Espiritualidade – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com Mon, 04 Jul 2022 19:39:05 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.4 https://i0.wp.com/observatoriodaevangelizacao.com/wp-content/uploads/2024/04/cropped-logo.png?fit=32%2C32&ssl=1 Espiritualidade – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com 32 32 232225030 Juventude, busca por sentido e espiritualidade https://observatoriodaevangelizacao.com/juventude-busca-por-sentido-e-espiritualidade/ Mon, 04 Jul 2022 19:39:05 +0000 https://atomic-temporary-74025290.wpcomstaging.com/?p=45338 [Leia mais...]]]> A busca por sentido

A juventude contemporânea vive uma insistente angústia, originada pelo fantasma da ausência de sentido; uma angústia fundante, de ser ou não ser, existir significativamente no mundo ou não. Nesse cenário, o jovem busca encontrar sentidos e, para isso, vive em “estado de experimentação”, tentando encontrá-los na incessante experiência, que em última instância, se mostra como uma “experimentação de si mesmo”. Esse panorama atual significa para a juventude ainda mais fluidez, o que pode ser bom, por um lado, pois está livre de fundamentos arcaicos, ilusórios e, muitas vezes, violentos. No entanto, porta um profundo vazio. Está o jovem fadado a viver um constante “abismo”? De fato, há um índice crescente de depressão entre jovens, bem como automutilação e suicídio. A religião poderá “salvá-los”?

Parece que as religiões não são mais fontes de construção de sentido real (mesmo que, em muitas situações, porta ideais longínquos), sobretudo pensada como autoridade e obediência. Não vivemos mais uma sociedade vertical, mas horizontal, as relações são construídas e não impostas. Por outro lado, há um medo de se sentir desconectado neste mundo altamente conectado; “o medo de morrer cedo e de maneira violenta. É nesse tempo de incerteza que boa parcela da juventude amplia seu repertório das trajetórias religiosas possíveis” (FERNANDES, 2018).

Fica uma questão: a religião então serviria como fuga de vazios provenientes do medo? Dessa maneira, estaria verdadeiramente preenchendo sua função de “religare” e libertação?

Jovens que viveram um “narcisismo negativo”

O investimento narcísico do jovem de hoje foi pequeno. Os pais foram ausentes (pelo menos uma grande parcela), delegaram, em grande medida, à escola a educação e o afeto. O ambiente escolar passou a ser o lugar de formação da personalidade e da relação edípica (pai-mãe-bebê). O sentimento de ausência, no entanto, é existente. Um vazio impera. Um aspecto importante na relação entre pais e filhos é o de responsabilidade. O filho necessita perceber, com clareza, que alguém se responsabiliza por ele. Quem é essa figura hoje? A escola? Os pais? Os amigos virtuais? As Igrejas?

A família não é mais o lugar do afeto inicial. Vivemos, na sociedade atual, uma desconstrução da família nuclear, de um modelo de patriarcado (esse último aspecto é libertador!). Criamos instituições para fazer o trabalho do afeto infantil, aquilo que o sociólogo Pierre Bourdieu chama de “socialização primária”. A socialização secundária, que seria justamente função das instituições, passou a vir antes. A escola substituiu a família. Há um grande dilema aqui, pois a produção subjetividade veio como “desinvestimento da criança”. Presenciamos uma espécie de “narcisismo negativo” (BIRMAN, 2021). Se a modernidade foi caracterizada por excesso de narcisismo, hoje vivemos em uma sociedade narcísica justamente porque fomos pouco investidos. Por isso, se analisarmos as formas psicopatológicas do nosso tempo, encontramos características de sofrimento a partir de ausências, advindo de seres pouco investidos, próximos à melancolia e à fuga do mundo: drogas, anorexia, depressão, compulsões, borderline (personalidades que flertam com os limites) (BIRMAN, 2021).

O que acontece com a juventude de hoje na medida em que não há um reconhecimento simbólico, é uma perda de identidade, de fronteira. A violência é uma forma de manter sua posição, seu território. Em algum sentido, é uma forma de fuga da melancolia. Violência pode aparecer como automutilação, palavras fortes contra aqueles que cruzam seu caminho e mesmo fechamento em seu mundo absoluto. Lacan mostra que o estádio do espelho é o primeiro momento de formação da personalidade que nos diferencia do outro. Na medida em que me reconheço enquanto corpo que vejo, percebo as diferenças, as alteridades, o que sou e o que não sou. Nesse momento, é necessário a vivência de permanências iniciais. Quando não há essa vivência, apenas nos resta viver de forma experimental (BIRMAN, 2021).

Ao mesmo tempo, vivemos na era do individualismo, estamos “conectados na desconexão”. Nos últimos anos aumentou significativamente a oferta de produtos customizados. Na pandemia essa tendência não se apagou ou diminuiu, pois o virtual a preencheu. Interessante inclusive verificar a maior exposição de cenas e imagens mais banais no período da quarentena. O singular tem que ser imposto a todos. Estar sozinho, não aceitar vincular sua vida aos outros, é uma tendência. Há uma necessidade de que a vida gire em torno do meu gozo, por isso mesmo muitas vezes os sujeitos contemporâneos não mantêm relações. Deveríamos talvez reconstruir a ideia de união e desunião. A união poderia ser mais qualificada, refletida. A relação é uma aliança inconsciente com o outro. Há conflitos, mas não pode ter um horizonte narcísico.

Como se configura a espiritualidade dos jovens contemporâneos?

Segundo a socióloga Sílvia Fernandes (2018), em primeiro lugar, o jovem sem religião se apresenta multifacetado, podendo agregar em uma única identidade um posicionamento crítico e, ao mesmo tempo, flexível em relação às denominações religiosas. Daí a explicação para o número crescente de jovens que se declaram “sem religião” e sustentam espiritualidades plurais e sincréticas.

A antropóloga Regina Novaes (2018), afirma que juventude contemporânea vive um tempo em que as religiões não são mais as principais fontes distribuidoras de sentido e imagens estáveis da vida entregues de geração a geração pelas autoridades religiosas, reconhecidas como tal, o que corrobora a característica de fluidez que apontamos anteriormente.

Dessa maneira, as posições mais fundamentalistas ganham espaço, pois transmitem ideias objetivas e que dão a ilusão de preenchimento de vazio. Há uma preocupação em reproduzir suas crenças de forma incisiva, afastando qualquer possibilidade de autocrítica.  Nesse momento, ficam de lado a subjetividade e a singularidade do sujeito, para dar espaço ao moralismo, à objetividade e à rigidez. A diversidade e o diferente assustam, ameaçam. “Os sincretismos religiosos, cada vez mais frequentes num contexto de mundo globalizado, em que todos são convidados a se abrir para o diferente, pagam o preço, muitas vezes caro, do risco de expor as suas premissas, incorrendo na possibilidade de que sejam esvaziadas” (JOBIM, 2018).

É importante afirmar que existe uma geração de jovens que não conheceu outro caminho de espiritualidade daquele apresentado por grupos atuantes, através de mídias eficientes. O medo de perda de sentido trouxe adesão, mas pode portar também exclusão e ilusões a respeito de si e do outro, sustentando um mudo distante de dimensões do real.

            O grande paradoxo da juventude contemporânea é: ela vivenciou pouco investimento narcísico, mas vive em uma cultura narcisista, repleta pela moral do individualismo. Nessa cultura, cada um existe por si e por suas ideias, vendo o outro, o diverso, como inimigo.

Qual mundo queremos? Um mundo-da-vida, da esperança, do real? Ou um mundo da morte, da violência e das ilusões? Como nos ensina o bispo auxiliar da Arquidiocese de Belo Horizonte e Reitor da PUC-MINAS na apresentação do livro O Novo Humanismo: Paradigmas civilizatórios para o século XXI a partir do Papa Francisco: “Ousamos supor que um novo humanismo é necessário e possível: que as bases importantes desse humanismo estão sendo iluminadas pelo Papa Francisco; que vivemos, portanto, uma histórica oportunidade de fazer uma revisão da rota percorrida, nos últimos séculos, no Ocidente. Ousamos com Francisco ter a esperança de que a morte ainda não tenha tido a palavra final: é possível restaurar nossa casa comum; estabelecer relações mais igualitárias e equitativas; estender a todos, mulheres e homens em sua diversidade, o respeito ao Estado de direitos” (DOM MOL, 2022,

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Prof. René Dentz
É
 católico leigo, professor do departamento de Filosofia, curso de Psicologia-Praça da Liberdade na PUC-Minas, onde também atua como membro da equipe executiva do Observatório da Evangelização. Psicanalista, Doutor em Teologia pela FAJE, com pós-doutorado pelas Université de Fribourg/Suíça, Universidade Católica Portuguesa e PUC-Rio. É comentarista da TV Horizonte e da Rádio Itatiaia. Autor de 8 livros, dentre os quais “Horizontes de Perdão” (Ideias e Letras, 2020) e “Vulnerabilidade” (Ideias e Letras, 2022). Pesquisador dos Grupos de Pesquisa CAPES “Mundo do trabalho, ética e teologia” e “Diversidade afetivo-sexual e teologia”, ambos na FAJE e “Teologia e Contemporaneidade”, na PUC-Minas.

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Religião como alienação ou libertação? https://observatoriodaevangelizacao.com/religiao-como-alienacao-ou-libertacao/ Mon, 09 May 2022 19:51:23 +0000 https://atomic-temporary-74025290.wpcomstaging.com/?p=44927 [Leia mais...]]]> “Jovens ‘sem religião’ superam católicos e evangélicos em SP e Rio”, é o que mostra pesquisa do Datafolha do ciclo eleitoral de 2022.

“O forte declínio dos católicos em idade de reprodução contribui para a redução no número de crianças educadas em famílias católicas e consequentemente, dos jovens com formação católica”, afirma o sociólogo Ricardo Mariano, professor da USP. Para o pesquisador, perda de força da igreja católica é um dos motivos que explicam o avanço dos “sem religião”.

“Além disso, a igreja católica tradicionalmente tem um enorme contingente de católicos ditos ‘nominais’, ou seja, que não frequentam os cultos, não estão expostos às autoridades eclesiásticas e nem às suas orientações doutrinais, morais e comportamentais”, acrescenta.

No século XVIII, filósofos iluministas acreditavam que a religião era a “infância da razão”, que seria uma forma de pensar superada em poucas décadas. Tais pensadores estavam errados! Se olharmos em diversos cenários atuais, as religiões são fonte de sentido para milhares e milhares de pessoas em todo o planeta. Aí está sua principal função: dar sentido à existência humana. A religião pode ser genuína, cumprindo sua função original de “religare”, “religar” à unidade, ao todo, por meio do simbólico, do sagrado. Por isso, diante de temas difíceis, como o é o da morte e da finitude, ela porta profundo sentido. Também se pensarmos do complexo mundo em que vivemos, a religião pode ser um alento, uma voz de esperança. Sobre o lugar genuíno da religião, nos ensina Leonardo Boff: “A religião funda a incondicionalidade e a obrigatoriedade das normas éticas muito melhor do que a razão abstrata ou o discurso racional, parcamente convincentes e só compreensíveis por alguns setores da sociedade que possuem as mediações teóricas de sua apreensão. A religião, por ser a (cosmovisão) mais generalizada, concretamente, o caminho comum das grandes maiorias, é mais universal e compreensível. Ela vive do Incondicional e procura testemunhá-lo como a dimensão profunda do ser humano. Só o Incondicional pode obrigar incondicionalmente”[1].

Por outro lado, é preciso chamar a atenção para elementos que podem trazer sofrimento e culpa por meio da religião. Talvez aí esteja um dos motivos para seu distanciamento e esvaziamento. É preciso entender que o sentido que falamos anteriormente tem ressonância em cada indivíduo, em cada alma, em distintas conexões inconscientes. No Cristianismo, por exemplo, como se trata de uma religião revelada, há a exigência de interpretação e de acolhimento da Palavra por cada ser, individualmente e comunitariamente. É preciso interpretar a mensagem diante dos desafios de cada época.

Por isso, o Cristianismo sincero não pode fugir jamais de seu horizonte: aquele da vulnerabilidade. E esse horizonte revela a condição humana: a de vulnerabilidade corpórea. Essa condição é justamente aquela que deu origem ao cristianismo: a da Encarnação. O verbo se fez carne, se fez humano, se fez corpo. O Reino foi um “reino invertido”, a partir dos pobres, oprimidos, vulneráveis, a fortaleza se mostrou na fraqueza, o poder no “não-poder”, a vingança no perdão.

Assim, a religião deve servir para libertar os humanos da culpa e não os inserir mais e mais nela. Este pode ser um caminho perverso. A culpa gera paranoia, neuroses, depressão, desistência da vida. A beleza do “religare” se transforma em violência do sagrado. As religiões constituem uma das construções de maior excelência do ser humano. Todas elas trabalham com o divino, com o sagrado, com o espiritual, mas não detêm o monopólio do espiritual. Ele é um dado antropológico, da dimensão do profundo. Ocorre que as religiões podem se auto finalizar e se autonomizar, articulando os poderes religiosos com outros poderes ideológicos e políticos.[2]

É muito comum, nos dias de hoje, verificamos sinais de aceitação, de resiliência, ao afirmar que tudo o que está acontecendo foi “Deus que quis”, mas, ao mesmo tempo, ressalta que não dá para entender completamente todo o acontecido. Parece uma mistura de revolta diante do trágico, mas ao mesmo tempo de medo, diante do que inexplicável. Eis mais um lado violento do sagrado.

Esse é o mundo onde o habitar é movido pelo inevitável, onde tudo parece atender a urgente necessidade que a tudo sacraliza. Rebusca as longínquas terras da infância e, na potencialidade ali resguardada – no encantamento sem reservas, lá onde nos desvencilhamos do medo de estar entre o dizível e o indizível -, encontra modos para des-criar a obviedade existente. Conclama-nos a penetrar por frestas da subjetividade, da liberdade individual, conscientes de que no império do necessário e da impossibilidade não há sujeito, não há liberdade, tampouco criação.[3]          

Embora não se trate de negar que o ser humano tenha uma tarefa a realizar, a luta pela ética é a luta pela liberdade, ou seja, luta para que possamos experimentar nossa “própria existência como possibilidade ou potência”.[4]

Segundo o filósofo italiano, Giorgio Agamben,[5] tornar algo sagrado era, no Direito Romano, um conceito que designava a fuga das coisas da esfera do direito humano. Ao buscar a origem do termo “religio”, nosso filósofo descobre que não deriva de “religare”, mas de “relegere”, que indica justamente o caminho oposto: o que de seve observar para respeitar a separação entre o sagrado e o profano. Dessa maneira, a religião não se opõe à incredulidade e à indiferença em relação ao divino, mas à “negligência” com relação a ele, uma atitude livre e espontânea.

O Papa Francisco também ressalta a função e a primazia do “religare” em nossos tempos: “As religiões estão a serviço da paz e da fraternidade. Por isso, este encontro impele os líderes religiosos e todos os fiéis a rezarem insistentemente pela paz, não se resignarem jamais com a guerra e agirem mediante a força suave da fé para pôr fim aos conflitos.”

Adentrar o real, estar próximo às alteridades, propor caminhos de um novo humanismo… Eis as missões urgentes da espiritualidade contemporânea.


[1] BOFF, Reflexões de um velho teólogo e pensador, p. 124-125.

[2] BOFF, Reflexões de um velho teólogo e pensador, p. 171.

[3] BÊTA, J. L., Madras, p. 28.

[4] AGAMBEN, G., Estado de exceção, p. 9.

[5] AGAMBEN, G., Estado de exceção, p. 65.

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Prof. René Dentz
É
 católico leigo, professor do departamento de Filosofia, curso de Psicologia-Praça da Liberdade na PUC-Minas, onde também atua como membro da equipe executiva do Observatório da Evangelização. Psicanalista, doutor em Teologia pela FAJE, com pós-doutorado pelas Université de Fribourg/Suíça, Universidade Católica Portuguesa e PUC-Rio. É comentarista da TV Horizonte e da Rádio Itatiaia. Autor de 8 livros, dentre os quais “Horizontes de Perdão” (Ideias e Letras, 2020) e “Vulnerabilidade” (Ideias e Letras, 2022). Pesquisador do Grupo de Pesquisa CAPES “Mundo do trabalho, ética e teologia”, na FAJE-BH.

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Espiritualidade em tempos líquidos https://observatoriodaevangelizacao.com/espiritualidade-em-tempos-liquidos/ Wed, 27 Apr 2022 20:55:47 +0000 https://atomic-temporary-74025290.wpcomstaging.com/?p=44873 [Leia mais...]]]>

Nosso tempo parece apresentar diversos desafios existenciais. Nunca foram presenciados tantos casos de depressão e ansiedade. Em um mundo acelerado, percebemos que a espiritualidade pode servir de alento ao humano, mas, ao mesmo tempo, pode apenas seguir uma lógica de bem-estar, tão presente em nossos tempos. Se dessa forma se apresenta, não estaria tão distante de livros de autoajuda e processos de “coaching” de vida (ou até coaching espiritual?). Ela pode cair na armadilha do narcisismo, quando tudo está tramitando o âmbito do eu. Dessa maneira, apenas ressalta e aprofunda egoísmos e características líquidas e superficiais de nossa época.

Como nos mostra a socióloga Danièle Hérbieu-Léger, o cristianismo hoje se configura como um “lugar de trânsito”, tendo a experiência religiosa ganhado um contorno de subjetividade e liberdade. Dessa maneira, a modernidade religiosa é caracterizada pela individualidade das crenças. “Apresenta as figuras, no âmbito religioso, do peregrino e do convertido, que manifestam a mobilidade e a fluidez dos religiosos atuais, formando comunidades novas, redes, grupos, e a ação de desinstitucionalização dentro destas novas comunidades, fruto de duas tendências: o individualismo e o particularismo comunitário”. Tudo parece estar conectado, mas, ao mesmo tempo, desconectado do real e de suas vulnerabilidades expostas. Atestar as vulnerabilidades só é possível se efetivamos uma desconstrução dos narcisismos enraizados e abrimos, assim, um caminho de alteridade profunda.

Segundo Joseph Moingt, a história não saiu da religião pela virtude própria da religião, que representa resistência ao movimento e ao novo, mas pela virtude de outras energias espirituais: razão, liberdade e a chamada ao transcendente. Dessa forma, a sociedade moderna não deve seu nascimento ao que o cristianismo tem em comum com a religião, mas pela força explosiva da Boa Nova que o impulsiona à história, justamente para fazer história. Em última instância, o dilema colocado pode ser explicitado dessa maneira:  como o monoteísmo se configura em humanismo, e como o humanismo enfrenta a  finitude  que  entrou  assim  na  história, como nos mostra paralelamente Jean-Luc Nancy.

Consiste antes no encontro entre a razão filosófica e a “experiência-choque” do anúncio cristão. Nessa experiência-choque, a sabedoria humana é qualificada como sendo a da loucura perante Deus. Dessa maneira, inaugura-se uma reflexão filosófica que põe o homem a descoberto. Essa reflexão leva à conversão filosófica da razão absoluta, ligada a Deus, na razão humana perante Deus. A razão desabsolutizada e destotalizada, saindo do seu autismo, é “autônoma” em relação a Deus, uma vez que a meditação da experiência cristã mais não é que humana. Ela tem a ver com a experiência cristã que torna possível a autonomia da filosofia. A filosofia sem absoluto é, portanto, a filosofia fora do autismo de uma razão humana perante Deus. Como insiste Jean-Luc Marion, “inverter a questão não equivale apenas a evitar respondê-la, mas manifesta que a questão de Deus se dirige ao homem a partir de Deus (e, portanto, do homem como aquele a quem Deus se dirige)”.

Os “sofrimentos” designam a dificuldade de reconciliação: o esforço por manter incessantemente a autonomia do discurso filosófico, sem o confundir com a fé bíblica, por vezes causa uma contradição. As “pequenas felicidades” significam talvez um estado de equilíbrio, de consentimento ao que existe. A fé bíblica independente é preservada do ato livre de filosofar, no entanto, essas duas esferas são mantidas em tensão. A expressão ricœuriana “filósofo sem absoluto” não indica apenas a afirmação da atitude agnóstica, ela situa-se também no outro pólo da identidade conflitual do “cristão de expressão filosófica”. Essa tensão conflitual íntima é o processo de abrir incessantemente uma via para a autossuficiência da pesquisa filosófica, confirmado indiretamente pela motivação de dar razão da fé bíblica. A expressão “sem absoluto” é um estado do ato inacabado do filosofar diante da fronteira.

A “filosofia sem absoluto” é a conversão da razão humana perante o Infinito. Paul Ricœur propõe uma diferença singular entre a atitude que se posiciona perante Deus daquela que se posiciona perante a morte, ele sugere que elas partilham um solo comum: a do pensamento humano perante o limite. O perante é o espaço mas também o momento da reflexão desenvolvida através da experiência do limite, reflexão que até pode incidir sobre o próprio conceito de limite. Aquilo que está envolvido nessas duas atitudes remete para questões que não pedem uma resposta plena, como é o caso das que se interrogam sobre Deus ou sobre a sobrevivência após a morte. Essas questões sub-liminares reenviam elas próprias, nos textos de Ricœur, para interrogações cujo domínio é confinado pela finitude humana. Assim, a experiência da fronteira orienta-nos para o pensamento do viver “bem” ou da realização da vida perante a morte. É sem dúvida porque a morte é então vista a partir do seu aspeto de concretude, a qual, por seu lado, também questiona o nosso concreto.

“Espiritualidade do real”, das vulnerabilidades expostas, do “infinito na finitude”, eis os caminhos do nosso concreto diante do Infinito.

Prof. René Dentz
É
 católico leigo, professor do departamento de Filosofia, curso de Psicologia-Praça da Liberdade na PUC-Minas, onde também atua como membro da equipe executiva do Observatório da Evangelização. Psicanalista, doutor em Teologia pela FAJE, com pós-doutorado pelas Université de Fribourg/Suíça, Universidade Católica Portuguesa e PUC-Rio. É comentarista da TV Horizonte e da Rádio Itatiaia. Autor de 8 livros, dentre os quais “Horizontes de Perdão” (Ideias e Letras, 2020) e “Vulnerabilidade” (Ideias e Letras, 2022). Pesquisador do Grupo de Pesquisa CAPES “Mundo do trabalho, ética e teologia”, na FAJE-BH.

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A fé é plural https://observatoriodaevangelizacao.com/a-fe-e-plural/ Thu, 10 Feb 2022 18:43:45 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=43378 [Leia mais...]]]> Deus está em todas as coisas. Essa afirmação, que por muitos pode ser tomada como panteísta, é defendida por Tomás de Aquino em sua monumental Suma Teológica logo entre suas primeiras questões. É através das coisas – suas obras – , inclusive, que podemos conhecer a Deus, já que para nós, em si, sua existência não é evidente. Do múltiplo, podemos chegar ao uno.

A pluralidade é um dom da criação. Não um defeito, uma degeneração. Mas uma riqueza que nos ajuda a compreender Deus, que é unidade, mas também diversidade. A concepção cristã de Deus, aliás, traz em si um importante ressalte à diversidade que existe no próprio Criador. A noção de Trindade (Pai, Filho e Espírito Santo) expressa um Deus que não é monolítico, mas que manifesta sua unidade a partir de um paradigma relacional, familiar.

Um mundo uniforme, portanto, estaria muito mais distante do Criador do que um mundo de plurais possibilidades, culturas, manifestações. Uma humanidade homogênea em pensamento e espiritualidade não poderia ser chamada “à imagem e semelhança de Deus”. A pluralidade dá testemunho do divino, tanto quanto a unidade, entendida como relação.

Desta realidade teológica, decorre um imperativo pastoral: dialogar com as diferenças, incluí-las e legitimá-las faz parte do caminho do discipulado cristão. Este diálogo, presente desde as primeiras comunidades eclesiais e muito claramente expresso no apostolado de Paulo junto aos pagãos, é, em si, o que chamamos de unidade.

No amor ágape manifesto pelo Pai através de Jesus Cristo, ser uno significa antes uma meta, uma dinâmica de “vir a ser”, do que um dado determinado da realidade eclesial. “Que sejam um” é a oração e o desejo do Bom Pastor para “estes” e “aqueles”, que fazem e que virão a fazer parte do seu redil (Jo 17, 20-21). Este é o caminho de sinodalidade que a Igreja é chamada a percorrer continuamente, não só para testemunhar sua unidade interna, mas sobretudo a encontrar, nutrir e sustentar. O caminhar conjunto dos discípulos missionários é, portanto, numa lógica trinitária, acolhida familiar das diferenças, abertura à diversidade, escuta das vozes que clamam das plurais periferias, tantas vezes silenciadas pelo núcleo duro do poder e da cultura hegemônica.

Nas relações amorosas se diz que os opostos se atraem; talvez aqui, a ideia de oposição seja uma radicalização questionável da atração à diferença. Não se pode negar, porém, que o verdadeiro amor não se manifesta sobre o que lhe é absolutamente igual, mas é parte constitutiva dele justamente o enlace entre as diferenças. A unidade, portanto, se dá no amor, porque é realidade relacional e não solitária.

Deus é amor, porque é plural. Porque aquele que não sabe se reconhecer no múltiplo, não aprende a amar sequer a si mesmo. Torna-se célula avulsa de um corpo orgânico de multiformes relações e interdependências; fadada, portanto, à morte, pois fora da unidade diversa do corpo não há vida.

Crer significa reconhecer, na multiplicidade das coisas, a presença de um Deus Amor. A espiritualidade fecunda é aquela que se reconhece parte, e não todo. E porque aberta à diversidade da vida, aprende a reconhecer o amor, que é força capaz de unir o que está disperso e que faz do que é plural não uma divisão, mas uma unidade viva. 

Matheus Cedric
É professor de Filosofia e Ensino Religioso e autor de material didático para Educação Básica nas mesmas áreas. É cofundador da Oficina de Nazaré. Atualmente estuda Teologia na PUC Minas, onde trabalha como membro da equipe executiva do Observatório da Evangelização.

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PARA ILUMINAR… Lucas 1, 46-56, com a palavra pe. Francys, SJ https://observatoriodaevangelizacao.com/para-iluminar-lucas-1-46-56-com-a-palavra-pe-francys-sj-2/ Wed, 22 Dec 2021 15:31:00 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=43264 [Leia mais...]]]> Mulher santa de Deus
cantora daquela libertação
que une a Terra e o Céu
gostaria tanto de viver enfim
o Natal à tua maneira
Por isso ensina-me
a cantar as maravilhas do Alto
que só podem ser vistas e ouvidas
no avesso da história dos entendidos
na periferia dos grandes centros de poder
na resistência à hegemonia dos soberbos
Ajuda-me a enxergar
a revolução de Deus
já em silenciosa e poderosa ação
nas mãos vazias dos pobres
no ventre pedinte dos famintos
no coração desarmado dos humildes
Intercede junto a teu Filho
para que eu abrace
a graça do esvaziamento
a demolição dos meus tronos
o abandono de minhas falsas seguranças
Sim, pois só experimenta o júbilo
pela misericórdia infinita
pela saciedade que há de vir
pela exaltação dos descartados
quem não tenta construir sozinho
sua própria salvação
mas se doa inteiramente
como parceiro do resgate de cada pessoa
a quem o Pai quis criar e gerar
como pura expressão do Seu Amor

Lucas 1, 46-56

Belo Horizonte, 22 de dezembro de 2021.

Sobre o autor:

Pe. Francys Silvestrini Adão

Francys Silvestrini Adão é padre jesuíta e professor de Teologia na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, em Belo Horizonte. É doutor em Teologia Fundamental e Sistemática pelo Centre Sèvres – Facultés Jésuites de Paris (2019). É o atual coordenador do Curso de Teologia na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia. É membro da equipe de formação jesuíta no pós-noviciado (juniorado e filosofado), estando também envolvido na pastoral juvenil, no programa “Magis Brasil”. Poeta místico do Evangelho, a sua teologia espiritual é colocada a serviço do aprofundamento da experiência cristã enquanto seguimento de Jesus e processo de conversão a Deus. Ele é colaborador do Observatório da Evangelização – PUC Minas.

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A Palavra se fez Carne https://observatoriodaevangelizacao.com/a-palavra-se-fez-carne-54/ Wed, 22 Dec 2021 15:00:00 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=43251 [Leia mais...]]]> Hoje é dia 22 de dezembro, 4ª feira da quarta Semana do Advento.

O Advento nos devolve à beleza do pequeno, à humildade do cotidiano, à simplicidade dos encontros. “Minha alma engrandece ao Senhor”. Assim como rezou Maria, rezamos também hoje, prestes a celebrar o Mistério do Nascimento do Deus conosco, Emanuel, o Filho de Deus. Deus mesmo se faz carne e habita entre nós. Cantemos, como a jovem Virgem de Nazaré, os louvores ao Senhor, que vem transformar a nossa história, ele salva seu Povo e sua misericórdia se estende de geração em geração a todos os que o respeitam.

Escuta o Evangelho de Lucas 1, 46-56:

Naquele tempo: Maria disse: ‘A minha alma engrandece o Senhor. E o meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador, porque olhou para a humildade de sua serva. Doravante todas as gerações me chamarão bem-aventurada, porque o Todo-poderoso fez grandes coisas em meu favor. O seu nome é santo, e sua misericórdia se estende, de geração em geração, a todos os que o temem. Ele mostrou a força de seu braço: dispersou os soberbos de coração. Derrubou do trono os poderosos e elevou os humildes. Encheu de bens os famintos, e despediu os ricos de mãos vazias. Socorreu Israel, seu servo, lembrando-se de sua misericórdia, conforme prometera aos nossos pais, em favor de Abraão e de sua descendência, para sempre.’ Maria ficou três meses com Isabel; depois voltou para casa.

Nossa alma se alegra em Deus, o Salvador. Ele em seu Nascimento nos visita, nos surpreende como presente que tem a capacidade de salvar. Dentro de poucos dias, celebraremos o mistério de seu Natal. Sua divindade nos visita, nos comunica toda bondade para que sejamos divinizados. Toda história se transforma com a presença salvífica de Deus: ele derruba o orgulho dos poderosos e eleva a humildade dos pobres, sacia a humanidade com sua presença: ele é o Salvador. Peça a Deus que, a exemplo de Maria, te faça missionário da boa notícia, que seu Filho Jesus veio anunciar.

Você é capaz de crer como Maria: com humildade e obediência? À luz do exemplo dela, você deixa que o ‘Senhor faça em você maravilhas’? Deixa-se guiar pelo seu Salvador na confiança total do seu Amor? Sua fé em Deus é capaz de transformar as realidades injustas e promover os pobres e humildes? Está sensível como a mãe de Jesus às necessidades dos irmãos?

“O Todo-poderoso fez grandes coisas em meu favor”, assim afirma a virgem Maria. Que o poderoso realize em nós grandes coisas pela graça da fé que habita nosso interior. Diz o cardeal dom José Tolentino Mendonça:

Advento, tempo de abrir janelas na noite do sofrimento, da solidão, das dificuldades e sentir-se prometido às estrelas, não ao escuro. Advento, tempo para contemplar o infinito na história, o inesperado no rotineiro, o divino no humano, porque o rosto de um Homem nos devolveu o rosto de Deus.

Termina tua oração pedindo ao Senhor que nasça e renasça em seu coração, assim como habitou o seio da Virgem Maria. Peça também que Ele possa reluzir cotidianamente em suas atitudes.

Ave Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco, bendita sois vós entre as mulheres e bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus. Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós pecadores, agora e na hora da nossa morte.

Amém.

Fonte:

https://arquidiocesebh.org.br/palavra-se-fez-carne/

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A Palavra se fez Carne https://observatoriodaevangelizacao.com/a-palavra-se-fez-carne-55/ Wed, 22 Dec 2021 13:33:21 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=43257 [Leia mais...]]]> Hoje é dia 21 de dezembro, terça-feira da Quarta Semana do Advento.

O evangelho de hoje fala da alegria da espera, mas de um modo especial da visita esperada. Isabel recebe concretamente esse importante visita. Maria vai a sua casa, apressadamente, e leva no seu ventre a razão da alegria de Isabel. O encontro destas duas mulheres é um encontro especial. Deus se manifesta neste encontro. Bastou que Maria saudasse Isabel para que a criança, no ventre, João Batista, estremecesse e Isabel ficasse repleta do Espírito Santo. Peça ao Senhor a graça da esperança e alegria no Espírito Santo na expectativa da chegada do menino Deus em sua vida.

Escuta o Evangelho segundo Lucas 1, 39-45:

Naqueles dias, Maria levantou-se e foi apressadamente à região montanhosa, a uma cidade de Judá. Ela entrou na casa de Zacarias e saudou Isabel. Quando Isabel ouviu a saudação de Maria, a criança saltou de alegria em seu ventre. Isabel ficou repleta de Espírito Santo e, com voz forte, exclamou: “Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre! Como me acontece que a mãe do meu Senhor venha a mim? Logo que ressoou aos meus ouvidos a tua saudação, a criança pulou de alegria no meu ventre. Bem-aventurada aquela que acreditou, porque se cumprirá o que lhe foi dito da parte do Senhor”.

Há o reconhecimento do Filho de Deus no ventre de Maria. Ela, a arca da Aliança, trazendo em seu ventre a Palavra Encarnada, que liberta e salva, nos ensina que todas as vezes que somos solidários com quem necessita, Deus se manifesta nestes gestos. Maria servidora é Bendita porque acolheu e acreditou na Palavra do Senhor que se fez carne e habitou entre nós. Converse com Deus, para que a exemplo da mãe Maria, você acolha e acredite na Palavra que liberta e salva, sendo dócil e realizando em sua vida a vontade do Pai.

Estamos, portanto, nos preparando para receber a visita daquele que vem para fazer a diferença em nossa vida, vem fazer morada entre nós. Você está preparado para acolhê-lo, amá-lo e segui-lo como Maria servidora, mãe e modelo do discipulado de Jesus? O que você mudou em sua vida para ser mais serviçal, fazendo seu coração manjedoura?

“Bem-aventurada aquela que acreditou…” Que você, como Maria possa acreditar na força libertadora da Palavra de Deus, acolhendo-a e experienciando-a em sua vida. Assim, seja um discípulo missionário testemunhando o reinado do Senhor. A música “A Escolhida”, do Mons. Jonas Abib, diz assim:

Uma entre todas foi a escolhida
Foste tu Maria serva preferida
Mãe do meu Senhor
Mãe do meu Salvador
Maria cheia de graça e consolo
Venha caminhar com teu povo
Nossa Mãe sempre serás

Termina sua oração agradecendo a Deus pela vinda do seu Filho, Palavra Encarnada, para nos libertar de toda e qualquer opressão que impede a experiência de sermos mais serviçais, principalmente com nossos irmãos empobrecidos, marginalizados.

Ave Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco, bendita sois vós entre as mulheres e bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus. Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós pecadores, agora e na hora da nossa morte.

Amém.

Fonte:

https://arquidiocesebh.org.br/palavra-se-fez-carne/21-de-dezembro-3a-feira-da-quarta-semana-do-advento/

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“Reconstruindo nossa identidade”, com a palavra Alfredo Sampaio Costa, SJ https://observatoriodaevangelizacao.com/reconstruindo-nossa-identidade-com-a-palavra-alfredo-sampaio-costa-sj/ Wed, 10 Nov 2021 11:00:00 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=42601 [Leia mais...]]]>

A oração não tem somente uma finalidade de nos elevar até Deus. Ao fazer isso, restabelece nossa ligação originária com o Criador e revela igualmente quem somos como criaturas:

“Nesse diálogo que se origina entre corpo, pensamento e afetividade, e que nos percorre incessantemente por dentro, vamos clarificando o que realmente somos e o que queremos. Saber dizer “olá” ao novo e “adeus” ao que deixamos, sem ficar divididos e dilacerados entre o que rejeitamos e o que escolhemos, é forma de saúde e disponibilidade evangélica. Cada decisão tem o seu momento junto, a “hora” precisa que não devemos adiantar nem adiar. Saber perceber o “agora” de cada decisão, quando o dom de Deus aparece em nossa realidade, supõe amadurecer os processos até o instante preciso, sem acelerá-los pela ansiedade nem os adiar pelo medo”.

GONZÁLEZ BUELTA, Benjamín. Orar em um mundo fragmentado, p. 104.

Muitas pessoas têm receio de abandonar-se nos colóquios ao Senhor, temendo aquilo que o Senhor poderá lhe pedir na oração, e que terá consequências “desagradáveis” para a acomodação com que elas vivem a sua vida espiritual. Para Inácio de Loyola, Deus é o “Deus sempre maior”, surpreendente, que nos chama para o “mais”, desinstala, acredita sempre nas nossas potencialidades…

Não é nada fácil resistir à ansiedade que atropela os processos sem pressa do Espírito. Qual o momento preciso para passar à decisão?

“As grandes decisões marcam a vida em sua orientação fundamental nos momentos de encruzilhada, mas é necessário estar sempre atentos para não chegar a um porto diferente do escolhido, pois na vida cotidiana estamos expostos a muitos ventos enviesados, ou a correntes submarinas que nos podem desviar de nossa rota enquanto dormimos.  Nunca assumimos plenamente nossas decisões fundamentais com todo o nosso ser, sempre ficam dimensões escuras que não foram integradas à opção, e que em algum momento posterior ameaçam, distorcendo a eleição realizada”.

GONZÁLEZ BUELTA, Benjamín. Orar em um mundo fragmentado, p.105.

Será provavelmente nos momentos dos colóquios onde experimentaremos no nosso coração os grandes, mas também os delicados apelos do Senhor, movendo o nosso coração, tocando os nossos afetos, sugerindo, animando, acompanhando-nos rumo a uma vida de maior amor e serviço. Enfrentando furacões, ventanias de todo tipo, iremos aos poucos percebendo a brisa suave onde Deus se faz sentir.

No confronto com o outro, descubro quem sou

Neles experimentamos que não estamos sós, nunca estivemos e nunca estaremos, porque somos criados em relação e numa relação de Amor. Descobrimos que os outros e, principalmente, o Outro que é Deus é que nos permitem descobrir quem somos nós.

Contudo, a experiência da relação nem sempre é vivenciada como sendo algo agradável e que me realiza como pessoa. É importante pois considerar diversas situações que se podem apresentar quando nos sentimos na presença de um outro:

  • O outro pode se apresentar como um dom que me complementa, com sua beleza, bondade, inteligência, fortaleza. Mas todos somos limitados. Em alguma parte acabam nossas forças, nossa saúde ou nossas habilidades aprendidas. Frequentemente oramos a Deus para que nos tire os limites que se cravam na carne como espinhos. Alguns limites se superam, mas outros Deus nos ajuda a reconhecê-los, aceitá-los e a receber de outros o que necessitamos para viver e para cumprir a missão que ele nos confia. Em vez de eliminar o limite que aumenta minha suficiência, enviar-me-á ao outro que aumenta minha comunhão, como se referiu Moisés a seu irmão Aarão, que falava bem, quando se queixou de sua pouca facilidade de palavra para levar adiante sua missão (Ex 4, 14). “Procurar Aarão” humildemente é um desafio para nosso orgulho e nossa autossuficiência. Também é uma provocação me aproximar do outro com gratuidade, e não pelo que posso tirar dele.
  • O outro pode ser uma diferença que desinstala meus julgamentos e minhas posturas vitais. Cada vez mais experimentamos hoje uma violenta polarização de opiniões, juízos, ideologias, onde o “diferente” é quase sinônimo de “inimigo” e, portanto, deve ser eliminado ou, ao menos, ignorado. O confronto com o outro sempre será uma oportunidade para rever minhas posturas e nos abrirmos a outros modos de sentir, ver, falar e viver.
  • O outro pode ser uma pobreza que me tira de meu egoísmo. Sabemos como o contato com os pobres e descartados da sociedade nos impacta e exige uma resposta de vida. Na sua tremenda indigência, apela à nossa solidariedade e compaixão.
  • O outro pode ser um Caim, uma agressão poderosa que ameaça mutilar minha pessoa ou destruir minha vida[1]. A trágica história dos dois irmãos paira sempre como uma ameaça real sobre nós quando temos que enfrentar o outro que está no nosso caminho. Conhecemos muito bem as resistências e bloqueios que experimentamos diante de conversas com pessoas desconhecidas. O mundo nos faz desconfiar de tudo e de todos, carregando de hostilidade e suspeita qualquer relacionamento humano.

Pois bem, quando nos pomos a rezar, com qual desses “outros” eu me deparo?

Podemos em um ou outro momento experimentar mais uma destas situações, e é importante ter consciência de como sentimos o outro, pois dependendo do modo como nós o sentimos, será a nossa resposta: não é o mesmo responder a um estranho desconhecido, a um parente, a um amigo íntimo ou a um inimigo mortal.

Quando vamos rezar, entram em ação as imagens que temos de Deus, e elas afetarão imensamente nossa relação com Ele. Estabelecerão o clima do encontro, amistoso ou hostil. Importa, pois, ajustar nossa lente para captar quem é Deus verdadeiramente. Quem vem em nosso socorro para esta tarefa é o Filho Amado, Jesus.

Deus se faz outro em Jesus

“Em Jesus, Deus se fez outro, próximo e misterioso, débil e forte, fascinante e marcado pelos limites, entregue a outros para que vivam em plenitude e necessitado de outros para poder existir e chegar à plenitude de sua própria identidade. Decide encarnar-se como Senhor da história, mas ao mesmo tempo pede permissão a Maria, adolescente e camponesa. É o amor sem medida, mas tem que ser acolhido e amado de maneira incondicional por uma mãe antes de existir, sem saber como será e de que forma orientará sua vida. Jesus não só é um dom do Pai, mas também um dom dos que o acolheram e cuidaram. Com ele começou uma nova etapa da história, mas ele se encarnou em toda a história que o precedeu, onde homens e mulheres amaram e lutaram para elaborar a cultura e a comunidade onde pôde formar-se e ser um homem que pôde dizer “nós”, como todo ser humano”.

GONZÁLEZ BUELTA, Benjamín. Orar em um mundo fragmentado, p. 126-127.

Jesus nos revela o Pai, ou melhor, nos mostra o Amor infinito do Pai, sua Compaixão sem limites. Quando nos dirigimos a Deus nos colóquios, deixamo-nos invadir por uma presença amorosa de alguém que nos ama de tal forma que quer se fazer um de nós, alguém a quem podemos nos dirigir chamando-o de “Tu”.

“Em Jesus encontramos a Deus mesmo, que acolheu todos os que lhe saíram ao encontro, e aos que ele mesmo procurou pelos caminhos e praças onde estavam perdidos e paralisados.  Jesus nos oferece a imagem de um Deus que não pôs no centro de sua vida a conservação de sua própria pessoa, a segurança e o prestígio social que podia adquirir facilmente graças a sua inigualável personalidade, mas a toda outra pessoa que encontrava em seu caminho, superando qualquer classificação discriminatória, paralisante ou excludente”.

GONZÁLEZ BUELTA, Benjamín. Orar em um mundo fragmentado, p. 128.

Em todo outro podemos encontrar o Outro

Deus nos salva fazendo-se outro. Não só em Jesus de Nazaré, ao qual nós podemos contemplar, amar e seguir. Continua salvando-nos, fazendo-se outro em toda pessoa que nos sai ao encontro. O encontro nos salva porque nos permite entrar na comunhão necessária que nos fortalece. Deus se faz outro, com letra minúscula, em Jesus de Nazaré e em toda pessoa, para que todos possamos nos aproximar dele, e para que em todo outro tratemos de descobri-lo e possamos encontrá-lo e amá-lo”[2]. Cada vez mais e de formas novas!

Sobre o autor:

Como estamos organizados – Rede Servir – Jesuítas do Brasil
Pe. Alfredo Sampaio Costa, SJ

Pe. Alfredo Sampaio Costa SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

https://faculdadejesuita.edu.br/fajeonline/palavra-presenca/reconstruindo-nossa-identidade/

[1] Benjamín GONZÁLEZ BUELTA, Orar em um mundo fragmentado, 124-126.

[2][6] Benjamín GONZÁLEZ BUELTA, Orar em um mundo fragmentado, 128.

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Preparemo-nos: Ele está para chegar! https://observatoriodaevangelizacao.com/preparemo-nos-ele-esta-para-chegar/ Sat, 09 Dec 2017 12:44:41 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=27084 [Leia mais...]]]> Viver plenamente esse tempo de graça e esperança, que é o Advento, é possível quando alimentamos a espiritualidade, profundamente. A espiritualidade é o que nos dá vida e dinamismo. O que nos anima. O Espírito é o próprio Sopro de Deus!

Há diferentes formas de cultivar a espiritualidade, no entanto, certamente poderemos reconhecer se o Espírito que a move é o de Jesus se a fé se torna ação libertadora, pois assim foi o Peregrino de Nazaré: livre e libertador! A espiritualidade genuinamente centrada em Jesus suscita nosso comprometimento com a transformação de nossa realidade injusta, desumana, desigual, sem ética e sem compaixão em outra que se molda pelos valores evangélicos. Será pautada nos valores do Reino se for libertadora. Entretanto, ao contemplarmos Jesus de Nazaré observamos que antes de Ele agir há muitas pausas para oração a fim de se manter continuamente em sintonia com o Abba. Assim se fortalecia para a jornada.

Nossa realidade demanda que não nos acomodemos. Preparar-nos para o Natal não se trata, certamente, de alimentar o mercado de consumo e descarte; mas suster o espírito. É necessário, sim, nutrir-nos do maior dos alimentos para prosseguir na missão a nos confiada. Um belo instrumento a nos oferecido e que poderá (e muito!) nos auxiliar a viver melhor este tempo de preparação para o Natal de Jesus é o cultivo da  mística e espiritualidade com as canções meditativas de Taizé.

Na sua comunidade, antes de cada encontro celebrativo, é possível criar um ambiente de silêncio e reflexão, de acolhida e oração com refrãos meditativos como aqueles de Taizé.

Ânimo, portanto. Preparemos a casa do coração porque Ele está pra chegar…

Tânia Jordão

 

 

https://www.youtube.com/watch?v=k95tnMUvwVY

 

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Juventudes: Espiritualidade… Oração de Taizé https://observatoriodaevangelizacao.com/juventudes-espiritualidade/ Fri, 01 Dec 2017 02:58:30 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=27000 [Leia mais...]]]> Quando pensamos na necessidade do cultivo da espiritualidade, particularmente em relação às espiritualidades das juventudes, percebemos desde buscas que mesclam todo tipo de encontro transcendental – a pós-moderna espiritualidade líquida (se quisermos usar o conceito de Bauman) – até a espiritualidade libertadora, que norteia vários grupos de PJ (Pastoral da Juventude). O fato é que o imenso vazio das sociedades urbanas atuais acaba por produzir uma busca de um porto seguro, um referente que possa preencher, dar sentido à existência. Ou, quiçá, em todos os tempos tenha havido essa busca e isso mesmo nos faça “humanos”.

No caso das juventudes cristãs,  vários são os grupos que se fecham em um subjetivismo vertical, em orações catárticas, ditas “de adoração” ou “de libertação”, mas que desconhecem que a libertação trazida por Jesus de Nazaré é aquela que transforma a realidade daqueles que sofrem todo tipo de exclusão.

Mas há também jovens ecumênicas/os que se unem em oração a partir da interioridade, do silêncio; cantando refrães meditativos, acolhendo trechos das Escrituras Sagradas, rezando salmos…  Elas e eles refletem sobre a própria realidade e alimentam o espírito, por isso se comprometem com a transformação da sociedade e animam a existência.

O cultivo da vida interior leva, necessariamente, à solidariedade, na perspectiva de Taizé. É sobre essa experiência que dirigiremos nosso olhar neste advento. Neste momento histórico em que a espiritualidade da juventude, por vezes, tem sido relacionada à alienação, é esperançador conhecer jovens que desejam cultivar o ecumenismo, ou seja, se dispõem a ser dialogais em uma sociedade tão polarizada. Acompanhe-nos, nas próximas semanas, nesse encontro pelos caminhos da interioridade, da confiança e da reconciliação.

Professora Tânia Jordão

 

Outras publicações acerca desta observação:

 

https://atomic-temporary-74025290.wpcomstaging.com/2017/12/04/os-jovens-querem-se-encontrar-com-deus/

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