Ética – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com Wed, 16 Mar 2022 19:15:00 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.4 https://i0.wp.com/observatoriodaevangelizacao.com/wp-content/uploads/2024/04/cropped-logo.png?fit=32%2C32&ssl=1 Ética – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com 32 32 232225030 Sabedoria, amor e paz: fraternidade e alteridade. https://observatoriodaevangelizacao.com/sabedoria-amor-e-paz-fraternidade-e-alteridade/ https://observatoriodaevangelizacao.com/sabedoria-amor-e-paz-fraternidade-e-alteridade/#comments Wed, 16 Mar 2022 19:15:00 +0000 https://atomic-temporary-74025290.wpcomstaging.com/?p=44292 [Leia mais...]]]>

Em momentos de guerra, não tem como não ficarmos espantados pelas cenas de horror e barbárie de sofrimento, destruição e genocídios que estamos vendo na Ucrânia. O povo sofre, os refugiados se multiplicam. Em pleno século XXI, não acreditamos ser possível presenciarmos um conflito que pode tomar proporção enorme ser concretizado pela falta de habilidade democrática das nossas instituições, além do contraste de pensamento de parte do mundo, que não se situa dentro de um horizonte de democracia e pluralidade.

Após a segunda guerra mundial, diversos filósofos se perguntavam sobre o porquê do holocausto, da ascensão de regimes sangrentos e totalitários e, sobretudo, o que teríamos aprendido com a História e como poderíamos evitar novos eventos do tipo. É verdade que a criação da ONU e a consolidação de tratados de direitos humanos e avanços no direito internacional e humanitário propiciaram um fortalecimento da democracia e do consequente diálogo. Por outro lado, em diversos momentos e contextos regimes democráticos são atacados pela via das decisões não-racionais, pelos afetos, sobretudo pelo medo e pelo ódio. A xenofobia é um exemplo disso. A falência das democracias europeias, em sua maioria, que lidam bem com a liberdade, mas não com a fraternidade.

Qualquer ato contra a vida, inserido em ideologias, religiões ou políticas totalitárias ou democráticas exemplifica a barbárie e o fracasso da humanidade. Quando o Estado (mínimo) permite a existência de pessoas vivendo com o mínimo necessário à sua dignidade, sem moradia, comida, educação, aí está a barbárie! Também quando um regime fuzila pessoas que se colocam politicamente contrárias ao seu regime, também está aí a barbárie!

Theodor Adorno, filósofo alemão contemporâneo, afirmou que o mais urgente de pensarmos é uma educação que, de todas as maneiras, evite um novo holocausto, novo Auschwitz. Como fazer isso em termos globais hoje? Certamente não será por uma via de isolamento e ausência de diálogo. Todo movimento contrário à democracia, à ciência e a uma globalização efetiva não se colocam como vias eficazes. Logicamente, democracia e globalização devem andar juntas, de forma que os problemas globais sejam enfrentados de forma real, efetiva e verdadeiramente conjunta. A economia global, empresas, agentes financeiros, não podem ignorar os problemas sociais, as feridas à democracia e à vida. Um regime que tire a vida de forma banal não deve ser considerado da mesma maneira em negociações. É preciso limitar as hipocrisias. Temos que condenar todos os sistemas totalitários, sejam aqueles motivados por critérios fundamentalistas religiosos, sejam aqueles baseados em ideologias.

O problema não é a globalização em si, mas sim o fato dela ser motivada apenas pela esfera econômica. Nacionalismos, extremismos, xenofobia devem ser constantemente desconstruídos. O sentimento proveniente da existência do Estado-Nação deve dar lugar àquele originado de uma solidariedade universal.

Paul Ricoeur, filósofo francês, afirma que, diante de situações-limites, nos aproximamos. É a partir do testemunho de Lucie Hacpille, médica de cuidados paliativos, que essa distinção se opera claramente para o filósofo. De acordo com a médica, os doentes prestes a morrer não têm a percepção de si mesmos enquanto “moribundos”, isto é, como quem vai morrer daí a pouco, mas antes como “ainda vivos”, ainda que não mais estejam que a alguns minutos do seu falecimento. Para o “agonizante”, “ainda estar vivo” significa a emergência da mobilização dos recursos mais profundos da vida, que lhe permitem ainda se afirmar. Ela é, por assim dizer, o “Essencial” na trama do tempo da agonia. Esse “Essencial” que é, em certo sentido, o religioso, ou o religioso em comum, o qual transgride as limitações consubstanciais ao religioso confessional e confessado no limiar da morte. Em momentos de sofrimento dos povos, nos aproximamos em Espírito. Esse momento de mobilização é um momento de graça interior. Ele remete para a aparição da “coragem de estar vivo até à morte” quando a vida se escreve, face à morte, com um V maiúsculo. Contudo, pensar esse momento e a sua força, é também correr o risco de resvalar para a literatura sobre as experiências místicas: por isso mesmo, é preciso saber simultaneamente dar mostras de alguma desconfiança, enquanto se acolhe a graça interior de um determinado morrer.

Ricœur atesta o “olhar” da “compaixão” daqueles que lutam juntamente ao agonizante e os que o acompanham até à morte (Ricoeur 2007, 41). Esse “olhar” diferencia-se daquele que vê o agonizante como um moribundo que em breve deixará de viver. Não é também o do espectador que já se adianta à morte: esse “olhar” também vê o agonizante como “ainda vivo”. Também ele faz um apelo aos recursos mais profundos da vida, como se fosse levado pela emergência do “Essencial” na sua vivência de ainda-vivente. A “compaixão” não significa aqui somente o “sofrer-com”, mas também o “lutar-com” e o “acompanhamento” (Ibid.). Ela torna possível a partilha de um movimento de transcendência íntima. Ricœur desenvolve, de forma bastante fina, o “acompanhamento” do “agonizante” como “amizade no morrer acompanhado”.

É o que estamos presenciando na Ucrânia. O Papa Francisco enfatizou o drama e a realidade do conflito: “Rios de sangue e lágrimas correm na Ucrânia, não se trata apenas de uma operação militar, e sim de uma guerra que que semeia morte, destruição e miséria” (Angelus, 06/03/2022). Como não se comover com famílias sendo separadas? Hospitais sendo bombardeados? Número crescente de refugiados, pessoas tentando desesperadamente sair do país, deixando suas casas, suas vidas, suas lutas diárias? Não, a Rússia e seu sistema totalitário, bem como os que a apoiam, não encontram em lugar algum justificativa plausível às atrocidades. Assim como não encontram o sistema totalitário sírio, saudita, dos Emirados Árabes (que bombardeiam o Iêmen incessantemente, gerando destruição, morte, fome, caos…) ou da China que oprime a minoria muçulmana que vive em seu território. Sistemas que impedem a liberdade ou não permitem a igualdade, são fracassados… Sim, são muitos os exemplos, nesses casos. O mundo fracassa, mas não é uma condição natural, é possível a mudança. Um outro mundo é possível!

A educação deve contribuir para a efetivação desse processo. Por mais filosofia e menos educação “moral” e cívica. Por mais crítica, reflexão, humanismo e menos tecnicismos limitados. Alteridade deve ser a palavra-chave da educação no século XXI.

Se há relações se inaugura o rompimento da totalidade da guerra, significa interromper a guerra e inaugura-se o novo, o escatológico. Assim, surge uma relação originária com o ser, no interior da experiência. Escapa-se, assim, do ser impessoal que propôs Heidegger. Lévinas propõe aqui a Escatologia da Paz Messiânica, na ordem da experiência, da linguagem, da política e totalitarismos. Dentro da ontologia é possível verificar uma relação entre os sujeitos que, ao falarem, aniquilam as diferenças. Assim, nosso pensador está em um caminho oposto a Hegel, que supõem um caminho do conceito e da consciência rumo a uma totalidade e a um fim. No Estado os sujeitos são “impessoalizados”. É preciso se voltar para o encontro com o outro, acontecendo uma acolhida. O Eschaton vem justamente do encontro com o outro.

O Infinito ou Deus não se comunica de maneira imediata, mas sim mediata, no face a face com o outro. Não foi a expressão “face a face” herdada da linguagem bíblica? Mas na Bíblia trata-se do face a face com Deus. Face a face vivido por Moisés (Ex 33, 11: “O Senhor falava com Moisés, face a face, como se fala a uma pessoa”), desejado pelo salmista (Sl 13, 2; 17; 15), mas na maior parte das vezes recusado: “não podes ver minha face pois o humano não pode me ver e continuar em vida” (Ex 33,20; 33,23). Esse face a face com Deus é transposto por Lévinas como face a face com o outro. O rosto do outro não é da ordem do visível, nem mesmo do ver. Ele não é a figura cujos traços da boca ou dos olhos eu possa detalhar. Ter acesso ao rosto não é observá-lo, contemplá-lo, subtrair-lhe o rosto. O rosto é da ordem da palavra. Ele significa não como uma figura sobre um fundo, mas sem contexto, independentemente de seus contextos social, racial, cultural ou religioso, independentemente de sua carteira de identidade ou de seu passaporte. Ele enuncia um mandamento: “não matarás” ou “não cometerás assassinato”.

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René Dentz
É católico leigo, professor do departamento de Filosofia e do curso de Psicologia-Praça da Liberdade na PUC-Minas, onde também atua como membro da equipe executiva do Observatório da Evangelização. Psicanalista, doutor em Teologia pela FAJE, com pós-doutorado pelas Université de Fribourg/Suíça, Universidade Católica Portuguesa e PUC-Rio. É comentarista da TV Horizonte e da Rádio Itatiaia. Autor de 7 livros, dentre os quais “Horizontes de Perdão” (Ideias e Letras, 2020). Pesquisador do Grupo de Pesquisa CAPES “Mundo do trabalho, ética e teologia”, na FAJE-BH.

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Conversão: do moralismo à liberdade https://observatoriodaevangelizacao.com/conversao-do-moralismo-a-liberdade/ https://observatoriodaevangelizacao.com/conversao-do-moralismo-a-liberdade/#comments Sat, 12 Mar 2022 21:51:33 +0000 https://atomic-temporary-74025290.wpcomstaging.com/?p=44279 [Leia mais...]]]>

Alguns símbolos e palavras acabam perdendo seu sentido original e sendo cooptados por movimentos que lhes roubam o brilho, deixando sobre eles um ranço reacionário. As bandeiras e cores nacionais, por exemplo, frequentemente adquirem um sentido supremacista e xenófobo na ascensão dos fascismos (mesmo que com ares tropicais e futebolísticos, como é o caso brasileiro).

Nessa ordem, a palavra “conversão” não passou imune ao moralismo cristão. Soa-nos hoje como um enunciado de julgamento, mais do que uma possibilidade de libertação e de felicidade. O “convertido” é aquele que, ao repudiar seus comportamentos pregressos (em especial aqueles mais diretamente relacionados à dimensão do prazer) agora segue aos rígidos preceitos da cristandade, apresentada sempre em uma face austera, severa e, não poucas vezes, excludente.

Mas a verdade é que converter-se é uma necessidade humana e um movimento quase que espontâneo do amadurecimento ético e afetivo. Para além de qualquer moralismo, o exercício pessoal de autocrítica e reavaliação dos valores e atitudes que nos constituem, é um hábito não somente saudável, mas absolutamente imperativo para a realização pessoal. Um projeto de vida que não esteja aberto à conversão está fadado ao fracasso ou então, à inadequação atroz que os rígidos costumam experimentar diante da realidade mutável da vida.

Um projeto de vida que não esteja aberto à conversão está fadado ao fracasso ou então, à inadequação atroz que os rígidos costumam experimentar diante da realidade mutável da vida.

Frente aos desafios das nossas relações, dos limites do nosso temperamento e daquilo que não podemos mudar em nós e no outro, é preciso converter-se. Diante da crise ecológica, política e ética em que nossa sociedade se afunda, é preciso converter-se. Em oposição ao negacionismo, ao fundamentalismo e à desinformação intencional e perigosa que ameaça a integridade das consciências, é preciso converter-se.

Mas a crítica inicial a um cristianismo de preceitos não pretende fazer deste um texto de simples apologia de uma visão laica da conversão (embora esta seja também possível). Ao contrário, as tradições religiosas, quando bem vividas, podem nos oferecer caminhos valiosos para essa “mudança de rumo”. Afastando-nos de qualquer resquício negativo de uma religiosidade mais orientada por normas do que pela experiência iluminadora da fé, podemos encontrar nos ritos e orações seu sentido primeiro e mais profundo: um espaço frutífero para a transformação interior.

Na tradição judaico-cristã, o profeta Ezequiel coloca na boca de Deus a seguinte promessa: “Eu vos darei um coração novo e porei um espírito novo dentro de vós. Arrancarei do vosso corpo o coração de pedra e vos darei um coração de carne” (Ez. 36, 26) A conversão, aqui, expressa-se como um dom de abertura à novidade e à humanização do coração, muitas vezes petrificado em preconceitos, rancores e concepções perversas de mundo e de ser humano, que nos prendem a uma cultura do descarte e da morte.

A conversão expressa-se como um dom de abertura à novidade e à humanização do coração, muitas vezes petrificado em preconceitos, rancores e concepções perversas de mundo e de ser humano.

Ter um coração de carne nos permite evitar o engessamento inflexível e, ao contrário, abrir-se à maleabilidade da vida em suas nuances e possibilidades diversas. Converter-se, então, deixa de ser uma formatação compulsória a um estilo pré-determinado de ser, para se tornar um exercício de liberdade interior que nos reposiciona diante do mundo, do outro, de nós mesmos e de Deus. O convertido, mais que “um homem novo”, é alguém aberto ao novo: livre, tolerante, compassivo e criativo, como só os grandes homens e mulheres conseguiram ser.

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Matheus Cedric Godinho
É professor de Filosofia e Ensino Religioso e autor e editor de material didático para Educação Básica nas mesmas áreas. Leigo católico, cofundador da Oficina de Nazaré e membro do Conselho Editorial da Revista de Pastoral da ANEC. Atualmente é estudante de Teologia na PUC Minas, onde também trabalha como membro da equipe executiva do Observatório da Evangelização.

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“O cristão e a dor da fome e da miséria”, com a palavra Washington Paranhos, SJ https://observatoriodaevangelizacao.com/o-cristao-e-a-dor-da-fome-e-da-miseria-com-a-palavra-washington-paranhos-sj/ https://observatoriodaevangelizacao.com/o-cristao-e-a-dor-da-fome-e-da-miseria-com-a-palavra-washington-paranhos-sj/#comments Tue, 16 Nov 2021 19:42:09 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=42752 [Leia mais...]]]> Não deveria existir alguém morrendo de fome e dormindo no chão, em um país que se diz cristão, com milhares de templos luxuosos, espalhados por todas as cidades, sob a direção de pseudos “missionários” milionários. O mesmo povo que diz “Deus acima de tudo” é o mesmo que aplaude e defende aqueles que geram uma situação desumana e fazem exatamente o oposto de Jesus.“, confira a reflexão do pe. Washington Paranhos, SJ

Estamos acompanhando nesses últimos dias algumas imagens cruéis que nos escandalizam. Situações dramáticas agravadas pela pandemia, mas também fruto da insensibilidade, da ganância e ignorância de alguns que pensam apenas em si. Primeiro, ficamos chocados com a notícia estampada nos jornais de que “Pessoas fazem fila para doação de ossos em açougue de Cuiabá”. Moradores de Mato Grosso, o estado com o maior rebanho bovino do país (cerca de 32 milhões de cabeças de gado), fazem fila para receber ossos em um açougue que doa restos do processo de desossa do boi.

Na última semana as imagens de pessoas recolhendo ossos e outros produtos descartados por supermercados também chocaram o mundo. O motorista do caminhão que recolhe os ossos disse: “Antes, as pessoas passavam aqui e pediam um pedaço de osso para dar para os cachorros. Hoje, elas imploram por um pouco de ossada para fazer comida. O meu coração dói”. Esses são apenas um pequeno retrato da fome em nosso país, fome que se intensificou e se agravou não só devido à pandemia, mas também à alta absurda do preço de alimentos básicos.

Registro da fila de distribuição de ossos para pessoas passando fome em Cuiabá – MT.

Sabemos que a crise mundial provocada pela pandemia é sentida em todos os países, mas na América Latina e no Caribe a situação ficou ainda pior, com o aumento da fome de 19% para 44 milhões de pessoas atingidas pela insegurança alimentar moderada e outros 21 milhões pela grave insegurança alimentar.

Para entendermos o problema:

  • na Venezuela, 77% da população passa fome e 94,5% vivem na pobreza;
  • no México são 44%;
  • na Colômbia 42,5%;
  • no Brasil, segundo o IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), 54% das famílias brasileiras são pobres, enquanto para a FAO um quinto da população passa fome;
  • na Argentina, mais de 40% vivem na pobreza e lutam para colocar comida na mesa todos os dias;
  • na Bolívia, 39% têm o mesmo problema;
  • no Haiti, a situação é ainda mais complicada, de acordo com um relatório recente da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), a taxa de pobreza extrema na região atingiu 12,5% e a de pobreza 33,7% no ano passado.

Segundo a CEPAL, as transferências econômicas feitas por diferentes governos durante o pior momento da pandemia impediram que essas taxas se deteriorassem ainda mais, mas a situação continua dramática. Na verdade, estamos falando de 90 milhões de seres humanos que vivem com menos de um dólar por dia e 230 milhões de pobres. Apenas na América Latina e Caribe. Todos os países apresentam um fenômeno que está afetando toda a região com o maior exacerbação desde que, no ano passado, a Covid-19 caotizou essa parte do mundo mais do que qualquer outra. Com menos de 9% da população mundial, de fato, só a América Latina registra 21% das infecções e 34% das mortes planetárias.

Não deveria existir alguém morrendo de fome e dormindo no chão, em um país que se diz cristão, com milhares de templos luxuosos, espalhados por todas as cidades, sob a direção de pseudos “missionários” milionários. O mesmo povo que diz “Deus acima de tudo” é o mesmo que aplaude e defende aqueles que geram uma situação desumana e fazem exatamente o oposto de Jesus.

Um outro ponto importante que devemos lembrar é que o Agro não é pop. Estudos apontam que a fome é resultado também do agronegócio. O setor não só não mata a fome, como fomenta a desigualdade que a cria. O agronegócio não só não traz alimentos para a população brasileira – que só vê aumentar o alarmante nível da fome, como também o setor fomenta a desigualdade, que faz com que 55% da população não tenha certeza se terá o suficiente para se alimentar no dia seguinte.  

Diante destas evidências, poderíamos nos perguntar: e como os primeiros cristãos lidavam com a fome? “Entre eles ninguém passava necessidade, pois aqueles que possuíam terras ou casas as vendiam, traziam o dinheiro e o colocavam aos pés dos apóstolos; depois, ele era distribuído a cada um conforme a sua necessidade” (At 4, 34-35). Isso não era uma lei, mas uma atitude que brotava espontaneamente do coração. Diferente de grupos católicos tradicionalistas que afirmam que a Igreja tem que se preocupar com a salvação da alma da pessoa e não se envolver com questões políticas e sociais, os primeiros cristãos procuravam observar essa orientação bíblica: “Quando no seu meio houver um pobre… não endureça o seu coração, nem feche a mão para esse irmão pobre… Abra a mão em favor do seu irmão, do seu pobre e do seu indigente no lugar onde você está” (Dt 15,7.11).

Precisamos recordar mais uma vez as palavras de Gandhi: “Na terra há o suficiente para satisfazer as necessidades de todos, mas não para satisfazer a ganância de alguns”. A fome não é consequência da quantidade de pessoas na face da terra, mas de dois fatores principais: a desigualdade social e o desperdício de alimentos. Quando alguém da Igreja de forma profética, levanta sua voz para denunciar essa desigualdade, a qual gera não apenas fome, mas também violência e morte, esta pessoa não está pregando o comunismo, não está fazendo um “discurso de esquerda”, mas alertando a consciência de cada cristão para uma verdade básica do Evangelho: “Eu tive fome, e vocês me deram de comer… Todas as vezes que vocês socorreram pessoas necessitadas, foi a mim que vocês socorreram” (citação livre de Mt 25,35.40). 

O Evangelho de João nos fala que, “levantando os olhos e vendo que uma grande multidão estava vindo ao seu encontro, Jesus disse a Filipe: ‘Onde vamos comprar pão para que eles possam comer?’” (Jo 6, 5). Hoje Jesus dirige essa pergunta a cada um de nós, seus discípulos, porque Ele deseja que cada um de nós se deixe afetar pelo sofrimento que afeta os pobres à nossa volta. Enquanto católicos tradicionalistas desejam missas em latim, a volta do uso do véu para as mulheres e comunhão dada na boca, Jesus nos pergunta se as nossas mãos, que se estendem para receber a Eucaristia, também têm se estendido para dar pão a quem tem fome.

A pergunta que Jesus dirigiu a Felipe foi “para pô-lo à prova” (Jo 6, 6). Hoje, da mesma forma, Jesus também está pondo as igrejas cristãs à prova, igrejas que o proclamam Senhor e Salvador, igrejas que afirmam crer no seu Evangelho. Ao nos pôr à prova, Jesus está verificando o nosso nível de humanidade, de compaixão, de solidariedade. Jesus está verificando qual cristão/igreja se esforça em se configurar a Ele, que procurou se colocar junto aos pobres e sofredores, e qual cristão/igreja configura-se com os fariseus, que usaram do culto religioso como forma de se manterem distantes dos pobres, dos pecadores, dos sofredores. São João Crisóstomo nos ajuda a fazer nosso exame de consciência: “Se você não conseguir encontrar Cristo no mendigo na porta da igreja, não o encontrará no cálice”.

Mas, afinal de contas, onde está a solução para o problema da fome em nosso mundo? Está na consciência, no bolso e nas mãos de cada um de nós. Tanto na época dos profetas como na época de Jesus, a fome foi saciada com “pães de cevada” (cf. 2Rs 4,42; Jo 6,9), alimento de pessoas pobres.

Quais são seus “pães de cevada”? Quais são os pequenos recursos que você tem consigo, mas não tem feito uso deles? O nosso grande erro enquanto povo brasileiro é esperar que a solução para os problemas do nosso País venha de Brasília, do Palácio do Planalto, do Congresso, do Senado ou do STF, exatamente das pessoas que mantêm o nosso País na indigência, na ignorância, na pobreza, na falta de saúde e de educação porque só assim eles podem continuar a serem eleitos como falsos messias, falsos salvadores da Pátria.

Feijão, arroz, leite, mandioca, banana e uma dezena de variedades de grãos foram distribuídos por acampados do MST – Lia Biachini

Quando todos ficaram satisfeitos, Jesus disse aos discípulos: ‘Recolhei os pedaços que sobraram, para que nada se perca!’” (Jo 6, 12). Já sabemos que o outro lado da moeda da fome é o desperdício de alimento. Segundo São João Crisóstomo, Deus dá riqueza “não para você desperdiçar com prostitutas, bebida e comida sofisticadas, roupas caras…, mas para distribuir aos necessitados… Se você tem dois pares de sapatos, um pertence aos pobres”. Nada deve se perder; nada deve ser desperdiçado; tudo deve ser partilhado.

Além de não desperdiçar comida, água, energia, é preciso não desperdiçar a oportunidade de alimentar relacionamentos que nos são significativos. Nossas relações também precisam ser alimentadas.

A minha fome é, para mim, um problema material; a fome do outro é, para mim, um problema espiritual”. Esta é uma daquelas frases marcantes que encontramos e ficam gravadas na memória, mas não tenho a fonte e nem certeza absoluta da autoria. Quanto recordo é de Charles Péguy.

Pe. Washington Paranhos, SJ

Washington Paranhos SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

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