Dom Geovane Luís da Silva – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com Fri, 08 Nov 2019 19:12:13 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.4 https://i0.wp.com/observatoriodaevangelizacao.com/wp-content/uploads/2024/04/cropped-logo.png?fit=32%2C32&ssl=1 Dom Geovane Luís da Silva – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com 32 32 232225030 A santidade à luz da Exortação apostólica Gaudete et exsultate do papa Francisco https://observatoriodaevangelizacao.com/a-santidade-a-luz-da-exortacao-apostolica-gaudete-et-exsultate-do-papa-francisco/ Fri, 08 Nov 2019 19:12:13 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=33041 [Leia mais...]]]> A santidade à luz da Exortação apostólica Gaudete et exsultate

Vaticano II: marco referencial

O magistério do papa Francisco está ancorado aos princípios teológicos e pastorais estabelecidos pelo Concílio Vaticano II. Seu intento vai além do mero desejo de uma reforma estrutural da Igreja. É preciso algo mais: propor a todos um caminho de renovação interior, que seja capaz de dar novo significado às estruturas eclesiais vigentes.

Assim, a Exortação apostólica Gaudete et exsultate – Sobre a chamada à santidade no mundo atual, do papa Francisco, pode ser lida à luz do quinto capítulo, da Constituição dogmática Lumen gentium, intitulado ‘Vocação universal à santidade na Igreja’. A leitura atenta da exortação papal, particularmente os artigos que compõem o seu primeiro capítulo – ‘A chamada à santidade’ – nos remetem ao pensamento dos padres conciliares.

Ao dirigir-se ao mundo em sua exortação, o Papa se apresentou como legítimo e fiel intérprete do espírito conciliar, um hermeneuta do Concílio Vaticano II, na busca incansável do diálogo entre a Igreja e os tempos modernos. Gaudete et exsultate expressa claramente a índole do programa evangelizador e reformador do papa Francisco, pois não haverá reforma estrutural na Igreja se antes não houver mudança de mentalidade ou conversão.

A conversão envolve todos os níveis da existência e se reflete na ação pastoral e evangelizadora da Igreja. Assim se expressou o Papa noutra ocasião: “Espero que todas as comunidades se esforcem por atuar os meios necessários para avançar no caminho de uma conversão pastoral e missionária, que não pode deixar as coisas como estão” (EG 25). É a partir deste horizonte missionário que o Papa reflete sobre a urgência da santidade de vida, fonte de fecundidade para a ação pastoral e evangelizadora da Igreja, frente aos desafios sociais, culturais, econômicos e religiosos do mundo atual (GE 2).

O convite à alegria

A conclusão das bem-aventuranças – “Alegrai-vos e exultai” (Mt 5,1-12) é a porta de acesso ao documento, estruturado em cinco capítulos. O convite à alegria assemelha-se a um refrão que perpassa a exortação inteira. Destarte, o papa Francisco faz ressoar entre nós LG 41 e o seu ensinamento recente, proposto na Exortação apostólica Evangelii gaudium (EG 1).

Diz o Papa: “Não tenhas medo da santidade. Não te tirarás forças, nem vida, nem alegria” (GE 32). Continua Francisco: “O santo é capaz de viver com alegria e sentido de humor. Sem perder o realismo, ilumina os outros com um espírito positivo e rico de esperança” (GE 122s). A alegria genuinamente cristã é fruto do Espírito Santo que produz nossa união com o Amado e nos dá a certeza da sua presença.

Um convite a todos

O convite à alegria é um apelo à conversão e à santidade de vida, e por isso se estende a todos. Bem recordou o Vaticano II em LG 40: “O Senhor Jesus pregou a todos a santidade de vida”. Este princípio universal do chamado à santidade de vida reaparece na atual exortação quando o Papa, citando LG 11, diz: “todos os fiéis, seja qual for a sua condição ou estado, são chamados pelo Senhor à perfeição do Pai, cada um por seu caminho”. E ainda insiste Francisco: “Para ser santo, não é necessário ser bispo, sacerdote, religiosa ou religioso. Muitas vezes somos tentados a pensar que a santidade esteja reservada apenas àqueles que têm possibilidade de se afastar das ocupações comuns, para dedicar muito tempo à oração. Não é assim. Todos somos chamados a ser santos” (GE 14).

Em que consiste a santidade?

Abertura à transcendência

Para fazer ressoar hoje a chamada à santidade, o papa Francisco o faz, encarnando-a no contexto atual, com seus riscos e desafios. O conceito de santidade delineado pelo atual Sucessor de Pedro estabelece a ruptura com uma compreensão alienante e angélica da ‘vida em Cristo’, tão presente nos dias de hoje em diversos seguimentos da Igreja. Para Francisco vida santa não se confunde com um caminho retilíneo de acertos e êxitos. A santidade mais do que perfeição alcançada uma vez por todas, é vida que se abre em construção, inquietude que nos lança para frente rumo à meta: “A santidade é feita de abertura habitual à transcendência, que se expressa na oração e na adoração” (GE 146).

Na exortação, o termo santidade traduz o encontro da fragilidade humana com a força da graça, e por isso ser santo é tornar-se plenamente humano (GE 34), é ser fiel ao nosso próprio ‘ser’ (GE 32) original e querido por Deus.

Viver no Espírito

Nesta abertura do ser à transcendência, o Espírito derrama a santidade (GE 6) e ajuda o ser humano a interpretar o seu próprio caminho, fazendo com que ele traga à luz o melhor de si mesmo (1 Cor 12,7) e se liberte da obsessão, e até mesmo daquele peso de viver ou “imitar algo que não foi pensado para ele” (GE 11).

A santidade é fruto do Espírito (GE 15). Ele purifica, ilumina (GE 24), encoraja (GE 9.129), envia em missão (GE 26) ajuda a discernir os caminhos de santidade que o Senhor nos propõe (GE 23-24;150). Ele é força que nos impulsiona (GE 18) para que não caminhemos apenas dentro dos confins seguros, mas nos deixemos surpreender por Deus (GE 133). O dinamismo do Espírito Santo modela nossa existência sobre a vida de Jesus ressuscitado (GE 20.21.139) e enche de alegria a vida dos discípulos de Cristo (GE 124).

Viver em Cristo

No horizonte da fé cristã, recorda o Papa, não se pode falar de santidade sem uma referência explícita ao evento Cristo. Uma vida santa possui espessura cristológica e pascal: “No fundo, a santidade consiste em associar-se de uma maneira única e pessoal à morte e ressurreição do Senhor. Mas pode também envolver a reprodução na própria existência de diferentes aspectos da vida terrena de Jesus: a vida oculta, a vida comunitária, a proximidade aos últimos, a pobreza e outras manifestações da sua doação por amor (GE 20-21)”. Esta identificação com Cristo e os seus desígnios requer o nosso empenho e compromisso na construção do Reino, com Ele, este Reino de amor, justiça e paz para todos (GE 25.28).

Viver em fraternidade

Contrariando a forte tendência individualista que permeia até mesmo os espaços eclesiais, o Papa reafirma a dimensão comunitária da fé e da salvação, e o faz citando LG 9: “aprouve a Deus salvar e santificar os homens, não individualmente, excluída qualquer ligação entre eles, mas constituindo-os em povo que O conhecesse na verdade e O servisse santamente”. A salvação divina se dirige a um povo. “Por isso, ninguém se salva sozinho, mas Deus atrai-nos tendo em conta a complexa rede de relações interpessoais que se estabelecem na comunidade humana: Deus quis entrar em uma dinâmica popular, na dinâmica de um povo” (GE 6). Fomos criados para a comunhão, somos salvos e também nos santificamos na comunhão, pois a “santificação é um caminho comunitário, que se deve fazer dois a dois” (GE 141). Aqui se esclarece o princípio teológico delineado pelo papa Francisco: “A santidade é o rosto mais belo da Igreja” (GE 9). Ela aparece e atua no mundo enquanto “povo congregado na unidade do Pai e do Filho e do Espírito Santo” (LG 4).

A Constituição dogmática Lumen gentium (40) e a exortação apostólica Gaudete et exsultate (118), são concordes em afirmar que a santidade que Deus dá à sua Igreja, vem através da humilhação do seu Filho, mediante a qual Ele derrama sobre ela o Espírito Santo.

O rosto da santidade

Ao dizer que a santidade é o rosto mais belo da Igreja, o papa Francisco recorda o testemunho e a vida de uma multidão de homens e mulheres que nos estimula a continuar a corrida rumo à meta (GE 3). No fundo, o Papa quer afirmar que o rosto da Igreja é Cristo mesmo, de quem a multidão inumerável é testemunha. “E entre tais testemunhas, podem estar a nossa própria mãe, uma avó ou outras pessoas próximas de nós” (GE 3).

O rosto de Cristo, qual um mosaico, torna-se visível pela ação do Espírito na vida de cada cristão. Podemos então nos perguntar:

Quem são estes homens e mulheres dignos de veneração?

São aqueles que refletem a presença de Deus no mundo, pois já chegaram à sua presença e mantém conosco laços de amor e comunhão (GE 4.7).

Que lugar eles ocupam na história da salvação?

Cada santo é uma missão, um projeto do Pai que visa refletir e encarnar um aspecto do evangelho (GE 19). Cada Santo é uma mensagem que o Espírito extrai da riqueza de Jesus Cristo e dá ao seu povo (GE 21). Eles refletem algo de Jesus Cristo para o mundo de hoje (GE 22-23).

Qual o significado e legitimidade do culto a eles na Igreja?

A vida doada, simples e humilde destes homens e mulheres manifesta uma imitação exemplar de Cristo, e é digna da admiração dos fiéis (GE 5) “Os santos surpreendem, desinstalam, porque a sua vida nos chama a sair da mediocridade tranquila e anestesiadora” (GE 138).

Proclamar a santidade da Igreja 

Disto decorre a importância dos processos de beatificação e canonização na Igreja hoje. Os postuladores e membros dos tribunais instituídos nas diversas Igrejas particulares, presentes no mundo inteiro, são servidores do Povo de Deus. A eles se aplicam também as palavras do Papa: “a Igreja não precisa de muitos burocratas e funcionários, mas de missionários apaixonados, devorados pelo entusiasmo de comunicar a verdadeira vida” (GE 138).

Os postuladores, revestidos do espírito de serviço, são também missionários que anunciam em nossas comunidades a beleza da santidade de vida. Mesmo quando o trabalho de um postulador ou tribunal pareça algo muito burocrático, restrito ou privado, faz-se necessário banhá-lo com o entusiasmo missionário. É preciso comunicar a verdadeira vida que se manifesta na história pessoal daqueles (as), cuja investigação em vistas da beatificação e canonização, se realiza em nossos tribunais diocesanos.

Na Igreja, o postulador é o hermeneuta daquela palavra que o Senhor quer dizer ao seu povo através de um santo (GE 22). Daí a norma proposta pelo Papa, pedra miliar a nos conduzir ao longo do serviço que os tribunais prestam ao povo de Deus: “não convém deter-se nos detalhes, porque nisso pode haver erros e quedas. Nem tudo o que um santo diz é plenamente fiel ao Evangelho, nem tudo o que faz é autentico ou perfeito. O que devemos contemplar é o conjunto da sua vida, o seu caminho inteiro de santificação, aquela figura que reflete algo de Jesus Cristo e que sobressai quando se consegue compor o sentido da totalidade da sua pessoa” (GE 22). Neste arco existencial e totalizante se inserem os “sinais de heroicidade na prática das virtudes, o sacrifício da vida no martírio e também os casos em que se verificou um oferecimento da própria vida pelos outros, mantido até à morte” (GE 5).

Chamados à santidade também

O contato quotidiano com a vida dos irmãos e irmãs que formam o elenco dos bem-aventurados se transforma naquele forte e suave convite à santidade, mas cada um por seu caminho. O Papa nos fala também acerca da atividade que santifica. Assim ele deseja nos recordar que nos santificamos no exercício responsável e generoso da nossa missão (GE 27), mas só isto não basta; é preciso cultivar os momentos de quietude, solidão e silêncio para o diálogo com Deus. A vida de oração é requisito indispensável para a vivência em profundidade das nossas tarefas. (GE 29). Na compreensão do Papa, sem oração não há possibilidade de vida santa: “Não acredito em santidade sem oração, embora não se trate necessariamente de longos períodos ou de sentimentos intensos” (GE 147).

Dentre os meios propostos pela Igreja para a nossa santificação pessoal, o Papa coloca em evidencia a Palavra e a Eucaristia. A Palavra tem a força de transformar a nossa vida e atinge sua plena eficácia na Eucaristia, presença real daquele que é a Palavra viva (GE 156-157; LG 42).

Precisamos de um espírito de santidade que impregne tanto a nossa solidão como o serviço que prestamos, tanto a intimidade como a tarefa evangelizadora que realizamos juntos aos tribunais instituídos em nossas dioceses, para que cada instante seja expressão de amor doado sob olhar do Senhor. Desta forma, todos os momentos serão degraus no nosso caminho de santificação (GE 31).

Portanto, “deixa que a graça do teu Batismo frutifique em um caminho de santidade. Deixa que tudo esteja aberto a Deus e, para isso, opta por ele, escolhe Deus sem cessar. Não desanimes, porque tens a força do Espirito Santo para tornar possível a santidade e, no fundo, esta é o fruto do Espírito Santo na tua vida [Gl. 5,22-23]” (GE 15).

Dom Geovane Luís da Silva
Bispo Auxiliar da Arquidiocese de Belo Horizonte, bispo referencial da Região episcopal Nossa Senhora da Piedade – RENSP

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Evangelização e Liturgia https://observatoriodaevangelizacao.com/evangelizacao-e-liturgia/ Wed, 18 Sep 2019 10:00:00 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=31642 [Leia mais...]]]> Segundo o papa Francisco, em sua Exortação Apostólica Evangelii Gaudiumdo ponto de vista da evangelização, não servem as propostas místicas desprovidas de um vigoroso compromisso social e missionário, nem os discursos e ações sociais e pastorais sem uma espiritualidade que transforme o coração. Essas propostas parciais e desagregadoras alcançam só pequenos grupos e não têm força de ampla penetração, porque mutilam o Evangelho” (EG 262). Por isso, dom Geovane inicia seu artigo recordando o Concílio Vaticano II que diz “a liturgia é o coração pulsante da Igreja, porém não esgota toda a sua ação evangelizadora (SC 9)” Ela situa-se no centro da sua atividade missionária qual fonte que rejuvenesce sem cessar a comunidade de fé… Mas “‘Missão, evangelização, pastoreio, liturgia, serviço’ são realidades inseparáveis que expressam o mistério da presença de Cristo agindo no mundo através do seu corpo eclesial. Não podemos descurar nenhum destes aspectos que expressam a sacramentalidade da Igreja… Priorizar um destes elementos constitutivos da Igreja esquecendo-se dos demais, comprometeria seriamente a sua ação pastoral na sociedade.

A relação entre a ação evangelizadora e a ação litúrgica da Igreja deve sempre ser refletida, aprofundada e avaliada por nós cristãos. Neste sentido, vale a pena ler o artigo a seguir do bispo auxiliar da Arquidiocese de Belo Horizonte, dom Geovane Luís da Silva. Confira:

Evangelização e liturgia

Por dom Geovane Luís da Silva

A liturgia é o coração pulsante da Igreja, porém não esgota toda a sua ação evangelizadora (SC 9). Ela não é um elemento acidental ou decorativo no âmbito da missão eclesial; muito pelo contrário, situa-se no centro da sua atividade missionária qual fonte que rejuvenesce sem cessar a comunidade de fé. Parece que ainda hoje não levamos a sério este princípio teológico e pastoral estabelecido pelo Concílio Vaticano II na Constituição Sobre a Sagrada Liturgia (SC 9.10).

‘Missão, evangelização, pastoreio, liturgia, serviço’ são realidades inseparáveis que expressam o mistério da presença de Cristo agindo no mundo através do seu corpo eclesial. Não podemos descurar nenhum destes aspectos que expressam a sacramentalidade da Igreja, pois ela deve anunciar integralmente o evangelho (missão/evangelização), acompanhar e cuidar (pastoreio) daqueles que abraçaram a fé em Cristo e com eles celebrar (liturgia) e viver (serviço) a fé traduzida no amor e na solidariedade para com os mais pobres e sofredores.

Priorizar um destes elementos constitutivos da Igreja esquecendo-se dos demais, seria muito prejudicial aos fiéis e comprometeria seriamente a sua ação pastoral na sociedade, pois estaríamos apresentando um retrato mutilado ou um mosaico incompleto do rosto de Cristo que resplandece na Igreja através da missão, da evangelização, do pastoreio, da liturgia e do serviço.

Esta questão foi retomada recentemente no magistério do papa Francisco, bem ao início do seu pontificado, quando se dirigiu aos fiéis cristãos através da Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, a fim de os convidar para uma nova etapa evangelizadora da Igreja”[1].

1. Celebrar cada passo em frente na evangelização

Evangelii Gaudium em seu artigo 24 condensa o pensamento teológico e pastoral do Papa Francisco sobre a liturgia da Igreja e suas implicações na ação missionária e evangelizadora. No referido artigo aparece o retrato ou mosaico do rosto de Cristo que deve resplandecer através da ação da Igreja no mundo.

A Comunidade Eclesial enquanto sacramento de Cristo deve “primeirear”, envolver-se, acompanhar, frutificar e festejar. No extenso artigo 24 da Exortação Apostólica aparece a intrínseca relação existente entre os elementos que constituem a essência da Igreja: missão, evangelização, pastoreio, liturgia e serviço. Ao final do presente artigo o Papa se refere à dimensão festiva da fé e o faz em estreita conexão com os demais elementos citados anteriormente. Aqui se revela a visão integral do Papa Francisco que não admite descurar nenhum dos aspectos constitutivos da Igreja. Sua visão integral e unitária nos ajuda a valorizar cada ação no âmbito eclesial e a fugir de uma práxis pastoral reducionista.

Analisemos, ainda que brevemente, as últimas frases do artigo 24, onde o papa Francisco fala da relação vital entre evangelização, liturgia e serviço:

“a comunidade evangelizadora jubilosa sabe sempre festejar: celebra e festeja cada pequena vitória, cada passo em frente na Evangelização. No meio desta exigência diária de fazer avançar o bem, a evangelização jubilosa torna-se beleza na liturgia. A Igreja evangeliza e se evangeliza com a beleza da liturgia, que é também celebração da atividade evangelizadora e fonte dum renovado impulso a se dar”.

Aparecem aqui termos teológicos e profundamente significativos para uma justa hermenêutica da ação litúrgica da Igreja.

O Papa nos diz que ‘a comunidade evangelizadora sabe sempre festejar: celebra e festeja.’. A expressão ‘comunidade evangelizadora’ evoca a realidade da missão, pois seria impossível a comunidade evangelizar sem se deixar cativar primeiro pelo anúncio do evangelho. Uma vez evangelizados, evangelizamos.

A obra evangelizadora da Igreja assume também uma forma ritual e celebrativa. A Igreja celebra com júbilo a salvação e faz festa na presença do Senhor. Celebrar e festejar são categorias que evidenciam a dimensão antropológica/humana, teológica/memorial, comunitária e ritual da fé cristã. Ninguém celebra sozinho ou faz festa para si mesmo, pois “a vida se enfraquece no isolamento e se fortalece na doação e na comunhão. Isto é, definitivamente, a missão”. [2] A comunidade que celebra a fé descobre o sentido da sua existência no mundo e se renova no empenho missionário. Isto se dá graças à presença de Cristo na liturgia da Igreja (SC 7), pois é dele que provém toda força e dinamismo missionário.

Qual o motivo da festa? Aqui o papa Francisco deixa claro: “celebra e festeja cada pequena vitória, cada passo em frente na Evangelização”[3]. Deste modo evidencia-se que as pequenas vitórias são fruto e expressão da vitória suprema de Cristo “que venceu o mundo e sua permanente conflitualidade, estabelecendo a paz por seu sangue derramado na cruz”.[4] A liturgia da Igreja é profissão de fé no sentido pascal e de união à Páscoa de Cristo que se dá nas pequenas vitórias. Deste modo “Jesus nos deixa a Eucaristia como memória cotidiana da Igreja, que nos introduz cada vez mais na Páscoa (Lc 22,19). A alegria evangelizadora refulge sempre sobre o horizonte da memória agradecida”[5].

A dimensão estética da liturgia também é evidenciada pelo Papa: “No meio desta exigência diária de fazer avançar o bem, a evangelização jubilosa torna-se beleza na liturgia”.

O quotidiano é o lugar primeiro do encontro com Deus e nele se insere a liturgia da Igreja, como espaço privilegiado para a contemplação da beleza divina. Evidentemente trata-se daquela beleza suprema, o rosto transfigurado e glorioso de Cristo, que dá fundamento aos gestos e palavras da Igreja e não se confunde jamais com o excesso de paramentos, o rubricismo ou o cerimonialismo vazio tão presente nos dias atuais. O excesso de paramentos é sempre expressão de mau gosto; não remetem à beleza suprema, e o rubricismo é muitas vezes sinal de que a liturgia não é expressão autêntica do sentimento interior que brota do coração de quem celebra, quer presidindo ou exercendo outro ministério na assembleia litúrgica.

Para não deixar margens a dúvidas sobre a verdadeira beleza que deve resplandecer na liturgia e a partir da sua celebração, o Papa afirma na sua Exortação Apostólica: “todo cuidado exibicionista da liturgia é expressão evidente de um obscuro mundanismo espiritual que se manifesta hoje em muitas atitudes, mas com a mesma pretensão de dominar o espaço eclesial e transformá-lo numa peça de museu ou numa possessão de poucos” [6].

Há uma relação intrínseca entre evangelização, liturgia e vida. A beleza do rosto de Cristo deve permear toda a nossa existência e se irradiar nestes momentos, aparentemente distintos, mas intimamente relacionados. O anúncio do Evangelho converge naturalmente para a sua celebração na liturgia e tem implicações diretas na vida de quem o acolhe com abertura de coração. “Toda a evangelização está fundada sobre esta Palavra escutada, meditada, vivida, celebrada e testemunhada”.[7]

O evangelho proclamado é celebrado ritualmente, mediante símbolos, gestos, palavras e cânticos; ou seja, o evangelho anunciado se torna sacramento, sinal visível da ternura de Deus agindo no mundo. Na liturgia da Igreja nada acontece à margem da Palavra de Deus (SC 24). Nas palavras do Papa ressoa assim: “A Palavra de Deus ouvida e celebrada, sobretudo na Eucaristia, alimenta e reforça interiormente os cristãos e torna-os capazes de um autêntico testemunho evangélico da vida diária. A Palavra proclamada, viva e eficaz prepara a recepção do Sacramento e, no Sacramento, essa Palavra alcança a sua máxima eficácia”.[8]

A liturgia bem celebrada é fonte de vida para a comunidade evangelizadora, pois a “Igreja evangeliza e se evangeliza com a beleza da liturgia”. Eis aí um constante desafio para todos nós: evangelizar e deixar-se evangelizar![9] Celebrar e deixar-se tocar pelo Ressuscitado na liturgia e na vida! Certamente o cuidado com a liturgia exigirá de todos nós um empenho constante para que o evangelho adquira uma real inserção em nossa vida e nas necessidades concretas da nossa história.[10]

Para explicitar a força transformadora da liturgia, ou melhor, a sua eficácia o Papa recorre à metáfora da ‘fonte’[11]. Segundo ele a “liturgia é também celebração da atividade evangelizadora e fonte de um renovado impulso a se dar”.

Emerge aqui a dimensão espiritual[12], existencial e social da ação litúrgica da Igreja já expressa na Constituição Conciliar do Vaticano II Sobre a Sagrada Liturgia[13]. Em consonância com o pensamento conciliar o papa Francisco afirma que a liturgia é fonte de um renovado impulso para a nossa autodoação ao próximo, pois nela, pela ação do Espírito Santo, se atualiza a autodoação de Cristo ao Pai para a salvação da humanidade. A ação litúrgica é a realidade plena de tudo aquilo que ela mesma significa e faz memória: a morte e ressurreição de Jesus. Por isso ela produz, na vida de quem a celebra com fé, um renovado impulso e desejo de doação levando-a “a tocar a carne sofredora de Cristo no povo”[14]. A entrega de nós mesmos aos irmãos e irmãs mais sofredores é o critério decisivo para comprovar a verdade da liturgia que celebramos em nossas comunidades, pois uma vida autenticamente litúrgica expressa nossa abertura ao anúncio da Palavra e transforma-se em dom para os outros.

Delineia-se no pensamento do papa Francisco uma concepção litúrgica radicada na Escritura, particularmente na tradição profética que atinge sua maturidade nos gestos e palavras proféticos de Jesus. Os profetas do Antigo Testamento, bem como Jesus Cristo, não se opunham ao culto, muito pelo contrário, defendiam-no e não admitiam a banalização ou profanação dos ritos sagrados que expressavam a comunhão do ser humano com Deus.

Na concepção dos profetas liturgia sem misericórdia é culto vazio rejeitado por Deus; e para o papa Francisco, liturgia sem amor ao próximo é a mais refinada expressão do mundanismo espiritual que invade sutilmente o espaço sagrado e distancia cada vez mais a comunidade celebrante do mistério pascal de Cristo, desobrigando-a da vivência ou práxis da misericórdia na relação com o próximo. Disto decorre a seguinte afirmação: a liturgia é sinal inequívoco da acolhida ao Evangelho e vida que escoa no rio da misericórdia para com o próximo.

2. Concepção unitária da ação eclesial

Ao longo da sua Exortação Apostólica o papa Francisco nos oferece algumas indicações pastorais que visam superar os desvios criados por uma concepção reducionista da ação eclesial no mundo.

A Igreja é um reflexo do Ressuscitado agindo no mundo. Ele é o missionário, o evangelizador, o pastor, o liturgo e o servidor por excelência. O seu jeito de ser, o seu modo de agir, os seus gestos e palavras são normativos para a Igreja, sacramento de Cristo.

Quando desvinculamos a Igreja do mistério de Cristo missionário, evangelizador, pastor, liturgo e servidor, corremos o risco de apresentá-la de um modo disforme ou desfigurada e cometemos vários equívocos em nossa práxis pastoral.

2.1 Entusiasmo missionário e evangelizador sem cuidado pastoral

Uma comunidade que prioriza a missão e a evangelização em detrimento do cuidado pastoral quotidiano corre o risco de anunciar o Evangelho aos afastados e não dar o devido acompanhamento a eles quando acolhidos na Igreja. Em contrapartida, uma comunidade que se preocupa somente com aqueles que participam e celebram a fé, mas não se coloca em atitude de saída, está condenada a uma espécie de atrofiamento espiritual e paralisia pastoral. Voltada para si mesma, abre mão da atividade missionária e se contenta apenas com os poucos que conseguiu, às custas de muito sacrifício, manter no seu interior.

A missão/evangelização destina-se sobretudo aos afastados e “está essencialmente relacionada com a proclamação do Evangelho àqueles que não conhecem Jesus Cristo ou que sempre O recusaram”[15]. A pastoral ordinária, por sua vez, destina-se aos que já pertencem à comunidade de fé, àqueles que conservam uma fé católica embora não participem frequentemente no culto. Tal ação visa “incendiar os corações dos fiéis que frequentam regularmente a comunidade, reunindo-se no dia do Senhor, para se alimentarem da sua Palavra e do Pão de vida eterna[16]”.

O olhar da Igreja deve se estender a todos. Ela é chamada a acolher e abraçar os afastados, mas a se comprometer também com aqueles que já frequentam a vida comunitária.

2.2 Celebração da fé sem compromisso social

O esmero litúrgico e sacramental sem compromisso sócio-transformador parece ser a tônica do momento. Também isto é mundanismo espiritual. Pior ainda quando, além de disso, a comunidade opta deliberadamente pela sacramentalização[17] desordenada sem a devida catequese mistagógica.

Este é um sintoma da amnésia teológica de muitos. Esqueceram-se ou desconhecem o princípio norteador estabelecido pelo Vaticano II nesta matéria (SC 9), onde se afirma que a ação da Igreja não se reduz à liturgia. O Concílio já nos alertou contra a ameaça constante do panliturgismo (tudo é liturgia).

Noutros casos confundimos o cuidado pastoral, com relação aos sacramentos, com uma alfândega[18] e caímos no absurdo da seletividade e da burocracia fechando a porta dos sacramentos para a maioria das pessoas e abrindo-a para um suposto grupo de eleitos que preenchem os requisitos da instituição ou correspondem aos caprichos pessoais daqueles que organizam e conduzem a Comunidade Eclesial. Deste modo a Igreja se perde num emaranhado de obsessões e procedimentos pastorais e começamos a “agir como controladores da graça e não como facilitadores[19]”.

O reverso desta atitude, ou seja, a promoção social sem o anúncio do Evangelho e o devido acompanhamento espiritual aos pobres é a pior forma de discriminação para com eles[20]. Agindo assim transformaríamos a Igreja numa ONG qualquer destituída da força da Palavra de Deus.

Na compreensão do papa Francisco

Hoje e sempre os pobres são destinatários privilegiados do Evangelho, e a evangelização dirigida a eles é sinal do Reino que Jesus veio trazer. Há que afirmar sem rodeios que existe um vínculo indissolúvel entre nossa fé e os pobres[21].

A imensa maioria dos pobres possui uma especial abertura à fé; tem necessidade de Deus e não podemos deixar de lhe oferecer a sua amizade, a sua bênção, a sua Palavra, a celebração dos Sacramentos e a proposta de um caminho de crescimento e amadurecimento na fé. A opção preferencial pelos pobres deve traduzir-se, principalmente, numa solicitude religiosa privilegiada e prioritária[22]

Deste modo podemos afirmar que se faz necessário e urgente rever nossas opções no amplo horizonte da missão evangelizadora da Igreja. No dizer do Papa, “do ponto de vista da evangelização, não servem as propostas místicas desprovidas de um vigoroso compromisso social e missionário, nem os discursos e ações sociais e pastorais sem uma espiritualidade que transforme o coração. Essas propostas parciais e desagregadoras alcançam só pequenos grupos e não têm força de ampla penetração, porque mutilam o Evangelho” [23].

Notas:

  • [1] Cf. EG 1
  • [2] Cf. EG 8.10.
  • [3] EG 24
  • [4] EG 229
  • [5] EG 13
  • [6] Cf. EG 95 nos remete ao ensinamento de Bento XVI na Sacramentum Caritatis 23 quando se trata do ministro que age na pessoa de Cristo.
  • [7] EG 174
  • [8] EG 174
  • [9] EG 174
  • [10] EG 95
  • [11] Esta compreensão aparece na SC 10, onde os padres conciliares afirmam: “Todavia, a liturgia é o cume para o qual tende a ação da Igreja e, ao mesmo tempo, é a fonte donde emana toda a sua força”.
  • [12]A liturgia “é a primeira e necessária fonte, da qual os fiéis haurem o espírito verdadeiramente cristão” (SC 14).
  • [13] Esta referência aos aspectos sociais da liturgia e de suas implicações na vida prática aparece nos seguintes artigos da Constituição Conciliar: “Aos que crêem, porém, sempre deve pregar-lhes a fé e […], estimulá-los para toda obra de caridade” (SC 9); “A renovação da Aliança do Senhor com os homens na Eucaristia, solicita e estimula os fiéis para a caridade imperiosa de Cristo” (SC 10). No segundo capítulo, quando se fala da eucaristia usa-se a expressão ‘vínculo de caridade’ (cf. SC 47). A celebração dos sacramentos “prepara os fiéis do melhor modo possível para receberem frutuosamente a graça, cultuarem devidamente a Deus e praticarem a caridade” (SC 59). “A penitência do tempo quaresmal não seja somente interna e individual, mas também externa e social” (SC 110).
  • [14] EG 24. 270
  • [15] EG 14
  • [16] EG 14
  • [17] EG 63
  • [18] EG 47
  • [19] EG 47
  • [20] EG 200
  • [21] EG 48
  • [22] EG 200
  • [23] EG 262

Dom Geovane Luís da Silva
Bispo auxiliar da Arquidiocese de BH

Fonte:

www.arquidiocesebh.org.br

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