Pregação, igualmente, e esta sempre urgente, da busca do próprio Deus, através da oração, principalmente de adoração e de ação graças, assim como através da comunhão com o sinal visível do encontro com Deus que é a Igreja de Jesus Cristo.

Uma tal comunhão exprime-se, por sua vez, mediante a realização dos outros sinais de Cristo vivo e a agir na Igreja, quais são os sacramentos. Viver desta maneira os sacramentos, de molde a fazer com que a celebração dos mesmos atinja uma verdadeira plenitude, não é de modo algum, como às vezes se pretende, colocar um obstáculo ou aceitar um desvio da evangelização; é antes proporcionar-lhe a sua integridade. Efetivamente, a totalidade da evangelização para além da pregação de uma mensagem, consiste em implantar a Igreja, a qual não existe sem esta respiração, que é a vida sacramental a culminar na Eucaristia. (59)

Neste número, o documento apresenta a tensão dialética de mútua implicação entre o anúncio esperançado da realização futura na plenitude vivida junto de Deus e a vocação da Igreja, enquanto sacramento da salvação, em concretizar de forma visível experiências comunitárias de comunhão com Deus pela oração, comunhão eclesial (rede de comunidades cristãs pautadas pela fraternidade e práxis da justiça) e sacramentos. Mais do que implantar a Igreja (acreditamos que este verbo utilizado não ajuda muito), como afirma o documento, trata-se de rede de comunidades que caminham no esforço diário de concretizar a comunhão experimentada no amor de Deus: vida fraterna, justiça, partilha, perdão, inclusão etc.

Mensagem que interpela a vida toda

29. Mas a evangelização não seria completa se ela não tomasse em consideração a interpelação recíproca que se fazem constantemente o Evangelho e a vida concreta, pessoal e social, dos homens. É por isso que a evangelização comporta uma mensagem explícita, adaptada às diversas situações e continuamente atualizada: sobre os direitos e deveres de toda a pessoa humana e sobre a vida familiar, sem a qual o desabrochamento pessoal quase não é possível,(60) sobre a vida em comum na sociedade; sobre a vida internacional, a paz, a justiça e o desenvolvimento; uma mensagem sobremaneira vigorosa nos nossos dias, ainda, sobre a libertação.

Neste número, para que não paire no ar qualquer dúvida sobre o conteúdo de ser Igreja ou viver a vida nova com a consciência da experiência do amor de Deus, o documento reafirma a interpelação mútua entre Evangelho e Vida Concreta. Não pode haver divórcio entre Evangelho e Vida, sob pena de perder a credibilidade e a coerência da experiência vivida: quem já assumiu a vida cristã e a anuncia importa assumir responsabilidades quanto: aos direitos e deveres humanos; à vida familiar; à vida em sociedade; às relações internacionais, a cultura da paz, a justiça e o desenvolvimento de todas as nações; à libertação de toda forma de exclusão e injustiça social.

Uma mensagem de libertação

30. São conhecidos os termos em que falaram de tudo isto, no recente Sínodo, numerosos bispos de todas as partes da terra, sobretudo os do chamado “Terceiro Mundo”, com uma acentuação pastoral em que se repercutia a voz de milhões de filhos da Igreja que formam esses povos. Povos comprometidos, como bem sabemos, com toda a sua energia no esforço e na luta por superar tudo aquilo que os condena a ficarem à margem da vida: carestias, doenças crônicas e endêmicas, analfabetismo, pauperismo, injustiças nas relações internacionais e especialmente nos intercâmbios comerciais, situações de neo-colonialismo econômico e cultural, por vezes tão cruel como o velho colonialismo político. A Igreja, repetiram-no os bispos, tem o dever de anunciar a libertação de milhões de seres humanos, sendo muitos destes seus filhos espirituais; o dever de ajudar uma tal libertação nos seus começos, de dar testemunho em favor dela e de envidar esforços para que ela chegue a ser total. Isso não é alheio à evangelização.

Para que não reste dúvida quanto ao conteúdo da libertação inerente à ação evangelizadora, este número do documento explicita o que afirmou no número anterior sobre a mensagem de libertação. Não se trata apenas de libertação da alma, mas de uma libertação total (do homem todo e de todo homem), portanto, de superação de tudo aquilo que marginaliza e ameaça a dignidade da vida: carestia, doenças crônicas e endêmicas, analfabetismo, pauperismo, injustiças nas relações internacionais e nos intercâmbios comerciais, situações de neocolonialismo político, econômico e cultural.

Necessária ligação com a promoção humana

31. Entre evangelização e promoção humana, desenvolvimento, libertação, existem de fato laços profundos: laços de ordem antropológica, dado que o homem que há de ser evangelizado não é um ser abstrato, mas é sim um ser condicionado pelo conjunto dos problemas sociais e econômicos; laços de ordem teológica, porque não se pode nunca dissociar o plano da criação do plano da redenção, um e outro a abrangerem as situações bem concretas da injustiça que há de ser combatida e da justiça a ser restaurada; laços daquela ordem eminentemente evangélica, qual é a ordem da caridade: como se poderia, realmente, proclamar o mandamento novo sem promover na justiça e na paz o verdadeiro e o autêntico progresso do homem? Nós próprios tivemos o cuidado de salientar isto mesmo, ao recordar que é impossível aceitar “que a obra da evangelização possa ou deva negligenciar os problemas extremamente graves, agitados sobremaneira hoje em dia, no que se refere à justiça, à libertação, ao desenvolvimento e à paz no mundo. Se isso porventura acontecesse, seria ignorar a doutrina do Evangelho sobre o amor para com o próximo que sofre ou se encontra em necessidade“.(61)

Pois bem: aquelas mesmas vozes que, com zelo, inteligência e coragem, ventilaram este tema candente, no decorrer do referido Sínodo, com grande alegria nossa forneceram os princípios iluminadores para bem se captar o alcance e o sentido profundo da libertação, conforme ela foi anunciada e realizada por Jesus de Nazaré e conforme a Igreja a apregoa.

Importa captar, afirma o número 31, o alcance e o sentido profundo da libertação contido no Evangelho, em sua doutrina sobre a centralidade do amor ao próximo que sofre ou se encontra em necessidade. Não pode haver evangelização sem promoção humana, desenvolvimento e libertação integral. Há laços indissociáveis de ordem antropológica (o ser humano tem uma vida concreta), teológica (unidade entre o plano da criação e o plano da redenção) e evangélica (o mandamento novo do amai-vos uns aos outros como eu vos amei implica na promoção da justiça social e na cultura da paz).

Sem confusão nem ambigüidade

32. Não devemos esconder, entretanto, que numerosos cristãos, generosos e sensíveis perante os problemas dramáticos que se apresentam quanto a este ponto da libertação, ao quererem atuar o empenho da Igreja no esforço de libertação, têm frequentemente a tentação de reduzir a sua missão às dimensões de um projeto simplesmente temporal; os seus objetivos a uma visão antropocêntrica; a salvação, de que ela é mensageira e sacramento, a um bem-estar material; a sua atividade, a iniciativas de ordem política ou social esquecendo todas as preocupações espirituais e religiosas. No entanto, se fosse assim, a Igreja perderia o seu significado próprio. A sua mensagem de libertação já não teria originalidade alguma e ficaria prestes a ser monopolizada e manipulada por sistemas ideológicos e por partidos políticos. Ela já não teria autoridade para anunciar a libertação, como sendo da parte de Deus. Foi por tudo isso que nós quisemos acentuar bem na mesma alocução, quando da abertura da terceira Assembléia Geral do Sínodo, “a necessidade de ser reafirmada claramente a finalidade especificamente religiosa da evangelização. Esta última perderia a sua razão de ser se se apartasse do eixo religioso que a rege: o reino de Deus, antes de toda e qualquer outra coisa, no seu sentido plenamente teológico”.(62)

Para evitar o reducionismo da evangelização a um puro humanismo e a ação evangelizadora, perdendo a sua originalidade, correr o risco de ser instrumentalizada, monopolizada ou manipulada por sistemas ideológicos e partidos políticos, neste número o documento recorda a tentação a ser evitada: reduzir a sua missão às dimensões de um projeto simplesmente temporal, a uma visão puramente antropocêntrica, a um bem-estar material, a iniciativas de ordem política ou social esquecendo as preocupações espirituais e religiosas.

A libertação evangélica

33. Acerca da libertação que a evangelização anuncia e se esforça por atuar, é necessário dizer antes o seguinte: ela não pode ser limitada à simples e restrita dimensão econômica, política, social e cultural; mas deve ter em vista o homem todo, integralmente, com todas as suas dimensões, incluindo a sua abertura para o absoluto, mesmo o absoluto de Deus; ela anda portanto coligada a uma determinada concepção do homem, a uma antropologia que ela jamais pode sacrificar às exigências de uma estratégia qualquer, ou de uma “práxis” ou, ainda, de uma eficácia a curto prazo.

Aqui reafirma que a libertação que a evangelização anuncia e se esforça por atuar tem em vista o homem todo, integralmente, com todas as suas dimensões econômica, política, social, cultural e transcendente (aberta para o absoluto de Deus).

Libertação baseada no reino de Deus

34. Assim, ao pregar a libertação e ao associar-se àqueles que operam e sofrem com o sentido de a favorecer, a Igreja não admite circunscrever a sua missão apenas ao campo religioso, como se se desinteressasse dos problemas temporais do homem; mas reafirmando sempre o primado da sua vocação espiritual, ela recusa-se a substituir o anúncio do reino pela proclamação das libertações puramente humanas e afirma que a sua contribuição para a libertação ficaria incompleta se ela negligenciasse anunciar a salvação em Jesus Cristo.

Dizendo de outra maneira, mas de forma categórica afirma que a missão na Igreja, ainda que professe a primazia da vocação espiritual do ser humano (destinado em Jesus Cristo a comunhão amorosa com Deus), não pode ser circunscrita apenas ao campo religioso, pois ela se interessa pela urgente solução dos problemas que afetam a dignidade da vida humana.

Libertação com uma visão evangélica do homem

35. A Igreja relaciona, mas nunca identifica a libertação humana com a salvação em Jesus Cristo, porque ela sabe por revelação, por experiência histórica e por reflexão de fé que nem todas as noções de libertação são forçosamente coerentes e compatíveis com uma visão evangélica do homem, das coisas e dos acontecimentos; e sabe que não basta instaurar a libertação, criar o bem-estar e impulsionar o desenvolvimento, para se poder dizer que o reino de Deus chegou.

Mais ainda: a Igreja tem a firme convicção de que toda a libertação temporal, toda a libertação política, mesmo que ela porventura se esforçasse por encontrar numa ou noutra página do Antigo ou do Novo Testamento a própria justificação, mesmo que ela reclamasse para os seus postulados ideológicos e para as suas normas de ação a autoridade dos dados e das conclusões teológicas e mesmo que ela pretendesse ser a teologia para os dias de hoje, encerra em si mesma o gérmen da sua própria negação e desvia-se do ideal que se propõe, por isso mesmo que as suas motivações profundas não são as da justiça na caridade, e porque o impulso que a arrasta não tem dimensão verdadeiramente espiritual e a sua última finalidade não é a salvação e a beatitude em Deus.

Para não restar qualquer dúvida, este número afirma que não se pode perder a tensão dialética entre libertação histórica e libertação escatológica do ser humanon em Cristo. A Igreja relaciona, mas não identifica a libertação humana com a salvação em Jesus Cristo. Isso porque não basta instaurar a libertação, criar o bem-estar e impulsionar o desenvolvimento, para se dizer que o reino de Deus chegou.

Libertação que comporta necessariamente uma conversão

36. A Igreja tem certamente como algo importante e urgente que se construam estruturas mais humanas, mais justas, mais respeitadoras dos direitos da pessoa e menos opressivas e menos escravizadoras; mas ela continua a estar consciente de que ainda as melhores estruturas, ou os sistemas melhor idealizados depressa se tornam desumanos, se as tendências inumanas do coração do homem não se acharem purificadas, se não houver uma conversão do coração e do modo de encarar as coisas naqueles que vivem em tais estruturas ou que as comandam.

Aqui trata-se de afirmar a necessária reserva escatológica diante da ambiguidade humana. A necessária e urgente transformação das estruturas injustas e desumanas, sem a libertação integral do homem todo, haverá sempre o gérmen da destruição, a tendência à deturpação e ao surgimento de novas formas de dominação, exclusão e injustiça.

Libertação que exclui a violência

37. A Igreja não pode aceitar a violência, sobretudo a força das armas, de que se perde o domínio, uma vez desencadeada, e a morte de pessoas sem discriminação, como caminho para a libertação; ela sabe, efetivamente, que a violência provoca sempre a violência e gera irresistivelmente novas formas de opressão e de escravização, não raro bem mais pesadas do que aquelas que ela pretendia eliminar. Dizíamos quando da nossa viagem à Colômbia: “Exortamo-vos a não pôr a vossa confiança na violência, nem na revolução; tal atitude é contrária ao espírito cristão e pode também retardar, em vez de favorecer, a elevação social pela qual legitimamente aspirais”, (63) E ainda: “Nós devemos reafirmar que a violência não é nem cristã nem evangélica e que as mudanças bruscas ou violentas das estruturas seriam falazes e ineficazes em si mesmas e, por certo, não conformes à dignidade dos povos“.(64)

Neste número o documento condena o uso a violência e da força das armas como caminho para a conquista da libertação, pois violência gera mais violência e não é cristã e nem evangélica.

Contribuição específica da Igreja

38. Dito isto, nós regozijamo-nos de que a Igreja tome uma consciência cada dia mais viva do modo próprio, genuinamente evangélico, que ela tem para colaborar na libertação dos homens. E o que faz ela, então? Ela procura suscitar cada vez mais nos ânimos de numerosos cristãos a generosidade para se dedicarem à libertação dos outros. Ela dá a estes cristãos “libertadores” uma inspiração de fé e uma motivação de amor fraterno, uma doutrina social a que o verdadeiro cristão não pode deixar de estar atento, mas que deve tomar como base da própria prudência e da própria experiência, a fim de a traduzir concretamente em categorias de ação, de participação e de compromisso. Tudo isto, sem se confundir com atitudes táticas nem com o serviço de um sistema político, deve caraterizar a coragem do cristão comprometido. A Igreja esforça-se por inserir sempre a luta cristã em favor da libertação do desígnio global da salvação, que ela própria anuncia.

O que acabamos de recordar aqui emerge por mais de uma vez dos debates do Sínodo. Nós próprios, aliás, também quisemos dedicar a este mesmo tema algumas palavras de esclarecimento na alocução que dirigimos aos Padres sinodais no final da Assembléia.(65)

Todas estas considerações deveriam contribuir, ao menos é de esperar que assim suceda, para evitar a ambiguidade de que se reveste frequentemente a palavra “libertação”, nas ideologias, nos sistemas ou nos grupos políticos. A libertação que a evangelização proclama e prepara é aquela mesma que o próprio Jesus Cristo anunciou e proporcionou aos homens pelo seu sacrifício.

Aqui fala da contribuição específica a Igreja na libertação integral da pessoa humana para evitar ambiguidades: suscitar generosidade para concretizar o amor fraterno ao próximo, inspiração de fé, motivação de amor fraterno e uma doutrina social para ser traduzida concretamente em categorias de ação, participação e compromisso. Que a vida de Jesus Cristo seja sempre o grande referencial que tenhamos diante de nós.

A liberdade religiosa

39. Desta justa libertação, ligada à evangelização e que visa alcançar o estabelecimento de estruturas que salvaguardem as liberdades humanas, não pode ser separada a necessidade de garantir todos os direitos fundamentais do homem, entre os quais a liberdade religiosa ocupa um lugar de primária importância. Tivemos ocasião de falar, ainda há pouco, da atualidade deste problema, pondo em relevo que há “muitos cristãos, ainda hoje, que vivem sufocados por uma opressão sistemática, pelo fato de serem cristãos, pelo fato de serem católicos! O drama da fidelidade a Cristo e da liberdade de religião, se bem que dissimulado por declarações categóricas em favor dos direitos da pessoa e das relações humanas em sociedade, é um drama que continua!”(66)

Termina esta terceira parte do documento afirmando a necessidade de garantir os direitos fundamentais da pessoa humana, entre os quais destaca a importância da liberdade religiosa.

Notas:

  • 55. Cf At 17, 22-23.
  • 56. 1Jo 3,1; cf. Rm 8, 14-17.
  • 57. Cf. Ef 2,8; Rm 1, 16. Cf. Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, Declaração para salvaguardar de alguns erros recentes a fé nos mistérios da Encarnação e da Santíssima Trindade (de 21 de fevereiro de 1972): ASS 64 (1972), pp. 237-241.
  • 58. Cf. 1Jo 3,2; Rm 8, 29; Fl 3,20-21. Cf. Conc. Ecum. Vaticano II, Const. Dogmática sobre a Igreja, Lumen Gentium, nn. 48-51: AAS 57 (1965), pp. 53-58.
  • 59. Cf. Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, Declaração acerca da doutrina católica sobre a Igreja para a defender de alguns erros hodiernos (de 24 de junho de 1973): AAS 65 (1973), pp. 396-408.
  • 60. Cf. Conc. Ecum. Vaticano II, Const. Pastoral sobre a Igreja no mundo contemporâneo, Gaudium et Spes, nn. 47-52: AAS 58 (1966), pp. 1067-1074 Paulo PP VI, Enc. Humanae Vitae: AAS 60 (1968), pp. 481-503.
  • 61. Paulo PP VI, Discurso na abertura da terceira Assembléia Geral do Sínodo dos Bispos (em 27 de setembro de 1974): AAS 66 (1374), p. 562.
  • 62. Paulo PP VI, Discurso na abertura da terceira Assembléia Geral do Sínodo dos Bispos (em 27 de setembro de 1974): AAS 66 (1974), p, 562.
  • 63. Paulo PP. VI, Discurso aos Agricultores (“Campesinos”) da Colômbia (em 23 de agosto de 1968): AAS 60 (1968), p. 623.
  • 64. Paulo PP. VI, Discurso no “Dia do Desenvolvimento”, em Bogotá (em 23 de agosto de 1968): AAS 60 (1968), p. 627; cf. S. Agostinho, Epistola 229, 2: PL 33,1020.
  • 65. Paulo PP. VI, Discurso por ocasião do encerramento da terceira Assembléia Geral do Sínodo dos Bispos (26 de outubro de 1974): AAS 66 (1974), p. 637.
  • 66. Paulo PP VI, Discurso na Audiência geral de 15 de outubro de 1975; cf. L’Osservatore Romano de 17 de outubro de 1995, p.1.

(Os grifos e comentários em recuo são nossos)

 

Breve comentário

O objetivo maior da terceira parte da Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi, depois de explicitar, na segunda parte, o que a Igreja entende por evangelizar, volta-se para o conteúdo da própria evangelização. No centro, encontra-se sempre o testemunho/ anúncio do amor gratuito e universal de Deus Pai, o Criador, e de seu projeto salvífico universal para todos os seres humanos revelado, pela luz e força do Espírito Santo, no Evangelho do Reino. Na vida e na práxis libertadora de Jesus Cristo, fiel ao Reino de Deus até as últimas consequências da cruz, está encarnado e por isso revela o sentido maior do projeto de Deus. Ele foi ressuscitado por Deus, para que, pela vitória sobre a morte, a sua vida – centrada na confiança total na presença amorosa do Deus estradeiro conosco (Emanuel), na práxis cotidiana da justiça inclusiva para com os mais pobres e do amor fraterno, da misericórdia acolhedora dos marginalizados que se abrem a busca do perdão e do amor fraterno –  tornasse caminho de salvação.

Por tudo isso a Igreja, sacramento da salvação enraizada na vida de Jesus, é chamada a concretizar comunidades de vida cristã, ou seja, comunidades de vida nova, pequenas fraternidades pautadas pela partilha, pela justiça, pela acolhida e misericórdia divinas. Comunidades celebrativas do mistério da presença amorosa do Deus da vida na vida de Jesus. E que agora, ressuscitado, e com o Espírito Santo, está presente conosco na caminhada de fé. Irmanados com as diversas lutas de todos os homens e mulheres, nós cristãos somos chamados a conviver transformados pela experiência do amor de Deus rumo a meta definitiva de comunhão plena em seu amor infinito e absoluto.

A ação evangelizadora dos cristãos precisa cuidar da libertação do homem todo, seja daquilo que lhe oprime na história, seja do que lhe impede viver com a consciência de ser filho e filha de Deus vocacionado a um destino maior de plenitude de amor. Cuidar da libertação integral da pessoa humana é cuidar do conteúdo da evangelização. Nesse cuidado, devemos evitar tanto o reducionismo histórico tão presente nas ideologias políticas, quanto o reducionismo espiritualista tão presente nas ideologias religiosas. A salvação cristã inclui a corporeidade e a transformação da vida histórica, mas não se reduz a ela. Inclui a plenitude da salvação espiritual junto de Deus, mas não se reduz a ela. Portanto, que a vida de Jesus Cristo, com sua práxis libertadora impulsionada pela chegada do Reino de Deus, seja o critério maior de discernimento para não cairmos nas tentações reducionistas que deturpam a fé cristã.

Ed 2Edward Guimarães é teólogo leigo, membro do Conselho Arquidiocesano de Pastoral e da Comissão Permanente de Assessoria do Vicariato Episcopal para Ação Pastoral. Professor de teologia sistemática e da práxis cristã no Centro Loyola de Espiritualidade, fé e cultura e de cultura religiosa da PUC Minas, onde atua como secretário executivo do Observatório da Evangelização.

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