Dom Luiz Fernando Lisboa – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com Wed, 21 Sep 2022 16:41:16 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.4 https://i0.wp.com/observatoriodaevangelizacao.com/wp-content/uploads/2024/04/cropped-logo.png?fit=32%2C32&ssl=1 Dom Luiz Fernando Lisboa – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com 32 32 232225030 Sinodalidade e missão: na Igreja sinodal, onde estão e qual o lugar das jovens e dos jovens? https://observatoriodaevangelizacao.com/sinodalidade-e-missao-na-igreja-sinodal-onde-estao-e-qual-o-lugar-das-jovens-e-dos-jovens/ https://observatoriodaevangelizacao.com/sinodalidade-e-missao-na-igreja-sinodal-onde-estao-e-qual-o-lugar-das-jovens-e-dos-jovens/#comments Wed, 21 Sep 2022 16:41:16 +0000 https://atomic-temporary-74025290.wpcomstaging.com/?p=45977 [Leia mais...]]]> Neste texto de dom Luiz Fernando Lisboa, “Sinodalidade e missão: na Igreja sinodal, onde estão e qual o lugar das jovens e dos jovens?”, no qual recorda a primeira prioridade da Assembleia Eclesial da América Latiana e Caribe – “Reconhecer e valorizar o protagonismo dos jovens na comunidade eclesial e na sociedade como agentes de transformação” -, lança como desafio: “temos longo caminho a percorrer. As comunidades cristãs devem ´criar´ estes espaços para os adolescentes e jovens. Os adolescentes e jovens, quando perceberem que não têm este espaço, devem ´conquistar´, ´exigir´ até que consigam. Quando é conquistado, tem ainda mais valor“.

Este é o quinto texto da iniciativa do Serviço Teológico-Pastoral, de publicar quinzenalmente textos opinativos que contribuam para a reflexão e a formação na caminhada de conversão sinodal da Igreja Católica impulsionada pelo papa Francisco.

Como afirma dom Luiz Fernando, “Para que este caminho da Sinodalidade seja realmente autêntico, é fundamental a participação e a contribuição dos Jovens na missão da Igreja, especialmente trazendo o que eles têm de melhor: a provocação, a inquietação e a alegria“.

Desejamos a todos e todas uma boa leitura!

Sinodalidade e missão: na Igreja sinodal, onde estão e qual o lugar das jovens e dos jovens?

Por Dom Luiz Fernando Lisboa, cp

Bispo de Cachoeiro de Itapemirim, ES

A Assembleia Eclesial da América Latina e Caribe e o Sínodo sobre a Sinodalidade tiveram início na mesma época: Outubro e Novembro de 2021. Os dois acontecimentos são processos abertos, iniciados, mas sem data de conclusão. São um verdadeiro desafio para colocar a Igreja Povo de Deus, em sinodalidade, a caminho, em missão.

O papa Francisco pediu que a Assembleia Eclesial retomasse Aparecida e assim o fizemos. Na verdade, muitas reflexões da Conferência de Aparecida já tinham sido feitas nas Conferências passadas, sobretudo nas de Medellin e Puebla: a opção preferencial pelos pobres, a opção preferencial pelos jovens, as comunidades eclesiais de base, a centralidade da Palavra, a participação das mulheres, as culturas e a interculturalidade, a missão, entre outras.

A Assembleia Eclesial, com o Documento de Aparecida nas mãos, a partir testemunhos, de reflexões teológico-bíblico-pastorais e dos trabalhos em grupos, alertou nossa Igreja latino-americana para 41 desafios pastorais e, juntos, chegamos à escolha de 12 prioridades, sem deixar de lado os desafios. Entre as prioridades, chamou a atenção que a primeira delas tenha sido: “Reconhecer e valorizar o protagonismo dos jovens na comunidade eclesial e na sociedade como agentes de transformação”.

Registro de jovens protagonistas na Igreja Católica no projeto Economia de Francisco e Clara.
  1. O que já se disse sobre a Juventude na Igreja após o Vaticano II?

A Conferência de Medellín (1968) afirmou que

frequentemente os jovens identificam a Igreja com os bispos e os sacerdotes. Por não terem sido chamados a uma plena participação na comunidade eclesial, não se consideram como integrantes da Igreja. A linguagem comum da transmissão da palavra (pregação, documentos pastorais etc.), são-lhes muitas vezes estranhos e por isso não têm influência em suas vidas. Esperam dos pastores que não somente divulguem princípios doutrinais, mas que os provem com atitudes e realizações concretas. Dá-se o caso de jovens que condicionam a aceitação dos pastores à coerência de suas atitudes com a dimensão social do Evangelho: («…o mundo, disse Paulo VI, nos observa hoje de modo particular com relação à pobreza e à simplicidade de vida…»). (Med 5. Juventudes 1.1.5).

Na Conferência de Puebla (1979) a Igreja fez a “opção preferencial pelos jovens” e afirmou que “confia neles e que eles são a sua esperança” (DP 1186), além de que

os jovens devem sentir que são Igreja, experimentando-a como lugar de comunhão e participação. Por isso, a Igreja aceita suas críticas, por reconhecer-se limitada em seus membros, e os quer gradualmente responsáveis na sua construção até que os envie como testemunhas e missionários, especialmente à grande massa juvenil. Nela, os jovens sentem-se povo novo, o povo das bem-aventuranças, sem outra segurança que a de Cristo; um povo dotado de coração de pobre, contemplativo, em atitude de escutar e discernir evangelicamente, construtor de paz, portador de alegria e de um projeto libertador integral em favor, sobretudo, de seus irmãos jovens. (DP 1184).

            Para Puebla, é preciso investir fortemente na Pastoral Juvenil pois

a juventude não se pode considerar em abstrato, nem é um grupo isolado no corpo social. Por isso, ela requer pastoral articulada que permita comunicação efetiva entre os diversos períodos da juventude e continuidade de formação e compromisso depois, na idade adulta. (DP 1204).

 Santo Domingo (1992) dá continuidade ao apoio e àquele espaço que os jovens devem ocupar nas suas comunidades e ressalta que

na Igreja da América Latina, os jovens católicos organizados em grupos, pedem aos pastores acompanhamento espiritual e apoio em suas atividades, mas necessitam sobretudo em cada país de linhas pastorais claras que contribuam para uma pastoral juvenil orgânica” (SD 113).

Os bispos em Santo Domingo chegam a prometer:

Nós nos propomos executar as seguintes ações pastorais: – Reafirmar a “opção preferencial” pelos jovens proclamada em Puebla, não só de modo afetivo mas também efetivamente; isto deve significar uma opção concreta por uma pastoral juvenil orgânica, onde haja um acompanhamento e apoio real com diálogo mútuo entre jovens, pastores e comunidades. A efetiva opção pelos jovens exige maiores recursos pessoais e materiais por parte das paróquias e das dioceses. Esta pastoral juvenil deve ter sempre uma dimensão vocacional. (SD 114).

Em Aparecida (2007), a Igreja é chamada a estimular a pastoral dos adolescentes, com suas próprias características pois o adolescente procura uma experiência de amizade com Jesus (DAp 442) e, além disso, os jovens e adolescentes constituem a grande maioria da América Latina e do Caribe e representam enorme potencial para o presente e o futuro da Igreja e de nossos povos, como discípulos missionários (DAp 443).

Aparecida ainda acentua a importância da Pastoral da Juventude pois ela “ajudará os jovens a se formar de maneira gradual, para a ação social e política e a mudança de estruturas, conforme a Doutrina Social da Igreja, fazendo própria a opção preferencial e evangélica pelos pobres e necessitados” (DAp 446e).

Na Exortação Apostólica Christus Vivit, elaborada depois e como fruto do Sínodo sobre a Juventude (2019), o papa Francisco pergunta:

«Para onde Jesus nos manda? Não há fronteiras, não há limites: envia-nos a todas as pessoas. O Evangelho é para todos, e não apenas para alguns. Não é apenas para aqueles que parecem a nossos olhos mais próximos, mais abertos, mais acolhedores. É para todas as pessoas. Não tenhais medo de ir e levar Cristo a todos os ambientes, até às periferias existenciais, incluindo quem parece mais distante, mais indiferente. O Senhor procura a todos, quer que todos sintam o calor da sua misericórdia e do seu amor». E convida-nos a levar, sem medo, o anúncio missionário aos locais onde nos encontrarmos e às pessoas com quem convivermos: no bairro, no estudo, no desporto, nas saídas com os amigos, no voluntariado ou no emprego, é sempre bom e oportuno partilhar a alegria do Evangelho. É assim que o Senhor Se vai aproximando de todos; e pensou em vós, jovens, como seus instrumentos para irradiar luz e esperança, porque quer contar com a vossa coragem, frescor e entusiasmo” (CV 177).

  1. Qual o espaço que a juventude tem ocupado na Igreja, hoje? Outras interrogações pertinentes

Quando levamos em conta todos os documentos da Igreja que estimulam e valorizam a participação da juventude, todas as últimas JMJs, a recente priorização da Juventude pela Assembleia Eclesial e tantos outros bons propósitos, nos perguntamos: Eles ajudaram ou fizeram realmente a juventude ocupar o seu espaço dentro da Igreja e na sociedade? Sim e Não!

Há comunidades, paróquias, dioceses nas quais a juventude é protagonista e tem grande envolvimento na participação e nas tomadas de decisão. Elas – comunidades, paróquias, dioceses – entenderam o ensinamento de Puebla que afirma que os jovens devem sentir que são Igreja, experimentando-a como lugar de comunhão e participação. E ainda, que, aceitam suas críticas e os quer gradualmente responsáveis na sua construção e os enviam como testemunhas e missionários, especialmente à grande massa juvenil (DP 1184).

No entanto, há muitas comunidades, paróquias e dioceses parecidas com realidades da Europa, onde a participação é maioritariamente de adultos e idosos. Em certas realidades, e não são poucas, a juventude ainda está afastada e não tem vontade de participar porque “incomoda muito”, tamanha a falta de sensibilidade, de acolhida e vontade dos adultos de conviver com esta faixa etária. Muitos jovens não veem nenhum “atrativo” na Igreja. Também é verdade que não se preparam suficientemente pessoas para assessorarem a juventude. Esta assessoria faz muita falta e faz toda a diferença.

Algumas perguntas para ajudar na nossa reflexão: Quantos jovens há nos nossos conselhos de pastoral comunitário, paroquial e diocesano? Como cuidamos da formação da juventude? Qual o acompanhamento que se dá aos nossos crismandos e crismados? Por que a maioria abandona a Igreja? Qual a relação e o trabalho conjunto entre a PJ e a Catequese Crismal? Qual a importância que damos ao acompanhamento dos adolescentes em geral? Em que medida envolvemos a juventude em nossas ações missionárias? Qual o conhecimento que oferecemos sobre a Doutrina Social da Igreja, já que eles são tão sensíveis a esta temática? Quais os espaços são oferecidos ou conquistados pela juventude na Igreja? Como são acolhidos, acompanhados e orientados os Movimentos juvenis? Qual a ligação dos Movimentos juvenis com a Pastoral da Juventude e com a Pastoral de Conjunto? O que nos falta fazer para esta integração?

Ainda: Como é a formação nos nossos Seminários? Por que muitos padres jovens não querem trabalhar com a juventude? Por que há tão poucos padres, religiosas, religiosos, leigos e leigas especializando-se em pastoral juvenil? Por que os bispos não enviam de cada Diocese ao menos três ou quatro pessoas para se especializarem em Pastoral juvenil? Onde estão no Brasil e na América Latina os Centros especializados em Pastoral juvenil?

  1. A Igreja não será sinodal sem os jovens e as jovens

A Igreja sempre foi conduzida por um adulto, aliás, na maior parte do tempo e nos últimos séculos, por um idoso. Isto, porém, não tira a importância do quanto ela foi ajudada a mudar e avançar a partir da visão e audácia de muitos jovens e muitas jovens que a desafiaram: Paulo de Tarso, Francisco e Clara de Assis, Terezinha do Menino Jesus, Joana D’arc, Agostinho, Rosa de Lima, Carlos Lwanga, entre tantos outros e outras.

A Assembleia Eclesial aponta esta prioridade da Juventude justamente porque temos longo caminho a percorrer. As comunidades cristãs devem “criar” estes espaços para os adolescentes e jovens. Os adolescentes e jovens, quando perceberem que não têm este espaço, devem “conquistar”, “exigir” até que consigam. Quando é conquistado, tem ainda mais valor.

Jovens, adolescentes, adultos, crianças, idosos, vulneráveis, descartados, todos e todas fazem parte deste Povo de Deus a caminho.

O papa Francisco enviou aos Jovens uma belíssima mensagem em preparação para a 36ª Jornada Mundial da Juventude, a realizar-se em Lisboa, em 2023, baseado no texto bíblico de Atos dos Apóstolos 26, 16, quando Jesus diz a Paulo: “Levanta-te! Eu te constituo testemunha do que viste!”. Eis o que o Papa propõe aos jovens de hoje:

– Levanta-te e testemunha a tua experiência de cego que encontrou a luz, viu o bem e a beleza de Deus em si mesmo, nos outros e na comunhão da Igreja que vence toda a solidão.

– Levanta-te e testemunha o amor e o respeito que se podem estabelecer nas relações humanas, na vida familiar, no diálogo entre pais e filhos, entre jovens e idosos.

– Levanta-te e defende a justiça social, a verdade e a retidão, os direitos humanos, os perseguidos, os pobres e vulneráveis, aqueles que não têm voz na sociedade, os imigrantes.

– Levanta-te e testemunha o novo olhar que te faz ver a criação com olhos cheios de maravilha, te faz reconhecer a Terra como a nossa casa comum e te dá a coragem de defender a ecologia integral.

– Levanta-te e testemunha que as existências fracassadas podem ser reconstruídas, as pessoas já mortas no espírito podem ressuscitar, as pessoas escravizadas podem voltar a ser livres, os corações oprimidos pela tristeza podem reencontrar a esperança”.

– Levanta-te e testemunha com alegria que Cristo vive! Espalha a sua mensagem de amor e salvação entre os teus coetâneos, na escola, na universidade, no trabalho, no mundo digital, por todo o lado. (Mensagem do papa Francisco em preparação para a 36ª Jornada Mundial da Juventude)

Para que este caminho da Sinodalidade seja realmente autêntico, é fundamental a participação e a contribuição dos Jovens na missão da Igreja, especialmente trazendo o que eles têm de melhor: a provocação, a inquietação e a alegria.

Dom Luiz Fernando Lisboa, bispo de Cachoeiro – ES
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Para compreender e indignar-se com a violência que assola Cabo Delgado, no norte de Moçambique, onde está situada a Diocese de Pemba do bispo brasileiro dom Luiz Fernando https://observatoriodaevangelizacao.com/para-compreender-e-indignar-se-com-a-violencia-que-assola-cabo-delgado-no-norte-de-mocambique-onde-esta-situada-a-diocese-de-pemba-do-bispo-brasileiro-dom-luiz-fernando/ Fri, 28 Aug 2020 22:34:34 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=35440 [Leia mais...]]]> O POVO DE CABO DELGADO QUER A PAZ
Mãe contempla a destruição de seu lar.

Para conhecer o que acontece em Cabo Delgado, norte de Moçambique na África

A Província de Cabo Delgado está localizada no extremo nordeste de Moçambique. A sua capital é a cidade de Pemba, localizada cerca de 2.600 km ao norte de Maputo. A Província tem uma área de 82.626 Km2 e uma população de 2,3 milhões de habitantes. Está dividida em 17 Distritos e cinco municípios.

É nesta Província, uma das mais pobres do País, que desde outubro de 2017, enfrenta-se uma guerra que já deixou muitos mortos e milhares de deslocados.

Mapa de Moçambique

Contextualizando a guerra

Para iniciar este relato, remetemo-nos inicialmente, no dia 05 de outubro de 2017, à cidade de Mocímboa da Praia, onde aconteceu o primeiro ataque de grupos armados, até então desconhecidos na Província de Cabo Delgado. Em novembro desse mesmo ano, algumas mesquitas foram fechadas porque, inicialmente, suspeitava-se que os ataques haviam sido planejados nelas. No entanto, os motivos desta guerra e seus mandatários nunca foram suficientemente apresentados. Pela realidade que vivemos, pressupomos os motivos, mas se faz necessária uma explicação por parte do Estado. Depois desse primeiro ataque, a situação parece ter perdido o “controle”.

A região afetada pelos ataques compreende nove municípios ou distritos: Palma, Mocímboa da Praia, Nangade, Mueda, Muidumbe, Macomia, Meluco, Quissanga e a Ilha do Ibo. Essa área tem uma população de aproximadamente 600 mil pessoas. Todas essas localidades sofreram e sofrem com os ataques dos insurgentes ou terroristas. A população dessa região é formada por pessoas simples: pequenos agricultores, artesãos, na sua grande maioria sem nenhum envolvimento ideológico ou sem nenhum conflito religioso. É necessário esclarecer que não se trata de guerra tribal ou de grupos étnicos. 

O bispo da Diocese de Pemba, dom Luiz Fernando Lisboa, assegurou a presença de missionários e missionárias em todas as comunidades dessa região. Atualmente, a Diocese tem mantido padres e religiosas em todos esses distritos. Esses missionários e missionárias têm acompanhado de perto a situação de guerra e o drama vivido pelas comunidades.

Dom Luiz Fernando Lisboa, bispo brasileiro da Diocese de Pemba: “o mundo não tem ideia do que está a acontecer em Cabo Delgado”.

Os ataques ou ações terroristas foram acontecendo de forma gradativa. As estratégias se modificaram no decorrer do tempo. Inicialmente, usaram armas mais “leves” e atacavam com grupos menores. Quando os insurgentes chegam nas aldeias, atacam, na verdade, pessoas inocentes. As vítimas são os pobres que vivem de forma muito simples, em casas de taipa, cobertas de palha. Criamos inclusive uma estratégia: quando eles chegam, se houver tempo, alguém da comunidade bate o sino para dar sinal à população (nem sempre essa tática é eficaz e bem-sucedida). Nessa altura, cada família já sabe para onde fugir, sempre em direção ao mato. Eles queimam as casas e tudo o que tiver dentro. Inclusive, já aconteceu de algumas pessoas serem queimadas vivas ou mesmo decapitadas. No início dos ataques, essa ação acontecia sobretudo com catanas (facão muito comum nas atividades rurais).

Por aqui, as aldeias estão interligadas. Familiares e conhecidos estão presentes nos diversos distritos. Mesmo com poucos recursos, a comunicação acontece de maneira veloz. Dessa forma, quando acontece um ataque, as notícias se espalham em cada aldeia. Isso faz com que toda população viva de maneira temerosa, incidindo e modificando seus hábitos cotidianos. Por exemplo, os horários das celebrações e de funcionamento das escolas foram alterados. As pessoas se recolhem em casa bem cedo, muitas vezes, também, com medo de irem sozinhas trabalhar na roça/machamba. O cenário é assustador: todos vivem aterrorizados, sempre esperando onde e como será o próximo ataque.

Como toda guerra, as táticas dos ataques foram se modificando. Das aldeias, eles passaram a atacar automóveis, lotações e ônibus nas estradas. Se antes disso nosso medo se restringia apenas em permanecer nas aldeias, doravante esse medo se estende às viagens, dada a necessidade de tomarmos o transporte para nos locomover. Foram registrados vários ataques com muitas mortes e com automóveis queimados.

Ônibus atacado em Mocímboa da Praia, em janeiro de 2020.
(Foto: http://opais.sapo.mz/autocarro-arde-em-plena-via-publica)

Fomos observando, pelas táticas e pelos relatos, que o grupo dos insurgentes estava aumentando. Ouvimos falar de recrutamento de jovens através da oferta de dinheiro. Numa realidade de desemprego e de abandono, muitos tendiam a aceitar essa proposta.

Ressaltamos que até este momento não temos informações claras acerca de quem são os responsáveis, nem de que há uma ação do governo para controlar as ações terroristas. Em decorrência disso, percebemos que, de simples “catanas” (facões) ou até de um “pequeno exército”, a ação terrorista parece crescer e manusear armas mais pesadas e modernas. Basta dizer que, em um dos ataques ao Distrito de Mocímboa da Praia, os terroristas entraram por terra e pelo mar, com um forte arsenal bélico, e o mesmo aconteceu no Distrito de Quissanga.

Ataque em abril de 2020, em Quissanga, registro de grupo armado insurgente. Estes grupos atacam e ateiam fogo em casas, estabelecimentos, prédios públicos, carros, igrejas em diversas municípios e distritos de Cabo Delgado.
(Foto: https://www.publico.pt/2020/04/07/mundo/noticia/mocambique-grupos-armados-intensificam-ataques-cabo-delgado)

Os ataques aumentavam e circulavam informações de que o interesse do grupo era atacar as sedes distritais, sobretudo os prédios públicos. Assim, a cada dia aconteceu uma onda sucessiva de ataques a “prédios oficiais”. Muitas coisas foram destruídas e queimadas: fóruns, escolas, hospitais, bancos, casas, escritórios, sede administrativa. Infelizmente, ao povo restava o mato. Temos relatos de situações mais entristecedoras de famílias no mato, sem água e comida. Em todos os distritos, o abastecimento ficou comprometido, uma vez que fazia parte da estratégia dos insurgentes incendiar pequenas casas comerciais.

No final de 2019 e no primeiro semestre de 2020, alguns templos católicos foram violados e queimados. Mesmo assim, desejamos registrar que, pastoralmente, a Diocese de Pemba se faz presente na região Norte com uma equipe de 35 missionários – padres e religiosas moçambicanos, diversas congregações com missionários de dez países diferentes. Essas presenças asseguram a assistência religiosa e social a essas localidades.

Em nossas reuniões com os agentes de pastoral ou através das redes sociais sempre nos perguntamos: quem são estes malfeitores? O que desejam? Por que matam os inocentes? Chegamos a pensar que essa guerra tem um “rosto oculto” (um oculto explícito). Começamos a conversar sobre as “hipóteses” possíveis que configuram esse “rosto”.

Existe alguma identificação clara dos responsáveis e envolvidos nos conflitos?

As marcas da destruição deixada pelos grupos terroristas.

Temos algumas hipóteses para a explicação dessa guerra que já se prolonga por quase três anos. Alguns falam em cenários distintos para compreendermos este quadro. Por outro lado, a população se sente inquieta diante de certa “indiferença” do governo moçambicano em relação aos ataques. Há pouca cobertura jornalística dos meios de comunicação. Isso, numa região onde o governo tem uma das suas maiores bases políticas. Para além destes ataques, a região de Cabo Delgado enfrentou, neste mesmo tempo, outras calamidades. Entre elas, o Ciclone Kenneth e as fortes chuvas iniciadas em dezembro de 2019 que deixaram a região ilhada por quase cinco meses.

Mas qual organização terrorista que tem dado suporte econômico e bélico a essa guerra, cujo custo é sempre muito alto? Quem tem treinado os insurgentes com táticas militares? Na verdade, não dispomos de nenhuma palavra oficial capaz de responder a esses questionamentos. Supomos que seja a presença de grupos que defendem uma radicalização islâmica, incluindo o grupo Al-Shabab. Num determinado momento, a orientação era de não oficializarmos os ataques como sendo derivados de um viés religioso, até mesmo porque essa guerra, como todas outras, parece ser mais motivada por interesses econômicos do que religioso.

No ataque em Quissanga, alguns vídeos foram veiculados e, neles, os terroristas falam claramente dos objetivos religiosos e de seu desejo de implementar na região o estado islâmico. Essas filmagens eram registradas por falas e pelo hasteamento da bandeira desse movimento. Num mundo marcado pelas “fake news”, devemos checar e questionar algumas imagens que nos chegam pelas redes sociais, mas, no entanto, aquelas imagens nos deixaram bastante preocupados.

Outro ponto é que não nos parece muito evidente que haja uma ligação dessa guerra com as anteriores. Se caracterizarmos as “três guerras” enfrentadas por Moçambique, essa tem um rosto muito específico, pois parece visar mais a concentração de riqueza da região e o seu possível controle.

Há motivações de ordem religiosa ou econômica nesses conflitos?

Registro de templo católico queimado!

Do ponto de vista religioso, os últimos ataques trazem alguns elementos. Haverá muitas informações que só saberemos após a guerra. Será necessário fazer um registro mais preciso e ouvir as pessoas. Nesse momento, é impossível saber, pois muitas aldeias estão abandonas e em muitas estamos proibidos de entrar.

Algumas mortes que ocorreram estão sendo associadas a não adesão à proposta religiosa do estado islâmico. Logo que possível, deveremos esclarecer o ataque à comunidade de Xitaxi. Nesta comunidade, a 8 de abril de 2020, houve um massacre de 52 jovens. Afirma-se que estes jovens se recusaram aceitar a proposta dos terroristas, de entrarem em suas fileiras. Também aconteceu a violação e profanação de diversos templos católicos. No entanto, é preciso prudência para afirmar que os ataques têm como objetivo a implantação do estado islâmico nesta região.

Um outro aspecto muito claro para nós: a Província de Cabo Delgado é uma das mais ricas do país. Esta região é rica em gás natural. É a Província onde está a ser feito o maior investimento total em Moçambique, para a construção da “Cidade do Gás”, na Península de Afungi. Os recursos petrolíferos de Cabo Delgado são explorados por multinacionais, enquanto a população vive na pobreza, sem acesso à educação, aos cuidados da saúde e ao trabalho.

Dessa forma, podemos dizer que essa desigualdade econômica pode fomentar os pregadores do fundamentalismo islâmico, que viram aqui um terreno fértil para sua expansão ou até mesmo grupos locais que desejam garantir uma fatia. Fala-se de um controle da região em vista da riqueza de seu solo e oceano. Consequentemente, atacar as aldeias seria uma forma de despovoar a região para se ter um melhor “controle” dessas riquezas. Pode haver também, o interesse religioso, cuja missão seria a de implantar o estado islâmico. Mas essas são apenas hipóteses.

Direitos humanos mais ameaçados

Diante da destruição o fio tênue da esperança para recomeçar.

A Igreja Católica, por fidelidade ao Evangelho da vida e a práxis libertadora de Jesus, é chamada a defender os direitos humanos e, sobretudo, o direito dos pobres. A Doutrina Social da Igreja retoma e contribui para a formulação destes direitos pautados na Palavra de Deus. Logo, nossa missão é também defender os Direitos Humanos.

Não se trata aqui de tomar cada artigo detalhadamente. Citamos apenas o primeiro: “todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”. Vejam que esse artigo consiste justamente naquilo que nos tem sido tirado.

A Diocese de Pemba, com seus missionários e animadores, tem sofrido e chorado ao ver tantas mortes, injustiças com os pobres, sobretudo porque essa guerra já causou mais de mil mortes e mais de 200 mil pessoas foram deslocadas. Somam-se a esse quadro o número de pessoas torturadas, submetidas a castigos cruéis, detidas e presas. Preocupa-nos também o número de pessoas raptadas, violando assim a Declaração dos Direitos Humanos supracitada.

Consequências imediatas desses acontecimentos

Mãe e filho contemplam o horror da destruição de seu lar.

Temos vivido muitas consequências, entre elas:

  • aldeias abandonadas;
  • a fome que tem aumentado, pois a terra não está sendo cultivada;
  • a perda dos poucos recursos (casas, roupas, alimentos etc.);
  • desestruturação das famílias, com pessoas espalhadas por todos os lados;
  • a vida comunitária está desestruturada: ninguém sabe onde estão os catequistas, os animadores, os ministros de muitas comunidades;
  • o ano escolar foi comprometido;
  • o medo que assusta as pessoas e a desconfiança com a chegada de qualquer pessoa desconhecida na aldeia.

Agentes de pastoral

Pensando na segurança e em garantir a presença das missionárias e missionários, Dom Luiz Fernando trouxe para sede da Diocese os agentes de pastoral. Em junho, os missionários da região norte publicaram uma mensagem às comunidades:

“Como muito de vós, a maioria dos missionários tivemos que abandonar os nossos lugares de missão. Temos esperança de em breve estarmos juntos de novo. Esta simples carta é para dizer a todos, que nós Missionários e Missionárias: rezamos diariamente por todas as pessoas e comunidades! Sentimos muitas saudades de estar convosco!

Desejamos que logo tudo isso passe para voltarmos a servir a todos, como sempre fizemos! Nossa oração neste tempo tem sempre duas intenções: pelo fim desta doença que se alastrou por todo o mundo e pela PAZ em CABO DELGADO!

Rezem também nestas intenções. Que termine logo os ataques e todos possam voltar aos seus trabalhos e celebrações”.

Medidas em âmbito nacional e internacional para superar esses conflitos

Rastro de destruição e aldeia abandonada e população deslocada em busca de paz.

Em nossa opinião, é mais do que necessário tornar essa guerra conhecida no cenário internacional para que pessoas e organizações internacionais tenham acesso às informações e às situações do país. Um outro passo é a coragem de denunciar, numa linguagem eclesial, como exercício da profecia.

Do ponto de vista político/militar, alguns falam de uma cooperação entre países aliados que estão agindo nessa região. No entanto, temos pouca informação das ações que são realizadas por parte da Força de Segurança. Em alguns momentos, ouvimos que o exército combateu os terroristas, no entanto, em outra parte da região, somos pegos de surpresa com notícias de novos ataques.

Sobre reportagens desvirtuadas e tendenciosas

Essa guerra tem gerado um desgaste emocional muito grande, tanto no nosso bispo, quanto nos missionários e moradores situados na região norte e em toda a Diocese de Pemba. Nossas atividades cotidianas se voltam para ações mais urgentes:

  • socorrer as pessoas que fogem da guerra;
  • amparar e consolar familiares que perderam seus familiares;
  • prover alimentos;
  • organizar locais de acolhimento.

Nesse sentido, é importante reconhecer o trabalho efetivo da Cáritas Diocesana na colaboração com nossas atividades. Além disso, também devemos reconhecer a ação de muitas organizações internacionais: a Organização das Nações Unidas (ONU), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), entre outras.

Dom Luiz Fernando e crianças moçambicanas.

Tal atitude serve para dizer que nosso foco se volta pontualmente para essa situação. No entanto, constantemente temos sido bombardeados com reportagens totalmente desvirtuadas, mentirosas, com notícias tendenciosas atacando, sobretudo, a pessoa de Dom Luiz Fernando. O Bispo de Pemba tem sido vítima de calúnias e de reportagens duras e mentirosas. No início, vários setores da diocese procuravam responder. Depois, tornamos os artigos conhecidos e deixamos livres para as manifestações. Um desses artigos que caluniava Dom Luiz estimulou a iniciativa de diversas organizações, em Maputo, capital do País, para a criação de uma campanha de apoio com assinaturas digitais. Em cinco dias, esta petição contava com milhares de assinaturas.

A solidariedade internacional

Sabemos que a dignidade do Continente africano não desperta o interesse de muitos países, tampouco da grande mídia. Por isso, uma das pautas que devemos assumir em nossas ações pastorais e nos meios de comunicação que dispomos consiste em divulgar tudo o que pudermos sobre África, especificamente a situação de Cabo Delgado, em Moçambique. Toda ação solidária – seja o menor gesto, seja uma ação organizada político-institucional – nesse momento é de suma importância. Desejamos, com urgência, a Paz para Cabo Delgado!

Esperamos que as pessoas voltem para suas casas, aldeias e comunidades, que nossos missionários possam retornar ao trabalho de evangelização num ambiente seguro, respeitando e valorizando as singularidades de nosso povo africano. Neste momento de fragilidade e insegurança do povo, em que os missionários estão afastados da missão por medida de segurança, alguma palavra ou ação que venha de qualquer organização, eclesial ou social, é um gesto evangélico. Toda ação solidária demonstra a nossa humanidade, todo gesto de partilha mostra o Evangelho sendo vivido na prática, encarnado na experiência do povo.

A solidariedade eclesial e a proximidade do papa Francisco

Papa Francisco e Dom Luiz Fernando

Nesse clima de guerra e de Covid-19, as atividades pastorais então na dinâmica do “novo normal”. É um tempo de tristeza, de famílias separadas, inseguras ou enlutadas, de comunidades feridas, amedrontadas e destruídas… Neste momento, a solidariedade, as palavras de consolo e ânimo são importantes para continuarmos nossa caminhada. Elas chegam por diversas “portas” e vem de vários lugares.

Entre esses gestos de solidariedade, destacamos a do papa Francisco. Esse reconhecimento do Papa é importante para nós porque confirma que não estamos sós nessa árdua missão. Na recitação do Ângelus do Domingo da Páscoa, dia 12 de abril de 2020, Francisco mencionou a guerra de Cabo Delgado. Passado cinco meses, por ocasião de sua visita à Moçambique na cidade de Maputo, mais uma vez repete sua preocupação. Mais adiante, dom Luiz escreve pessoalmente ao papa Francisco relatando o que está acontecendo. No dia 19 de agosto de 2020, às 11h29, dom Luiz relata:

Para minha surpresa e alegria, recebi um telefonema de Sua Santidade, o papa Francisco, que me confortou muito. Ele disse que está bem próximo do Bispo e de todo povo de Cabo Delgado e acompanha a situação vivida na nossa Província com muita preocupação e que tem rezado por nós. O Papa disse que está conosco e nos encorajou: adelante!, que significa: avante! coragem!..”.

Na imprensa, muitas vezes maldosa e caluniosa, houve até quem duvidasse da veracidade do telefonema. Para estes mentecaptos, a resposta veio em apenas quatro dias, quando, na recitação do Ângelus do dia 23 de agosto de 2020, o Papa Francisco disse:

“Gostaria de reiterar a minha proximidade com o povo de Cabo Delgado, no norte de Moçambique, que está a sofrer em consequência do terrorismo internacional. Faço-o em memória viva da minha visita àquele querido país há cerca de um ano”.

Portanto, nesse momento de sofrimento, em que a fragilidade humana aflora, qualquer palavra ou gesto tem um grande significado. Gostaríamos de terminar dizendo que esse relato se resume numa palavra tão simples, pequena, mas no momento ainda muito longe de ser uma prática:

Queremos a PAZ! O povo de Cabo Delgado quer a PAZ! O povo quer retornar às suas comunidades e viver em PAZ! Os missionários querem voltar às paróquias e viverem em PAZ!

Obs.: Estas informações foram elaboradas em nome da Diocese de Pemba para que o mundo conheça a situação de Cabo Delgado e mostre solidariedade e cumplicidade fraterna com este povo que atravessa esse longo túnel de sofrimento e dor.

Pe. Edegard Silva Júnior

Pe. Edegard Silva Júnior é Missionário Saletino brasileiro. Atualmente trabalha na Missão de Muidumbe na Diocese de Pemba, Cabo Delgado, Moçambique.

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