Elas as apagadas da história – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com Mon, 15 Jul 2019 13:49:14 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.4 https://i0.wp.com/observatoriodaevangelizacao.com/wp-content/uploads/2024/04/cropped-logo.png?fit=32%2C32&ssl=1 Elas as apagadas da história – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com 32 32 232225030 Mulheres discípulas, profetizas e diaconisas… Vozes e presenças que desafiam a Igreja hoje (1) https://observatoriodaevangelizacao.com/mulheres-discipulas-profetizas-e-diaconisas-do-novo-testamento-vozes-e-presencas-que-desafiam-a-igreja-hoje-1/ Mon, 15 Jul 2019 13:49:14 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=30822 [Leia mais...]]]> A presença das mulheres no Segundo Testamento da Bíblia ainda é pouco resgatada. O esforço de teólogas feministas busca encontrar o que está expresso, mas não está dito. Em todo o Segundo Testamento há a presença marcante das mulheres, sendo no Evangelho o sinal concreto que caminhavam junto a Jesus. O protagonismo das mulheres na história e nas epístolas, afirmando as posições de lideranças que elas assumiam. Na história, as mulheres tornaram-se oprimidas e maltratadas, por uma fé instrumentalizada e a história distorcida. A cultura androcêntrica e patriarcal trata a mulher com insignificância.

Segundo o Concílio Vaticano II, a Igreja de Jesus Cristo, conduzida pelo Espírito Santo, por ser uma realidade histórica e formada por homens e mulheres, necessita estar sempre em processo de reforma para que possa responder aos sinais do tempo com seus desafios e urgências. Esta condição histórica da Igreja vem sendo recuperada pelo magistério do papa Francisco.

No contexto preparatório do Sínodo da Amazônia, apresentaremos aqui uma série de entrevistas e artigos, publicados pelo Instituto Humanitas Unisinos, que destacam a voz e a presença profética e desafiadora das mulheres desde as origens do Cristianismo. Para abrir a série, o primeiro artigo é de autoria da teóloga católica brasileira Solange do Carmo:

“Uma breve visita ao Segundo Testamento faz ver a presença discreta, mas eficaz das mulheres. Em Lucas, elas têm estatuto de discípulas (Lc 8,1-2); Maria Madalena é a discípula perfeita, de quem saíram sete demônios (Lc 8,2); Maria, irmã de Marta, está aos pés do Mestre na posição de discípula (Lc 10,39), assim como também a mulher pecadora na casa de Simão (Lc 7,38). Em João, são elas que ficam ao pé da cruz quando os homens fogem cheios de medo (Jo 19,25-27) e é Maria Madalena a primeira a fazer a experiência com o Ressuscitado (Jo 20,11-18). Em Marcos, são elas que sustentam a fé mais genuína (Mc 5,25-34; 7,24-30) e que, em primeiro lugar, vão ao sepulcro à procura do Mestre recebendo a tarefa de comunicá-lo aos demais (16,1-8). Em Mateus, são as matriarcas do Messias, merecedores de seus nomes na genealogia, apesar de sua vida duvidosa (Mt 1,1-16). Em Atos dos ApóstolosCartas, são profetizas (At 21,9), líderes comunitárias (At 16,14-15; 18,18-28), diaconisas (Rm 16,1) etc. No Apocalipse, a mulher é símbolo da vitória sobre todo mal, ensinando-nos que o fraco vence o forte pelo poder da fé resistente (Ap 12,1-17). Pululam por toda parte, no Segundo Testamento, sinais da presença marcante das mulheres nas comunidades primitivas.

Eis o artigo:

Elas, as apagadas da história

Por Solange do Carmo

Os Doze iam com Jesus e também algumas mulheres que tinham sido curadas de espíritos maus e doenças” (Lc 8,1-2).

“Mulher é morta pelo namorado”, anuncia a manchete do jornal popular. “Estupro coletivo”, noticiam outros tabloides. Na TV, as imagens chocam: socos, puxões de cabelo, hematomas, rostos desfigurados, sangue… Por todo canto, suspiros de desalento e desesperança. Bem debaixo de nosso nariz, estão elas: as violentadas. São nossas mães, irmãs, amigas, colegas de trabalho, servidoras da comunidade eclesial etc. A Lei Maria da Penha, apesar de simbolizar um avanço significativo, não consegue coibir a violência e garantir a vida delas e o tornado de agressões prossegue deixando seu rastro de morte. A truculência dos machos que se acham donos da história ainda prevalece sobre a racionalidade e o bom senso, que deveriam ser próprios do humano.

Com uma jornada dupla de trabalho, no lar e no emprego, são mão de obra barata, sem o retorno do reconhecimento. Elas permanecem invisíveis, insignificantes, desprezadas, humilhadas, quando não são xingadas, espezinhadas, marginalizadas, insultadas, estupradas e mortas por eles. Eles são de perto e de longe: o companheiro, que dorme ao seu lado; o irmão, que se acha seu dono; o pai, que deveria protegê-la; o padre, a quem confiou suas angústias; o estranho, que a viu passar sozinha na calçada; o patrão, que a assedia e a ameaça etc.

Torturadas pela dor, elas carregam no corpo e na alma as marcas do desprezo social. São invisibilizadas e apagadas da história. Num mundo androcêntrico, patriarcal e machista, só eles contam a história; são o centro da narrativa e a manutenção dessa memória lhes interessa. Como afirmou Judy Chicago, artista feminista norte-americana, “todas as instituições de nossa cultura dizem-nos – por palavras, fatos e, pior ainda, pelo silêncio – que somos insignificantes”.

Tantas vezes repetidas, mentiras inventadas pelos machos geraram crenças limitantes que adquiriram estatuto de verdades imutáveis. “Mulher é sexo frágil”. “O marido é a cabeça da mulher”. “Foi Deus quem fez assim”. “A mulher foi feita da costela de Adão”. “A mulher pecou primeiro”. Afirmam comodamente os homens na intenção de manter seus privilégios. Revisitam o Gênesis, desenterram o mito das origens, culpam Eva pelo pecado e justificam os desmandos masculinos. Para completar, pinçam frases esparsas de Cartas do Segundo Testamento, como Efésios e a Segunda de Pedro, e declaram a submissão feminina em nome de Deus. Um horror! A fé cristã é instrumentalizada para oprimir e maltratar aquelas que foram acolhidas e amadas pelo Nazareno.

Apesar da cultura androcêntrica e da sociedade patriarcal deixarem marcas indeléveis nos textos bíblicos, basta um pequeno olhar apurado para ver a força das mulheres em toda parte. Sabendo-se que o judaísmo (berço do cristianismo) é a religião do varão, qualquer sinal feminino nas Escrituras é um avanço sem par, que põe em xeque o machismo de nossas comunidades eclesiais. Afinal, a memória históricaandrocêntrica sustenta as estruturas do patriarcalismo. Assim os discursos religiosos perseveram enfatizando o silenciamento feminino, apesar dos avanços nos estudos bíblicos.

No Primeiro Testamento, elas estão em cada página. As matriarcas Sara (Gn 21,1-3), Rebeca (Gn 25,2-34) e Raquel e Lia (Gn 29–30) confabulam, tramam, seduzem, fazem a história acontecer. Raab, a prostituta, tem seu nome nos registros escriturísticos graças à sua hospitalidade (Js 2,1-20). Rute, a moabita, mostra que uma mulher estrangeira pode ser mais fiel que um varão israelita (livro de Rt). Dalila seduz Sansão, o homem forte, e mostra a força feminina (Jz 16,1-22). Débora destrói o poderoso Sisara com um prego na cabeça (Jz 4,1-24) e Judite corta a cabeça de Holofernes (Jt 13,1-20). Ester seduz o rei e salva toda sua gente (Est 5,1-14). A jovem Dina é violentada por Siquém e vingada por seus irmãos (Gn 34,1-31). Ana, a estéril, reza confiante a Deus e gera o fiel Samuel (1Sm 1,1-28). E assim vai. O rosário feminino é extenso, desde o Gênesis ao profeta Malaquias.

Uma breve visita ao Segundo Testamento faz ver também a presença discreta, mas eficaz delas. Em Lucas, elas têm estatuto de discípulas (Lc 8,1-2); Maria Madalena é a discípula perfeita, de quem saíram sete demônios (Lc 8,2); Maria, irmã de Marta, está aos pés do Mestre na posição de discípula (Lc 10,39), assim como também a mulher pecadora na casa de Simão (Lc 7,38). Em João, são elas que ficam ao pé da cruz quando os homens fogem cheios de medo (Jo 19,25-27) e é Maria Madalena a primeira a fazer a experiência com o Ressuscitado (Jo 20,11-18). Em Marcos, são elas que sustentam a fé mais genuína (Mc 5,25-34; 7,24-30) e que, em primeiro lugar, vão ao sepulcro à procura do Mestre recebendo a tarefa de comunicá-lo aos demais (16,1-8). Em Mateus, são as matriarcas do Messias, merecedores de seus nomes na genealogia, apesar de sua vida duvidosa (Mt 1,1-16). Em Atos dos Apóstolose Cartas, são profetizas (At 21,9), líderes comunitárias (At 16,14-15; 18,18-28), diaconisas (Rm 16,1) etc. No Apocalipse, a mulher é símbolo da vitória sobre todo mal, ensinando-nos que o fraco vence o forte pelo poder da fé resistente (Ap 12,1-17). Pululam por toda parte, no Segundo Testamento, sinais da presença marcante das mulheres nas comunidades primitivas.

Apesar de tudo isso, na história cristã, não poucas vezes elas foram desprezadas. Marcas de suplício feminino deixaram vestígios por toda parte na Igreja. Quando ousaram se rebelar e romper os grilhões, foram maltratadas, excluídas, consideradas loucas, bruxas, e internadas em hospícios ou queimadas vivas em praças públicas. O chão da comunidade eclesial é carmim; está manchado da seiva feminina derrubada pela violência dos homens do sagrado. São eles os acusadores, os juízes, os algozes, os carcereiros e os sedutores.

Seguem, porém, sem desanimar a marcha das combatentes, inclusive nas igrejas cristãs. Algumas resistem, insistem, protestam, seguram nas mãos das outras e dão uma palavra de ânimo para aquelas que duvidam de suas próprias potências. O movimento #MeToo veio encorajar religiosas a quebrarem o silêncio e a mostrarem quem seus algozes – quase sempre – usam hábito e batina. O papa Francisco tem sido companheiro combatendo esse tipo de crime, apoiando as investigações. Pouco a pouco, uma rede de apoio vai sendo tecida, com o fio da sororidade.

Fora das comunidades eclesiais, há verdadeiras guerrilheiras femininas. Algumas descobrem sua força e rejeitam a tirania masculina, inclusive a tirania da moda, do corpo perfeito, da fantasia de mulher maravilha. Não querem ser “a bela, recatada e do lar”, que faz figura bonita ao lado dele. Querem seu próprio lugar ao sol, como conta a ex-presidenta do Brasil, Dilma Roussef, acerca de sua experiência numa currutela do interior do Brasil. Certo dia, chegando para um evento público, uma multidão a esperava. Passando pela turba, uma mãe aponta para a presidenta e diz: “Filha, é a presidente do Brasil”. A menina, intrigada, perguntou à mãe: “Mas pode, mãe?”. E a presidenta respondeu convicta: “Pode. Pode isso e muito mais!”. Não há limites para a ousadia daquelas que acreditam em seus direitos e na igualdade de gênero.

Solange do Carmo é doutora em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), atualmente é professora no Instituto de Filosofia e Teologia Dom João Resende Costa (PUC Minas) e no Instituto Santo Tomás de Aquino (ISTA). É membro da Sociedade de Teologia e Ciência da Religião (SOTER), sendo parte da diretoria desta entidade na gestão (2016-2019).

Fonte:

Instituto Humanitas Unisinos – IHU 

Da série: Mulheres da Igreja. Vozes que nos desafiam. A presença inaudita das mulheres no Segundo Testamento.

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