Dom Pedro Casaldáliga – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com Fri, 19 Nov 2021 19:27:12 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.4 https://i0.wp.com/observatoriodaevangelizacao.com/wp-content/uploads/2024/04/cropped-logo.png?fit=32%2C32&ssl=1 Dom Pedro Casaldáliga – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com 32 32 232225030 “Ser Igreja na sinodalidade”, com a palavra Chico Machado https://observatoriodaevangelizacao.com/ser-igreja-na-sinodalidade-com-a-palavra-chico-machado/ Fri, 19 Nov 2021 19:27:12 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=42829 [Leia mais...]]]> Sextou também aqui pelas bandas do Araguaia. Uma sexta feira de chuva fina e clima ameno. Uma manhã preguiçosa, veio rompendo a aurora, com o sol timidamente mostrando a sua cara. Entre uma nuvem e outra, o astro rei, prenunciava o dia de inverno, como se denomina a estação das chuvas em terras do Araguaia. Aliás, por aqui só existem mesmo duas estações: inverno (preponderância das chuvas) e verão (domínio imponente do sol). Aprendi rapidamente a conviver com esta situação, apesar de suar intensamente nos primeiros meses em terras preláticas. “Você se acostumará”, me consolava Pedro.

Uma manhã em que acordei feliz cantarolando uma das canções que muito nos animaram em nossa caminhada de Igreja pé na caminhada. “O povo de Deus no deserto andava, Mas à sua frente Alguém caminhava. O povo de Deus era rico de nada, só tinha a esperança e o pó da estrada. Creio que esta canção, motivou a muitos de nós a fazer a caminhada de Igreja, engajada na luta dos pequenos. A palavra “engajada”, era parte intrínseca de nosso vocabulário, no seio das Comunidades Eclesiais de Base – CEBs. Rezar e lutar compunha o nosso itinerário nestas comunidades. Não havia dissociação entre estas duas realidades. Levávamos a sério o lema beneditino “Ora et labora”. Rezar e trabalhar, eram as duas faces de uma mesma moeda, uma coisa só.

O clima ainda é de pandemia, mas no seio da Igreja proposta por Francisco, vivemos em um clima perene de sinodalidade. Entre os anos de 2021 a 2023, vamos ouvir muito esta palavra: sinodalidade. Por uma Igreja sinodal: comunhão, participação e missão, como nos propõe o papa Francisco. Lembrando que a palavra sínodo significa, antes de tudo, “caminhar juntos”. Nesta sua propositura, ser Igreja é caminhar juntos. É viver a sinodalidade, numa atitude de escuta atenta às vozes sufocadas de nossas comunidades e ir de encontro aos anseios de um povo sofrido e marginalizado. Ser esta Igreja neste contexto é estar atentos também as vozes do Espírito Santo de Deus, para o caminhar de uma Igreja que se espelha em seu Mestre de Nazaré.

Sinodalidade foi a inspiração primeira de nosso bispo Pedro, na caminhada de Igreja experienciada na Prelazia de São Félix do Araguaia. Mesmo sem trazer em si esta insígnia, a nossa Igreja caminhou nesta perspectiva do estar juntos numa mesma toada, com cada dos seus participantes, sabendo claramente que formávamos a família dos “enfrentantes”. Cheguei para compor esta Igreja no ano de 1992 e pude perceber nas primeiras horas, que o “caminhar juntos”, era o dístico da prelazia, se estendendo pelos seus 150 mil km2, como a uma irmandade dos mártires da caminhada, na luta pela vida do povo sofrido desta região.

O simples e despojado padre Pedro, nem imaginaria que se transformaria em dom Pedro. Em julho de 1971, recebe a carta do papa Paulo VI (1897-1978), nomeando-o bispo desta região. Evidente que a primeira reação de Pedro foi renunciar a tal ideia, uma vez que não queria, em hipótese alguma, fazer parte da hierarquia da Igreja. Até escreveu sua carta-renúncia. Entretanto, convencido pela equipe de pastoral da época e, com a ajuda de Tomás Balduíno, o fez aceitar. Foi assim então que, no dia 23 de outubro, felizmente, Pedro é ordenado Bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia. Como bem registrou uma daquelas testemunhas oculares (Antônio Canuto): “Naquela noite de 23 de outubro de 1971, a abóbada celeste, as águas do Araguaia e todos nós que lá estávamos fomos testemunhas de que algo novo acontecia. Um bispo recusava as marcas do poder para mergulhar totalmente na vida do povo”. No cartão de lembrança de sua ordenação episcopal já estava escrito que tipo de bispo nosso Pedro seria: “Tua mitra será um chapéu de palha sertanejo; o sol e o luar; a chuva e o sereno, o olhar dos pobres com quem caminhas, e o olhar glorioso de Cristo, o Senhor. Teu báculo será a verdade do Evangelho e a confiança do teu povo em ti. O teu anel será a fidelidade à Nova Aliança do Deus Libertador e a fidelidade ao povo desta terra. Não terás outro escudo que a força da Esperança e a Liberdade dos filhos de Deus; nem usarás outras luvas que o serviço do Amor.

Estamos vivendo um “Kairós”. Palavra de origem grega, que significa “momento certo” ou “momento oportuno”. “Momento sinodal”. Ser Igreja sinodal: comunhão, participação e missão. Uma Igreja inserida na realidade dos caídos à beira da estrada. Uma Igreja que se faz presente em meio aos sofredores. Uma Igreja menos hierárquica e mais servidora, como propôs Jesus de Nazaré. Uma Igreja menos clerical, patriarcal e masculinizada, mas uma Igreja samaritana, que vê a realidade, e é capaz de sentir compaixão e cuidar dos mais necessitados. Uma Igreja de verdade, de um “caminhar juntos”, e que deixe de pisar os seus pés na “Casa Grande”, mas que os lambuzem nas “lamas” das senzalas de ontem e de hoje. Uma Igreja Franciscana em todos os sentidos, que saiba acolher, cuidar das feridas e devolver a dignidade dos filhos e filhas de Deus. Uma Igreja em que suas vestes “sagradas” sejam aventais e mantos para enxugar os pés machucados, pela dor e o sofrimento dos caídos a beira dos caminhos de hoje. Ser Igreja sinodal, nosso maior desafio.

Sobre o autor:

Chico Machado

Francisco Carlos Machado Alves é mineiro de Montes Claros, mas, desde 1992, a convite de Pedro Casaldáliga, vive e é agente de pastoral em São Félix do Araguaia. Fez das causas indígenas a grande causa de sua vida. Chico Machado, como é conhecido, trabalha com formação continuada de professores indígenas nas escolas das aldeias do Mato Grosso. Sua atividade pastoral é junto aos povos indígenas da região: Xavante, Kayabi, Iny (Karajá), dentre outros. Ele foi redentorista, tem mestrado em educação indígena, ele é graduado em filosofia, história e teologia. Chico Machado é colaborador do Observatório da Evangelização – PUC Minas.

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O bom odor de Pedro do Araguaia https://observatoriodaevangelizacao.com/o-bom-odor-de-pedro-do-araguaia/ Sun, 25 Jul 2021 13:14:15 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=40061 [Leia mais...]]]>

defendo com ardor que não empenhemos um processo de canonização para esse homem de Deus. E muito menos proclamemo-lo como santo súbito, coisa que os integristas e conservadores gostam de fazer com seus líderes piedosos e defensores da doutrina. Mantenhamo-lo sempre Pedro do Araguaia. Sem mais. Assim deve ser; assim deve ser lembrado. Respeitemos sua rebeldia!”

Por Solange do Carmo

Bem aventurados vós, os pobres” (Lc 6,20)

“Na dúvida, fique do lado dos pobres”
(Pedro Casaldáliga)

O sábado, 08 de agosto de 2020, amanheceu mais cinzento pois Pedro partiu. Sim, Pedro. Era assim que ele gostava de ser chamado, pelo nome de batismo, sem nenhum título. Sem ele, o Brasil ficou mais sombrio, mais silencioso, mais inodoro e mais órfão. Por sua consciência política e sua coragem de denúncia, Pedro foi ameaçado, perseguido, jurado de morte, mas não recuou. Resistiu e prometeu que morreria de pé como as árvores da floresta. Tombado pelo cansaço da vida e não por uma bala de revólver, o bispo do Araguaia morreu martirizado pela doença de Parkinson, nos ensinando que é preciso alimentar a utopia de uma terra sem males, onde todos têm os direitos garantidos e não há explorador nem explorado.

O jovem Pedro veio da Espanha para anonimamente servir os pobres do Brasil. Mas, como o amor exala bom odor (2Cor 2,14-16), logo Pedro ficou conhecido pelo perfume da fé que exalava. Seu cheiro bom encantou mulheres e homens sofredores, que viram nele uma espécie de pai dos pobres. Esse título, em outros tempos dado a são Vicente de Paulo, cabe bem ao bispo do Araguaia. Sua caridade, porém, percorreu caminhos bem diferentes da difundida por Vicente, cuja filantropia imediata saciava a fome dos famintos e socorria os desabrigados. Pedro encarnou a vida do pequeno, do menor de todos, do mais insignificante dos humanos. Despojou-se de todo conforto, de toda segurança, de toda regalia, ao modo franciscano. Viveu junto dos explorados do Araguaia e se fez um deles. A comparação com o Pobrezinho de Assis também não faz jus à vida de Pedro. Talvez Pedro pudesse ser comparado ao santo Oscar Romero, mártir da América Latina, cruelmente assassinado no altar, cuja vida foi unida à de Cristo num só sacrifício. Mas, apesar da mesma bravura, os dois bispos se distinguem. A poesia de Pedro, sua vida às margens do Araguaia, e sua sensibilidade para questões urgentes do nosso tempo, fazem-no uma pessoa singular.

Pedro inaugurou um novo modelo de santidade que não cabe nos moldes canônicos da Igreja. Sua via de santificação foi a resoluta decisão política de enfrentamento dos exploradores e de defesa dos subalternizados, a começar pelas populações originárias. Suas causas ultrapassavam os muros da eclesia e se faziam incômodas para os grandes da Terra. Seu modo de ser cristão era único, seu apostolado episcopal era inusitado e sua visão de igreja era inconveniente. Sua piedade era rebelde, sua religiosidade subversiva e sua fé, escandalosa.

Quando ninguém nas igrejas falava de direitos dos indígenas ou de respeito aos deuses dos quilombos, Pedro, criava o CIMI e a pastoral da Terra. O bispo poeta fazia ecoar seus versos em favor dessa gente sem voz. A famosa missa dos quilombos, musicada por Milton Nascimento, fez história. Tornou-se peça de teatro e incomodou os poderosos por ocasião da ditadura.

Quando nas igrejas ainda não se falava de defesa do meio ambiente, nem havia o Francisco de Roma escrevendo a Laudato Si’, Pedro protegia as matas, os bichos e toda espécie de vida. Amaldiçoava as queimadas, as cercas e o direito de possuir a terra, entendida como dom de Deus para a vida de todos.

Quando nas igrejas ainda não se falava da maldição do garimpo e da indústria madeireira, Pedro levantava sua voz nos advertindo acerca dos perigos de exaurir a terra, de derrubar as matas e de poluir os rios. Enfrentou, junto aos pequenos agricultores e posseiros, os poderosos que querem exaurir o solo e ser donos das águas.

Quando nas igrejas não se falava de agricultura orgânica, nem dos males causados pelos defensivos agrícolas, Pedro abominava os agrotóxicos e preservava as sementes autóctones.

Quando nas igrejas não se falava ainda da falência do modelo econômico capitalista, Pedro sonhava com um mundo fraterno no qual o dinheiro não era senhor, nem o mercado seu reino. Colocou em versos sua paz inquieta; tornou conhecida sua indignação e inconformidade com os esquemas de privilégio de alguns em detrimento da escravidão de uma multidão.

Por tudo isso e muito mais, Pedro é um tipo de santo que não pode ser canonizado. Sua vida não pode ser enjaulada na política de privilégios que a Igreja estabelece para declarar uma vida como santa aos olhos dos crentes. Canonizar Pedro seria privatizar sua vida pública, estabelecer direitos autorais sobre seus escritos, conformar sua poesia rebelde aos devocionismos católicos, calar sua voz profética. O bispo de punhos cerrados não combinaria com os santos de mãos postas.

Duvido que Pedro aceitaria fazer dois milagres para garantir sua santidade. O bispo rebelde do Araguaia, que não assinou a penalidade do silêncio obsequioso imposto pelo papa João Paulo II, boicotaria toda tentativa de usar seu nome para promoção da Igreja institucional. Aquele que viveu pobre e morreu pobre reviraria no seio da terra se visse um só tostão ser gasto no processo de sua canonização. E, ainda, Pedro detestaria que sua vida ganhasse cercas – todas elas malditas no dizer do pobre do Araguaia – e ele não pudesse mais ser sinal para todos, católicos e não católicos, crentes e não crentes. Por fim, canonizar Pedro seria ferir sua honra colocando à frente de seu nome um título. Na sua kênose, Pedro desprezou toda titulação e somente como Pedro queria ser chamado.

Além do mais, parece no mínimo estranho cultuar inquisidores canonizados pelos papas Pios e Pedro ao mesmo tempo. Seria constrangedor Pedro e são João Paulo II no mesmo altar; o primeiro rompendo com todo laço com os grandes do mundo e o segundo aliado a presidentes de impérios e monarcas conservadoras. Não dá para imaginar Pedro e santos monarcas, como Luiz da França ou santa Helena, empenhados nas mesmas causas terrenas. A não ser que o céu esteja dividido em departamentos e que cada santo – como um deus do Panteon – cuide de uma causa específica, não há lugar para Pedro no mundo dos santificados. Haveria dissenso no céu, porque o rebelde do Araguaia não se calaria nem mesmo no estágio das beatitutes divinas.

Por tudo isso, defendo com ardor que não empenhemos um processo de canonização para esse homem de Deus. E muito menos proclamemo-lo como santo súbito, coisa que os integristas e conservadores gostam de fazer com seus líderes piedosos e defensores da doutrina. Mantenhamo-lo sempre Pedro do Araguaia. Sem mais. Assim deve ser; assim deve ser lembrado. Respeitemos sua rebeldia!

Sobre a autora:

Solange Maria do Carmo

Solange Maria do Carmo é teóloga-leiga, mestre em teologia bíblica e doutora em teológica catequética. Sua trajetória pastoral tem início nos anos 80, quando engajou-se em movimentos de juventude e, logo em seguida, descobriu a força da Palavra de Deus com grupos de reflexão bíblica na Universidade Federal de Viçosa, onde cursou engenharia agrícola. Durante dezesseis anos, ela serviu a Igreja como missionária leiga, engajada numa comunidade de vida que prestava serviços de evangelização e catequese nas dioceses onde morou (Mariana – 10 anos – e Paracatu – 6 anos). Sua trajetória catequética remonta ao ano de 1991, quando juntamente com o Pe. Orione (diocese de Mariana), empreendeu um projeto de evangelização na cidade de Viçosa, na Paróquia Santa Rita de Cássia, onde residiam. Nasceu desta parceria um sonho de evangelizar crianças e adultos, proporcionando a todos a experiência cristã de Deus, por meio de encontros catequéticos semanais dos mais diversos tipos.

Fonte:

www.fiquefirme.com.br

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Pedro Profeta e Poeta – guerreiro da causa indígena https://observatoriodaevangelizacao.com/pedro-profeta-e-poeta-guerreiro-da-causa-indigena/ Sun, 25 Jul 2021 10:00:00 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=40037 [Leia mais...]]]> Presença fundamental na caminhada do Cimi, Pedro foi pedra na qual pudemos recostar nossas cabeças com total confiança, recorda Egon Heck.

Na carroceria de um caminhão, retornando da 10ª Assembleia Indígena, na aldeia Tapirapé, em Mato Grosso, no dia 9 de agosto de 1977. Foto: Antônio Carlos Moura/Cimi

POR EGON HECK, DO SECRETARIADO NACIONAL DO CIMI

Quiseram te matar, mas não conseguiram; quiseram te expulsar do Brasil, mas foi em vão; te acusaram de subversivo e comunista, e fortaleceram teu compromisso com a causa dos pobres e com a justiça; te caluniaram e transformaste esses impropérios em novas energias na construção do Reino de Deus.

Dom Pedro Casaldáliga – ou só Pedro, como sempre preferiu – é presença indispensável na caminhada do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Participou de maneira decisiva nas Assembleias Gerais, desde a primeira, em junho de 1975.

Foi marcante a presença de Pedro nas ruínas de São Miguel, na região missioneira do Rio Grande do Sul. Naquela ocasião, propiciou um momento magnífico ao celebrar a Missa da Terra Sem Males, com texto seu e música de Martin Coplas, em abril de 1977. Um momento inesquecível de celebração da memória do assassinato de Sepé Tiaraju e seus guerreiros Guarani.

Dom Pedro e dom Tomás Balduino foram fundamentais na criação e consolidação do Cimi e da Comissão Pastoral da Terra (CPT), pastorais que procuravam tornar realidade as decisões do Concílio Vaticano 2º e dos encontros de Medellín e Puebla. Pastorais que procuraram encarnar a radicalidade do Evangelho em dimensão nacional e continental.

Dom Tomás Balduíno e dom Pedro Casaldáliga.

A contribuição de Pedro também foi essencial para a elaboração do documento “Y-Juca-Pirama – O índio: aquele que deve morrer”, que denunciou, em 1973, a política anti-indígena da Ditadura Militar e causou grande repercussão nacional e internacional.

Martírio e esperança

Dirigindo-se “aos homens e mulheres que deram a vida pela vida”, Pedro Casaldáliga afirma, na sua Carta aberta aos nossos mártires: “por vocês, sobretudo, nossa América é o continente da morte com esperança”. Com suas palavras, também lembramos dos mártires de longe e de perto que derramaram seu sangue pela vida, em especial os povos indígenas e os mártires do Cimi, padre Rodolfo e Simão Bororo (1976), padre João Bosco Burnier (1976), irmã Cleusa Rody Coelho (1985), padre Ezequiel Ramin, Vicente Cañas (1987). A vida nasce da morte. O sangue derramado tornou-se um testemunho vigoroso, um sinal de Deus, visível aos olhos de nossa Fé.

Pedro deu um testemunho radical pela causa indígena, de maneira especial, com os Tapirapé, os Karajá e os Xavante de Marãiwatsèdè, cujas lutas e dramas apoiou com todas as suas forças. Assim foi também com o casal Luiz e Eunice e as irmãzinhas de Jesus, que, junto a dom Pedro, conviveram com os Tapirapé na Prelazia de São Félix. Em 1973, o sétimo boletim de um então nascente Cimi caracterizava este como “um dos mais aplaudidos e sérios trabalhos que já se tem feito junto aos povos indígenas do Brasil”.

Em tempos de repressão expressar compromisso com os mais fracos era motivo para perseguição – especialmente dura na região do Araguaia. O Cimi esteve solidário à Prelazia de São Félix nos momentos de perseguição e quando, em dezembro de 1975, o padre Francisco Jentel, após vinte e um anos de presença solidária junto aos Tapirapé e ao povo de Santa Terezinha, foi covardemente expulso do país.

Pedro nos animou com sua inabalável esperança – “Podem roubar-nos tudo, menos a esperança”, afirmou certa vez

Ilustração: Mariosan

Raiz, Inspiração e testemunho profético

Cimi. Essas “quatro letrinhas malditas”, que incomodaram e continuam a incomodar muita gente, têm no coração o pulsar profético desse nosso irmão com quem partilhamos caminhos de dor e alegria, de esperança e de martírio.

Pedro foi presença indispensável nas horas difíceis, como em 1977, quando alguns bispos quiseram silenciar ou extinguir o Cimi. Foi nosso anjo da guarda. Nos animou com sua inabalável esperança – “Podem roubar-nos tudo, menos a esperança”, afirmou certa vez. Pedro foi pedra na qual pudemos recostar nossas cabeças com total confiança.

A dupla guerreira e aguerrida, Pedro e Tomás, são nosso horizonte no compromisso e testemunho junto aos povos indígenas na luta pelas suas vidas e direitos. Assim como são e sempre serão aliados da primeira hora dos oprimidos ,dos camponeses, dos povos tradicionais e todos os lutadores pela justiça e paz no campo e na cidade.

Pedro, os povos indígenas e o Cimi

Em sua humildade evangélica radical, Pedro foi sempre uma presença solidária junto aos povos indígenas e missionários. Nunca aceitou nenhum ‘cargo’ no Cimi. Por ocasião do Congresso dos 30 anos do Cimi, não podendo estar presente, enviou uma mensagem que até hoje continua fortalecendo nossa caminhada de solidariedade com os povos indígenas.

Nela dizia: “me faço presente de coração nesse Congresso dos 30 anos de memória, missão e utopia, caminhada de generosidade, teimosia e esperança. Somos soldados derrotados de uma causa invencível. Devemos continuar sendo, na oração e no sonho, radicais”. Nós, do Cimi – e  certamente também os povos indígenas – somos imensamente gratos a Deus e a Pedro.

Fonte:

www.cimi.org.br

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Em 15 de agosto de 2013, três bispos profetas – dom José Maria Pires, dom Pedro Casaldáliga e dom Tomás Balduino – escrevem carta histórica à CNBB https://observatoriodaevangelizacao.com/em-15-de-agosto-de-2013-tres-bispos-profetas-dom-jose-maria-pires-dom-pedro-casaldaliga-e-dom-tomas-balduino-escrevem-carta-historica-a-cnbb/ Sat, 24 Jul 2021 13:34:27 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=40043 [Leia mais...]]]> Três bispos eméritos –  Dom José Maria Pires, arcebispo da Paraíba; Dom Tomás Balduino, bispo de Goiás; e Dom Pedro Casaldáliga, bispo de São Félix do Araguaia – escreveram carta histórica ao Episcopado brasileiro.

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Leia a carta na íntegra:

Queridos irmãos no episcopado,

Somos três bispos eméritos que, de acordo com o ensinamento do Concílio Vaticano II, apesar de não sermos mais pastores de uma Igreja local, somos sempre participantes do Colégio episcopal, e junto com o Papa, nos sentimos responsáveis pela comunhão universal da Igreja Católica.

Alegrou-nos muito a eleição do papa Francisco no pastoreio da Igreja, pelas suas mensagens de renovação e conversão, com seus seguidos apelos a uma maior simplicidade evangélica e maior zelo de amor pastoral por toda a Igreja. Tocou-nos também a sua recente visita ao Brasil, particularmente suas palavras aos jovens e aos bispos. Isso até nos trouxe a memória do histórico Pacto das Catacumbas.

Será que nós bispos nos damos conta do que, teologicamente, significa esse novo horizonte eclesial? No Brasil, em uma entrevista, o Papa recordou a famosa máxima medieval: “Ecclesia semper renovanda”.

Por pensar nessa nossa responsabilidade como bispos da Igreja Católica, nos permitimos esse gesto de confiança de lhes escrever essas reflexões, com um pedido fraterno para que desenvolvamos um maior diálogo a respeito.

1. A Teologia do Vaticano II sobre o ministério episcopal

O Decreto Christus Dominus dedica o 2º capítulo à relação entre bispo e Igreja Particular. Cada Diocese é apresentada como “porção do Povo de Deus” (não é mais apenas um território) e afirma que, “em cada Igreja local está e opera verdadeiramente a Igreja de Cristo, una, santa, católica e apostólica” (CD 11), pois toda Igreja local não é apenas um pedaço de Igreja ou filial do Vaticano, mas é verdadeiramente Igreja de Cristo e, assim a designa o Novo Testamento (LG 22). “Cada Igreja local é congregada pelo Espírito Santo, por meio do Evangelho, tem sua consistência própria no serviço da caridade, isto é, na missão de transformar o mundo e testemunhar o Reino de Deus. Essa missão é expressa na Eucaristia e nos sacramentos. Isso é vivido na comunhão com seu pastor, o bispo”.

Essa teologia situa o bispo não acima ou fora de sua Igreja, mas como cristão inserido no rebanho e com um ministério de serviço a seus irmãos. É a partir dessa inserção que cada bispo, local ou emérito, assim como os auxiliares e os que trabalham em funções pastorais sem dioceses, todos, enquanto portadores do dom recebido de Deus na ordenação são membros do Colégio Episcopal e responsáveis pela catolicidade da Igreja.

2. A sinodalidade necessária no século XXI

A organização do papado como estrutura monárquica centralizada foi instituída a partir do pontificado de Gregório VII, em 1078. Durante o 1º milênio do Cristianismo, o primado do bispo de Roma estava organizado de forma mais colegial e a Igreja toda era mais sinodal.

O Concílio Vaticano II orientou a Igreja para a compreensão do episcopado como um ministério colegial. Essa inovação encontrou, durante o Concílio, a oposição de uma minoria inconformada. O assunto, na verdade, não foi suficientemente amarrado. Além disso, o Código de Direito Canônico, de 1983 e os documentos emanados pelo Vaticano, a partir de então, não priorizaram a colegialidade, mas restringiram a sua compreensão e criaram barreiras ao seu exercício. Isso foi em prol da centralização e crescente poder da Cúria romana, em detrimento das Conferências nacionais e continentais e do próprio Sínodo dos bispos, este de caráter apenas consultivo e não deliberativo, sendo que tais organismos detêm, junto com o Bispo de Roma, o supremo e pleno poder em relação à Igreja inteira.

Agora, o papa Francisco parece desejar restituir às estruturas da Igreja Católica e a cada uma de nossas dioceses uma organização mais sinodal e de comunhão colegiada. Nessa orientação, ele constituiu uma comissão de cardeais de todos os continentes para estudar uma possível reforma da Cúria Romana. Entretanto, para dar passos concretos e eficientes nesse caminho – e que já está acontecendo – ele precisa da nossa participação ativa e consciente. Devemos fazer isso como forma de compreender a própria função de bispos, não como meros conselheiros e auxiliares do papa, que o ajudam à medida que ele pede ou deseja e sim como pastores, encarregados com o papa de zelar pela comunhão universal e o cuidado de todas as Igrejas.

3. O cinquentenário do Concílio

Nesse momento histórico, que coincide também com o cinquentenário do Concílio Vaticano II, a primeira contribuição que podemos dar à Igreja é assumir nossa missão de pastores que exercem o sacerdócio do Novo Testamento, não como sacerdotes da antiga lei e sim, como profetas. Isso nos obriga colaborar efetivamente com o bispo de Roma, expressando com mais liberdade e autonomia nossa opinião sobre os assuntos que pedem uma revisão pastoral e teológica. Se os bispos de todo o mundo exercessem com mais liberdade e responsabilidade fraternas o dever do diálogo e dessem sua opinião mais livre sobre vários assuntos, certamente, se quebrariam certos tabus e a Igreja conseguiria retomar o diálogo com a humanidade, que o papa João XXIII iniciou e o papa Francisco está acenando.

A ocasião, pois, é de assumir o Concílio Vaticano II atualizado, superar de uma vez por todas a tentação de Cristandade, viver dentro de uma Igreja plural e pobre, de opção pelos pobres, uma eclesiologia de participação, de libertação, de diaconia, de profecia, de martírio… Uma Igreja explicitamente ecumênica, de fé e política, de integração da Nossa América, reivindicando os plenos direitos da mulher, superando a respeito os fechamentos advindos de uma eclesiologia equivocada.

Concluído o Concílio, alguns bispos – sendo muitos do Brasil – celebraram o Pacto das Catacumbas de Santa Domitila. Eles foram seguidos por aproximadamente 500 bispos nesse compromisso de radical e profunda conversão pessoal. Foi assim que se inaugurou a recepção corajosa e profética do Concílio.

Hoje, várias pessoas, em diversas partes do mundo, estão pensando num novo Pacto das Catacumbas. Por isso, desejando contribuir com a reflexão eclesial de vocês, enviamos anexo o texto original do Primeiro Pacto.

O clericalismo denunciado pelo papa Francisco está sequestrando a centralidade do Povo de Deus na compreensão de uma Igreja, cujos membros, pelo batismo, são alçados à dignidade de “sacerdotes, profetas e reis”. O mesmo clericalismo vem excluindo o protagonismo eclesial dos leigos e leigas, fazendo o sacramento da ordem se sobrepor ao sacramento do batismo e à radical igualdade em Cristo de todos os batizados e batizadas.

Além disso, em um contexto de mundo no qual a maioria dos católicos está nos países do sul (América Latina e África), se torna importante dar à Igreja outros rostos além do costumeiro expresso na cultura ocidental. Nos nossos países, é preciso ter a liberdade de desocidentalizar a linguagem da fé e da liturgia latina, não para criarmos uma Igreja diferente, mas para enriquecermos a catolicidade eclesial.

Finalmente, está em jogo o nosso diálogo com o mundo. Está em questão qual a imagem de Deus que damos ao mundo e o testemunhamos pelo nosso modo de ser, pela linguagem de nossas celebrações e pela forma que toma nossa pastoral. Esse ponto é o que deve mais nos preocupar e exigir nossa atenção. Na Bíblia, para o Povo de Israel, “voltar ao primeiro amor”, significava retomar a mística e a espiritualidade do Êxodo.

Para as nossas Igrejas da América Latina, “voltar ao primeiro amor” é retomar a mística do Reino de Deus na caminhada junto com os pobres e a serviço de sua libertação. Em nossas dioceses, as pastorais sociais não podem ser meros apêndices da organização eclesial ou expressões menores do nosso cuidado pastoral. Ao contrário, é o que nos constitui como Igreja, assembleia reunida pelo Espírito para testemunhar que o Reino está vindo e que de fato oramos e desejamos: venha o teu Reino!

Esta hora é, sem dúvida, sobretudo para nós bispos, com urgência, a hora da ação. O Papa Francisco ao dirigir-se aos jovens na Jornada Mundial e ao dar-lhes apoio nas suas mobilizações, assim se expressou: “Quero que a Igreja saia às ruas”. Isso faz eco à entusiástica palavra do apóstolo Paulo aos Romanos: “É hora de despertar, é hora e de vestir as armas da luz” (13,11). Seja essa a nossa mística e nosso mais profundo amor.

Abraços, com fraterna amizade,

Dom José Maria Pires, arcebispo emérito da Paraíba

Dom Tomás Balduino, bispo emérito de Goiás

Dom Pedro Casaldáliga, bispo emérito de São Félix do Araguaia

Festa da Assunção de Nossa Senhora, 15 de agosto de 2013

Leia, a seguir, a íntegra do Pacto das Catacumbas:

O PACTO DA IGREJA SERVIDORA E POBRE

Nós, bispos, reunidos no Concílio Vaticano II, esclarecidos sobre as deficiências de nossa vida de pobreza segundo o Evangelho; incentivados uns pelos outros, numa iniciativa em que cada um de nós quereria evitar a singularidade e a presunção; unidos a todos os nossos irmãos do episcopado; contando sobretudo com a graça e a força de Nosso Senhor Jesus Cristo, com a oração dos fiéis e dos sacerdotes de nossas respectivas dioceses; colocando-nos, pelo pensamento e pela oração, diante da Trindade, diante da Igreja de Cristo e diante dos sacerdotes e dos fiéis de nossas dioceses, na humildade e na consciência de nossa fraqueza, mas também com toda determinação e toda a força de que Deus nos quer dar a graça, comprometemo-nos ao que se segue:

1) Procuraremos viver segundo o modo ordinário da nossa população, no que concerne à habitação, à alimentação, aos meios de locomoção e a tudo que daí se segue. Cf. Mt 5,3; 6,33-34; 8,20.

2) Para sempre renunciamos à aparência e à realidade da riqueza, especialmente no traje (fazendas ricas, cores berrantes), nas insígnias de matéria preciosa (devem esses signos ser, com efeito, evangélicos). Cf. Mt 6,9; Mt 10,9-10; At 3,6. Nem ouro nem prata.

3) Não possuiremos nem imóveis, nem móveis, nem conta em banco etc., em nosso próprio nome; e, se for preciso possuir, poremos tudo em nome da diocese, ou das obras sociais ou caritativas. Cf. Mt 6,19-21; Lc 12,33-34.

4) Cada vez que for possível, confiaremos a gestão financeira e material em nossa diocese a uma comissão de leigos competentes e cônscios do seu papel apostólico, em mira a sermos menos administradores do que pastores e apóstolos. Cf. Mt 10,8; At 6,1-7.

5) Recusamos ser chamados, oralmente ou por escrito, com nomes que signifiquem a grandeza e o poder (Eminência, Excelência, Monsenhor…). Preferimos ser chamados com o nome evangélico de Padre. Cf. Mt 20,25-28; 23,6-11; Jo 13,12-15.

6) No nosso comportamento, nas nossas relações sociais, evitaremos aquilo que pode parecer conferir privilégiosprioridades ou mesmo uma preferência qualquer aos ricos e aos poderosos (ex.: banquetes oferecidos ou aceitos, classes nos serviços religiosos). Cf. Lc 13,12-14; 1Cor 9,14-19.

7) Do mesmo modo, evitaremos incentivar ou lisonjear a vaidade de quem quer que seja, com vistas a recompensar ou a solicitar dádivas, ou por qualquer outra razão. Convidaremos nossos fiéis a considerarem as suas dádivas como uma participação normal no culto, no apostolado e na ação social. Cf. Mt 6,2-4; Lc 15,9-13; 2Cor 12,4.

8) Daremos tudo o que for necessário de nosso tempo, reflexão, coração, meios etc., ao serviço apostólico e pastoral das pessoas e dos grupos laboriosos e economicamente fracos e subdesenvolvidos, sem que isso prejudique as outras pessoas e grupos da diocese. Ampararemos os leigos, religiosos, diáconos ou sacerdotes que o Senhor chama a evangelizarem os pobres e operários compartilhando a vida operária e o trabalho. Cf. Lc 4,18-19; Mc 6,4; Mt 11,4-5; At 18,3-3; 20,33-35; 1Cor 4,12; 9,1-27.

9) Cônscios de exigências da justiça e da caridade, e das suas relações mútuas, procuraremos transformar as obras de “beneficência” em obras sociais baseadas na caridade e na justiça, que levam em conta todos e todas as exigências, como um humilde serviço dos organismos públicos competentes. Cf. Mt 25,31-46; Lc 13,12-14.33-34.

10) Poremos tudo em obra para que os responsáveis pelo nosso governo e pelos nossos serviços públicos decidam e ponham em prática as leis, as estruturas e as instituições sociais necessárias à justiça, à igualdade e ao desenvolvimento harmônico e total do homem todo e em todos os homens, e, por aí, ao advento de uma outra ordem social, nova, digna dos filhos do homem e dos filhos de Deus. Cf. At 2,44-45; 4,32-35; 5,4; 2Cor 8 e 9 inteiros; 1Tm 5,16.

11) Achando a colegialidade dos bispos sua realização a mais evangélica na assunção do encargo comum das massas humanas em estado de miséria física, cultural e moral — dois terços da humanidade —, comprometemo-nos:

— a participarmos, conforme nossos meios, dos investimentos urgentes dos episcopados das nações pobres;

— a requerermos juntos ao plano dos organismos internacionais, mas testemunhando o Evangelho, como e fez o Papa Paulo VI na ONU, a adoção de estruturas econômicas e culturais que não fabriquem nações proletárias num mundo cada vez mais rico, mas sim permitam às massas pobres saírem de sua miséria.

12) Comprometemo-nos a partilhar, na caridade pastoral, nossa vida com nossos irmãos em Cristo, sacerdotes, religiosos e leigos, para que nosso ministério constitua um verdadeiro serviço; assim:

— esforçar-nos-emos para “revisar nossa vida” com eles;

— suscitaremos colaboradores para serem mais uns animadores segundo o espírito, do que uns chefes segundo o mundo;

— procuraremos ser o mais humanamente presentes, acolhedores…;

— mostrar-nos-emos abertos a todos, seja qual for a sua religião. Cf. Mc 8,34-35; At 6,1-7; 1Tm 3,8-10.

13) Tornados às nossas dioceses respectivas, daremos a conhecer aos nossos diocesanos a nossa resolução, rogando-lhes ajudar-nos por sua compreensão, seu concurso e suas preces.

Ajude-nos Deus a sermos fiéis (KLOP V, pp. 526-528).

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Ruah, Vento de Deus https://observatoriodaevangelizacao.com/ruah-vento-de-deus/ Sun, 07 Mar 2021 12:30:35 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=38645 [Leia mais...]]]> A obra poética de dom Pedro Casaldáliga mostra a força de uma mística encarnada na vida do povo, especialmente dos mais pobres. “Ruah, Vento de Deus” nos coloca diante de um Deus que gera vida, de um Deus a quem o bispo pede seu Sopro fecundo. Em sua letra descobrimos elementos importantes na vida de Pedro, um homem aberto ao mundo, sempre acolhedor com quem chegava em sua casa de portas abertas, que pedia “Faze-me todo janelas, olhos abertos e abraço”.

Luis Miguel Modino

Ruah, Vento de Deus

Tu que sopras onde queres,
Vento de Deus gerando vida,
Sopra-me, sopra-me,
Sopra-me, Sopro fecundo,
Sopra-me, sopra-me,
Sopra-me, Sopro fecundo.

Sopra-me, vida em Teu Sopro,
Paz inquieta e Esperança.
Faze-me todo janelas
Olhos abertos e abraço.

Tu que sopras onde queres,
Vento de Deus gerando vida,
Sopra-me, sopra-me,
Sopra-me, Sopro fecundo,
Sopra-me, sopra-me,
Sopra-me, Sopro fecundo.

Leva-me em Boa Notícia
sobre os telhados do medo.
Passa-me em torno das flores
Beijo de graça e ternura.

Tu que sopras onde queres,
Vento de Deus gerando vida,
Sopra-me, sopra-me,
Sopra-me, Sopro fecundo,
Sopra-me, sopra-me,
Sopra-me, Sopro fecundo.

Joga-me contra a injustiça
em furacão de verdade.
Deita-me encima dos mortos,
boca profeta a chamá-los.

Tu que sopras onde queres,
Vento de Deus gerando vida,
Sopra-me, sopra-me,
Sopra-me, Sopro fecundo,
Sopra-me, sopra-me,
Sopra-me, Sopro fecundo.

Perpetuar a memória daqueles que marcaram a história é um legado para a humanidade, também na Igreja. A figura de Pedro Casaldáliga se fez presente na vida de várias gerações, não só no Brasil, como no mundo todo. Como “uma espécie de homenagem póstuma a este nosso irmão, poeta e profeta”, Cirineu Kuhn, uma semana após a morte do bispo do Araguaia, tem feito uma composição que leva por título: “Ruah, Vento de Deus”.

O texto da música fazia parte de vários poemas que dom Pedro Casaldáliga passou a Cirineu Kuhn em 1987, no dia de sua ordenação diaconal. Naquele dia Dom Pedro lhe pediu para escolher alguns poemas musicáveis para fazer um LP, que teve por título “Cantigas na contramão”, um nome que foi sugestão do próprio Pedro. Depois disso, segundo Cirineu Kuhn, “fomos parceiros em várias outras canções”. Mas “Ruah, Vento de Deus”, foi musicado somente agora, em que Cirineu foi atrás desses poemas e na mesma hora colocou uma melodia.

Pe. Cirineu Kuhn

A obra poética de dom Pedro Casaldáliga mostra a força de uma mística encarnada na vida do povo, especialmente dos mais pobres. “Ruah, Vento de Deus” nos coloca diante de um Deus que gera vida, de um Deus a quem o bispo pede seu Sopro fecundo. Em sua letra descobrimos elementos importantes na vida de Pedro, um homem aberto ao mundo, sempre acolhedor com quem chegava em sua casa de portas abertas, que pedia “Faze-me todo janelas, olhos abertos e abraço”.

Na verdade, os poemas de Casaldáliga podem ser vistos como uma profunda oração, a exemplo dos Salmos bíblicos, fonte de “Boa Notícia sobre os telhados do medo”. Trata-se de textos que, além de oferecer consolo, eram força para a luta do povo, uma luta que ainda faz parte da vida da humanidade, marcada pela injustiça. Em suas palavras, o bispo poeta e profeta pedia, “Joga-me contra a injustiça, em furacão de verdade. Deita-me encima dos mortos, boca profeta a chamá-los”.

O caminho em comum entre dom Pedro Casaldáliga e a Verbo Filmes, a editora dirigida por Cirineu Kuhn, se prolongou ao longo do tempo. Como o próprio Cirineu lembra, Dom Pedro “ajudou a roteirizar várias produções do repertório da Verbo Filmes, documentários e até ficções tiveram a marca, o espírito, o estilo de dom Pedro”. Dentre outros, o diretor da Verbo Filmes cita:

  • Pé na Caminhada;
  • Anel de Tucum;
  • Ameríndia;
  • Canção para Zumbi;
  • Os Sete Sinais da Vida;
  • Canudos Açude Vivo;
  • E muitas outras produções.

Querido Pedro, parceiro, amigo, irmão, você já está na Glória, por favor interceda por nós, que esta sua mística, cheia de paixão pelo Evangelho e compaixão comprometida com os pobres, seja nossa inspiração na nossa caminhada como seguidores e seguidoras de Jesus Cristo”.

Cirineu Kuhn

O diretor da Verbo Filmes, e compositor da música lançada recentemente, lembra as palavras do bispo, afirmando que “e como você disse em um dos seus poemas, Viva a Esperança! E é isso que nós queremos continuar cantando e vivendo”.

Sobre o autor:

Luiz Miguel Modino

Luis Miguel Modino – Padre diocesano de Madri, missionário fidei donum na Amazônia, residindo atualmente em Manaus – AM. Faz parte da Equipe de Comunicação da REPAM. Correspondente no Brasil de Religión Digital e colaborador do Observatório da Evangelização e em diferentes sites e revistas.

Fonte:

www.ihu.unisinos.br

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Carta de dom Pedro Casaldáliga ao papa João Paulo II: “Posso e devo dar à nossa Igreja esta contribuição: pensar em voz alta a minha fé” https://observatoriodaevangelizacao.com/carta-de-pedro-casaldaliga-ao-papa-joao-paulo-ii-posso-e-devo-dar-a-nossa-igreja-esta-contribuicao-pensar-em-voz-alta-a-minha-fe/ Wed, 30 Sep 2020 14:58:17 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=35813 [Leia mais...]]]> Tratar de assuntos incômodos falando com o Papa significa para mim expressar corresponsabilidade


Sempre dissemos que Pedro Casaldáliga foi um bispo do povo, dos pobres e dos oprimidos. Que sua vida sempre esteve cheia de vida para os outros e por isso agora sua vida estará cheia da vida de Deus para sempre na plenitude do seu Reino.

Anunciamos o envio pelo correio de uma carta que escreveu ao papa João Paulo II, na qual exprime de forma primorosamente delicada e respeitosa, mas clara e comprometida, o seu imenso desejo de contribuir para uma renovação profunda da Igreja, que a torne muito mais coerente com o Evangelho e facilite assim a aceitação e recepção da mensagem do Evangelho pela sociedade, como caminho de libertação integral para o ser humano e para a criação.

Atualmente o papa Francisco reconhece o magnífico trabalho e contribuição de dom Pedro Casaldáliga à sociedade e à Igreja em coerência com a melhor mensagem que a história da humanidade conheceu, a de Jesus de Nazaré.

João Paulo II e Pedro Casaldàliga
Registro de dom Pedro Casaldáliga com o papa João Paulo II em sua viagem ad limina – (Foto: Faustino Vilabrille)

Confira o texto completo da memorável Carta de dom Pedro ao papa João Paulo II antes de sua viagem a Roma

São Félix do Araguaia, 22 de fevereiro de 1986

Festa da Cátedra de Pedro.

Querido papa João Paulo II,

irmão em Jesus Cristo e pastor da nossa Igreja:

Faz muito tempo que queria escrever-lhe esta carta, e faz muito tempo que a venho pensando e a medito na oração. Gostaria que fosse um colóquio fraterno – em sinceridade humana e com a liberdade do Espírito – assim como um gesto de serviço de um bispo para com o bispo de Roma, que é Pedro para a minha fé, para a minha corresponsabilidade eclesial e para a minha colegialidade apostólica.

Faz dezoito anos que estou no Brasil, para onde vim voluntariamente como missionário. Nunca regressei ao meu país natal, a Espanha, nem por ocasião da morte da minha mãe. Nunca tirei férias durante todo este tempo. Não saí do Brasil durante dezessete anos. Nestes dezoito anos vivi e trabalhei no nordeste do Estado de Mato Grosso, sendo o primeiro sacerdote que se instalou de maneira permanente região. Há quinze anos sou bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia.

A região da Prelazia está localizada na Amazônia Legal brasileira e abarca uma área de 150.000 km2. Até hoje não tem um só palmo de estrada asfaltada. Só recentemente foi instalado o serviço telefônico. A região fica frequentemente isolada ou com comunicação muito precária por causa das chuvas e inundações que interrompem as estradas.

Casaldàliga em Araguaia
Registro de dom Pedro Casaldáliga, navegando pelo rio Araguaia.

É uma área de grandes latifúndios nacionais e multinacionais, com fazendas agropecuárias de centenas de milhares de hectares, com empregados que vivem frequentemente em regime de violência e de semi-escravidão. Acompanho desde há tempos a dramática vida dos indígenas, dos “posseiros” (lavradores sem título da terra) e dos peões (trabalhadores braçais do latifúndio). Toda a população em geral, dentro da Prelazia, tem sido forçada a viver precariamente, sem serviços adequados de educação, saúde, transporte, moradia, segurança jurídica e, sobretudo, sem terra garantida para trabalhar.

Durante a ditadura militar, o governo tentou, por cinco vezes, expulsar-me do país. Por quatro vezes toda a Prelazia foi cercada por operações militares de controle e de pressão. A minha vida e a de vários sacerdotes e agentes da pastoral da Prelazia foi ameaçada e posta a prémio publicamente. Em várias ocasiões, estes sacerdotes, agentes da pastoral e eu fomos presos; vários deles inclusive torturados. O padre Francisco Jentel foi preso, maltratado, condenado a dez anos de prisão, expulso posteriormente do Brasil, morrendo finalmente no exílio, longe do seu país de missão.

Casaldàliga em um recorte de imprensa
Registro de dom Pedro Casaldáliga em um recorte de imprensa.

O arquivo da Prelazia foi violado e saqueado pelo Exército e pela Polícia. O boletim da Prelazia foi editado de forma falsificada pelos órgãos de repressão do regime e, publicado dessa forma na grande imprensa, para servir de acusação contra a própria Prelazia.

Neste momento, três agentes pastorais ainda estão sendo submetidos a processos judiciais sob falsas acusações. Tive de presenciar pessoalmente mortes violentas, como a do padre jesuíta João Bosco Penido Burnier, assassinado ao meu lado pela polícia quando nós dois nos apresentámos na Delegacia-Prisão de Ribeirão Bonito para protestar oficialmente contra as torturas a que estavam sendo submetidas duas mulheres, trabalhadoras agrícolas, mães de famílias, injustamente detidas.

Ao longo de todos esses anos, multiplicaram-se os mal-entendidos e as calúnias dos grandes proprietários de terras – nenhum dos quais vive na região – e de outros poderosos do país e do exterior. Também dentro da Igreja surgiram algumas incompreensões de irmãos que desconhecem a realidade do povo e da pastoral nestas regiões afastadas e violentas onde o povo, com frequência, conta apenas com a voz da Igreja que procura colocar-se a seu serviço.

Além destes sofrimentos vividos no âmbito da Prelazia, coube-me, como responsável nacional pela CPT (Comissão Pastoral da Terra) e membro do CIMI (Conselho Indigenista Missionário), acompanhar de perto as tribulações e até a morte de muitos indígenas, camponeses, agentes da pastoral e de pessoas comprometidas com a causa desses irmãos, a que a ganância do capital não permite sequer sobreviver. Entre eles, o índio Marçal, um guarani, que o saudou pessoalmente em Manaus, em nome dos povos indígenas do Brasil.

Povos indígenas manifestam-se em Manaus
  Registro de lideranças Indígenas em manifestação pública em Manaus.

O Deus vivo, Pai de Jesus, é quem nos vai julgar. Permita-me, no entanto, abrir o meu coração ao seu coração de irmão e de Pastor. Viver nestas circunstâncias extremas, ser poeta e escrever, manter contato com pessoas e ambientes de comunicação ou de fronteira (devido à idade, ideologia, alteridade cultural, situação social ou devido aos serviços de emergência que prestam) pode levar a gestos e posturas menos comuns e às vezes incômodos ​​para a sociedade estabelecida.

Como irmão e como Papa que é para mim, rogo-lhe que aceite a intenção sincera e a vontade apaixonadamente cristã e eclesial tanto desta carta como das minhas atitudes. O Pai concedeu-me a graça de nunca abandonar a oração, ao longo desta vida mais ou menos agitada. Preservou-me de tentações maiores contra a fé e a vida consagrada e possibilitou-me contar sempre com a força dos irmãos através de uma comunhão eclesial rica em encontros, estudos, ajudas. Certamente por isso, creio que não me desviei do caminho de Jesus, e espero, também por isso, continuar até ao fim neste Caminho que é Verdade e Vida.

Lamento incomodá-lo com a leitura desta longa carta, quando tantos serviços e preocupações já pesam sobre os seus ombros. Duas cartas do cardeal Gantin, Prefeito da Congregação para os Bispos e uma comunicação da Nunciatura que recebi recentemente, levaram-me, finalmente, a escrever-lhe esta carta.

Estas três comunicações urgiam a minha visita ad limina, questionavam aspectos da pastoral da Prelazia e censuravam a minha ida à América Central. Sinto-me um pouco pequeno e como que distante nesta Amazônia brasileira tão diferente, e nesta América Latina, tão convulsionada e frequentemente incompreendida. Achei necessário fazer-me preceder por esta carta. Pareceu-me que apenas um contato serenamente pessoal entre nós dois, por meio de um escrito ponderado e claro, me daria a possibilidade de me aproximar verdadeiramente de ti. A outra forma maior de nos encontrarmos já está garantida: rezo pelo senhor todos os dias, querido irmão João Paulo.

Não tome como impertinência a alusão que farei a temas, situações e práticas secularmente controversas na Igreja ou mesmo contestadas  sobretudo hoje, quando o espírito crítico e o pluralismo também atravessam fortemente a vida eclesiástica.

Fiel no primeiro adeus a P. Casaldàliga
Registro de pessoas presentes, em atitude de oração, nos ritos de a-Deus na páscoa definitiva de dom Pedro Casaldáliga.

Abordar novamente estas questões incômodas, falando com o Papa, significa para mim expressar a corresponsabilidade em relação à voz de milhões de irmãos católicos – de muitos bispos também – e de irmãos não católicos, evangélicos, de outras religiões, humanos. Como bispo da Igreja Católica, posso e devo dar à nossa Igreja esta contribuição: pensar em voz alta a minha fé e exercer, com liberdade de família, o serviço da colegialidade corresponsável. Calar, deixar correr, com certo fatalismo, a força das estruturas seculares, seria muito mais cômodo. Não penso porém que fosse mais cristão, nem sequer mais humano.

Assim como falando, exigindo reformas, assumindo novas posições, se pode causar “escândalo” aos irmãos que vivem em situações mais calmas ou menos críticas, assim também podemos acusar de “escândalo”  muitos irmãos, situados em outros contextos sociais ou culturais, mais abertos à crítica e desejosos de renovação da Igreja – sempre una e “semper renovanda“ –  quando nos calamos ou aceitamos a rotina ou tomamos medidas unívocas indiscriminadamente.

Pedro Casaldàliga, poeta
Registro de dom Pedro Casaldáliga em São Félix do Araguaia.

Sem “se conformar com este mundo”, a Igreja de Jesus, para ser fiel ao Evangelho do Reino, deve estar atenta “aos sinais dos Tempos” e dos lugares e anunciar a Palavra, num tom cultural ou histórico e com um testemunho de vida e de prática tais que os homens e as mulheres de cada tempo e lugar possam entender esta Palavra e se vejam estimulados a aceitá-la.

No que diz respeito ao campo social concretamente, não podemos dizer com muita verdade que já fizemos a opção pelos pobres. Em primeiro lugar, porque não compartilhamos nas nossas vidas e nas nossas instituições a pobreza real que elas experimentam. E, em segundo lugar, porque não agimos, diante da “riqueza da iniquidade”, com aquela liberdade e firmeza adotadas pelo Senhor. A opção pelos pobres, que nunca excluirá a pessoa dos ricos – já que a salvação é oferecida a todos e a todos se deve ao ministério da Igreja – exclui sim o modo de vida dos ricos, “insulto à miséria dos pobres”, e o seu sistema de acumulação e de privilégio, que necessariamente espolia e marginaliza a grande maioria da família humana, povos e continentes inteiros.

Não fiz a visita ad limina, mesmo depois de receber, como outros, um convite da Congregação para os Bispos que nos lembrava esta prática. Eu queria e quero ajudar a Sé Apostólica a rever a forma dessa visita. Ouço críticas de muitos bispos que a fazem, pois mesmo reconhecendo que promove um contato com os Dicastérios romanos e um encontro cordial com o Papa, revela-se incapaz de produzir um verdadeiro intercâmbio de colegialidade apostólica dos Pastores das Igrejas Particulares com o Pastor da Igreja universal.

Faz-se um grande gasto, estabelecem-se contatos, cumpre-se uma tradição. Mas cumpre-se a Tradição de “videre Petrum“ e de ajudar Pedro a ver a Igreja toda? Não teria hoje a Igreja outros modos mais eficazes de fazer intercâmbio, de estabelecer contatos, de avaliar, de expressar a comunhão dos Pastores e das suas Igrejas com a Igreja Universal e mais concretamente com o bispo de Roma?

Eu jamais pretenderia supor no Papa um conhecimento detalhado das Igrejas Particulares ou pedir-lhe soluções concretas para a Pastoral delas. Para isto estamos nós, os respectivos Pastores, ministros e conselhos pastorais de cada Igreja. Para isso existem também as Conferências Episcopais que, no meu entender e no de muitos outros, não estão sendo devidamente valorizadas e até estão sendo preteridas ou injustamente assinaladas por certas atitudes de algumas instâncias da Cúria Romana.

Se as Conferências Episcopais não são “teológicas” ou “apostólicas”, como tais – poderiam não existir, a Igreja caminhou sem elas – também não são, em si mesmas, “apostólicas” ou “teológicas”, as cúrias, nem mesmo a Cúria Romana: Pedro presidiu e governou a Igreja, de forma diferente, em épocas diferentes.

Monsenhor Pedro Casaldáliga
Registro de dom Pedro Casaldáliga.

O Papa tem necessidade de um corpo de auxiliares, como também necessitam dele todos os bispos da Igreja, embora devesse ser sempre mais simples e participativo. Mas para muitos de nós, Irmão João Paulo, certas estruturas da Cúria não respondem ao testemunho de simplicidade evangélica e de comunhão fraterna que o Senhor e o mundo exigem de nós; nem traduzem nas suas atitudes, às vezes centralizadoras e impositivas, uma catolicidade verdadeiramente universal, nem respeitam sempre as exigências de uma corresponsabilidade adulta; nem sequer, às vezes, os direitos básicos da pessoa humana ou dos diferentes povos. E não faltam, com frequência, em setores da Cúria Romana preconceitos, atenção unilateral às informações, ou até posturas, mais ou menos inconscientes, do etnocentrismo cultural europeu em relação à América Latina, África e Ásia.

Com ânimo objetivo e sereno, não se pode negar que a mulher continua fortemente marginalizada na Igreja: na legislação canônica, na liturgia, nos ministérios, na estrutura eclesiástica. Por uma fé e uma comunidade daquela Boa Nova que já não discrimina “judeu e grego, livre e escravo, homem e mulher”, esta discriminação da mulher na Igreja nunca poderá ser justificada. Tradições culturais masculinizadas que não podem anular a novidade do Evangelho talvez expliquem o passado; não podem justificar o presente, nem menos ainda o futuro imediato.

Cúria
Registro de reunião da Cúria Romana.

Outro ponto delicado em si mesmo e muito sensível para o seu coração, irmão João Paulo, é o celibato. Eu, pessoalmente, nunca duvidei do seu valor evangélico e da sua necessidade para a plenitude da vida eclesial, como carisma de serviço ao Reino e como testemunho da gloriosa condição futura. Penso, no entanto, que não estamos sendo compreensivos ou justos com estes milhares de padres, muitos deles em situação dramática, que aceitaram o celibato compulsoriamente, como exigência, atualmente vinculante, para o ministério sacerdotal na Igreja latina. Posteriormente, por causa desta exigência não vitalmente assumida, tiveram que deixar o ministério, e já não puderam regularizar a sua vida, seja dentro da Igreja seja, às vezes, perante a sociedade.

Trabalho de M. Cerezo
Pintura de Mino Cerezo.

O Colégio Cardinalício é privilegiado, às vezes, com poderes e funções que dificilmente se compatibilizam com os direitos anteriores e com as funções eclesialmente conaturais do Colégio Apostólico dos Bispos como tal. Das Nunciaturas tenho, eu pessoalmente, uma triste experiência. O senhor conhece melhor do que eu a persistente reclamação de Conferências Episcopais, de presbitérios, de grandes setores da Igreja, diante de uma instituição tão marcadamente diplomática na sociedade e, frequentemente, com uma ação paralela à atuação dos episcopados.

João Paulo, irmão, permita-me ainda uma palavra de crítica fraterna ao próprio Papa. Por mais tradicionais que sejam os títulos de ‘Santíssimo Padre’, ‘Sua Santidade’… – assim como outros títulos eclesiásticos como ”Eminentíssimo”, ”Excelentíssimo” – são evidentemente pouco evangélicos e até extravagantes, humanamente falando. “Não queirais ser chamados pais ou mestres”, diz o Senhor. Da mesma forma, seria mais evangélico – e também mais acessível para as sensibilidades de hoje – simplificar o vestuário, os gestos, as distâncias, dentro da nossa Igreja.

Penso também que seria muito apostólico que o senhor fizesse uma avaliação suficientemente livre e participativa das suas viagens, tão generosas e mesmo heroicas em muitos aspectos, mas ainda assim tão contestadas e, a meu ver, nem sempre sem motivos: não são, essas viagens conflitantes para o Ecumenismo, testemunho de Jesus pedindo ao Pai que fôssemos um, e para a liberdade religiosa na vida pública pluralista? Não exigem essas viagens grandes dispêndios econômicos por parte das Igrejas e dos Estados, revestindo-se assim de certa prepotência e de certos privilégios cívico-políticos em relação à Igreja Católica, na pessoa do Papa, que se tornam irritantes para os outros?

Pedro Casaldáliga
Registro de dom Pedro Casaldáliga com as crianças.

Porque não reexaminar, à luz da fé, a favor do Ecumenismo e para dar testemunho ao mundo, a condição de Estado com que o Vaticano se apresenta, conferindo à pessoa do Papa uma dimensão explicitamente política, que prejudica a liberdade e a transparência do seu testemunho de Pastor universal da Igreja? Por que não decidir-se, com liberdade evangélica e também com realismo, por uma profunda renovação da Cúria Romana?

Eu sei da dor que lhe causou a sua viagem à Nicarágua. Mesmo assim, sinto-me no dever de lhe confiar a impressão – que muitos outros compartilham – de que os seus assessores e a sua própria atitude não contribuíram para que essa viagem extremamente crítica e, por outro lado, necessária, fosse mais feliz e, acima de tudo, mais evangelizadora. Abriu-se uma ferida no coração de muitos nicaraguenses e de muitos latino-americanos, do mesmo modo que se sentiu ferido no seu coração. No ano passado estive na Nicarágua. Foi a minha primeira saída do Brasil após dezessete anos de permanência neste país. Pela amizade que tenho, desde há muito tempo, com muitos nicaraguenses, por meio de contatos pessoais ou por carta, senti que deveria fazer-me presente, como pessoa humana e como bispo da Igreja, numa hora de gravíssima agressão político-militar e de profundo sofrimento interno. Não pretendi substituir o episcopado local nem subestimá-lo. Acreditei, no entanto, que podia e até mesmo devia ajudar aquele povo e aquela Igreja. Assim que cheguei, comuniquei isso por escrito aos bispos da Nicarágua. Tentei falar pessoalmente com alguns deles, mas não fui recebido. A hierarquia da Nicarágua está abertamente de um lado; do outro lado, há milhares de cristãos, para com os quais a Igreja também tem obrigações. Penso sinceramente que a nossa Igreja – sinto-me Igreja da Nicarágua também, como cristão e como bispo da Igreja – não está dando oficialmente, naquele sofrido país e com repercussões negativas por toda a América Central, Caribe e toda a América Latina, o testemunho que deveria dar: condenando a agressão, propugnando a autodeterminação daqueles povos, consolando as mães dos caídos e celebrando, na Esperança, a morte violenta de tantos irmãos, na maior parte católicos.

João Paulo II adverte Ernesto Cardenal
Registro histórico da admoestação do papa João Paulo II ao pe. Ernesto Cardenal.

É só com Socialismo ou com o Sandinismo que a Igreja não pode dialogar, criticamente, sim, como criticamente deve dialogar com a realidade humana? Poderá a Igreja deixar de dialogar com a História? Ela dialogou com o Império Romano, com o feudalismo, e dialoga, de bom grado, com a burguesia e com o capitalismo, muitas vezes acriticamente, como teve de reconhecer uma avaliação histórica posterior. Não dialoga com a administração Reagan? O Império Norte-Americano merece mais consideração da Igreja do que o doloroso processo com que a pequena Nicarágua pretende ser ela mesma, por fim, arriscando e até errando, mas sendo ela mesma? O perigo do comunismo não justificará a nossa omissão ou conivência com o capitalismo. Essa omissão ou conivência pode um dia “justificar” dramaticamente a revolta, a indiferença religiosa ou mesmo o ateísmo de muitos, especialmente entre os militantes e nas novas gerações.

A credibilidade da Igreja – e do Evangelho e do próprio Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo – depende, em grande parte, do nosso ministério, crítico, sim, mas comprometido com a causa dos pobres e com os processos de libertação dos povos secularmente dominados por sucessivos impérios e oligarquias.

O senhor, como polonês, está em condições muito pessoais de entender esses processos. A sua Polônia natal, tão sofrida e forte, irmão João Paulo, tantas vezes invadida e ocupada, privada da sua autonomia e ameaçada na sua fé por impérios vizinhos (Prússia, Alemanha nazista, Rússia, Império Austro-Húngaro), é irmã gêmea da América Central e do Caribe, tantas vezes ocupados pelo Império do Norte.

Os Estados Unidos invadiram a Nicarágua em 1898 e tornaram a ocupá-la com seus marines de 1909 a 1933, deixando então uma ditadura que durou até 1979. O Haiti esteve sob ocupação  de 1915 a 1934. Porto Rico continua ocupado hoje, desde 1902. Cuba sofreu várias vezes invasões e ocupações, assim como os demais países da região, especialmente o Panamá, Honduras e a República Dominicana. Mais recentemente, Granada sofreu o mesmo destino. Os mesmos Estados Unidos exportam para estes países as suas seitas, que dividem internamente o povo e ameaçam a fé católica e a fé de outras Igrejas evangélicas… ali estabelecidas.

Trump em frente à escultura de João Paulo II
O presidente Trump e sua mulher diante da escultura do papa João Paulo II.

Sei também das suas preocupações apostólicas a respeito da nossa Teologia da Libertação, das comunidades cristãs em ambientes populares, dos nossos teólogos, dos nossos encontros, publicações e outras manifestações da vitalidade da Igreja na América Latina, de outras Igrejas do Terceiro Mundo e de alguns setores da Igreja na Europa e na América do Norte. Seria ignorar a sua  missão de Pastor universal fingir que não conhece e até se preocupa com todo esse movimento eclesial, especialmente quando a América Latina, especificamente, representa quase a metade dos membros da Igreja Católica.

De qualquer forma, peço desculpas, mais uma vez, por expressar uma palavra sentida a respeito da forma como são tratadas pela Cúria Romana, a nossa Teologia da Libertação e os seus teólogos, certas instituições eclesiásticas – como a própria CNBB, em certas ocasiões – iniciativas de nossas Igrejas e algumas sofridas comunidades deste Continente, bem como os seus animadores.

Diante de Deus, posso dar-lhe o testemunho dos agentes pastorais e das comunidades com as quais estabeleci contato na Nicarágua. Nunca pretenderam ser uma Igreja “paralela”. Não ignoram a Hierarquia nas suas funções legítimas e sabem que são Igreja, manifestando uma sincera vontade de permanecer nela. Por que não pensar que algumas causas deste tipo de conflitos na pastoral também podem provir da hierarquia?

Com frequência, nós, os membros da hierarquia, não reconhecemos de fato os leigos como adultos e corresponsáveis na Igreja, ou queremos impor ideologias e estilos pessoais, exigindo uniformidade ou entrincheirando-nos no centralismo.

Teologia da Libertação
Teologia da Libertação

Acabo de receber a última carta do cardeal Gantin, prefeito da Congregação para os Bispos. Nele o senhor Cardeal, entre outras admoestações, recorda-me agora a visita apostólica que recebi e recebeu a Prelazia de São Félix do Araguaia em 1977. Quero simplesmente informar ao senhor que esta visita foi provocada por denúncias ou calúnias de um irmão no episcopado; que o visitador apostólico passou apenas quatro dias em São Félix, sem visitar nenhuma comunidade, apenas concordando em conversar com pouquíssimas pessoas e ver o Arquivo da Prelazia, depois de termos insistido que o fizesse. Nem ele, nem a Nunciatura, nem a Santa Sé, me comunicaram jamais as conclusões da referida visita, embora eu o tivesse solicitado expressamente.

Quero, por fim, reafirmar, querido irmão em Cristo e Papa, a firmeza da minha comunhão e a vontade sincera de continuar com a Igreja de Jesus, a serviço do Reino. Deixo a seu critério de Pedro da nossa Igreja, tomar a decisão que julgar oportuno sobre mim, também bispo da Igreja. Não quero criar problemas desnecessários. Desejo ajudar, de forma responsável e colegiada, a levar adiante a missão evangelizadora da Igreja, particularmente aqui no Brasil e na América Latina. Porque acredito na perene atualidade do Evangelho e na presença sempre libertadora do Senhor Ressuscitado, quero acreditar também na juventude da sua Igreja.

Se o senhor considerar apropriado, pode indicar-me uma data apropriada para que eu vá visitá-lo pessoalmente. Confio na sua oração como irmão e de Pontífice. Deixo nas mãos de Maria, Mãe de Jesus, o desafio desta hora. Reitero-lhe a minha comunhão de irmão em Jesus Cristo e, reafirmo a minha condição de servidor da Igreja de Jesus.

Com sua bênção apostólica,

Pedro Casaldáliga,

Bispo de São Félix do Araguaia, MT, Brasil

Fonte:

www.religiondigital.org

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Fique do lado dos pobres https://observatoriodaevangelizacao.com/fique-do-lado-dos-pobres/ Sat, 15 Aug 2020 19:01:13 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=35384 [Leia mais...]]]> Houve um homem enviado por Deus. Seu nome era Pedro Casaldáliga. Nascido na Espanha, respondeu seu chamado ao seguimento radical de Jesus na pobreza, na castidade e na obediência entre os religiosos claretianos. Acolheu o mandato missionário e se dirigiu ao Brasil central na conflitiva região do Araguaia. Disse sim à missão episcopal e viveu um longo ministério à frente da Prelazia de São Félix do Araguaia, servindo aos mais pobres. Talvez tenha amado a Amazônia e os indígenas como nenhum brasileiro.

Somente a mística, fruto de uma adesão de todo seu ser ao evangelho, poderia sustentar um estilo de vida de simplicidade, sobriedade, pobreza. Somente a mística poderia nos fazer compreender a firmeza de quem nunca titubeou diante de seus opositores, mesmo no interior da Igreja. Somente a mística, alimentada no silêncio das constantes vigílias noturnas, para dar-lhe a palavra profética e talhá-lo como poeta.

Na Igreja do Brasil, Pedro Casaldáliga foi um patriarca na recepção das conclusões da Conferência de Medellín (1968). É preciso retomar o que disseram os bispos em Medellín para a compreensão do modo de ser e de agir desse bispo-prelado que se tornou conhecido no mundo inteiro por sua defesa dos pobres:

Cristo Nosso Salvador não apenas amou os pobres, mas, ‘sendo rico se fez pobre’, viveu na pobreza, concentrou sua missão no anúncio da libertação dos pobres e fundou sua Igreja como sinal dessa pobreza entre os homens… Os bispos queremos aproximar-nos cada vez mais com simplicidade e sincera fraternidade dos pobres, possibilitando-lhes um acesso acolhedor junto a nós. Devemos tornar mais aguda a consciência do dever de solidariedade para com os pobres. Esta solidariedade significará fazer nossos seus problemas e lutas e saber falar por eles. Isto se concretizará na denúncia da injustiça e opressão, na luta contra a intolerável situação em que se encontra, frequentes vezes, o pobre e na disposição de dialogar com os grupos responsáveis por esta situação, a fim de fazê-los compreender suas obrigações… A promoção humana será a linha de nossa ação em favor do pobre, respeitando sua dignidade pessoal e ensinando-lhe a ajudar-se a si mesmo… Desejamos que nossa morada e modo de vida sejam modestos, nosso modo de vestir simples e nossas obras e instituições funcionais, sem aparato nem ostentação (Medellín, Pobreza da Igreja).

A opção de seguir Jesus pobre ficou estampada em seus funerais. Seu corpo estava envolto por uma simples túnica branca e com a estola sacerdotal de artesanato nicaraguense. Uma cruz singela de madeira feita pelos indígenas. Trazia o anel de tucum em uma de suas mãos. Também nas mãos o rosário de Nossa Senhora. Os pés estavam descalços, tendo acima deles a bíblia aberta. Nada na cabeça. Essas imagens correram o mundo. A forma de depositar o corpo na urna causou estranheza em algumas pessoas. Creio que a estranheza é a reação à interpelação que Dom Pedro continuou a nos fazer.

Ao saber de sua morte, ocorrida no último dia 8 de agosto de 2020, orei com estas palavras:

Ó Deus, como Eliseu pediu o dobro do espírito do profeta Elias, dá-nos como bispos da tua Igreja uma porção do espírito, da mística e da profecia de dom Pedro Casaldáliga. Que ele descanse em paz.

Amém.

+ João Justino de Medeiros Silva

Arcebispo Metropolitano de Montes Claros

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Pedro, alguém que nos fez acreditar na grandeza de sermos Rede https://observatoriodaevangelizacao.com/pedro-alguem-que-nos-fez-acreditar-na-grandeza-de-sermos-rede/ Sat, 08 Aug 2020 19:50:06 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=35348 [Leia mais...]]]> “Bastar-me-á saber que Tu me conheces inteiramente, ainda antes dos meus dias” (Querida Amazônia, 73). A confiança em Deus sempre foi a força motriz de dom Pedro Casaldáliga, de alguém que deu sua vida em favor da Amazônia e seus povos, de alguém que sempre compreendeu, assumiu e pregou que juntos somos mais e podemos sonhar mais alto.

Pedro Casaldáliga, ou dom Pedro, ou simplesmente Pedro, como ele gostava de ser chamado, sempre se sentiu um poeta. Suas palavras encantaram e continuarão a encantar, porque a memória dos justos é eterna. Elas até encantaram o papa Francisco, que se lembrou de um de seus poemas para iluminar suas reflexões na Querida Amazônia.

A Amazônia sempre foi uma terra querida por Pedro, mas na verdade era mais do que uma terra, era uma vida, sua vida. Ninguém duvida que Pedro é um daqueles de quem o papa Francisco diz: “Muitas pessoas consagradas gastaram as suas energias e grande parte da sua vida pelo Reino de Deus na Amazônia” (Querida Amazônia, 95). Ele gastou suas energias para ser a voz daqueles que ninguém queria ouvir, e começou a criar redes que fortificassem uma luta, conquistassem aliados e plantassem sementes, que um dia brotaram e deram frutos.

Se hoje a Igreja da Pan-Amazônia sente o desejo de caminhar junto, é porque ao longo de décadas, ao longo de séculos, muitos Pedros têm atado nós para tecer uma rede. Se hoje, na Igreja, a Amazônia, a periferia, tornou-se o centro, é porque muitos Pedros mostraram a riqueza que ela contém. Foram eles que nos ensinaram a olhar a Amazônia e seus povos como uma fonte de vida no coração da Igreja e do mundo, que está inundando as entranhas de tantos homens e mulheres que continuam a sonhar com o Reino.

Se hoje a Igreja da Pan-Amazônia sente o desejo de caminhar junto, é porque ao longo de décadas, ao longo de séculos, muitos Pedros têm atado nós para tecer uma rede. Se hoje, na Igreja, a Amazônia, a periferia, tornou-se o centro, é porque muitos Pedros mostraram a riqueza que ela contém. Foram eles que nos ensinaram a olhar a Amazônia e seus povos como uma fonte de vida no coração da Igreja e do mundo, que está inundando as entranhas de tantos homens e mulheres que continuam a sonhar com o Reino.

A morte de Pedro é um momento para continuar sonhando, para continuar apostando nas causas que marcaram sua vida, sim, naquelas causas que ele sempre disse que valiam mais do que sua própria vida. De fato, a fé no Deus da Vida de alguém que sempre foi ameaçado, perseguido, que viu quantos de seus companheiros de luta e utopias estavam caindo, vítimas daqueles que apostaram e continuam apostando em uma economia que mata, que destrói a vida da Amazônia e de seus povos, deveria ser um motivo para continuar caminhando.

Somos chamados a continuar acompanhando a vida desses povos, dos últimos, a permanecer entre eles, mesmo além da morte, a não ter problema, até mesmo a desejar, ser enterrados entre um peão e uma prostituta, entre os últimos, porque queríamos estar entre eles enquanto estávamos vivos. Somos chamados a ser uma casa, uma Igreja, com as portas abertas, onde todos podem entrar sem bater, porque eles sabem que serão bem-vindos e para eles será oferecido o que temos à nossa disposição nesse dia. Aquela casa de tijolos, sem luxos, mas sempre acolhedora para todos os que vêm.

Somos uma rede, somos uma Igreja que quer caminhar junto, companheira e aliada dos últimos, aprendiz, feliz por escutar quem fala do coração, com aquele olhar limpo e firme, que denuncia e deixa claro que estamos ao lado dos favoritos de Deus, daqueles que o mundo colocou no último lugar. Por tudo isso, assumamos as palavras do papa Francisco, deixemos claro que “tudo isso nos une”, e que a partir daí não podemos parar de nos perguntar: “Como não lutar juntos? Como não rezar juntos e trabalhar lado a lado para defender os pobres da Amazônia, mostrar o rosto santo do Senhor e cuidar da sua obra criadora?” (Querida Amazônia, 110).

Que nunca nos falte o incentivo para continuar avançando, para fazer todo o possível para “transformar a realidade da Amazônia e libertá-la dos males que a afligem” (Querida Amazônia, 111). Estas foram as causas de Pedro, de Francisco, de tantos homens e mulheres que se tornaram sementes de vida em abundância para todos. Que elas nunca deixem de ser nossas causas.

Luis Miguel Modino, junto com a Secretaria executiva e toda a Rede Eclesial Pan-Amazônica – REPAM

Sobre o autor:

Luiz Miguel Modino

Luis Miguel Modino – Padre diocesano de Madri, missionário fidei donum na Amazônia, residindo atualmente em Manaus – AM. Faz parte da Equipe de Comunicação da REPAM. Correspondente no Brasil de Religión Digital e colaborador do Observatório da Evangelização e em diferentes sites e revistas.

Segue a versão do texto em espanhol:

Pedro, alguien que nos hizo creer en la grandeza de ser Red

“Me ha de bastar saber que Tú me sabes entero, desde antes de mis días” (Querida Amazonía, 73). La confianza en Dios siempre fue el motor de Don Pedro Casaldáliga, de alguien que entregó su vida en favor de la Amazonía y de sus pueblos, de alguien que siempre entendió, asumió y predicó que juntos somos más y podremos soñar más alto. Pedro Casaldáliga, o Don Pedro, o simplemente Pedro, como a él le gustaba que le llamasen, siempre se sintió un poeta. Sus palabras encantaban y seguirán encantando, porque la memoria del justo es eterna. Inclusive encantaron al Papa Francisco, que se acordó de una de sus poesías para iluminar sus reflexiones en Querida Amazonía.

La Amazonía siempre fue una tierra querida para Pedro, pero en verdad fue más que una tierra, fue una vida, su vida. A nadie le cabe duda que Pedro es uno aquellos de quienes el Papa Francisco dice: “Muchas personas consagradas gastaron sus energías y buena parte de sus vidas por el Reino de Dios en la Amazonía” (Querida Amazonía, 95). Él gastó sus energías para ser voz de quienes nadie quería escuchar, fue gestando redes que fortificasen una lucha, conquistando aliados y plantando semillas, que un día brotaron y dieron fruto.

Si hoy la Iglesia de la Panamazonía siente el deseo de caminar unida es porque a lo largo de décadas, de siglos, muchos Pedros fueron atando nudos para tejer una red. Si hoy en la Iglesia, la Amazonía, la periferia, se convirtió en el centro, es porque muchos Pedros mostraron la riqueza que ella encierra. Son ellos y ellas quienes nos han enseñado a mirar a la Amazonía y a sus pueblos como fuente de vida en el corazón de la Iglesia y del mundo, que va inundando las entrañas de tantos hombres y mujeres que siguen soñando con el Reino.

Si hoy la Iglesia de la Panamazonía siente el deseo de caminar unida es porque a lo largo de décadas, de siglos, muchos Pedros fueron atando nudos para tejer una red. Si hoy en la Iglesia, la Amazonía, la periferia, se convirtió en el centro, es porque muchos Pedros mostraron la riqueza que ella encierra. Son ellos y ellas quienes nos han enseñado a mirar a la Amazonía y a sus pueblos como fuente de vida en el corazón de la Iglesia y del mundo, que va inundando las entrañas de tantos hombres y mujeres que siguen soñando con el Reino.

La muerte de Pedro es momento para seguir soñando, para seguir apostando por las causas que marcaron su vida, sí, por esas causas que él siempre dijo que valían más que su propia vida. De hecho, la fe en el Dios de la Vida de alguien que siempre fue amenazado, perseguido, que vio como muchos de sus compañeros de luchas y utopías fueron cayendo, víctimas de quienes apostaban y continúan apostando por una economía que mata, que destruye la vida de la Amazonía y de sus pueblos, debe ser un motivo para seguir caminando.

Somos llamados a continuar acompañando la vida de esas gentes, de los últimos, a quedarnos entre ellos, incluso más allá de la muerte, a no tener problema, incluso desear, ser enterrados entre un peón y una prostituta, entre los últimos, pues entre ellos quisimos estar mientras vivíamos. Somos llamados a ser una casa, una Iglesia, de puertas abiertas, donde todo mundo puede entrar sin llamar, porque sabe que va a ser acogido y para él va a ser ofrecido lo que ese día tengamos a mano. Esa casa de ladrillo visto, sin lujos, pero siempre acogedora para con todo el que llega.

Somos red, somos Iglesia que quiere caminar unida, compañera y aliada de los últimos, aprendiz, feliz en escuchar a quien habla desde el corazón, con esa mirada limpia y firme, que denuncia y deja claro que estamos al lado de los preferidos de Dios, de aquellos a quienes el mundo colocó al final de la fila. Por todo eso, asumamos las palabras del Papa Francisco, tengamos claro que “todo esto nos une”, y que desde ahí nunca podremos dejar de preguntarnos: “¿Cómo no luchar juntos? ¿Cómo no orar juntos y trabajar codo a codo para defender a los pobres de la Amazonía, para mostrar el rostro santo del Señor y para cuidar su obra creadora?” (Querida Amazonía, 110).

Que nunca nos falte el aliento para seguir avanzando, para hacer lo posible para “transformar la realidad de la Amazonía y liberarla de los males que la aquejan” (Querida Amazonía, 111). Esas fueron las causas de Pedro, de Francisco, de tantos hombres y mujeres que se convirtieron en semillas de vida en abundancia para todos. Que nunca dejen de ser nuestras causas.

Luis Miguel Modino, junto con la Secretaría Ejecutiva y toda la Red Eclesial Panamazónica – REPAM

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Uma Carta Pastoral profética de dom Pedro Casaldáliga sobre a Igreja da Amazônia https://observatoriodaevangelizacao.com/uma-carta-pastoral-profetica-de-dom-pedro-casaldaliga-sobre-a-amazonia-de-1971/ Sat, 12 Oct 2019 01:57:00 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=32345 [Leia mais...]]]> Nesses dias de Sínodo para a Amazônia em Roma, diversas Comunidades Latino-americanas nos pedem para fazer essa memória história a partir do pensamento e práxis de dom Pedro, profeta e fiel discípulo do Nazareno.

(O artigo é de Jaime Escobar Martínez, publicado por Reflexión y Liberación, 10/10/2019. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo)

No dia de sua consagração como bispo em 1971, dom Pedro Casaldáliga publicou o que seria a primeira denúncia mundial sobre a situação da Amazônia. Essa ação pelo bem dos pobres e despossuídos lhe custou várias ameaças de morte.

A Carta Pastoral de Dom Pedro Casaldáliga, denominada “A Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e marginalização social”, é um interpelante documento histórico que marcar um antes e um depois na defesa dos povos indígenas, do meio ambiente, da situação da mulher e na luta contra a pobreza e marginalidade. É a primeira vez que um bispo de posiciona tão abertamente na bela Amazônia.

Recordando a jornalista Beta Compurbí: “naqueles anos, as terras de Mato Grosso estavam dominadas por superposições de título de propriedade, em herança principalmente, da Lei de Terras de 1850 que repartiu ilegitimamente territórios ancestrais indígenas criando imensas propriedades agrárias de até 7 mil km². Eram terras de pistoleiros, de desamparo jurídico e institucional”, onde a violência era o método com que se resolviam os conflitos. Dom Pedro Casaldáliga enterrou muitos campesinos, sem-terras e indígenas, naqueles tempos.

Ao longo de 30 páginas de Carta Pastoral, o bispo Pedro analisa rigorosamente a situação de escravidão e violência em que viviam os povos e comunidades da Amazônia, denunciando os problemas ambientais que, já então, se começavam a perceber e, claro, o genocídio dos Povos Indígenas que os latifundiários estavam levando a cabo com o beneplácito do Governo militar brasileiro.

Explicita isso em sua profética Carta Pastoral, citando o professor Hélio de Souza Reis: “Indiferentes a tudo, [os campesinos] tratam de ganhar o pão de cada dia, pois para eles somente existem dois direitos: o de nascer e o de morrer”.

Dom Pedro Casaldáliga

Um texto profético

Em tempos em que quase ninguém falava da causa indígena; quando a preocupação pelo Meio Ambiente não estava em pauta de nenhuma discussão; e quando a pobreza extrema dos peões, frequentemente escravizados, era um assunto longe de qualquer foco midiático ou eclesiástico, a Carta Pastoral de 1971 de dom Pedro, se converte em um documento que sacode o Brasil e que internacionaliza e põe luz sobre a cruel situação econômica, social e ambiental da Amazônia.

O documento eclesiástico teve que ser impresso na clandestinidade, fora da região do Araguaia, pela fiel colaborada de Pedro, a irmã Irene Franceschini: Aquela mulher que, em plena ditadura, levou em uma caixa envolta com um pano, a primeira Carta Pastoral de Pedro Casaldáliga em um avião militar! Quando lhe perguntaram o que levava, ela respondeu “medicamentos, alguma roupa, coisas sem importância… se quiser pode abrir…”!

A carta do bispo Pedro teve eco na maioria de periódicos e publicações de todas partes do Brasil e desencadeou uma revolução em plena repressão militar, quando os interesses econômicos afins ao regime estavam se repartindo pelo Centro Oeste do país nas costas dos povos indígenas, dos peões e do meio ambiente. Assim descreve com precisão o sociólogo José de Souza Martins (1995), “o documento é um dos mais importantes na história social do Brasil”.

Obrigado dom Pedro por este legado que difundimos com alegria no coração, dando Graças por teu bonito testemunho de vida boa para todos e todas em tua querida Amazônia que hoje se expressa com liberdade, canta e dança na mesmíssima Basílica de São Pedro no Sínodo convocado pelo indomável papa Francisco. Graças a Deus!

Dom Pedro Casaldáliga

A seguir, a profética Carta Pastoral de Dom Pedro Casaldáliga na íntegra:

Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social

Pedro Casaldáliga
bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia Carta Pastoral
São Félix do Araguaia, 10 de outubro de 1971

Depois de três anos de “missão” neste norte do Mato Grosso, tentando descobrir os sinais do tempo e do lugar, juntamente com outros sacerdotes, religiosos e leigos, na palavra, no silêncio, na dor e na vida do povo, agora, com motivo da minha sagração episcopal, sinto-me na necessidade e no dever de compartilhar publicamente, como que a nível de Igreja nacional e em termos de consciência pública, a descoberta angustiosa, premente.

Para dar a conhecer esta Igreja às outras Igrejas irmãs, à Igreja.

Para pedir e possibilitar, também desde esta Igreja, uma maior comunhão, uma colegialidade mais real, uma mais decidida corresponsabilidade. Talvez também para despertar e chamar respostas e vocações concretas…

Nenhuma igreja pode viver isolada. Toda igreja é universal, na comunhão de uma mesma Esperança e no comum serviço do amor de Cristo que liberta e salva. “…Cada parte cresce por comunicação mútua e pelo esforço comum em ordem a alcançar a plenitude na unidade”. (Lumem Gentium, 13).

O “momento publicitário” de projetos e realizações que a Amazônia está vivendo, e a opção de prioridade que a própria Igreja do Brasil fez por ela, através da CNBB, justificam também com nova razão esta minha declaração pública.

Se “a primeira missão do bispo é a de ser profeta” e “o profeta é a voz daqueles que não têm voz” (card. Marty), eu não poderia, honestamente, ficar de boca calada ao receber a plenitude do serviço sacerdotal.

Parte I Situação Geográfica

Esta Prelazia de São Félix, bem no coração do Brasil, abrange uns 150.000 Km2 de extensão, dentro da Amazônia legal, no nordeste do Mato Grosso, e com a Ilha do Bananal em Goiás. Está encravada entre os rios Araguaia e Xingu e lhe faz como de espinha dorsal, de Sul a Norte, a Serra do Roncador.

O decreto de ereção da Prelazia, “Quo commodius”, assinado por Paulo VI, aos 13 de março de 1970, define assim os limites estritos da Prelazia de São Félix: “Ao norte, os confins da Prelazia de Conceição do Araguaia, que atualmente delimitam os Estados do Pará e Mato Grosso; ao leste os confins da Prelazia de Cristalândia, e ao oeste os da Prelazia de Diamantino, ou seja os rios Araguaia e Xingu; ao sul a linha traçada em direção noroeste desde a confluência dos rios Curuá e da Mortes; e daí em linha reta até a confluência dos rios Couto de Magalhães e Xingu”.

Compõem o solo da Prelazia terras de mata fértil, florestas, grandes pastagens, margens de areia e argila, campos e cerrados, sertão e varjões. Duas estações, bem marcadas, de clima sub-equatorial, se repartem o ano todo: ” as chuvas”, de novembro até abril, e ” a seca” de maio a outubro.

Cruzam o território duas estradas “de terra”, de empreendimento da SUDECO, (a BR-158, Barra do Garças- Xavantina- São Félix, e a BR-80, em construção, Araguaia-Xingu – Cachimbo- Cuiabá/Santarém).

A Prelazia compreende todo o município de BARRA DO GARÇAS. Além da Ilha do Bananal, formada pêlos dois braços do rio Araguaia.

SÃO FÉLIX, a sede da Prelazia, é só distrito e pertence à Prefeitura de Barra do Garças, a uma distância de quase 700 Km2. (1)

Dentro da área do município de Barra do Garças, além da sede da Prelazia, com uns 1.800 habitantes, situam-se os povoados de Pontinópolis, Campos Limpos/ Cascalheira, Santo Antônio, Serra Nova, Garapu, barreira Amarela… O município de Luciara inclui a sede da Prefeitura (2) . e os lugarejos de Santa Terezinha (com o antigo núcleo fundacional de Furo das Pedras), Cedrolândia/ Porto Alegre, Lago Grande,” 2 de Junho”, São Sebastião”, … Dentro da Ilha do Bananal está Santa Isabel do Morro – “a capital”, com aeroporto oficial da FAB -, São Jõao do Javaé e Barreira de Pedra.

Exista na área da Prelazia as aldeias indígenas da metade leste do Parque Nacional do Xingu, à margem direita do rio, e as aldeias de São Domingos, Santa Isabel, Fontoura, Macaúba, Tapirapé, Canuanã, Cachoeirinha, Areões, Barra do Tapirapé e Luciara.

Localizam-se na região a maior parte dos empreendimentos agropecuários – Fazendas ou companhias – aprovados pela SUDAM.

Entre eles, a Suiá-Missu, Codeara, Reunidas, Frenova, Bordon, Guanabara, Elagro, Tamakavy etc.

Parte II Panorâmica Sócio-Pastoral

Torna-se praticamente impossível, por enquanto, dar uma estatística do contigente humano a que habita o território da Prelazia.

Os dados do IBGE para todo o município de Barra do Garças, no recenseamento de 1970, apontam uma cifra de 28.403. Entretanto a estimativa da população total, segundo os “Dados estatísticos do município de Barra do Garças, MT” (Secretaria municipal de Educação e Saúde, 23 de março de 1971), é de 52.000. Para o município de Luciara, o Censo de 1970, do mesmo IBGE, assinala o número de 5.332 habitantes…

A estimativa aproximada de toda a população flutuante ao lado da população relativamente fixa. (Pode-se considerar tônica de todo o setor humano da região, excluído o indígena, a instabilidade habitacional.)

A Maior parte do elemento humano é sertanejo: camponeses nordestinos, vindos diretamente do Maranhão, do Pará, do Ceará, do Piauí…, ou passando por Goiás. Desbravadores da região, “posseiros”. Povo simples e duro, retirante como por destino numa forçada e desorientada migração anterior, com a rede de dormir nas costas, os muitos filhos, algum cavalo magro, e os quatro “trens” de cozinha carregados numa sacola.

Adauta Luz Batista, filha da região e protagonista da história local, se refere a eles com este significativo depoimento: “Acostumados com a aspereza da vida agreste, desprezados pela esfera dos altos poderes, ludibriados na sua boa fé de gente simples, eles vêem os seus dias, à semelhança das nuvens negras, sempre anunciando um mau tempo. Ele (o sertanejo) é a vítima da ganância alheia, da inconsciência dos patrões, da exploração dos trêfegos políticos que na região aparecem de eleição em eleição para pedir voto e mais que tudo isto, da sua própria ignorância. É o homem que comete muitas das vezes um crime, porque embargando-se-lhes o direito, só lhe resta a violência. Esse infeliz, sobejo das pragas e da verminose, vive na penumbra de um futuro incerto.

“Indiferentemente a tudo, eles vão ganhando o pão de cada dia, pois para eles só existem dois direitos: o de nascer e o de morrer. O produto de seus esforços somado ao de seus sacrifícios, vai aparecendo lentamente nos grandes armazéns das vilas, ou numa cabeça de gado a mais nas fazendas circunvizinhas. Uma doença, uma boda, uma viagem, podem acabar com toda uma vida dolorosas poupanças. O sertanejo nunca conheceu a lei do protesto, das greves, do direito ou do uso da razão. Todo o seu cabedal histórico está dentro das quatro paredes de um mísero rancho e na prole que aparece descontroladamente. Desfaz as suas profundas mágoas entre um e outro copo de cachaça, ou num cigarro de palha, cujas baforadas se encarregam de levar bem longe a infelicidade que ele tem bem perto”. (Da “pesquisa Sociológica” realizada pelo professor Hélio de Souza Reis, em São Félix, durante o ano de 1970).

Os indígenas constituem uma pequena parte dos moradores. Os Xavante: caçadores, fortes, bravos ainda faz poucos anos quando semeavam o terror por estas paragens. Receosos. Bastante nobres Os Carajá: pescadores, comunicativos, fáceis à amizade, festeiros, artesãos do barro, das penas dos pássaros e da palha das palmas; moles e adoentados, particularmente agredidos pelos contatos prematuros desonestos com a chamada Civilização, por meio do funcionalismo, do turismo e do comércio: com a bebida, o fumo, a prostituição e as doenças importadas. Os Tapirapé: lavradores, mansos e sensíveis; mui comunitários e de uma delicada hospitalidade.

A várias tribos agrupadas dentro do parque Nacional do Xingu seriam oficialmente virgens se beneficiaram de um certo isolamento, depois de sofrer maior ou menor deportação. Foram porém afetadas por presenças e atuações discutíveis.

O restante da população está formado por fazendeiros, gerentes e pessoal administrativo das fazendas latifundiárias, QUASE SEMPRE SULISTAS DISTANTES, como estrangeiros de espírito, um pouco super-homens, exploradores da terra, do homem, e da política. Por funcionários da FUNAI e de outros organismo organismos oficiais, com as características próprias do funcionário “no interior”. Por comerciantes e marreteiros, motoristas, boiadeiros, pilotos, policiais, vagabundos, foragidos e prostitutas. E principalmente por peões: os trabalhadores braçais contratados pelas fazendas agropecuárias, em regime de empreitada. Trazidos diretamente de Goiás ou do Nordeste, ou vindos de todo canto do país; mais raramente moradores da região, que neste caso são comumente rapazes. (Muitos dos peões passam a ser moradores da região após se “libertar” do serviço das fazendas.)

Para uma apreciação pastoral do elemento humano da Prelazia seria preciso distinguir as diferentes faixas de população que acabo de anotar.

É interessante reconhecer aqui um trecho da apreciação que faz sobre o racismo na região a citada ” Pesquisa sociológica” : “Há uma série de degraus na consideração racistas das pessoas: Sulista-sertanejo (nordestino); Branco-Preto; “Cristão”- Índio. O Sulista fala em “essa gente”, “esse povo”, “aqui nunca viram, não sabem nem…”, “são índios mesmo”, etc… O índio não é considerado gente pelo sertanejo. Ninguém confia em índio. Expressões sintomáticas: ” O governo nos trata como carajá”. Quando um índio atua, reage, se comporta “normalmente”, o comentário é: “… que nem gente”, ” feito gente”… “Fulano tem cabelo bom”, “sicrano tem cabelo ruim”:… o branco é considerado superior e tem cabelo liso, logo o cabelo liso é bom, superior; e o cabelo pixaim é ruim, inferior, por se negro, considerado raça inferior…”.

Há umas constantes de conduta, mais ou menos comuns em todos os moradores desta região, derivadas da situação ambiente (clima, distâncias, mobilidade). Outras constantes talvez poderiam se considerar patrimônio comum da alma brasileira.

O povo da Prelazia, mais estritamente tal – o sertanejo – é o povo nordestino depois, de alguns anos – e até muitos – de vida retirante, e havendo incorporado à sua vida os condicionamentos da região.

É um povo de admiráveis virtudes básicas: a hospitalidade universal, espontânea, sem preço: levando mesmo à filiação adotiva. Uma hospitalidade que se sente e se pratica como dever natural. A Abnegação. “O sertanejo é antes de tudo um forte”, disse Euclides da Cunha. É um forte de espírito. A resignação, quando não for fatalismo e passividade. Uma resignação de última instância que a gente adivinha como sendo um abstrato de esperança teologal. O sentido religioso da vida, do universo. A maleabilidade, a capacidade de admirar, de escutar, de aprender. Uma profunda vida interior: de experiência, de silêncios, de reflexão – mesmo – elementar, de saudável astúcia. A simplicidade: uma pureza de espírito que se revela entre nos “pecados” e “crimes”. A coragem frente a natureza brava, contra o “destino” e a injustiça permanente, no total abandono sócia. (Um posseiro – moço novo – ameaçado de morte pelos poderes do latifúndio e com a perspectiva de deixar órfãos 7 filhos, crianças, expressava-se assim: “Confio em mim; e confio em Deus. A vida que eu tenho, eles têm. Eles têm o medo que eu tenho… Deus quando dá filhos confia nele mais do que no pai… Eu não vi pai na minha casa!”

É um povo religioso. Acredita em Deus, sem discussão. Com uma fé primitiva, entre o “terror de Deus” e a gratidão mais sentida. Aquele “graças a Deus”, tirando o chapéu e com os olhos levantados, é todo um símbolo. As promessas são cumpridas fielmente de geração em geração. Tudo vem de Deus. Diretamente. As “causas segundas” ou a secularização seriam para esta gente uma presunção temerária, uma monstruosa heresia. Toda desgraça é um castigo de Deus. Deus é um instrumento mágico. Pode-se até prescindir dos meios naturais: “Com fé em Deus…”

Transcrevo o julgamento, para ser meditado, da “Pesquisa Sociológica” do professor Hélio: “Os homens dos sertões brasileiros, ainda que batizados, foram e ainda são abandonados pela Igreja. São cristãos esparramados por estes sertões infindos, que passaram anos sem ver cara de padre, a não ser no tempo das desobrigas. A Igreja parece ter doado a atitude da classe dominante, que considera o sertanejo um sub-homem, sem direitos. E por analogia, um cristão de 2a classe. E hoje deparamos com o catolicismo das promessas, dos santos e dos espíritos: um verdadeiro sincretismo religioso, onde a ignorância e as superstições florescem viçosamente”.

O povo pratica, com zelo quase fanático na materialidade do ato, (com visível distância espiritual, em muitos casos, por parte dos homens e da gente nova), as características “rezas”, “bênçãos”, “novenas”, guarda de inumeráveis dias santos e ritos vários (nas doenças, nos encontros, no trabalho, no enterros, nos mil momentos da vida; até no jeito próprio de colocar as balas no revólver…).

A superstição (assombração, benzeção, mitos, feitiço, messianismo, fatalismo) domina profundamente a alma deste povo, mesmo quando encoberta por uma capa externa de conscientização, de machismo ou de modalidade.

A desobriga sacramentalizou sem evangelizar, sem edificar Igreja. Os sacramentos são mais uma “benção”. Procura-se o batismo dos filhos como uma saída automática do paganismo, como um salvo-conduto e até como um remédio. Pede-se até batizar os filhos já mortos. O crisma é apenas uma nova oportunidade de arranjar padrinhos: duvido que uma dúzia de pessoas de toda a região pudesse dar sua idéia certa do que realmente a Confirmação. A eucaristia é ignorada. A Missa é uma reza. Quando o padre passava, nas desobrigas, eram “batizados” sobre o altar os santinhos e as imagens. E escutava-se com fé, mas sem poder entender. E aquela era a oportunidade do encontro, dos noivados fulminantes, dos batizados, de casamento “no queima” (3) das festas e das bebedeiras, das brigas e tiros também. O casamento “no padre”, “pela Igreja”, “religioso”, é reconhecido como o verdadeiro matrimônio, porém aceita-se com a maior naturalidade o simples casamento civil, durante anos, ou o amigamento, e se “largam” marido e mulher com uma freqüência preocupante.

O sacerdote, o padre batiza e casa, traz remédios, dá carona, sabe muito. É diferente. Está de passagem. É respeitado, até o medo. (O povo conheceu muitos padres “bravos”). E quase sempre é um estrangeiro. Certamente esta imagem do padre, na Prelazia, está-se modificando, e essa mudança questiona e compromete a fé do povo.

A Moral sofre particularmente pelas leis primárias de vingança – hereditária muitas vezes, verdadeiro ônus familiar -, da justiça tomada por própria mão; pela valentia e pela embriaguez freqüentíssima. (Ao longo da estrada e em todo canto de rua surgem os botecos de pinga. O maior comércio da região é a cachaça). A infidelidade conjugal. A fragilidade da família, uma sexualidade entre primitiva e mórbida, tropical e de compensação, abalam também constantemente a Moral. A prostituição é praga. De São Félix têm-se feito cálculos e juízos alarmantes. O “Pingo” – cabaré local – funciona em plena cidade para escândalo das famílias e dos menores e para ameaça da saúde e da segurança pública. O mesmo acontece em outros povoados da região. A maioria das “raparigas” já foram casadas; são “largadas” do marido. A idade prematura com que as moças se casam – as que não se casaram antes do 18 anos se consideram ou são consideradas “coroas”, feita exceção das estudantes – pode ser uma explicação fundamental do caso.

O fatalismo e a irresponsabilidade se conjugam com um habitual preguiça tropical que não é possível qualificar de “defeito moral”, já que está condicionada pela desnutrição, pelo clima, pelas doenças endêmicas, pela falta de perspectiva social.

O mesmo fatalismo, sócio-religioso, explica o medo em falar a verdade e em reclamar os direitos mas elementares. (A alienação política e social é extrema. Segundo a referida Pesquisa local de São Félix, 42% ignora o nome do Prefeito; 80%, o do Governador; 79%, o do Presidente da República. À pergunta “o que acham dos políticos?”, 33% respondeu que, “não conhece esta gente, não se preocupa com isto, não tem opinião formada, não tem paixão por isto”.) Não se fala, por que nunca se pôde falar; porque as represálias – da política ou no comércio – são automáticas. “Pobre não tem vez”. “Peão não é gente”. “É fuá desse povo”… O Juiz de Direito vive as centenas de quilômetros e viajar a Brasília ou a Cuiabá supõe uma boa fortuna e boa influência.

A injustiça dominante, consubstancial à única estrutura conhecida, solo e suor da própria vida durante gerações, impossibilitam até mesmo a concepção da Moral como Moral cristã, a Nova Lei de Cristo, o Mandamento Novo.

A partir dos casamentos “no queimo”, ou pela imposição do noivo por parte dos pais, ou por causa da notável diferença de idade entre o homem e a mulher, ou pelo absoluto despreparo fisiológico, psicológico, sociológico, pedagógico e pastoral dos cônjuges, a família está em fácil quebra.

A situação da mulher, em geral, é humilhante. Ela nem decide, nem se apresenta, nem pode reclamar. O homem não é gentil com ela. Falta ternura.

Certamente não há planificação familiar nenhuma, nem “paternidade responsável”. Tem- se um filho por ano. A mulher deixa de ter filhos porque envelheceu ou porque -foi “operada”, já numa extrema precisão.

A educação dos filhos é ainda na base do “cipó”, do grito, do respeito e obediência inapelável, sem diálogo. Os filhos de criação é uma figura habitual neste interior, e cujas traumas psicológicos, profundos, não são reconhecidos e no futuro da vida dificilmente serão superados.

As famílias se desagregam facilmente: por separação conjugal, por motivos de serviço, por viagens, por uma inconsciente força de destino ou de aventura – que em última instância revelam sempre a inexistência da verdadeira família e uma pré-estrutura social desmantelada. O pai não tem onde ganhar, talvez; ou não possui terra. Os filhos mais crescidos, por falta de fontes de trabalho “têm que se virar” longe de casa. Quem sai “para se tratar”, em Goiânia, ou em Brasília, ou em Mineiros, ou quem foi espoliado no lugar por curandeiros ou “práticos” desonestos, desequilibrou fatalmente a fraca instabilidade familiar.

O retirantismo do povo sertanejo, e a instabilidade habitacional, familiar, total, dos peões flutuantes, colocam a Igreja local um interrogante angustioso na hora de concretizar a Pastoral em termos de comunidade de Fé e de Caridade, estável, acompanhada, promovida. Como se faz “comunidade de base” com um povo em constante dispersão?

Com respeito aos fazendeiros – que normalmente não moram na região – e aos gerentes e pessoal administrativo das companhias latifundiárias – que moram aqui com intermitência – a ação pastoral é praticamente impossível, sempre que não se aceite o poder de opressão social que eles encarnam; sempre que não se queira amancebar a Missa, esporádica, com a injustiça permanente, e a presença do padre – da Igreja – na sede da Fazenda (nos seus teco-tecos, nos seus refeitórios, nos seus escritórios paulistas ou gaúchos) com a ausência do Evangelho e da Justiça no conflito dela com os posseiros e nos barracões, nas derrubadas e na vida toda dos peões escravos.

Isso é o que a gente pensa depois de três anos de vida e de luta. Ajudar a libertação dos oprimidos é o meio mais direto e eficaz de contribuir para a libertação dos opressores. Nem todos “poderão” entender esta atitude. É uma opção dolorosa, de pobreza, de risco e de “escândalo” evangélico…

Outro setor da visão pastoral da Prelazia diz a respeito à vida e ao trabalho ecumênico. O Ecumenismo do sertão (do interior, de modo mais geral) mereceria um planejamento à parte.

A Prelazia tem apenas algum grupo da Igreja Adventista do Sétimo Dia, alguns membros das Novas tribos, principalmente, vários núcleos pentecostais – reduzidos – da Assembléia de Deus. Estes últimos, carismáticos, integristas e bem unidos com “os irmãos” conseguiram uma certa gozação por parte dos católicos “festivos” e uma natural consideração do povo. Entre o pastor pentecostal – e outros ministros, em menor grau – e nós, as relações são de respeito pleno e até de amizade. Porém não há, por enquanto, condições de trabalho ecumênico entre as comunidades, na fé, no culto; nem sempre na promoção humana, quando esta atinge os limites de uma luta pela justiça. O crente pentecostal é mais passivo ainda que o católico, na sua total confiança para no Deus que salva, e é mais desencarnado e espiritualista.

A falta de nível cultural e de conscientização sócio-política afetam gravemente as relações ecumênicas.

Parte III Latifúndio

Todo o território da prelazia está situado dentro da área da Amazônia lega, a cargo da SUPERINTENDÊNCIA DO DESENVOLVIMENTO DA AMAZÔNIA (SUDAM). E nesta opção de território estão localizados a maior parte dos empreendimentos agropecuários criados com os incentivos deste órgão.

As terras todas compradas – ou requeridas – ao Governo do Mato Grosso por pessoas interessadas, não os moradores, a preço irrisório, foram depois vendidas a grandes comerciantes de terras, que posteriormente as vendem a outros. Abelardo Vilela e Ariosto da Riva, dois destes comerciantes, tidos como pioneiros e desbravadores da Amazônia, segundo afirmações suas, já venderam mais de um milhão de alqueires (Jornal da Tarde, 21/7/71).

Até fins de 1970, tinham sido aprovados para os municípios de Barra do Garças e Luciara, 66 (sessenta e seis) projetos. De lá para cá muitos outros novos já foram criados, como a BORDON S/A, dos Frigoríficos Bordon, NACIONAL S/A, do Banco Nacional de Minas Gerais, cujo presidente é o ex-ministro das relações Exteriores, Magalhães Pinto, UIRAPURU S/A, do jornalista-latifundiário, David Nasser, etc…

As áreas de alguns destes empreendimentos, em território da Prelazia, são absurdas. Destacando-se entre todas a AGROPECUÁRIA SUIÁ-MISSU S/A com 695.843 ha. e 351 m2, que corresponde aproximadamente a 300.00 alqueires, área 5 vezes maior que o Estado da Canabrava e maior também que o Distrito Federal, de propriedades de uma única família paulista: a família Ometto. Destacam-se também a CIA. DE DESENVOLVIMENTO DO ARAGUAIA – ” CODEARA”, com área de 196.497,19 ha., AGROPASA, com 48.165 ha., URUPIANGA, com 50.468 ha., PORTO VELHO, com 49.994,32 ha. e assim por diante. (4)

Além se serem extensões praticamente inconcebíveis, muitos destes empreendimentos formam grupos somando assim suas já enormes áreas, como é o caso das conhecidas Fazendas Reunidas, “de propriedades do Sr. José Ramos Rodrigues, o “Zezinho das Reunidas”, dono da Empresa de ônibus “Reunidas” de “Araçatuba” (O Estados de São Paulo – 9/5/71). Tapiraguai, Sapeva e Brasil Central também formam um grupo. O Sr. Orlando Ometto é também sócio da Tamakavy S/A etc.

Esses empreendimentos latifundiários surgiram graças ao incentivo dados pelo Governo, através da SUDAM. É a provação oficial e financiada de grande latifúndio, com todas as conseqüências que dele advém. Somas fabulosas são investidas na região pelas pessoas jurídicas legalmente estabelecidas no Brasil, subtraídas ao Imposto de Renda devido.

“Eis os principais benefícios fiscais concedidos às pessoas Jurídicas sediadas no País:

– Dedução de 50% do Imposto de Renda das pessoas jurídicas sediadas no país, para financiamento de projetos aprovados pela SUDAM;

– Inserção total ou redução de 50% do Imposto de Renda devido, por 10 (dez) anos, para os empreendimentos instalados ou que venham a se instalar até 31 de dezembro de 1974;

– Inserção de quaisquer Impostos e taxas, incidentes sobre a importação de máquinas e equipamentos necessários à execução de projetos de empreendimentos que se localizem na área de atuação da SUDAM;

– Benefícios Estaduais e Municipais. (“A SUDAM revela a Amazônia”, publicação da SUDAM, pág. 15).

Isto significa estímulo ao capital particular, inclusive estrangeiro, com dinheiro do povo, que deixa de ser recolhido aos cofres públicos, e consequentemente deixa de ser investido a benefício do povo, para enriquecimento ainda maior do investidor. Do valor total do projeto aprovado a SUDAM financia 75%. Encontramos empresas que se dedicam aos mais diferentes tipos de atividades, que agora se lançam à agropecuária, como é o caso de Bancos (Bradesco, Nacional de Minas Gerais, Crédito Nacional, Brasul), de casa comerciais (Eletro-Radiodobraz), Indústrias etc. É a absorção dos bens todos por alguns pequenos grupos poderosos.

O total de incentivos empregados nos municípios de Barra do Garças e Luciara até fins de 1970 era da ordem de Cr$ 299.110.010,53. Só a CODEARA, empreendimentos ligado ao Banco de Crédito Nacional recebeu a importância de Cr$ 16.066.900,96 (cf. Documentação, no I).

Enquanto isto, a população, primeira desbravadora da região, se ha no esquecimento mais completo, ocupando áreas das quais freqüentemente é expulsa, pois na hora menos pensada aparece o assim chamado “tubarão”, dono das terras, que quer fazer valer o seu título de propriedade, como veremos detalhadamente mais adiante, Todas as terras deste imenso Nordeste Mato-grossense já estão vendidas. Mesmo as que pertecem ao Parque Nacional do Xingu. Por isto a esperança do povo por um pedaço de terra é quase nula, tendo em vista que o mesmo decreto presidencial declarado “indispensáveis à segurança e desenvolvimento nacionais” faixas de 100 quilômetros de cada lados das vias Amazônicas (entre as quais estão citadas a BR-80 -Trecho Araguaia-Cachimbo, e a BR-158 – Trecho Barra do Garças- S. Félix) (cf. O Estado de São Paulo 30/3/71) se refere unicamente a terras devolutas, o que na região não existe.

Parte IV Posseiros

Os primeiros desbravadores da região são os hoje chamados posseiros5. Localizados aqui há 5, 10, 15, 20 e alguns até 40 anos. Cultivando o solo pelos métodos mais primitivos, plantando arroz, milho, mandioca. Lavoura de pura subsistência. Criando gado. Sem a menor assistência sanitária e higiênica, sem nenhum amparo legal, sem meios técnicos à disposição. Aglomerados em pequenos vilarejos, chamados Patrimônios (que foram vendidos pelo Estado como terras virgens – Santa Terezinha, Porto Alegre/Cedrolândia, Pontinópolis) ou dispersos pelo sertão afora a uma distância de 12 a 20 Km uns dos outros.

Após o início das atividades agropecuárias ligadas à SUDAM, uma série de dificuldades surgiram para este abnegados e sofridos camponeses – desbravadores.

Vamos mostrar umas situações-tipo das gritantes injustiças praticadas contra eles.

SANTA TEREZINHA

O povoado de Santa Terezinha acham-se situado às margens do Araguaia, em frente a Ilha do Bananal, a 140 Km ao Norte de São Félix, não muito distante da divisa com o Estado do Pará. Santa Terezinha foi um dos lugares mais prejudicados da região devido à presença da CIA. DE DESENVOLVIMENTO DO ARAGUAIA – ” CODEARA”, de propriedade dos Srs. Armando Conde, Carlos Alves Seixas e Luiz Gonzaga Murat, que lá se estabeleceu em 1996, (cf. Documentação, no II, 1. e VIII) com o titulo de propriedade de toda aquela área, inclusive a urbana, numa extensão de 196.497,19 ha. A presença da Companhia veio trazer para os pacíficos moradores em número superior a 80 famílias, a intranquilidade e a insegurança, por causa das atitudes tomadas pela companhia que os vinha prejudicar diretamente.

Os primeiros habitantes chegaram ao local em questão em 1910 e se estabeleceram no chamado Furo das Pedras. Em 1931, já haviam sido construídas igreja, escola e casa para os missionários.

Quando a companhia veio a se instalar, estavam em pleno funcionamento também a ” Cooperativa Agrícola Mista do Araguaia”, que congregava os trabalhadores e posseiros da área, e o ambulatório médico. Apesar de tudo isto, aquela foi vendida como desocupada, como mata virgem. E a companhia se sentiu no direito de despojar os pobres moradores do pouco, da insignificância que possuíam. E começou contra eles uma guerra de ameaças, de invasões de terra, invasões de domicílio, prisões, etc. (cf. Documentação, no II, 1. F. L. G 5). A política estadual também esteve a serviços dos interesses da CODEARA. Era transportada, alojada e alimentada pela mesma companhia. (Documentação, no II, 1. A, I, J.). E, cinicamente, a CODEARA publicava em “EXPANSÃO”, órgão informativo do Sistema BCN-FINACIONAL, de abril de 1970, ano I no 6: ” Os elementos humanos típicos eram o índio e o caiçara (sic). Sua forma de vida eras das mais primitivas. Caçavam, pescavam e cultivavam milho e mandioca. Habitavam em casas de sapé, em nenhuma noção de higiene; resumindo, eram selvagens” (sic) … “Existe hoje o que se pode dizer conforto. A cidade de Santa Terezinha, também fundada (sic) por Codeara…”

Mas, diante da espoliação prometida e pretendida, o povo se uniu e juntamente com o Padre Vigário da Paróquia, Pe. Francisco Dentel, decidiram lutar para salvaguardar o que era seu. Foi feito relatório em 12/4/67 ao senhor Presidente da República, Mal. Arthur da Costa e Silva, sobre a situação e dando sugestões concretas de solução (cf. Documentação II, 1. A). Muitas viagens foram feitas. Muito dinheiro foi gasto. Muitas cartas foram escritas. (Documentação, no II, 1). Muito teve que se esperar para poder se vislumbrar alguma pista de solução, apesar de o Sr. Presidente ter despachado em 29/11/67, para o Sr. Ministro da Agricultura, para que providenciasse a solução. Todos os impecilhos foram colocados para se evitar o cumprimento do despacho presidencial. Autoridades policiais, do exército e do SNI foram movimentadas diante das acusações forjadas pelos donos da companhia contra o Padre e o líder dos posseiros, como sendo elementos subversivos (6). (Documentação, no II, 1. H).

Três anos de espera foram necessários até que a companhia, forçada e a contragosto, “doou” a migalha de 5.582 ha, em 05 de maio de 1970, que ainda serão repartidos entre mais de 100 famílias de posseiros.

Antes porém, em mancomunação direta com o Secretário de Segurança Pública do Estado do Mato Grosso, Cel. Diniz (após reunião havida no dia 1 de maio de 1970 na Fazenda Suiá- Missu entre os empresários, o Governador do Estado, o Ministro do Interior, Costa Calvacante, e outras autoridades), no dia da inauguração do Hospital da fazenda pelo Sr. Ministro do Interior e o Superintendente da SUDAM, Gal. Bandeira Coelho, os diretores da companhia, a 2 de maio, quiseram manifestar sua força contra os posseiros, fazendo prender seu líder, o Sr. Edvald Pereira dos Reis. E quem o prendeu foi o próprio Cel. Diniz (Documentação, no II, 1. I, J). O Sr. Reis esteve preso durante 72 dias em Cuiabá, sem acusação formada e foi libertado sem sequer ter sido julgado.

O caso de Santa Terezinha ainda não está solucionado. A área urbana pertence à companhia. Quem quiser construir ou fazer qualquer benfeitoria tem que pedir autorização à companhia plenipotenciária. Qualquer novo terreno tem que ser comprado dela; isto também devido à inoperância do Sr. Prefeito de Luciara, já que a Câmara Municipal em 17/9/70 aprovara a desapropriação da área urbana de Santa Terezinha e crédito especial para efetivar a referida desapropriação. (Documentação, no II, 2. B).

Atualmente a companhia está construindo prédio no meio da rua. Faz o que quer. Tudo lhe pertence.

PORTO ALEGRE

Porto Alegre (com Cedrolândia) é um povoado situado entre os rios Xavantin e Tapirapé, no município de Luciara, distando mais de 200 Km. da sede.

Em 12 de junho de 1970, os proprietários da AGROPECUÁRIA NOVA AMAZÔNIA S/A – FRENOVA, fixaram residência no povoado dizendo pertencer toda a área sede do patrimônio, bem como sua zona rural, à companhia. Porto Alegre possuía em sua sede 35 famílias e 180 na zona rural. Funcionava Escola com frequência de 120 alunos.

Logo começou a pressão dos proprietários, contra os posseiros, muitos dos quais estabelecidos há mais de 20 anos (Documentação, no II, 2. A). Queria-se a retirada dos mesmos. Que vendesse suas benfeitorias e abandonassem suas pobres posses.

O Pe. Henrique Jacquemart, de Santa Terezinha, passando por lá na oportunidade, esclareceu o povo quanto a seus direitos. O gerente-proprietário, Plínio Ferraz, ciente do acontecido, aconselhado pelo advogado Olímpio Jaime (o mesmo advogado que agira contra os posseiros de Santa Terezinha, ex-deputado cassado), prometeu pagar a dois “capangas”, Sebastião e João, para “dar uma surra até o fim” (sic) no Padre que estava missionando pela reunião. Os dois supostos capangas voltaram depois de algum tempo à sede da fazenda, dizendo ter executado a ordem e querendo receber o dinheiro prometido, que, aliás, era dívida que a fazenda tinha com eles. Receberam o dinheiro e montaria para fugir, com carta de recomendação para uma fazenda próxima a Conceição do Araguaia. Os dois ao chegarem a Santa Terezinha procuraram o Pe. Francisco e lhe contaram o sucedido e se dispuseram a prestar depoimento diante das autoridades. Pe. Francisco foi com eles até Santa Isabel onde duas declarações perante elementos da FAB.

O Sr. Prefeito Municipal, José Liton da Luz, acompanhado do mesmo advogado Olímpio Jaime, reuniu o povo de Porto Alegre em 30/7/70 e se dispôs a “defendê-lo”, dizendo ser necessário que cada um colaborasse, dentro de suas possibilidades, para pagar o advogado que iria advogar sua causa. Os posseiros presentes à reunião entregaram mais de 170 animais, entre reses e cavalos, e grande soma em dinheiro ao prefeito (Documentação no II, 2. A). Prefeito e advogado apoderaram-se das doações dos posseiros e nenhuma providência tomaram na defesa dos mesmos. A 17/9/70, em sessão extraordinária da Câmara Municipal, foi aprovada a desapropriação de uma gleba de 4.500 ha, onde se encontra o povoado. (Documentação II, 2. B). Apesar disso, os posseiros estão recebendo ordens do próprio Sr. Prefeito de abandonarem suas posses, entregando-as à FRENOVA. E mais. O Prefeito autorizou a fazenda a se apropriar do material escolar de Porto Alegre, transferindo-o para a companhia. O que realmente aconteceu. Os funcionários da FRENOVA, após terem apanhado o material escolar, derrubaram a escola do povoado.

Os que, cedendo à pressão da companhia, vendem suas posses, são transportados em avião ou caminhão da empresa e abandonados à beira das estradas sem o menor recurso e amparo. (Documentação, no II 2. C).

É a tão decantada agropecuária da Amazônia, “fator do progresso da região” espoliando o pobre e indefeso camponês, posseiro de uns poucos metros de terra, sem ter ninguém que se preocupe eficazmente com ele. A Polícia Federal esteve no local. Mas o povo não teve condições de se manifestar, temendo posteriores represálias por parte da prefeitura e da companhia.

A preocupação da região é o gado. O homem…

SERRA NOVA

Localiza-se o Patrimônio de Serra Nova, na Serra do Roncador, entre o rio das Mortes e a rodovia BR-158, no distrito de S. Félix, município de Barra do Garças.

Mas de 120 famílias lá residem, com número de habitantes superior a 800. Estão matriculados 113 alunos no curso primário.

Serra Nova nasce em plena floresta amazônica, à base do mutirão, do machado e da força de vontade. Sem assistência. Sem apoio. Surgiu da necessidade do povo de se reunir, visto viverem isolados uns dos outros, há 6, 8, 10 e 12 anos, sem possibilidade de se encontrarem, de terem escola e outros benefícios que a união traz. Alguns deles já foram “tocados” de outras posses até 6 vezes.

Este patrimônio, assim constituídos, defronta-se no presente com um grave problema com a “BORDON S/A AGROPECUÁRIA DA AMAZÔNIA”. Suas terras de lavoura foram cortadas pela “picada” demarcatória dos limites da fazenda, ficando várias das roças, indispensáveis a sua sobrevivência, dentro destes limites. O clima de tensão começou a reinar entre o povo. As terras, seu meio de vida, estava sendo ocupadas. Isto acontecia no dia 20 de abril de 1971. Tentou-se o diálogo com os proprietários, não se obtendo resposta (Documentação, no II, 3. A). Apelou-se para as autoridades: Presidente da República, Ministro do Interior, SUDAM, Ministério da Agricultura, SNI, Governo do Estado, Prefeitura Municipal, e nenhuma atitude concreta foi tomada (Documentação, no II, B).

Na hora de se fazer a queima das roças, a fazenda ameaçou seriamente a segurança de todos, prometendo que seria derramado muito sangue caso algum posseiro ousasse colocar fogo nas derrubadas. A 25 de setembro, data marcada pela própria fazenda para a queimada (já a houvera impedido no dia 27 de agosto), o empreiteiro Benedito Teodoro Soares recebeu do gerente, Antônio Ferreira da Silva, armas várias delas automáticas, de 15 tiros e munição, conforme pedido feito pelo Sr. Benedito ao próprio Sr. Geraldo Bordon, dias antes. (7)

A cerca de alarme está sendo colocada, isolando assim as roças abertas, cortando a área vital para o patrimônio. A ultrapassagem desta cerca por parte dos posseiros, para o cultivo de suas roças se apresenta com perspectivas bastante funestas. E ainda mais. A fazenda está prometendo semear capim nas terras que circundam as roças dos posseiros, fato este que emprestaria inexoravelmente as terras cultivadas, visto ser o capim praga fatal para a lavoura e sabendo-se também que, nas grandes fazendas, o capim é semeado por aviões.

É a vida de um povo que se está tentando impedir.

PONTINÓPOLIS

Situado a uns 120 Km de São Félix, há 10 anos está em conflito, aguardando solução muitas vezes prometida. Atualmente vivem na área deste patrimônio de posseiros umas 300 famílias.

A questão de Pontinópolis data dos idos 1961/62, época da criação da Agropecuária Suiá- Missu, então de propriedade do Sr. Ariosto da Riva. Foi feita a demarcação da atual Suiá-Missu e alguns dos moradores da redondeza foram empregados como mãos-de-obra para este empreendimento. Dentro da área demarcada, morava há uns três anos o Sr. Anastácio que foi convidado a retirar-se, tendo sido indenizado. “Grosso”, “Chicão”, Vicente e Pedro abriram naquele ano suas roças, construíram suas casas e, no momento de iniciarem o plantio, foram mandados embora, sem direito algum. Por um ato de “grande bondade”, Ariosto permitiu a “Grosso” tinha oito filhos pequenos. Pouco tempo depois, a Suiá-Missu foi vendida, continuando a pertencer a maior parte das terras circundantes ao Sr. Ariosto.

Em 1961/62 o Sr. Ariosto, comunicando-se com os posseiros da área, afirmava que não ia tirar ninguém do lugar, que precisava mesmo dos serviços do povo. Mas em 1965, “Pedrão” e “Joaquim Paulista” – este último carregando ostensivamente um revólver – apresentaram-se como enviados do Sr. Ariosto, intimando-os a deixar suas terras: “Ou sair ou morrer” era a ordem.

Muitas famílias, realmente intimadas, abandonaram as posses, por haver ameaças de que a Polícia interviria e poria fogo nas casas. Alguns até abandonaram criações, pois não havia quem as quisesse comprar.

Diante de tais ameaças, o povo reunido realizou uma coleta de dinheiro e incumbiu os posseiros José Antônio dos Santos e Antônio Batista Gomes de apelar para as autoridades. Em setembro de 1966, em Cuiabá, o Sr. Bento Machado Lôbo, funcionário da INDA prometeu-lhes 15.000 hectares de mata, acrescentado que se a área não fosse suficiente, seria aumentada. Foram feitas, por conta própria, mais de 8 viagens, a Brasília e Cuiabá para solucionar o caso do patrimônio.

Mas no momento de a demarcação ser feita,, a área de mata (terra boa para a lavoura) abrangeu apenas 20% do total, por ordem do Sr. Ariosto da Riva, contrariando a determinação explícita do INDA.

Em 29 de julho de 1967, 0 Sr. Ariosto falando com alguns posseiros dizia-lhes que não se preocupasse com a medição, pois ela serviria só como levantamento e atenderia às necessidades de todos. Em outra oportunidade, porém, afirmava que ele entregaria a área de terra demarcada e… “Vocês – acrescentou – fiquem brigando aí dentro”.

A maior parte do povo acha-se localizado com suas roças e benfeitorias fora dos 15.000 hectares demarcados, havendo ainda umas 30 famílias fora da área onde está a maioria.

Faz quase 5 anos que este povo aguarda a vinda do Sr. Ariosto para um encontro no qual sejam resolvidos as questões pendentes. Encontro que várias vezes foi prometido, mais não concretizado.

Após quase dez anos de luta este povo ainda se encontra em grande insegurança em área de milhares de hectares de terras incultas e que pertencem a latifundiários do sul.

ESTRADAS E OUTROS

Além dos casos citados há muitos outros ainda. São posseiros localizados á margem da estrada ou pelo sertão afora, que constantemente são oportunados pelos novos proprietários, ou seus propostos, para que abandonem as posses, oferecendo-se-lhes ridículas indenizações, conforme pode-se ver pela carta enviada ao Sr. Domingos Marques, um dos proprietários (Documentação, no II, 4).

Em situação idêntica encontra-se, há vários anos, os moradores – camponeses ou pequenos criadores de gado – da Ilha do Bananal, por causa da indefinição do destino da mesma Ilha e das ordens e contra-ordens que se vem dando a estes sertanejos.

Ao redigir estas linhas, tomamos conhecimento do recente Decreto Federal, com data de 22 de setembro de 1971, criando o Parque Indígena do Araguaia, que inclui a Ilha do Bananal. Não sabemos qual a sorte dos posseiros. Mais um interrogante e uma incerteza.

Parte V Índios

Se a problemática causada pelo latifúndio com relação ao posseiro é grave, não menos grave foi a situação criada com o índio e suas terras. Alguns fatos são bastante significativos.

XAVANTE / SUIÁ

A Suiá-Missu ao se estabelecer onde se encontra localizada defrontou-se com o problema da presença dos índios Xavante. Foram empregados diversos meios de aproximação com eles, procurando-se evitar um confronto direto. Quando o acampamento dos mateiros ficou pronto, os índios se aproximaram e se estabeleceram próximos ao mesmo (Jornal da Tarde, 21/7/71 – cf. Documentação, no III, 1. A).

Mas esta presença ia-se tornando pesada. Cada dia era um boi que era matado para os índios (O Estado de S. Paulo 25/4/69 – cf. Documentação no III, 1. B). Era necessário encontrar uma solução. Os índios poderiam permanecer em terras do latifúndio (!). E a solução encontrada foi fácil: a deportação.

Os proprietários da fazenda procuraram a missão de São Marcos, de Xavante, e persuadiram aos superiores da mesma a aceitarem nela os Xavante da Suiá. Isto acontecia em 1966. Os Xavante foram transportados em avião da FAB, em número de 263, tendo morrido boa parte deles aos poucos dias depois de chegados a São Marcos, vitimados por uma epidemia de sarampo.

Essa porém não é a versão publicada na imprensa, conforme se pode ver na Documentação (III, 1. B – Reportagem publicada por “O ESTADO DE SÃO PAULO” – Em 25/4/69). Essa deportação foi presenciada por “Última Hora” do Rio de Janeiro (cf. Documentação no III, 1. C). E quando o Sr. Ministro do Interior, Cel. Costa Calvacanti, em abril de 1969, visitou algumas das aldeias dos Xavante, estes lhe pediram que providenciasse a devolução da terra que lhes pertencia (cf. Documentação no III, 1. D).

Anualmente os Xavante voltam para sua a terra, roubada pela cobiça latifundiária, para apanhar o Pati, árvore por eles usada na confecção dos seus arcos e flechas.

Mas os proprietários da Suiá, família Ometto, gostam dos índios… (Jornal da Tarde – 21/7/71). Após a deportação doaram à missão um auxiliar na manutenção dos mesmos…!!!

TAPIRAPÉ / TAPIRAGUAIA

Os índios Tapirapé se acham localizados às margens do lago formado pelo Rio Tapirapé, quase na foz com o Araguaia. São agricultores. Estão acompanhados há mais de 15 anos pelas Irmãzinhas de Jesus, que com eles condividem o tipo de vida, o trabalho, os esforços, as tristezas e as alegrias da aldeia, num total respeito pela cultura dos índios. Uma das experiências de atendimento indígena mais significativas em todo o país, internacionalmente aplaudida por antropólogos e etnólogos.

Como em todo o Mato Grosso, essa área ocupada pelos Tapirapé também foi vendida: para a companhia Tapiraguaia S/A.

Os proprietários Dr. José Carlos Pires Carneiro, José Augusto Leite de Medeiros e José Lúcio Neves Medeiros espontaneamente doaram ao SPI (Serviço de Proteção ao Índio), na pessoa do Sr. Ismael Leitão, chefe da Inspetoria de Goiânia, uma gleba de pouco mais de 9.000 hectares. Acontece. porém que as referidas terras doadas, próximas à aldeia, ficam alagadas praticamente de dezembro a junho em quase sua totalidade, sendo o restante das terras composto de cerrado ou mata arenosa de pouca fertilidade. As terras boas, onde os índios já tinham suas roças ficaram propriedade da Tapiraguaia S/A. Os Tapirapé mantêm lá suas roças, não tendo sido até o momento molestados.

O Decreto de Criação do Parque Indígena do Araguaia, de 22/9/71, delimitou a área das terras dos Tapirapé. Ainda não tivemos oportunidade de verificar in loco estes limites.

PARQUE NACIONAL DO XINGU / BR-80

Exatamente metade do Parque Nacional do Xingu acha-se situado em território da Prelazia. Área até há pouco intocável. Muitas vezes controvertida. Mas uma experiência digna de nota, apesar de certas falhas e deficiências. A calma, a tranquilidade e o isolamento do Parque foram quebrados por uma estrada: a BR-80, empreendimento da responsabilidade da Superintendência do Desenvolvimento do Centro-Oeste (SUDECO). A Estrada veio cortar bem ao centro o Parque Nacional, apesar da oposição feita pelos irmãos Villas-Boas, responsáveis pelo Parque, e por certas áreas bem esclarecidas do cenário nacional (cf. O Estado de São Paulo – 13/5/71). A Estrada veio beneficiar diretamente só ao latifúndio.

Em 22 de abril de 1969, realizou-se, na sede da Fazenda Suiá-Missu, uma reunião da Associação dos Empresários Agropecuários da Amazônia (AEAA) com o Sr. Ministro do Interior, Costa Calvacanti, estando presente também o então Presidente da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), Sr. José Queiroz de Campos. Nesta oportunidade, os empresários reclamaram do Sr. Ministro contra o que eles chamavam de “ameaça” que era “uma grande reserva indígena – de aproximadamente 9 milhões de hectares de área”, pois, alegavam, há “grande desproporção entre o número de índios e o tamanho da reserva” que, além disso, fica sobre algumas fazendas, impossibilitando que seus proprietários as explorem. Um dos empresários classificava a zona como o “filet-mignon” da Amazônia. (cf. O Estado de São Paulo – 25/4/69 – Documentação no III, 2. B).

Conclusão: a estrada cortou o Parque, e toda a parte norte à mesma deixa de pertencer aos índios, devolvendo-se o “filet-mignon” ao latifúndio. A área do Parque foi estendida ao sul em terras bem inferiores…

ACULTURAÇÃO AGRESSIVA

Mas a problemática indígena ultrapassa uma simples questão de terras.

O Xavante da aldeia dos Areões encontra-se em notável abandono. Sem assistência concreta e regular, sem terras bem definidas para si, tendo várias vezes, chegado até lá parado caminhões e ônibus pedindo até mesmo comida.

Após os desmandos administrativos e humanos do antigo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), a FUNAI nem sempre conseguiu melhorar positivamente o atendimento real ao índio. Ás vezes, por causa do pouco preparo dos elementos do órgão e, sobretudo pela própria ideologia do FUNAI, não se levam em conta os avanços da verdadeira Etnologia e Antropologia e sacrifica- se impunemente a cultura do índio. Um exemplo flagrante disto é a criação da Guarda Indígena, preparada e formada por Oficial da Polícia de Belo Horizonte, em 1969, o que vem a transformar dentro das tribos todos os conceitos de autoridade.

A aldeia de Santa Isabel, a mais próxima de São Félix, de índios Carajá, é um exemplo da aculturação violenta a que foram submetidos. Facilmente encontra-se índios bêbados. Frequentam as casa de prostituição. Há entre eles 29 tuberculosos.

A aculturação rápida, sem se levar em conta os reais interesses dos índios, é proposta pelo próprio Presidente da FUNAI, Gal. Bandeira de Mello, que em suas declarações chegou mesmo a sugerir a extinção do Parque Nacional do Xingu (cf. O Estado de São Paulo – 6/5/71 – Documentação, no III, 2. D). A preocupação principal do Presidente da FUNAI, que é o órgão específico dedicado ao índio, é o desenvolvimento “nacional”, ficando em segundo plano o índio e sua cultura. São palavras suas: “O Parque Nacional do Xingu não pode impedir o progresso do país” (cf. Visão – 25/4/71. pág. 22).” No estágio tecnológico em que se encontra a sociedade nacional, há necessidade de desenvolvimento premente das comunidade indígenas como conjugamento ao esforço integral da política governamental” (id. ib.). “A assistência ao índio deve ser a mais completa possível, mas não pode obstruir o desenvolvimento nacional e os trabalhos para a integração da Amazônia” (O Estado de São Paulo – 22/5/71). E o Ministro do Interior, Sr. Costa Calvacanti: “Tomaremos todos os cuidados com os índios, mas não permitiremos que entravem o avanço do progresso” (cf. Visão – 25/4/71). “O índio tem que ficar no mínimo necessário” (O Estado de São Paulo – 25/4/69). (Documentação, no III, 2).

E projeta-se introduzir na FUNAI a mentalidade empresarial, conforme palavras do mesmo Presidente: “As minorias étnicas, como os indígenas brasileiros, se orientadas para um planejamento bem definido, tornar-se-ão fatores do progresso e da integração nacional, como produtores de bens” (cf. Visão – 25/4/71). E por isto muitos “fazendeiros da região acreditam que poderão conviver pacificamente com os índios. Pensam mesmo em empregá-los como seus trabalhadores “por um salário justo” (O Estado de São Paulo – 6/5/71 – grifo nosso. cf. Documentação, no III, 2. D).

Segundo esta política, os índios seriam integrados sem, mas integrados na desintegração da personalidade, na mais marginalizada das classes sociais do país: os peões.

Parte VI Peões

Um sério problema com que se defrontam as empresas Agropecuárias da região é o da mão-de-obra. Não conseguem entre os elementos locais esta mão-de-obra desejada que, além de ser escassa, já conhece os métodos de tratamento das companhias.

Vêem-se obrigadas então a procurá-la fora. E os lugares preferidos são o sul de Goiás, inclusive Goiânia, e o Nordeste. O método de recrutamento é através de promessas de bons salários, excelentes condições de trabalho, assistência médica gratuita, transporte gratuito etc. Quem faz este trabalho, são, geralmente, empreiteiros, muitos deles pistoleiros, jagunços e aventureiros que recebem determinada importância para executar tal tarefa.

Os peões, aliciados fora, são transportados em avião, barco ou pau-de-arara para o local da derrubada. Ao chegar, a maioria recebe a comunicação de que terão que pagar os gastos de viagem, inclusive transporte. E já de início têm que fazer suprimento de alimentos e ferramentas nos armazéns da fazenda, a preços muito elevados. (Na Tamakavy S/A, por exemplo, em junho de 1971, um quilo de cebola custava Cr$ 8,00; um saco de arroz de 3ª qualidade, Cr$ 75,00 a 78,00; um machado Cr$ 16,00; foice, Cr$ 15,00). (Documentação, no IV, 4. C).

Para os peões não há moradia. Logo que chegam, são levados para a mata, para a zona da derrubada onde tem que construir, como puderem, um barracão para se agasalhar, tendo que providenciar sua própria alimentação. As condições de trabalho são as mais precárias possíveis. Na Codeara, por exemplo, muitos tiveram que trabalhar com água pela cintura. A incidência de malária é espantosa, sobretudo em algumas companhias, de onde poucos saem sem tê-las contraído. Codeara, Brasil Novo, Tamakavy são bem conhecidas quanto a isso. Os medicamentos quase sempre são insuficiente e em muitas, pagos, inclusive amostra grátis.

Por tudo isto, os peões trabalham meses, e ao contrair malária ou outra qualquer doença, todo seu saldo é devorado, ficando mesmo endividados com a fazenda. (Documentação, no IV, 1; IV, 4. D; IV, 4. A). O atendimento é deficiente, sendo tomadas providências quando o caso já é extremo, não havendo possibilidade de cura. São levados então para as vilas onde também não há recursos, agravando assim a situação das próprias vilas. Aí morrerão anônimos. (Documentação, no IV, 1; IV, 6).

Esse trabalho pesado, e nestas condições, é executado por gente de toda idade, inclusive menores (13, 14, 15, 17 anos). Quando a Polícia Federal no ano passado interveio na Codeara, constatou este fato. (Documentação, no IV, 1).

Não há com os peões nenhum contrato de trabalho. Tudo fica em simples combinação oral com o empreiteiro. Acontece mesmo que o empreiteiro foge, deixando na mão todos os seus subordinados. (Documentação, no IV, 3). Os pagamentos são efetuados ao bel-prazer das empresas. Muitas vezes usa-se o esquema de não pagar, ou pagar só com vales, ou só no fim de todo o trabalho realizado, para poder reter os peões, já que a mão-de-obra é escassa. É o que acontece atualmente na BORDON S/A – AGROPECUÁRIA DA AMAZÔNIA. Até o presente, o que consta, bem poucos dos peões recebem qualquer dinheiro, mesmo após terem concluído as tarefas a eles designadas. Recebem unicamente vales. Alguns, necessitando de dinheiro com premência para atenderem às necessidades da família que está fora, chegam até a trocar seus vales de Cr$ 1.000,00 por Cr$ 500,00, em moeda, com seus colegas (Documentação, noV, 1; IV, 4. A. C. D. F. G.).

Outros muitos, doente, sentindo-se sem forças e temendo morrer naquelas condições, não conseguindo receber o que de direito, fogem para sobreviver. (Documentação no IV, 4. B).

Outros ainda fogem por se verem cada vez mais endividados. E nesta fugas são barrados por pistoleiros pagos para tanto. (Documentação, no VI, 1). Na Bordon tem um “tal de Abraão” que ” não faz nada”, segundo dizem os peões, mas que anda armado o dia todo com uma CBC 22, automática. Foi visto, com esta arma, no Patrimônio de Serra Nova, para intimidar também os posseiros. Gaba-se de ter dois processos por homicídio e vários por tentativa.

Além disso a própria polícia local é utilizada com freqüência para manter ainda mais escravizados os peões (Documentação, no IV, 1; IV, 5). Na Tamakavy, por exemplo, alguns peões chefes de “time” (turma), ao irem reclamar com o Capitão de Polícia de Barra do Garças, por mau atendimento, receberam dele uma carta para o Gerente, Geraldo, em que denunciava os peões. O Gerente, ao tomar conhecimento do que os peões reclamaram, solicitou a presença da polícia de S. Félix que, armada de metralhadoras, foi à fazenda e prendeu a Pedro Pereira dos Anjos, líder dos peões. (Documentação no à Delegacia dar parte de crime, de espancamento, de morte, de salário não pago etc., encontra o delegado sem querer ouvir a questão para não se meter em complicações com as companhias, os fazendeiros (Documentação, no IV, 4. F).

O peão, fechado na mata por muitos meses, nessas condições de tensão desumana, quando vai ou é levado à cidade (8), gasta, muitas vezes, tudo o que recebeu, em bebedeiras, prostituição e é facilmente roubado. (Essa é a oportunidade dos comerciantes inescrupulosos!) Vários chegam a São Félix depois de 4 ou 5 meses de trabalho na mata, com mais de Cr$ 1.000,00 e, ao saírem, dois ou três dias depois, necessitam vender até alguns pertences para poder comer.

Esta é, em linhas gerais, a situação do peão. Quando alguma denúncia chega a mobilizar a opinião pública, os proprietários lavam-se as mão dizendo desconhecer o que se passa, colocando toda a responsabilidade sobre gerentes e empreiteiros. Codeara é exemplo disto. (cf. O Globo, 16/2/71 – Documentação no IV, 3). E depois de a Polícia Federal ter desvendado uma série de crimes e barbaridades cometidas contra os trabalhadores, os donos não sofrem a mínima punição. Chegam mesmo a publicar: “Foi o primeiro projeto da SUDAM a contar com atividade regularizadora do Ministério do Trabalho” e que “foi investigada exaustivamente a possibilidade de trabalho escravo, ou de qualquer manifestação de abuso do poder econômico, nada tendo sido encontrado de irregular ou lamentável”. (O popular – Goiânia, 8/7/71). Não disseram, porém, que esta intervenção do Ministério do Trabalho deveu-se a fatos verdadeiramente comprovados, do que agora é negado após a intervenção da Polícia Federal.

Aliás a intervenção federal só se faz presente quando a opinião pública é mobilizada. Não há nenhuma fiscalização com relação ao trabalho nas fazendas. Significativa é a carta escrita por um peão da fazenda Suiá-Missu ao Ministro do Trabalho, carta que seria levada em mãos ao Ministro do Trabalho, carta que seria levada em mãos ao Ministério, mas que nunca o foi já que o portador (peão) não tinha condições para deslocar-se até Brasília. (Documentação, no IV, 8).

Outro problema que se prevê para um futuro próximo é o desemprego. (Problema para o qual “Visão” já chamava a atenção em sua edição de 18/7/70). Há necessidade de mão-de-obra abundante para as derrubadas e formação das pastagens. Quando estas estiverem prontas, o gado tomará conta de tudo. Os peões só terão uma recomendação, talvez não muito grata, do passado…

O peão, depois de suportar este tipo de tratamento, perde sua personalidade. Vive, sem sentir que está em condições infra-humana. Peão já ganhou conotação depreciativa por parte do povo das vilas, como sendo pessoa sem direito e sem responsabilidade. Os fazendeiros mesmo consideram o peão como raça inferior, com o único dever de servir a eles, os “desbravadores”. Nada fazem pela promoção humana dessa gente. O peão não tem direito à terra, à cultura, à assistência, à família, a nada. É incrível a resignação, a apatia e paciência destes homens, que só se explica pelo fatalismo sedimentado através de gerações de brasileiros sem pátria, dessas massas deserdadas de semi-escravos que se sucederam desde as Capitanias Hereditárias.

Parte VII Política local

Causa principal, também, e sobretudo cobertura da injustiça reinante na região é a política local, decididamente. Política do interior, característica em muitas regiões do Brasil: coronelismo, poder hereditário, oligarquias locais (fazendeiros, políticos, comércio, polícia) perfeitamente entrosados no interesse e no domínio absoluto.

O voto é comprado da ingenuidade do povo, nas campanhas eleitorais exuberantes de promessas. Os votantes são trazidos em massa, em conduções coletivas. Nunca tiveram a possibilidade de escolher livremente um representante verdadeiro.

Há necessidade de adular os poderosos (para comprar fiado; para não ver filhos sem escola elementar; para conseguir um documento, uma influência, um cargo). Os manda-chuvas “servem” ao povo com um paternalismo triunfante e orquestram os seus dons – mínimos, atrasados, com freqüência fraudulentos. Há clima de terror, e o fatalismo passivo do povo que sabe que ” sempre foi assim” (“polícia é assim mesmo”), ou aquela falta de liberdade para se expressar, para prescindir, para reclamar. Tudo isto faz da política local destas regiões uma opressão estabelecida e legal.

Barra do Garças está nas mãos de um clã de famílias, desde a fundação do município, que controlam amplamente a Administração, o Cartório, o Ensino e a Polícia locais. O Sr. Ladislau Cristino Cortes é prefeito de Barra do Garças pela terceira vez. Fazendeiro, proprietário de 8 fazendas, a sua polícia é declaradamente de apoio e cobertura ao latifúndio da região.

Mesmo com uma extensão de 121.936 Km2, e densidade demográfica só de 0,22, (IBGE, 1970) a arrecadação é extraordinária. Os distritos, porém, com seus diferentes povoados, vêm reclamando inutilmente uma atenção mínima. (Para um simples aterro do trecho alagadiço da estrada de São Félix foi preciso escutar promessas durante anos).

A prefeitura de Luciara foi criada em 1966. A fraude e o terror mais notório vêm dominando a Administração Municipal. O primeiro prefeito foi o “velho Lúcio da Luz”, fundador da cidade, e o segundo, Leonardo Barros, está ainda foragido, depois de subtrair a importância de Cr$ 80.000,00. Com respeito ao atual prefeito, Sr. José Liton da Luz citar um caso mais diretamente vinculado com o problema latifúndio, veja-se o que escrevemos sobre Porto Alegre (Documentação, II, 2). Nas duas prefeituras, a escolha de professores, a remoção e pagamentos, estiveram normalmente ao capricho dos políticos locais. E nos dois municípios, a Prelazia entrou em conflito, neste ramo,. por tentar defender sua política de ensino, livre e desinteressada…

FALTA DE ASSISTÊNCIA BÁSICA

Os moradores da região, em condições de pura sobrevivência, submetidos às provas do clima tropical e desatendidos por parte das autoridades e dos organismos responsáveis, vivem numa falta habitual de assistência básica.

Dei já uma referência, em matéria de ensino, no que diz respeito à política local condicionante. Devo acrescentar que as irregularidades na nomeação e pagamento dos professores; na construção, manutenção e higiene das escolas; no fornecimento do material escolar mais rudimentar são muitas e constantes.

Grande porcentagem de crianças e rapazes da região não têm acesso às aulas. Há escolas com uma só professora ou duas, estando, os alunos de diferentes idades e graus, misturados. A prefeitura de Barra do Garças tem nomeado várias professoras conhecidas publicamente como prostitutas. O nível de preparação do professorado – fora os professores que a Missão conseguiu engajar é de 1º, 2º, 4º ano primários. Não há em toda região um só professor ou professora normalista. Geralmente é o povo ou Prelazia que deve enfrentar a construção do prédio escolar. Faltam carteiras, cadernos, livros, quadro negro, giz. Os professores do Curso Primário recebem um ordenado de Cr$ 100,00 e Cr$ 125,00, com atrasos de seis mês e até de ano inteiro. Os professores do Ginásio Estadual de São Félix – construído pela Prelazia – recebem Cr$ 120,00 por mês e com atraso superior a 4 meses. A Irmã diretora do Grupo Escolar de São Félix teve que desafiar, este ano, a política caprichosa do Secretário Municipal de ensino de Barra do Garças para a própria sobrevivência do Grupo.

A saúde é um problema trágico em toda a região. Um problema sem solução para 80% dos moradores. Dentro dos 150.000 Km2 do território da Prelazia – e numa imensa área circundante imediata – só existe o Hospital do Índio, em Santa Isabel, em condições precaríssimas de atendimento, e com um só médico, intermitente. O Hospital é propriamente só para o índio. Por concessão, atende-se, dentro dessa precariedade, o pessoal não indígena, à base de Cr$ 30,00, a consulta e de Cr$ 45,00, a diária. Os dois únicos postos de saúde existentes foram criados e são mantidos pela Prelazia. Os abusos de alguns farmacêuticos “práticos” ou de curandeiros descarados que vendem medicamentos a preço exorbitantes ou amostras grátis, provocando endividamento estrangulador, são habituais e notórios.

Os chamados “farmacêuticos” de algumas fazendas, na maioria dos casos não passam de aventureiros e irresponsáveis. O divulgado Hospital da Codeara nem médico tem.

“A higiene é precária; há poucos conhecimentos relativos à saúde. Um grande prejuízo são as crendices e as superstições… O povo não tem noção do alto valor da saúde, e desconhece os meios de evitar a contaminação, não tem consciência da existência de germes e vermes e não teme os insetos que tem abrigo comum com a família.

“As crianças andam nuas e descalças até os 6 anos; depois adotam uma tanguinha. Arrastam-se pelo solo de terra batida, contaminada pelas excreções dos animais e das pessoas, expostas assim às variadas infecções e infestações”.

“São comuns as conjuntivites que atingem todos os membros da família, assim como as gripes”.

“A carne em geral, mesmo nos açougues fica exposta à poeira, às moscas e mosquitos. fora da geladeira. Quando chega à casa já vem meio deteriorada e contaminada. A carne seca fica dias e dias ao sol, suspensa nos quintais, sem qualquer proteção. Quando surgem os problemas intestinais, ninguém pensa nessas carnes ingeridas, já em início de putrefação e infeccionadas por muitos tipos de germes”.

“A água retirada do poço ou do rio é colocada nos potes, sem torneirinha, sem qualquer tratamento. Aí ela fica fresquinha, mas é retirada com vasilhas já usadas, levadas pelas mãos, muitas vezes sujas, que mergulham com o copo e enriquecem a cultura dos germes dentro dos potes…”

“… Enfrentam a doença própria e alheia com grande sangue frio e a suportam como um mal contra o mal não vale a pena lutar. O mesmo se diga em relação à morte que eles “acolhem” como a chuva depois da seca. Nem mesmo o choro é comum. É um povo sofrido de verdade. Só mesmo quem testemunha pode falar e o faz com grande angústia, percebendo a vida infra-humana esta gente, que não tem consciência dos seus próprios direitos de pessoa humana. As crianças se apresentam com verminose e anemias; são poucas vivas, olhar parado e sem brilho, esclerótica amarela e mucosa descoradas; abdômem distendido, com intenso meteorismo..”

“… Os dentes ao nascer já se estragam e a segunda dentição tem o mesmo destino”.

“Os adultos poucos esclarecidos vêem-se logo atacados pela malária, hepatite e pelas doenças venéreas…”

“… Falta assistência ao recém-nascido e à criança em geral. Há grande mortalidade (infantil) por tétano umbilical e infecções gastrointestinais, nos 4 primeiros anos. Falta assistência à gestante, à parturiente e à puérpera. A paciente dá á luz no seu próprio barraco em condições higiênicas as mais precárias, não dispondo de condições elementares e humanas para uma atendimento condigno. Dá à luz rodeada dos demais filhos, de vizinhas e às vezes é assistida por uma “curiosa” que talvez complique mais a situação das crendices e superstições.”

“Nos casos de fratura de membros, o paciente repousa até conseguir andar ou movimentar-se, sem ter a noção de uma redução e contenção provisoriamente até a mobilização definitiva. E daí a conseqüência de pessoas coxas e com membros defeituosos, defeitos aceitos passivamente e superados com uma coragem impressionante…”

“… São comuns entre os povos as seguintes doenças: Malária; hepatite; infecciosa; úlcera de Bauru; desidratação aguda (adultos e crianças); verminoses de todos os tipos, principalmente ascaridíase, teníase, ancilostomíase, acarretando profundas anemias; afecções venéreas: blenorragia, cancro mole (“cavalo”), cancro duro, linfogranulomatose inguinal (“mula”), granuloma venéreo (“cavalo de cristal”); alguns casos de picadas de cobra, escorpião e aranha; tétano umbilical, geralmente letal; afecção dentárias, desnutrição”. (Relatório sobre a Prelazia, da Ir. Maria de Fátima Gonçalves).

Devem-se acrescentar a essa lista do relatório, o reumatismo, as afecções respiratórias, a leishmaniose. A perda da vista é muito frequente.

A habitação “em geral é feita de barro cru, algumas de barro cozido, outras de pau-a- pique. A cobertura é de folhas secas de coqueiro. Agora há algumas olarias (rudimentares) onde se fazem tijolos e começam a surgir casas de tijolo e cimento, com cobertura de telhas… Essas casas não têm forro”. As instalações sanitárias “são bastante precárias; em geral localizadas no fundo do quintal: fossa rente ao chão, base de madeira, sem qualquer cobertura, em local incômodo, sem porta; protegida por uma “cortina” de caso de estopa que se agita ao sopro do vento… e onde à noite se abrigam galinhas e muitos insetos rodeadores…”

“… Não há coleta de lixo. Quintais e ruas recebem o lixo que as pessoas menos cuidadosas não queimam. Não há mesmo o cuidado de coletar o lixo em latas. Em algumas pensões joga-se pela janela todo o tipo de lixo; os restos alimentares são rapidamente procurados e devorados pelos cães…” “… Galinhas, cães e porcos freqüentam os mesmos aposentos e muitas vezes usam as mesmas vasilhas (que as pessoas)”. “Os ambientes são infestados de moscas, mosquitos, baratas, e ratos. As fossas sobretudo, são verdadeiros viveiros de enormes baratas, afugentadas à noite pela chama de uma vela, ou lampião, dando um espetáculo. às vezes até dramático, quando a pessoa não está acostumada e é surpreendida por esta fuga das baratas que buscam aflitas o interior da fossa…” (Relatório sobre a Prelazia, Irmã Ma de Fátima Gonçalves.

“A alimentação básica é o feijão, arroz, carne, farinha (de mandioca), peixe, banha. Nota-se grande ausência de frutas, verduras, leite. O leite de vaca existe no início do inverno (chuvas), quando há pastos em abundância. Na seca desaparece o pasto; e no inverno fica tudo alagado e as estradas são intransitáveis. Não (se) comem verduras em abundância, devido as dificuldades de cultivo (pragas, época da seca, falta de adubo…) e também preguiça e ao preconceito: “Verdura é comida de lagarta”, “Capim é para boi”.

“No tempo da seca as frutas desaparecem quase por completo. “Expressões, como esta denunciam a carência alimentar: “Comemos macarrão uma vez por ano”. As refeições normais do sertanejo são três: café, almoço e janta. Os de mais recurso tomam café com pão. A maioria é café com “isca” (alguma mistura) ou “Bolo de sopapo” (bolo de farinha). Muitos só café “magro”, sem “isca”. E isto foi constatado entre o aluno do ginásio. Muitos vêm à aula sem tomar nada de manhã…” “…A merenda não é adotada pelos mais pobres como denota esta frase: “Merenda só na época das vacas gordas”. Esta fome crônica, como dizia Josué de Castro, mata mais que as guerras. Um povo sub-alimentado é presa fácil das doenças, pois não há resistência para elas num organismo debilitado. Eu garanto que se houvesse higiene e boa alimentação, 80% das doenças desapareceriam nestes sertões…” (“Pesquisa Sociológica” citada).

Não há serviço normal de correio em toda a região da Prelazia. E as estradas de terra alagam perigosamente na época das chuvas, ou são materialmente intransitáveis. Nenhuma cidade possui luz elétrica (exceto Luciara, umas três horas por noite), nem esgotos, nem água encanada, nem ruas sequer encascalhadas…

Há dois ônibus por semana – a partir de outubro, 3 – de Barra do Garças a São Félix : dia e meio de viagem, e um ônibus semanal de Barra Luciara. A VASP – com aparelhos primitivos – serve a região em dois vôos semanais, ida e volta. O Araguaia e o Rio das Mortes são transitados por barcos, lanchas (“voadeira”) e canoas. Existe o serviço extraordinário dos teco- tecos (a Cr$ 1.200,00 de São Félix a Goiânia). A FAB presta vários serviços de emergência.

O COMÉRCIO facilmente é trust, também nesta região. E coincide com o poder dominante da política e das fazendas, em interesses combinados. As distâncias e os fretes “justificam” os mais exorbitantes abusos. Não há nenhum controle fiscal. O preço é geralmente 50% superior ao normal.

MÁ DISTRIBUIÇÃO ADMINISTRATIVA

Há extenção dos municípios já é uma estrutura de desequilíbrio social. A distância da sede do Município traz consigo o máximo desinteresse e esquecimento por parte das autoridades, a impossibilidade de recurso e protesto por parte do povo. (Barra está a quase 700 Km de São Félix).

Parte VIII Nossa atuação

A Prelazia conta 7 sacerdotes. O Bispo e quatro padres são espanhóis e Claretianos. Um deles ordenado na própria sede da Prelazia, no dia 7 de agosto deste ano. O novo ordenado e um companheiro, por motivos de estudo e de assistência à própria Prelazia, dirigem provisoriamente uma paróquia em Goiânia. O Bispo e os outros dois padres residem em São Félix.

Dois padres, franceses, de clero diocesano, pertencentes à antiga Prelazia de Conceição do Araguaia, vicularam-se à Prelazia de São Félix, com motivo da ereção da mesma, e residem em Santa Terezinha, faz dezesseis e cinco anos, respectivamente.

Um dado para não esquecer: o Bispo e os padres somos todos estrangeiros.

Na aldeia dos índios Tapirapé vivem – faz dezessete anos – três Irmãnzinhas de Jesus, plenamente encarnadas na pobreza e na simplicidade agrícola dos Tapirapé; sendo testemunho e fermento de Evangelho. Além da total convivência, as Irmãnzinhas prestam aos índios um discreto serviço de assistência sanitárioa e de enfermagem e de promoção pelo exemplo e diálogo.

No dia 16 de fevereiro de 1971, chegaram a São Félix, para trabalhar na Prelazia, cinco religiosas de São José; e em 18 de junho último incorporou-se à comunidade outra irmã. Elas se dedicaram à catequese, enfermagem, ensino e promoção humana em geral. Todas elas são brasileiras.

Uma Irmãnzinha de Jesus, brasileira também, “em experiência de apostolado direto”, colabora nas campanhas missionárias.

Tanto em São Félix, como em Santa Terezinha trabalham, vinculados à Prelazia, leigos brasileiros: No ensino “ginásio, primário e alfabetização”, nas Campanhas Missionárias, na catequese e na promoção humana. Em São Félix, este ano, leigos “universitários” são cinco. Em Santa Terezinha são cinco também: um casal, três rapazes.

No primeiro período de nossa chegada à missão, percorremos quase todo o território, em repetidas viagens e visitas, por água com muita freqüência. Sertão, beiras dos rios e povoados. Com as extraordinárias despesas que essas viagens significam. Era continuar, talvez com uma evangelização mais esclarecedora, as tradicionais desobrigas…

Assistíamos alguns povoados e algumas fazendas, com certa regularidade, todo mês.

Em 1970, interrompemos quase todas essas viagens. Por exigências do ginásio e pelo próprio descontentamento de um serviço que era rotineiro, ineficaz e até alienante. Independente das possibilidades que nos deu de conhecermos a região.

Nesse ano, estourou o conflito aberto entre a Prelazia – Igreja, devemos dizer – e as fazendas latifundiárias, que se materializou, no mês de setembro, com o relatório “Feudalismo e Escravidão no Norte do Mato Grosso” (cf. Documentação, no IV, 1). Não era possível ir às fazendas sem coonestar exteriormente a conduta dos donos, gerentes e capatazes. Nem era possível agir com liberdade. Os peões por outra parte, nunca poderiam ser atingidos pelo padre.

Além disso, era preciso refletir, reformular a pastoral toda. Sentíamos o impasse da situação religioso-pastoral do nosso povo. Faltava tudo: em saúde, em ensino, em comunicações, em administração e em justiça. Faltava no povo a consciência dos próprios direitos humanos e coragem e a possibilidade de os reclamar. E o que não faltava era gritante, acusador .

Contra os nosso primeiros propósitos – fruto da velha experiência educacional da Igreja, fruta da própria experiência pessoal – decidimos enfrentar o problema do ensino: e construímos o “Ginásio Estadual Araguaia”, de São Félix. Pago, em oitenta por cento (80%) da importância, com donativos dos nossos amigos da Espanha, e sem nenhuma contribuição oficial da Prefeitura, do Estado ou do Governo Federal. Foi uma aventura quixotesca, necessária porém. (As poucas famílias que antes pretendiam por os filhos no ensino médio, deviam mandá-los a Barra do Garças ou a Goiás. E as forças novas da juventude se distanciavam da família e do lugar, provavelmente para não voltar jamais. E toda a renovação humana-social precisaria tanto dessa juventude, mais maleável, mais aberta e crítica!). O Ginásio é Estadual: não queríamos que fosse nem da Prelazia nem de uma Congregação. Com muitas demoras e irregularidades, o Estado paga os professores bem pobremente. Funcionavam no ginásio as três primeiras séries. Por motivos de suplência inicial, um padre teve que aceitar a diretoria e uma irmã é secretária.

Depois de cooperarmos, com pressões e suplências, ao ensino primário de toda a região, este ano uma irmã é diretora do Grupo Escolar de São Félix; e a equipe de Santa Terezinha leva totalmente – “economia, matéria e professorado” – um Grupo Primário particular, e um Curso de Madureza Ginasial Noturno, vencendo as manobras da Prefeitura de Luciara.

Uma irmã enfermeira e outra auxiliar dirigem, a partir do mês de março deste ano, o ambulatório, criado e financiado pela Prelazia de São Félix. Ultimamente recebemos a promessa de uma ajuda econômica da Secretaria de Saúde Estadual de Cuiabá. No primeiro semestre de atuação o ambulatório atendeu 1995 casos. Em Santa Terezinha trabalha há quatro anos, no pequeno ambulatório da missão, uma enfermeira francesa, leiga, (este ano em férias, na França, e ajudada por uma moça do lugar, auxiliar de enfermagem). A partir de julho toma conta do ambulatório um laboratorista. Desde o início da missão – antes mesmo de ser criada a Prelazia – temos dado grande quantidades de remédios gratuitos, com mais ou menos paternalismo, por necessidade vital, na impossibilidade de fazer outra coisa, às vezes.

Na liturgua e na catequese agimos sempre com bastante liberdade, no intuito de adaptarmos ao povo e de traduzir para ele o culto oficial e a palavra tradicional. Demos sempre particular importância, na missa, à Liturgia da Palavra. Celebramos missas com “Liturgias das palavras” preparatórias, tidas no dia anterior. Missas por grupo. “Missas de rua”: nos barracões abertos, em âmbito de bairro ou de vizinhança.

Na pastoral dos Sacramentos, depois de ter que “agüentar”, nos primeiro meses, os batizados em massa e sem preparação, e os casamentos de gente muito nova e improvisadamente, viemos a exigir preparação e certas condições indispensáveis para os pais e padrinhos dos batizandos, e para os noivos – dos quais exigimos também o casamento civil. Atrasamos a idade para a Primeira Eucaristia e preparamos os candidatos durante tempo prolongado. Nestes três anos de missão, ainda não houve administração de Crisma. Achamos que o povo não está preparado, e queremos que este ao seja precedido de um autêntico catecumenato a posteriori, para possibilitar com isto um compromisso cristão adulto.

No intuito sério de superar a pastoral das desobrigas, iniciamos este anos as “Campanhas Missionárias”. Realizamos já a primeira em Pontinópolis, e estamos realizando a segunda em Serra Nova.

A Campanha Missionária é um “tempo forte” de pastoral – três meses – num lugar, e com trabalho em equipe – Padre, Irmãs e Leigo. A equipe missionária se instala numa casa do povo, e procura compartilhar, simplesmente, a vida do lugar, em tudo. Durante a campanha se dão aulas de alfabetização ou Círculos de Cultura; aulas de complementação para adultos e crianças. Acompanha-se o trabalho das professoras locais. Dá-se assistência de enfermagem e se promove uma ação permanente por todos os meios e em toda ocasião de higiene e saúde. Faz- se uma ação intensa de conscientização. E se tem palestras por grupo, sobre os temas vitais do povo do lugar. Três vezes por semana se celebra a eucaristia, em termos bem acessíveis, e com uma temática apropriada na liturgia da palavra e nas orações. Prepara-se os sacramentos do batismo, da penitência, da eucaristia e do matrimônio, com especial dedicação. Com o povo enfrentando-se os problemas e os riscos – às vezes graves – dos direitos dos posseiros frete ao latifúndio (cf. Documentação, no II, 3. A, B). E tenta-se assentar a vida dos patrimônios numa organização popular básica, humana. Criam-se ou os “Conselhos de Vizinhança” – autoridade popular de uma equipe livremente eleita (que em Pontinópolis, junto com o povo, elaborou a “Lei do Posseiro”) (Documentação no VI) – ou os “Grupos de Liderança”. Finalmente organiza-se a “Oração Comunitária dos Domingos”, que um grupo do próprio povo dirigirá toda semana, com a sistêmica mensal de algum membro da equipe da Campanha. (Futuramente, nasceriam aí uma “comunidade de base” e umas diaconias locais e, talvez, um sacerdote “indígena…”).

Mesmo assim sentimos que a liturgia e a pastoral toda – aqui como em outras partes, certamente – se ressentem de desencarnação, de intelectualismo, de conteúdo e ritmo urbanos e de um europeísmo dominante. Na própria estruturação, na formação que nos condiciona, no “preceito tradicionalista do povo” e na falta eclesial de corajosa criatividade.

Não podemos aceitar a dicotomia entre evangelização e promoção humana, porque acreditamos no Cristo, como o Senhor Ressuscitado que liberta o homem todo e o mundo todo e nos salva em plenitude: progressivamente e dolorosamente aqui na terra, definitivamente e com glória no céu. “Cristo veio ao mundo para libertar o homem de toda escravidão. A comunidade cristã, deve ser para todos os homens um sinal eficaz na realização da justiça, na libertação de toda forma de escravidão e na esperança para cada uma das gerações” (Esquema “A Justiça no Mundo”, Synodus Episcoporum, 6).

Para nós, evangelizar é promover o homem concreto – o próximo – e libertá-lo, sempre com aquele “plus” que a encarnação e a Páscoa trazem à pessoa e à historia humanas.

Por causa disso, bem ou mal, com tateios e em conflitos, sempre temos enfrentado a defesa dos direitos humanos e a promoção do povo ao qual fomos enviados. Nas campanhas higiênicas; no ensino – alfabetização em São Félix, em Santa Terezinha. E um conflito declarado da Prelazia com os latifundiários e dos núcleos políticos e de controle econômico da região, fazia de nós todos “subversivos” e “comunistas”. E “estrangeiros!”

Os dois primeiros qualificativos da acusação não merecem uma resposta séria, por excessivamente gratuitos e gastos.

Estrangeiros somos, certamente, o Bispo e os padres. Talvez, porém, bastante mais dedicados ao bem do Brasil do que nossos acusadores. E mais desinteressante. Além de que não há homem estrangeiro na terra dos homens, e a Igreja no mundo é em todo lugar nossa pátria.

Depois de vários meses de boatos e calúnias, de ameaças de prisão, de morte, de “descida” da polícia federal e do exército, com prognósticos sucessivamente datados depois de várias tentativas de convencer-nos ou de intimidar-nos por meio de várias tentativas de convencer-nos ou de intimidar-nos por meio de mensageiros pessoais, na primeira semana do mês de setembro último, o Sr. Ariosto da Riva – pai e mentor de latifundiários – acompanhado de um sacerdote religioso, se apresentou ao Senhor Núncio, no Rio, para tentar impedir a minha sagração…

O GRITO DESTA IGREJA

A Igreja é, por natureza, tão católica como local. “A fim de poder oferecer a todos o ministério da salvação e a vida trazida por Deus, a Igreja deve inserir-se em todos esses agrupamentos (humanos), impelida pelo mesmo movimento que levou o próprio Cristo, na encarnação, a sujeitar-se às condições sociais e culturais dos homens como quem conviveu”. (Ad Gentes, 10). Cristo continua se encarnando, por ela e com Ela, no mundo concreto dos homens de cada tempo, de cada lugar. Deus ama em singular e com eficácia. A Salvação faz-se presente no dia-a-dia e atinge o homem real, principalmente por meio de sua Igreja – “sacramento universal de salvação” (ID. 1) – na medida em que esta se aproxima do homem – com seu testemunho, com a Palavra “traduzida” e com os Sacramentos vivenciados – e o convida e provoca nele – pela força do Espírito que sempre está pronto para agir – a resposta da Fé que transforma e liberta.

Nós – bispo, padres, irmãs, leigos engajados – estamos aqui, entre o Araguaia e o Xingu, neste mundo, real e concreto, marginalizado e acusador, que acabo de apresentar sumariamente. E somo aqui a Igreja “visível” e “reconhecida”. Ou possibilitamos a encarnação salvadora de Cristo neste meio, ao qual fomos enviados, ou negamos nossa Fé, nos envergonhamos do Evangelho e traímos os direitos e a esperança agônica de um povo de gente que é também povo de Deus: os sertanejos, os posseiros, os peões; este pedaço brasileiro da Amazônia.

Porque estamos aqui, aqui devemos comprometer-nos. Claramente. Até o fim. (Somente há uma prova sincera, definitiva, do amor, segundo a palavra e o exemplo do Cristo). Eu, como bispo, nesta hora de minha sagração recebo como dirigidas a mim as palavras de Paulo a Timóteo: “Não te envergonhes do testemunho de Nosso Senhor, nem de mim, seu prisioneiro, mas sofre comigo pelo Evangelho, fortificado pelo poder de Deus” (II Tim 1,8).

Não queremos bancar heróis, nem originais. Nem pretendemos dar lição a ninguém. Pedimos só a compreensão comprometida dos que compartilham conosco uma mesma Esperança.

Olhamos com bastante amor a terra e os homens da Prelazia. Nada dessa terra ou desses homens nos é indiferente. Denunciamos fatos vividos e documentados. Quem achar infantil, distorcida, imprudente, agressiva, dramatizante, publicitária, a nossa atitude, entre na sua consciência e leia com simplicidade o Evangelho; e venha morar aqui, neste sertão, três anos, com um mínimo de sensibilidade humana e de responsabilidade pastoral.

O Vaticano II, Medellín, o Sínodo; a voz das Conferências Episcopais do Terceiro Mundo; o Evangelho – antes e sempre -, não só coonestam como também reclamam essa ação abertamente comprometida. Já passou a hora das palavras (não certamente a hora da palavra), das conivências e das esperas conciliadoras. (Será que alguma vez foi essa hora?). “Quem não está comigo, está contra mim; quem não recolhe comigo, espalha” (Lc 11, 23). “Não basta refletir, obter maior clareza e falar. É preciso agir. Esta não deixou de ser a hora da palavra, mas tornou-se, com dramática urgência, a hora da ação.” (Medellín, introdução).

Queremos e devemos apoiar o nosso povo, pôr-nos ao seu lado, sofrer com ele e com ele agir. Apelamos à sua dignidade de filho de Deus e ao seu poder de teimosia e de Esperança.

Chamamos angustiosamente a toda a Igreja do Brasil, à qual pertencemos. Pedimos, exigimos fraternalmente, sua decisão, e a corresponsabilidade plena na oração, no testemunho, no compromisso, na colaboração de agentes e meios pastoral. (Na mente de quase todos os que ainda lutam desinteressadamente, somente a Igreja parece ter uma possibilidade decisiva nesta hora). Da CNBB – na qual agora mais confiamos – pedimos o cumprimento, pronto e eficaz, de um programa decididamente realista no compromisso que ela publicamente assumiu sobre a Amazônia, com caráter de prioridade.

Aos “católicos” latifundiários que escravizam o povo de nossa região – eles mesmos alienados, muitas vezes pela conivência interesada ou cômoda de certos elementos eclesiáticos – pediríamos, se nos quisessem ouvir, um simples pronunciamento entre sua Fé e o seu egoísmo. “Não se pode servir a dois Senhores” (Mt 6, 24). Não lhe adiantará “dar Cursilhos” em São Paulo ou patrocinar o “Natal do pobre” e entregar esmolas para as “Missões”, se fecham os olhos e o coração para os peões escravizados ou mortos nas suas fazendas e para a famílias de posseiros que os seus latifundiários deslocam num êxodo eterno ou cercam sadicamente fora da terra necessária para viver. Leiam o Evangelho, leiam a primeira carta de São João e a carta de São Tiago…

É fácil, com muito dinheiro, encobrir com páginas inteiras de jornais, a verdade dos fatos, a realidade. Deus vê. E o povo sabe cada dia mais o que sofre, e não esquece.

Mais uma vez, com maior premência, publicamente, apelamos às supremas Autoridades Federais – Presidência da Republica, Ministérios da Justiça, do Interior, da Agricultura, do Trabalho, INCRA, FUNAI… (9) – para que escutem o clamor abafado deste povo; para que subordinem os interesses dos particulares ao bem comum, a “política da pata do boi” à política do homem, os grandes empreendimentos – sempre mais publicitários – das estradas, ocupação da Amazônia, a Mesopotâmia do gado”, a mal chamada “integração nacional do índio” (10), às necessidades concretas e aos direitos primordiais, anteriores, do homem nordestino, do retirante sem futuro, do homem da Amazônia, do índio, do posseiro, do peão…

Se os incentivos dados – e com fiscalização? – às oligarquias e trutes do sul do país que “ocuparam” esta região, tivessem sido investidos em favor do povo que a desbravou e a habita, a situação conflitiva que ” revelamos” aos ingênuos ou interesseiros estaria voltada para um futuro de esperança e desenvolvimento “do homem todo e de todos os homens” deste interior.

As soluções isoladas não resolvem os problemas gerais. E a esmola nunca é solução em sociologia. O conflito Codeara/Santa Terezinha, põe exemplo, depois de 4 anos de titânicos esforços por parte do povo e da “Missão”, tentou-se resolver com uma esmola de 5.582 hectares, para o povo dos posseiros, dentro de um latifúndio de mais de 196.000 hectares, e continuando toda a zona urbana do povoado em poder da Companhia.

O que vivemos nos deu a evidência da iniqüidade do latifúndio capitalista, como pré-estrutura social radicalmente injusta; e nos confirmou na clara opção de repudiá-lo.

Sentimos, por consciência, que também nós devemos cooperar para a desmitificação da propriedade privada. E que devemos urgir – com tantos outros homens sensibilizados – uma Reforma Agrária justa, radical, sociologicamente inspirada e realizada tecnicamente, sem demoras exasperantes, sem intoleráveis camuflagens. “Cristo quer que bens e a terra tenham uma função social, e nenhum homem tem direito a possuir mais que o necessário, quando existem outros que nem sequer tem o necessário, quando existem outros que nem tem o necessário para viver. Por isso o Papa Paulo VI, disse: “A propriedade não é um direito absoluto e inalienável” (Popularum Progressio)” (José Manuel Santos Ascarza, Bispo de Valdivia, Presidente da Conferência Episcopal do Chile, em carta à Organização dos Camponeses de Linares, em 19/5/70).

A injustiça tem um nome neste terra: o Latifúndio. É o único nome certo do Desenvolvimento aqui é a Reforma Agrária. (E segundo Paulo VI, na “Populorum Progressio”, “o Desenvolvimento é o novo nome da paz”…).

Esperamos que nenhum cristão com vergonha caia no cinismo de qualificar este documento como subversivo. Nos reportamos, mais uma vez, ao Evangelho. E também ao Vaticano II, a Medellín e ao último Sínodo. “O testemunho (função profética) da Igreja frente ao mundo, terá bem pouca ou nenhuma validade se não der, ao mesmo tempo, a prova de sua eficácia no seu compromisso pela libertação dos homens mesmo neste mundo. Por outra parte, a Igreja poderá fazer os maiores esforços para defender a verdade de sua mensagem, mas se ela não a identificar com um amor comprometido na ação, esta mensagem cristã corre o risco de não mais oferecer ao homem de hoje nenhum sinal de crediabilidade” (Esquema “A Justiça no Mundo”, Synodus Episcoporum, pág. 46).

Estas páginas são simplesmente o grito de uma Igreja da Amazônia – a Prelazia de São Félix, no noroeste de Mato Grosso – em conflito com o Latifúndio e sob a marginalização social, institucionalizada de fato.

Não deixamos de ver o que é belo na natureza ou no progresso da Amazônia, nem subestimamos o que o Governo do Brasil ou os particulares fazem de bom nesta região infinita. Há poesia publicidade em abundância para cantar tudo isso. O que nesta nossa Amazônia é trágico, o que nela se faz erradamente, ou se omite, o que já não se pode mais tolerar, isso é que nós – Por dever pastorear e por solidariedade humana – devíamos publicar. Dizer a verdade é um serviço. E o propósito de dizer a verdade nos faz livres.

Nossa amargura não é falta de Esperança. (Só a alienação ou o egoísmo podem viver comodamente felizes – no meio da injustiça estabelecida). Sabemos de Quem nos fiamos (II Tim. 1, 12). Sabemos que “lá onde o pecado ameaça a libertação e a humanização da vida, Deus nos envia seu Filho Único com o fim de libertar o coração humano do egoísmo e do orgulho” e que “é precisamente aqui, na encarnação, onde se encontra o fundamento máximo da esperança para o homem e seu universo”. “… É no seu Espírito e na sua Igreja que Ele (o Cristo) oferece aos homens esta luz de que precisam, esta confirmação dos valores humanos de dignidade e fraternidade, esta coragem para praticar mais, sabemos que “a justiça que os homens realizam neste mundo chega a ser uma antecipação da esperança final” (Esquema “A Justiça no Mundo”, 56 e 57).

Notas:

1. São Félix -na margem mato-grossense do Araguaia- foi fundada em 1941 pelo piauiense Servirano Neves, que se amparou sob o patrocínio de São Félix de Valois, como acreditado protetor “contra” os índios… Pelo Decreto Pontifício de ereção da Prelazia foi constituída titular Nossa Senhora no ministério da sua Assunção, e é agora Nossa Senhora da Assunção a padroeira também da cidade de São Félix.

2. Luciara foi fundada em 1934 pelo lendário Lúcio da Luz, vindo do Pará. Chamada inicialmente de “Mato Verde” passou a tomar definitivamente os nomes do fundador Lúcio e do Rio Araguaia em cuja margem está assentada.

3. Expressão popular para indicar um casamento improvisado, resolvido na hora.

4. Na Documentação damos uma relação completa de todos os projetos aprovados pela SUDAM até 1970, situado nesta região.

5. A publicidade faz dos fazendeiros os bandeirantes da região. O Sr. Ministro da Agricultura, Cirne Lima, porém, falando aos técnicos reunidos pela ” Semana do Veterinário”, em Brasília, diz que “o boi deverá ser o grande bandeirante da década…” (cf. O Estado de São Paulo – 15/9/71).

6. Por esta mesma causa deixamos de publicar boa parte da documentação pois, isto, com certeza, iria afetar gravemente as testemunhas.

7. Segundo testemunhas oculares do fato, cujos nomes preferimos manter em segredo.

9. À SUDAM, infelizmente, não podemos apelar, pois até o momento mostrou-se exclusivamente a serviço do latifundiário.

10. Somos os primeiros a reconhecer a necessidade das estradas, do desenvolvimento da Amazônia, e da verdadeira integração do índio. Sabemos, também, valorizar, em termos nacionais e internacionais, a pecuária. O que não podemos admitir á a inversão dos valores.

Fonte:

IHU

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Ele está no meio de nós! https://observatoriodaevangelizacao.com/ele-esta-no-meio-de-nos/ Sun, 01 Apr 2018 01:44:31 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=27686 [Leia mais...]]]>
A Equipe do Observatório da Evangelização deseja-lhe a graça e a garra, a esperança e a coragem de quem caminha com o Ressuscitado para testemunhar Sua Presença entre nós. Abençoada Páscoa!!!

ressuscitou

Trovas ao Cristo Libertador

(Pedro Casaldáliga)
Olhar ressuscitado todo o teu Corpo
acompanhando a marcha lenta do povo.
Todo Tu debruçado, como um caminho,
traçando em tua Carne nosso destino.
No azul do Argauaia os roxos medos,
no sol de tua glória nosso direitos.
Sangue vivo no verde das índias matas,
faixas gritando viva a Esperança!Procissão de oprimidos rezando as lutas,
e Tu, Círio de Páscoa, flor de aleluias.
Páscoa nossa imolada, em Ti enxertos,
como tu perseguidos, por Ti vencemos.
Libertador, vencido, vencendo tudo.
Companheiro dos pobres, donos do mundo.Guerrilheiro do Reino, maior guerrilha.
Tua cruz empunhamos em prol da vida.
Nossos mortos retornam, com nossos passos,
em teu Corpo vivente, ressuscitados.
Em Ti, cabeça nossa, Libertador,
libertos, libertando, erguemo-nos!


https://www.youtube.com/watch?v=XJN4q4y9eUg
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