Documento de Aparecida – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com Thu, 25 Apr 2024 18:34:25 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.4 https://i0.wp.com/observatoriodaevangelizacao.com/wp-content/uploads/2024/04/cropped-logo.png?fit=32%2C32&ssl=1 Documento de Aparecida – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com 32 32 232225030 A serpente emplumada não levantou voo: discernimentos depois da Primeira Assembleia Eclesial. Uma análise de Paulo Suess. https://observatoriodaevangelizacao.com/a-serpente-emplumada-nao-levantou-voo-discernimentos-depois-da-primeira-assembleia-eclesial-com-a-palavra-o-teologo-paulo-suess/ https://observatoriodaevangelizacao.com/a-serpente-emplumada-nao-levantou-voo-discernimentos-depois-da-primeira-assembleia-eclesial-com-a-palavra-o-teologo-paulo-suess/#comments Wed, 09 Nov 2022 22:52:47 +0000 https://atomic-temporary-74025290.wpcomstaging.com/?p=46423 [Leia mais...]]]> Uma Assembleia Eclesial, que foi organizada exatamente para corrigir o modelo de uma conferência meramente episcopal e para melhor representar os pontos de vista e as soluções possíveis do conjunto do povo de Deus, privada do seu direito de escrever um Documento Final, onde deveriam constar os avanços necessários depois de Aparecida, contribui para o esquecimento da própria Assembleia Eclesial.  A ‘Mensagem ao Povo da América Latina e Caribe’ qualifica, apressadamente, a Assembleia como ‘uma verdadeira experiência de sinodalidade’, como se tivesse sanado e não parcialmente reproduzido os obstáculos à sinodalidade, ao clericalismo, à autorreferencialidade e ao autoritarismo“. Leia na íntegra a análise do prof. dr. Paulo Suess, referência na área da missiologia. 

Para levar a Igreja Católica do “Sínodo para a Amazônia” (2019) à “XVI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos” (2024), o voo fez uma escala de emergência na “Primeira Assembleia Eclesial da América Latina e Caribe”, no México D.F. (2022). Nessa Assembleia, realizada de maneira híbrida, virtual, em dimensão continental, e presencial, na cidade do México, de 21 a 28 de novembro de 2021, a serpente emplumada, da mitologia mesoamericana, não acompanhou mais ou até impediu a continuidade do voo. A rica experiência da primeira evangelização do México e as discussões do “Sínodo para a Amazônia” poderiam servir para continuar os aprendizados de uma nova evangelização pós-colonial (cf. RICARD, 1968, p. 408-421; SUESS, 2013, p. 78-88; RASCHIETTI, 2022, p. 435-569). Por desconhecimento ou por opção, a Primeira Assembleia Eclesial não se serviu de nenhum dos antigos livros sagrados para tirar algumas lições do passado indígena. O paradigma da inculturação permitiria fazer sinapses com o contexto mítico, histórico e sociocultural do outro, hoje. Do saber dos povos indígenas, que desde a conquista souberam, com armas materiais e espirituais, defender a vida de suas comunidades, também os habitantes da “casa comum”, hoje ameaçada, muito podem aprender, em defesa da “causa comum”, para vida da humanidade.

Desde tempos imemoriais, na cultura mesoamericana da língua dos náhuas, uma serpente com penas de quetzal foi venerada como divindade. No período pós-clássico (900 a 1519 d.C.), o culto à serpente emplumada se concentrou em Cholula, perto de Puebla, onde a divindade foi chamada “Quetzalcóatl”, herói civilizador ou rei-sacerdote, pássaro e serpente, representando, simbolicamente, céu e terra (cf. SOUSTELLE, p. 9 et seq.; KRICKEBERG, p. 40-68). Segundo a época, seus múltiplos significados mudaram e até hoje inspiram crenças de origem e horizontes da civilização mesoamericana (cf. BONFIL BATALLA, p. 217-246). Essas origens, guardadas nas mitologias, fazem parte de conexões genéticas e epigenéticas de uma longa história que nos alcança e condiciona nas tentativas de uma evangelização contemporânea inculturada. Esquecimentos ou rupturas explícitas com esse passado não protegem das ciladas do neocolonialismo nem dos seus traumas embutidos na realidade sociocultural. Ao contrário: o esquecimento das origens é a afirmação da orfandade e facilita o neocolonialismo pela hegemonia de supostas conquistas contemporâneas e seus dogmas, os quais se sobrepõem às colonizações antigas e aos seus traumas.

Na conquista espanhola, em alguns momentos, Fernando Cortés (1485-1547), o conquistador do México, foi considerado o Quetzalcóatl redivivo ou seu enviado, enquanto, em outros, alguns elementos da tradição oral de Quetzalcóatl foram amalgamados com tradições cristãs (LAFAYE, p. 225-300). Em diferentes épocas, a invocação de Quetzalcóatl garantiu origem, legitimidade e identidade (cf. PAZ, p. 22-26). A proposta da Assembleia Eclesial não menciona essas narrativas de origem (cf. LEÓN-PORTILLA, p. 293-336). Por não se referir às raízes profundas de nenhum dos povos deste continente, distanciou-se deles e silenciou suas cicatrizes do passado. Doenças de raiz só se curam a partir da raiz, e não pelas folhas. Até hoje, ciladas do pós-colonialismo rodeiam evangelizadores desatentos.

1. O projeto “pente-fino”

O propósito dessa “Primeira Assembleia Eclesial” lembra, como antigamente, alunos de cursos superiores que não alcançavam a média prevista e eram obrigados a submeter-se a “exames de segunda época” (LEI Nº 1.029, 30.12.1949). A “Primeira Assembleia Eclesial da América Latina e Caribe” tornou-se, de certa maneira, a “segunda época” ou o “pente-fino” da V Conferência Episcopal de Aparecida (2007). Foi realizada para retomar lacunas, promessas e sugestões de Aparecida que ainda não encontraram a devida atenção. A Igreja, “chamada a repensar profundamente e a relançar com fidelidade e audácia sua missão nas novas circunstâncias latino-americanas e mundiais” (DAp 11), ainda não fez o seu dever de casa, delineado na Conferência Episcopal de Aparecida. Por isso, o papa Francisco queria envolver uma base eclesial mais ampla na realização das Conclusões de Aparecida e propôs, em vez de uma VI Conferência Episcopal, realizar uma Primeira Assembleia Eclesial.

Diante da fragilidade dos resultados da Primeira Assembleia Eclesial, é oportuno fazer uma advertência: embora as conferências latino-americanas tenham sido episcopais, não se realizaram desarticuladas do conjunto do povo de Deus. A maioria dos delegados dessas conferências veio de realidades sofridas em suas dioceses. Em seu conjunto, não se tratava de elites, e, por causa disso, não servem como exemplos de um clericalismo que precisa ser erradicado. Contudo, mesmo as decisões pastorais corretas precisam da participação do povo de Deus ao qual se referem. Na “Síntese Narrativa”, que sistematizou a escuta das vozes do povo de Deus, antes da realização da “Assembleia Eclesial”, o anseio da “participação” é mais de duzentas vezes mencionado. Por conseguinte, pode-se presumir dessa assembleia uma forte vontade de maior e real participação do povo ao qual a Igreja se propõe servir.

As metas da Assembleia do México foram:

  • detectar compromissos não cumpridos, desde a Conferência de Aparecida
  • ampliar a participação do povo de Deus na definição das propostas e
  • implicitamente, dar alguns passos adiante na descolonização do projeto missionário da Igreja Católica.

Mas essa Assembleia Eclesial não deveria ser apenas o pente-fino para descobrir lacunas, renovar promessas ou retomar compromissos de Aparecida, esquecidos no decorrer dos 14 anos. Francisco propôs também uma inovação metodológica: transformar a tradição das “conferências episcopais” em “assembleias do povo de Deus”, nas quais todos os batizados seriam representados como interlocutores na preparação, na realização e no encaminhamento das decisões do respectivo evento. E se alguém dissesse: “as conferências episcopais são uma conquista já ancorada na tradição latino-americana”, teria razão. As Conferências episcopais produziram sempre seu próprio Documento Final, em contraste com os Sínodos universais ou especiais, cujos documentos finais foram escritos como “Exortação Apostólica” pelo Papa. O “Sínodo para a Amazônia” é o último exemplo disso. Seu “Documento Final”, na realidade, foi um compêndio de propostas para o Papa, que fez delas as suas escolhas na Exortação Apostólica Pós-Sinodal Querida Amazônia.

Equipe de coordenação do CELAM com o papa Francisco.
2. Sem “Documento Final

Tradições são históricas. Oito anos antes da Primeira Assembleia Eclesial (2019), na Evangelii Gaudium (2013), o papa Francisco já relativizou o recurso a tradições obsoletas: “A pastoral em chave missionária exige o abandono deste cômodo critério pastoral: ‘fez-se sempre assim’”. Ao propor a substituição de uma “VI Conferência Episcopal” por uma “Primeira Assembleia Eclesial”, Francisco certamente pensou no significado de uma maior participação do povo nessa Assembleia. Mas esse avanço teve limitantes e preço:

a) a inexperiência dos organizadores de trabalhar com o grande número de pessoas que participaram daquela Assembleia – mais de mil –, nas duas modalidades de presença física e virtual;

b) o despreparo teológico de grande parte dos próprios participantes, chamados de assembleístas que, embora “infalível ‘in credendo‘” (EG 119) e “independentemente da própria função na Igreja e do grau de instrução da sua fé, é um sujeito ativo de evangelização” (EG 120), impediu decisões de questões complexas, como a ministerialidade, mediante votações parlamentares no prazo de uma semana;

c) entre as três opções possíveis, fazer (1) um Documento Final com um número reduzido de assembleístas votantes, (2) um Documento Final, votado por todos os assembleístas, com poucas páginas e com temas em torno dos quais facilmente se constrói um amplo consenso e (3) não fazer nenhum Documento Final, encarregando “um grupo de elite” (cf. EG 113, 239), uma espécie de “comissão teológica”, para escrever uma síntese seletiva do debate.

Essa foi a opção do “Conselho Episcopal Latino-Americano” (CELAM), que decidiu, sem votação dos assembleístas, que não haveria Documento Final no evento do México, mas um texto a ser escrito por assessores. Após um ano, dia 31 de outubro de 2022, o CELAM apresentou, em Roma, esse texto como “sistematização do que foi expresso no diálogo” dos assembleístas: “Para uma Igreja sinodal em saída para as periferias – Reflexões e propostas pastorais da Primeira Assembleia Eclesial da América Latina e do Caribe” (cf. CELAM, Apresentação). Não sendo Documento Final votado pela Assembleia nem Exortação Apostólica Pós-Sinodal escrito pelo Papa, embora sua publicação seja autorizada por Roma, o texto terá pouca autoridade e ficou sem o “cheiro das ovelhas” (EG 24), e, ao menos nesse item, aquém do Documento de Aparecida e do Documento Final do Sínodo para a Amazônia.

Uma Assembleia Eclesial, que foi organizada exatamente para corrigir o modelo de uma conferência meramente episcopal e para melhor representar os pontos de vista e as soluções possíveis do conjunto do povo de Deus, privar do seu direito de escrever um Documento Final, onde deveriam constar os avanços necessários depois de Aparecida, contribui para o esquecimento da própria Assembleia Eclesial. A “Mensagem ao Povo da América Latina e Caribe” qualifica, apressadamente, a Assembleia como “uma verdadeira experiência de sinodalidade”, como se tivesse sanado e não parcialmente reproduzido os obstáculos à sinodalidade, ao clericalismo, à autorreferencialidade e ao autoritarismo.

Por que tanta ênfase nesse “Documento Final”? As Conferências Episcopais que precederam a “Primeira Assembleia Eclesial” iniciaram seus trabalhos com a constatação da soberania da assembleia, e com a consulta aos participantes sobre a possibilidade e a qualidade de um Documento Final. Uma minoria, mais distante da realidade pastoral votou, geralmente, contra. Mas foram exatamente as Conclusões das respectivas Conferências Episcopais que representaram o magistério latino-americano, pois permitiram prolongar e aprofundar os eventos em processos frutíferos nas comunidades.

3. “Desafios pastorais” de sempre

No fim da Assembleia Eclesial percebeu-se que o CELAM substituiu a metodologia das “conferências episcopais” pela “metodologia dos sínodos”, conduzindo a Assembleia para substituir o “Documento Final” por “12 Desafios Pastorais” que foram os seguintes:

1. Reconhecer e valorizar o papel dos jovens na comunidade eclesial e na sociedade como agentes de transformação.

2. Acompanhar as vítimas das injustiças sociais e eclesiais com processos de reconhecimento e reparação.

3. Promover a participação ativa das mulheres em ministérios, órgãos governamentais, discernimento e tomada de decisões eclesiais.

4. Promover e defender a dignidade da vida e da pessoa humana desde a sua concepção até o seu fim natural.

5. Aumentar a formação da sinodalidade para erradicar o clericalismo.

6. Promover a participação dos leigos em espaços de transformação cultural, política, social e eclesial.

7. Ouvir o grito dos pobres, excluídos e descartados.

8. Reformar os itinerários formativos dos seminários, incluindo temas como ecologia integral, povos nativos, inculturação e interculturalidade e pensamento social da Igreja.

9. Renovar, à luz da Palavra de Deus e do Vaticano II, nosso conceito e experiência da Igreja do Povo de Deus, em comunhão com a riqueza de sua ministerialidade, que evita o clericalismo e favorece a conversão pastoral.

10. Reafirmar e dar prioridade a uma ecologia integral em nossas comunidades a partir dos quatro sonhos da Querida Amazônia.

11. Promover um encontro pessoal com Jesus Cristo encarnado na realidade do continente.

12. Acompanhar os povos nativos e afrodescendentes na defesa da vida, da terra e das culturas. [1]

O conjunto desses 12 desafios mostra basicamente desafios sociais contemporâneos já lamentados em outros textos. Foram excluídos, desses “12 desafios pastorais”, cobranças pastorais incisivas, apresentadas no “Documento Final do Sínodo para a Amazônia”, redigido e publicado dois anos antes, em Roma, e meio ano mais tarde, no final do “IV Encontro da Igreja Católica na Amazônia Legal”, (SANTARÉM II, 2022).

4. Conversão pastoral na experiência pascal

Em sua “Mensagem ao Povo da América Latina e Caribe”, a Assembleia Eclesial, de 2021, resgatou a “conversão pastoral” de Aparecida, onde já estava enfocada como “graça da conversão permanente” (DAp 383),

  • que “desperta a capacidade de submeter tudo ao serviço da instauração do Reino da vida” (DAp 366);
  • que vai “além de uma pastoral de mera conservação para uma pastoral decididamente missionária” (DAp 370);
  • que deve “atender às exigências do mundo de hoje” (DAp 371);
  • e na qual “os leigos devem participar do discernimento, da tomada de decisões, do planejamento e da execução” (DAp 371). A “Assembleia Eclesial” de 2021, convocada como “Assembleia do povo de Deus”, deve ser avaliada a partir da proposta dessa efetiva participação.

Sobretudo, quanto a esse último imperativo de Aparecida que propõe uma real assunção dos leigos na realização das pautas eclesiais e da inclusão de sua palavra nos discernimentos, nas decisões, no planejamento e na execução dos planos pastorais, a “Mensagem da Assembleia Eclesial” assumiu lamentações anteriores, como a “conversão missionária e sinodal” (MdAE): “Dói o grito de quem sofre por causa do clericalismo e do autoritarismo nas relações, o que leva à exclusão dos leigos, especialmente das mulheres nas instâncias de discernimento e decisão sobre a missão da Igreja, constituindo um grande obstáculo à sinodalidade” (MdAE). Essa frase da Mensagem parece corajosa, mesmo seu conteúdo já estando presente dois anos antes no Documento Final do Sínodo para a Amazônia (DFSA 99 et seq.). Faltam propostas para superar a situação lamentada. Quem vai remover a pedra? O que esperamos?

Consultou-se na preparação e durante essa Assembleia Eclesial o maior número de batizados. Já faz tempo que sabemos onde os sapatos pastorais apertam os pés dos missionários. Propostas concretas foram represadas há séculos. Ser católico, na América Latina, deixou de ser obrigatório. O catolicismo, no mundo de hoje, não é mais um fenômeno culturalmente óbvio. A separação entre religião e cultura caminhou rápido. Não adianta esperar um milagre nas trincheiras do tradicionalismo, do autoritarismo e do clericalismo. 

Ao assistir esse desajuste, quem não se lembraria do conto “Diante da lei”, do escritor tcheco Franz Kafka, que faz parte do seu romance O processo. O cenário entre o camponês e o guarda é o interior de uma Igreja. “Diante da Lei”, imaginada como uma casa fortificada, um camponês pede licença para entrar. Logo é barrado por um guarda que lhe diz que não pode autorizar sua entrada. “O homem do campo pergunta se poderá entrar mais tarde. – ‘É possível’ – diz o guarda. – ‘Mas não agora!’. […] O homem do campo não esperava tantas dificuldades. A Lei havia de ser acessível a toda a gente.”

Negar a Lei ao pobre significa negar-lhe a vida. O “agora não”, no interior da Igreja, muitas vezes significa chegar tarde para curar feridas abertas e perder um kairós. Fecharam-se portas por excesso de cuidado, perderam-se anos de graça e entregaram-se as ovelhas ao fundamentalismo de lobos. Às vezes, na Igreja, utilizamos o conceito “processo” para indicar a necessidade de um tempo prolongado para resolver uma determinada questão e nos esquecemos que esse processo, há muito tempo, já está em andamento. Na Amazônia lutou-se, na esfera civil, contra esses lobos que, com a licença dos Estados nacionais, invadiram a região; na esfera eclesial, permitiu-se que vastas regiões, por causa de um certo fundamentalismo na questão dos ministérios, ficassem praticamente desatendidas.

A “experiência eclesial interna” da Assembleia Eclesial, segundo sua Mensagem, foi “alegre”. Permanecem silenciadas as raízes das dores da história profunda, dos traumas dos sujeitos dessa Assembleia e dos destinatários dessa Mensagem, que, em apenas três páginas, cinco vezes invoca a alegria. A palavra “cruz” não aparece nenhuma vez. Não há experiência eclesial alegre sem experiência pascal e penitencial. A penitência mínima de um pedido de perdão não haveria de começar, no século XX, pelos abusos de menores no interior das Igrejas, mas a partir da conivência com as barbaridades e as políticas de assimilação toleradas ou praticadas desde o começo da chamada “conquista espiritual”. 

O caminho sinodal, no entanto, a Mensagem (MdAE) descreve corretamente, como sendo “um espaço significativo de encontro e abertura para a transformação das estruturas eclesiais e sociais”. Esse espaço pode permitir “a renovação do impulso missionário e a proximidade com os mais pobres e excluídos”. Para tal propósito haveria de ser um espaço de encontro e diálogo entre “penitência” pelo passado e “promessa” de uma nova presença eclesial no futuro. Os sinais do Reino de Deus, nesse espaço de conversão pastoral, brotam de múltiplas experiências pascais, históricas e contemporâneas. Os discípulos missionários do seu Reino, desde seu batismo, são marcados com o sinal da cruz. Não podemos desvincular a alegria da ressurreição do sofrimento na cruz. A conversão pastoral da Igreja só tem credibilidade se leva em conta e assume a experiência da cruz dos povos latino-americanos e caribenhos, à qual foram submetidos pelos Estados e pelas próprias Igrejas. Um ato penitencial é o primeiro ato que caracteriza uma verdadeira conversão sinodal e pastoral. O Documento de Aparecida menciona o Reino 60 vezes, e a “cruz”, 17 vezes. O México não assumiu essa dívida deixada por Aparecida. A Mensagem do México não fala da cruz. A articulação da alegria como sinal do Reino com a experiência pascal da Igreja permanece tarefa além da Assembleia Eclesial do México.

Cada reorientação pastoral para com os povos indígenas, cada comemoração e celebração no âmbito da Igreja deve-se iniciar com um pedido de perdão, como o papa Francisco humildemente mostrou em sua “peregrinação penitencial” ao Canadá (24-30/07/2022). Depois deve-se lembrar a contribuição indígena para uma humanidade mais fraterna, que saiba amar a criação e o Criador, e por fim, em alguns momentos de graça, falaremos da defesa dos povos indígenas protagonizada pela Igreja e a doação de vida dos seus mártires. 

5. Novos caminhos de escuta e ação

Os “novos caminhos” nos inserem em uma longa caminhada desde o Vaticano II (1962-65), Medellín (1968), Puebla (1979), Santo Domingo (1992) até Aparecida (2007). A III Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano de Puebla (1979), em sua “Mensagem aos Povos da América Latina”, já incluiu em seu pedido de perdão o que valeu para Aparecida (2007): “Reconhecemos que ainda estamos longe de viver tudo o que pregamos” (PUEBLA, Mensagem, n. 2). Os processos pastorais e os propósitos eclesiais são envolvidos em esquecimentos, travas estruturais e mentalidades, que nem sempre acompanham a evolução histórica. Na Evangelii Gaudium, o papa Francisco convida todos “a serem ousados e criativos nesta tarefa de repensar os objetivos, as estruturas, o estilo e os métodos evangelizadores das respectivas comunidades” (EG 33) e os propósitos de Aparecida.

Segundo a “Mensagem ao Povo da América Latina e Caribe” da Assembleia do México (MdAE) de 2022, a tarefa de “repensar e relançar” as propostas de Aparecida, “nas novas circunstâncias latino-americanas e caribenhas”, exige “novos caminhos missionários” de escuta, discernimento, decisão e ação transformadora nas periferias geográficas e existenciais, mas também nas estruturas e doutrinas conscientes de sua historicidade, nos centros eclesiais. São exatamente essas estruturas e doutrinas que, muitas vezes, estorvam a reorientação da “Igreja em saída”. Uma das inspirações para essa nova contextualização e consciência histórica que ocorreu através do evento do México, foi delineada pelo papa Francisco em sua Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, seis anos depois de Aparecida e oito anos antes de México.

Os quatro imperativos para uma pastoral em chave missionária, que constam dessa Exortação, já foram preparados pelo Documento Final da Conferência de Aparecida (2007). Francisco, o então cardeal Bergoglio e arcebispo de Buenos Aires, era presidente da comissão de redação do texto conclusivo de Aparecida. Lembrar essa narrativa de Aparecida e transpor os conteúdos da Evangelii Gaudium à ação pastoral pós-México faz parte da correta leitura da tradição da Igreja, sempre acordada pela memória perigosa do Evangelho.

Aparecida e México, com suas temáticas abrangentes, já presentes nas “Conclusões de Puebla” [2], são ensaios para a Igreja universal na XVI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos “Por uma Igreja sinodal: comunhão, participação e missão”, que será realizada em Roma, em duas etapas, de 4 a 29 de outubro de 2023 e em outubro de 2024. O Documento de Trabalho para a Etapa Continental: “Alarga o espaço da tua tenda” (DEC) dessa XVI Assembleia Geral foi publicado dia 27 de outubro 2022 pelo Secretaria Geral do Sínodo. Trata-se de um Documento que termina a primeira etapa com a síntese bastante realista com as vozes do povo de Deus, recolhidas em reuniões, convocações e diálogos dos continentes. Em sua metodologia, esse DEC já mostra aprendizados sinodais recíprocos entre Igreja universal e particular. Seu texto será o “quadro de referência” para o trabalho da segunda etapa, a “etapa continental”, do Sínodo 2021/2024.

Cada evento eclesial tem como parâmetro o evento anterior e a sua capacidade de relançar, com novas luzes, as propostas anteriores. A Evangelii Gaudium propõe quatro diretrizes, não só para relançar as propostas de Aparecida para América Latina e Caribe, mas também para superar a estagnação e a polarização da Igreja urbi et orbi:

(1) Escuta ampla e diálogo participativo. “Ouvir a todos” (EG 31), porque a escuta faz parte de um “processo participativo” que promove “uma comunhão dinâmica, aberta, missionária” (EG 31) e uma experiência dialogal da sinodalidade (cf. EG 246). A evangelização faz parte de um diálogo, no qual todos os batizados são mestres e alunos (cf. EG 119). A “conversão sinodal” é um pressuposto, o qual a metodologia da Assembleia Eclesial não conseguiu facilitar. Seu “horizonte de comunhão e participação”, na busca de “novos caminhos eclesiais, sobretudo, na ministerialidade e sacramentalidade da Igreja” (DFSA, 86), permanece ainda um longo caminho a percorrer.

(2) Não ao tradicionalismo. Para que desta escuta de todos possa brotar uma nova ação e conversão, é preciso abandonar o cômodo critério pastoral do “fez-se sempre assim” (EG 33). O tradicionalismo é a porta fechada contra inovações possíveis e necessárias. Do questionamento desse tradicionalismo, e não da tradição como tal que é uma asa da nossa existência histórica, depende a possibilidade de tornar o cristianismo, com o seu projeto, atual, urgente e contemporâneo.

(3) Encarnação como saída ao encontro do outro. A nova ação exige uma nova contextualização sociocultural no mundo de hoje: sair “de si próprio para o irmão”, que é a “absoluta prioridade” (EG 179) da vida cristã, é a condição para uma nova leitura e prática da encarnação. No outro “está o prolongamento permanente da Encarnação para cada um de nós” (EG 179).

(4) Concentração no essencial. A complexidade social e o pluralismo cultural exigem concentrar-nos “no essencial, no que é mais belo, mais importante, mais atraente e, ao mesmo tempo, mais necessário” (EG 35). “As elaborações conceituais hão de favorecer o contato com a realidade que pretendem explicar, e não nos afastar dela” (EG 194).

As três metas, previamente anunciadas para a Assembleia do México continuam como deveres de casa:

  • lembrar compromissos não cumpridos desde Aparecida, e, por que não dizer, desde Puebla
  • promover a participação ampla do povo de Deus na definição das propostas
  • pôr em prática a nova configuração do projeto missionário pós-colonial.

Essas três metas receberam um reforço importante pelos quatro imperativos da Evangelii Gaudium: a escuta ampla e diálogo participativo, a distinção clara entre tradição e tradicionalismo, encarnação no universo do outro, e a concentração no essencial, no anúncio da Boa Nova.

6. Praedicate Evangelium

As intenções das metas da Assembleia Eclesial e dos imperativos da Evangelii Gaudium apontam para a razão de ser da Igreja, o anúncio do Evangelho com palavras, sinais e obras.

Esse anúncio exige hoje um novo estilo de vida que permita, por meio de uma nova proximidade da Igreja, viver a sua relevância em todos os ambientes. Antes de sair para qualquer reunião, conferência, assembleia ou congresso, antes de preparar qualquer texto, discurso ou catequese, antes de defender uma determinada teologia, devemos perguntar-nos sobre sua relevância para o anúncio da Boa Nova, levando em conta duas condições: a contextualização sempre nova e permanente desse anúncio e a consciência histórica para a hermenêutica correta do Evangelho, sem timidez ou medo de errar.

Na Constituição Apostólica Praedicate Evangelium (19/03/2022), o papa Francisco resume a mensagem central da Evangelii Gaudium para a Cúria Romana e seu serviço à Igreja no mundo: “A Igreja cumpre o seu mandato sobretudo quando testemunha, com palavras e obras, a misericórdia que ela mesma recebeu gratuitamente” (PE 1). O próprio Jesus deu aos seus discípulos o testemunho concreto dessa misericórdia, no gesto do lava-pés. Com “obras e gestos, a comunidade missionária entra na vida diária dos outros, encurta as distâncias, abaixa-se […], tocando a carne sofredora de Cristo no povo” (EG 24).

Como qualquer conversão e reforma eclesial, assim também “a reforma da Cúria Romana se insere no contexto da missionariedade da Igreja” (PE 3), que é um contexto de escuta e diálogo, de gratidão, perdão e paciência. O discípulo missionário “cuida do trigo e não perde a paz por causa do joio. […] A Igreja evangeliza e se evangeliza” (EG 24). Por fidelidade a Jesus Cristo e por causa de sua consciência histórica a sua conversão é permanente e sua reforma perene (cf. EG 26). A Praedicate Evangelium, a “serviço da instauração do Reino da vida” (DAp 366; MdAE), vale para todos os setores da Igreja, não só para a Cúria Romana, sendo, por isso, de profunda relevância nesse contexto de mudanças históricas, às quais a Assembleia Eclesial do México queria responder, e que gera polarizações entre “cúpula” e “base”, entre povo de Deus e pastores, que por vezes têm diferentes percepções da realidade. O anúncio da Boa Nova tem duas asas, a contextualização e a consciência histórica, ambas a serviço da verdade e de uma ação transformadora na Igreja.

6.1. Contextualização

A tarefa de situar o anúncio da Boa Nova em contextos concretos é um processo complexo, lento e plural que visa “encurtar as distâncias” (EG 24) geográficas, socioculturais e pastorais dos interlocutores. Encurtar as distâncias exige,

  • no plano organizativo e geográfico, “proceder a uma salutar descentralização” (EG 16)
  • no plano cultural, assumir a “lógica da encarnação (EG 117; 179) e os “desafios da inculturação (EG 68-70)
  • no plano pastoral, substituir a pastoral de visita por uma pastoral de presença e dar um passo além da “escuta recíproca”, em direção a uma participação do povo de Deus nas decisões que lhe dizem respeito. “Devemos dar ao nosso caminhar o ritmo salutar da proximidade, com um olhar respeitoso e cheio de compaixão” (EG 169).
6.2. Consciência histórica

Assembleias, sínodos e concílios nos ensinam a conviver com “uma realidade dinâmica” (FT 211) e a aceitar os condicionamentos históricos da verdade. Dogmas e estruturas da Igreja respondem a questionamentos de um determinado tempo histórico, que hoje possam ter perdidos a sua pertinência. A Igreja “tem necessidade de crescer na sua interpretação da Palavra revelada e na sua compreensão da verdade” (EG 40). A expressão dessa verdade nas doutrinas, nos ministérios e ritos pode ser multiforme (cf. EG 41), e resultar em discussões produtivas entre setores diferentes. Sínodos, assembleias eclesiais e concílios tomam suas decisões com maiorias, não com unanimidade. Basta ler as votações finais dos documentos do Vaticano II, para se dar conta da realidade histórica, na qual precisamos aprender a viver com consensos sofridos e plurais, que não significam unanimidade. O Espírito pode transformar as diferenças entre as pessoas e povos, que por vezes são incômodas, “em dinamismo evangelizador” (EG 131, cf. 162).

Propostas de mudanças não rompem com a unidade da Igreja, desde que não afetem a “substância” da verdade que é escatológica. É bom lembrar-nos do IV Concílio de Latrão (1215), o qual definiu que “entre o Criador e a criatura a dissemelhança é maior do que a semelhança” (DENZINGER, n. 806). Essa dissemelhança não teria também seu lugar nas diferentes falas da criatura sobre o Criador?

Três séculos mais tarde, a doutrina missionária reflete um rigorismo mais cristalizado. O pensamento de Francisco Xavier (07/04/1506-03/12/1552), que, como padroeiro das missões, representa o pensamento eclesial de sua época até o Vaticano II, pode-se resumir em poucas linhas: “O cristianismo em sua vertente católica é a única religião que salva. As religiões não cristãs dos outros são idolatria. Na religião idolátrica ninguém se salva. […]. Por causa da falta de missionários, muitas almas se perdem. O diálogo inter-religioso serve para convencer o outro dos seus erros e convertê-lo ao cristianismo” (SUESS, 2007, p. 59).

Para os neófitos do Japão, o destino dos antepassados, segundo Francisco Xavier, se tornou um grande problema. “Onde estão nossos pais e parentes falecidos?” (ibid.), perguntavam. E Francisco não tinha nenhum consolo. De Cochin, em 29 de janeiro de 1552, ele escreveu a seus companheiros da Europa: “Muitos choram os mortos e me perguntam se podem ter algum remédio por via de esmolas e orações. Eu lhes digo que nenhum remédio têm” (ZUBILLAGA, Cartas, n. 96,48). Para os japoneses, uma Boa Nova que não incluísse os antepassados, era inaceitável, na verdade era uma má notícia.

7. Caminhando para uma nova Assembleia Eclesial

Era previsível que a transformação de uma “Conferência Episcopal” em “Assembleia Eclesial”, não seria fácil. Tanto o CELAM quanto a maioria dos participantes da Assembleia Eclesial não estavam preparados para esse evento do qual participaram e não tiveram informações claras sobre as decisões que poderiam tomar ou sobre as sugestões que poderiam propor. O CELAM, a serviço das “Conferências Episcopais” latino-americanas e caribenhas, sem experiência na condução de uma Assembleia Eclesial com ampla participação do povo de Deus, e com tempo insuficiente para assimilar a essência da “conversão sinodal” (cf. DFSA, cap. V), naufragou nessa travessia. Sem colete salva-vidas, o náufrago agarrou-se em algumas pranchas e pedaços de madeira que lhe permitiram exausto, mas ainda vivo, voltar para terra firme, de onde partiu e onde a serpente emplumada o esperava.

Contudo, os embaraços experimentados por ocasião da “Primeira Assembleia Eclesial não foram em vão. Podem servir de balão de ensaio para posteriores eventos, sejam assembleias, conferências ou sínodos. O que se pode aprender com essa experiência do México, realizada para retomar reflexões, promessas e decisões de um evento anterior, com um número maior de delegados, representando o povo de Deus e não só o setor episcopal? Realmente será necessário ouvir a todos, o povo e o Papa: “Convido todos a serem ousados e criativos nesta tarefa de repensar os objetivos, as estruturas, e estilo e os métodos evangelizadores” (EG 33). Explicando a sua proposta da Assembleia Eclesial, o papa Francisco lembrou o Vaticano II (cf. Lumen Gentium 12), ponderando que “não seria apropriado pensar em um esquema de evangelização realizado por agentes qualificados enquanto o resto do povo fiel seria apenas receptor das suas ações. A nova evangelização deve implicar um novo protagonismo de cada um dos batizados” (EG 120). Também para o povo de Deus não é fácil de se emancipar da tutela pastoral.

Por conseguinte, duas tarefas pedagógicas, fora do corporativismo, aguardam o CELAM: ser menos, especificamente, episcopal para ser mais, genericamente, eclesial. A participação de um grande número de participantes não é um problema insuperável. Essa “participação” já foi praticada no início e durante o Vaticano II, quando a assembleia dos mais de dois mil padres conciliares se declarou soberana, em face aos esquemas preparados pela Cúria Romana.

Mas há também resistências internas na Igreja, doutrinárias e de mentalidade. A transformação de um Conselho Episcopal em Conselho Eclesial pode ser um avanço eclesiológico para uns, mas para outros representa o desmonte do princípio hierárquico da Igreja. Suscitar e acompanhar a comunhão eclesial e a participação de todos os batizados na condução de uma instituição eclesial exige despojamento e muita sensibilidade e vigilância na aceitação do pluralismo entre os próprios bispos e o povo de Deus (cf. EG 131; 255). Na Igreja que emerge da conversão sinodal, “cada ministro é um batizado entre os batizados” (EC 10), e cada bispo é “mestre e discípulo” (EC 5). 

Repetidas vezes, o Papa lembrou que é o Espírito que guia o povo de Deus nos processos de conversão sinodal, transforma os batizados de “ouvidores” da hierarquia e de executores de decisões tomadas por outros, em protagonistas da evangelização. “A presença do Espírito confere aos cristãos certa conaturalidade com as realidades divinas […], embora não possuam os meios adequados para expressá-las com precisão” (EG 119).

Grosso modo, os assembleístas foram conduzidos, mas não conduziram a Assembleia. Não estiveram previamente articulados para, no início da Assembleia, eleger o presidente da Assembleia e pôr em votação, se queriam um Documento Final ou não. Ainda teremos um longo caminho pela frente para pôr em prática o significado da passagem de “Conferências Episcopais” para “Assembleias Eclesiais do povo de Deus”. O evento do México mostrou, que a conversão eclesial exige além de um “novo estilo de vida” (EG 80, 168) ad intra, também uma “nova mentalidade” (EG 188; 205) ad extra. Desde que “alarguemos o espaço de nossa tenda” (cf. Is 54,2), o Sínodo de 2021/2024 nos dá uma nova oportunidade.

Notas

[1] CNBB. Conheça os 12 desafios pastorais da Igreja da América Latina e Caribe. Brasília. Texto aqui. Acesso em: 20 out. 2022. (Nota do autor)

[2] Cf. a temática do Sínodo sobre a sinodalidade (Comunhão, Participação, Missão), de 2023/2024, com as Conclusões de Puebla (1979): 3ª Parte: Comunhão e Participação; 4ª Parte: Igreja missionária, tb. n. 1304. (Nota do autor)

Siglas

CELAM – Conselho Episcopal Latino-americano

DAp – Documento de Aparecida, 2007

DEC – “Alarga o espaço da tua tenda” (Is 54,2). Documento de Trabalho para a Etapa Continental do Sínodo 2021/2024

DFSA – Documento Final do Sínodo para a Amazônia, 2019

MdAE – Mensagem da Assembleia Eclesial, México D.F., 2021

EC – Episcopalis Communio, Constituição Apostólica sobre o Sínodo dos Bispos, 2018

PE – Praedicate Evangelium, Constituição Apostólica sobre a Cúria Romana e seu serviço à Igreja no mundo, 2022

PUEBLA – Conclusões de Puebla, Mensagem aos povos da América Latina, 1979

Referências

BONFIL BATALLA, Guillermo. México profundo: una civilización negada. México: Grijalbo, 1989.

CELAM. Para uma Igreja sinodal em saída para as periferias: Reflexões e propostas pastorais a partir da Primeira Assembleia Eclesial da América Latina e o Caribe. Petrópolis: CNBB, 2022.

DENZINGER, Heinrich. Enchiridion symbolorum definitionum et declarationum de rebus fidei et morum. Freiburg i. Breisgau: Herder, 1991 (37. ed.).

KRICKEBERG, Walter. Mitos y leyendas de los Aztecas, Incas, Mayas y Muiscas. México D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1971 (Düsseldorf, 1968).

LAFAYE, Jacques. Quetzalcóatl y Guadalupe: la formación de la conciencia nacional en México. México D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1977 (Paris, 1974).

LEÓN-PORTILLA, Miguel. Literaturas indígenas de México. México: Mapfre, Fondo de Cultura Económica, 1992.

PAZ, Otavio. Prefácio: In: LAFAYE, Jacques. Quetzalcóatl y Guadalupe, p. 11-29.

RASCHIETTI, Estêvão. A missão em questão: a emergência de um paradigma missionário em perspectiva decolonial. Petrópolis: Vozes, 2022.

RICARD, Robert. La conquista espiritual de México: ensayo sobre el apostolado y los métodos misioneros de las órdenes mendicantes en la Nueva España de 1523/1524 a 1572. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1986.

SANTAREM II. IV Encontro da Igreja Católica na Amazônia Legal. 50 anos do Encontro de Santarém, 1972-2022. Documento de Santarém 50 anos: gratidão e profecia. Brasília: CNBB, 2022.

SOUSTELLE, Jacques. Os astecas. São Paulo, Difel/Saber Atual, 1972.

SUESS, Paulo. Francisco Xavier: 500 anos de desafio com o diálogo inter-religioso. Perspectiva Teológica, Belo Horizonte, v. 39, n. 107, jan./abr. 2007, p. 49-66.

SUESS, Paulo. Prolegômenos sobre descolonização e colonialidade da teologia na Igreja desde um olhar latino-americano. Concilium, Petrópolis, v. 350, n. 2, 2013, p. 78-88.

ZUBILLAGA, Felix. Cartas y escritos de San Francisco Javier. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1968.

Paulo Suess é doutor em Teologia pela Universidade de Münster e bacharel em Teologia pela Universidade de Munique (LMU). Professor de Missiologia em diferentes institutos superiores, Suess foi secretário executivo e assessor teológico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), presidente da International Association for Mission Studies (IAMS) e perito do Sínodo para a Amazônia.

Fonte: IHU
*Grifos da equipe do observatório

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15 anos de Aparecida: uma Conferência que conserva toda sua validade https://observatoriodaevangelizacao.com/15-anos-de-aparecida-uma-conferencia-que-conserva-toda-sua-validade/ Tue, 17 May 2022 21:30:00 +0000 https://atomic-temporary-74025290.wpcomstaging.com/?p=45000 [Leia mais...]]]>  

A comemoração pelos 15 anos da Conferência de Aparecida reúne uma série de atividades marcando e reavivando um importante momento eclesial para o Brasil, para a América Latina e até para a Igreja Universal. Revisitar Aparecida é fundamental para melhor compreender muito do Pontificado do Papa Francisco. Acompanhe a matéria de Luis Miguel Modino.

O Espaço Memorial de Aparecida

Aparecida, uma Conferência e um Documento que permanecem vivos nas ações do Papa Francisco, um documento atual, surgido de uma Conferência celebrada aos pés da Padroeira do Brasil de 13 a 31 de maio de 2007, com 266 participantes. Disso está sendo feito memória nos dias 12 e 13 de maio de 2022 no mesmo local, algo que tem começado coma inauguração de um Espaço Memorial e a reza do terço, lembrando o presidido pelo Papa Bento XVI 15 anos atrás.

O Espaço Memorial é uma iniciativa da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e do Santuário Nacional, que lembra as conferências realizadas pelo Conselho Episcopal Latino-americano (CELAM), com livros, fotos, paramentos e outros objetos. A inauguração esteve presidida por Dom Walmor Oliveira de Azevedo, arcebispo de Belo Horizonte (MG) e presidente da CNBB, que após a acolhida do reitor do Santuário Nacional, que insistiu em ver Aparecida como a Casa da Mãe, mostrou sua alegria diante deste importantíssimo evento.

Dom Walmor insistiu em que esse espaço memória não faz referência unicamente ao passado, e sim algo que mostra “a força espiritual e missionária da Conferência de Aparecida e o Documento de Aparecida”, destacando que mesmo sem aparecer o termo, no Documento de Aparecida “nós encontramos um programa de sinodalidade da mais alta qualidade, da mais alta pertinência”.

Oração para renovar o ardor missionário

A reza do Terço foi presidida pelo cardeal Odilo Scherer, contando com a presença de bispos, os mais de 500 presbíteros que estão participando do seu 18º Encontro Nacional, a Vida Religiosa e leigos e leigas. Juntos meditaram os mistérios do Santo Rosário, sendo rezados por diferentes pessoas, tudo intercalado com cantos, textos bíblicos e do Documento de Aparecida, e reflexões do Arcebispo de São Paulo que foi atualizando esta devoção secular à luz daquilo que hoje o mundo vive.

O cardeal Scherer afirmou que “a nós é pedido que nos renovemos no fervor missionário”, o que se concretiza no anuncio com alegria de uma Palavra que precisa ser testemunhada. O purpurado também fez um chamado à paz frente a uma violência que “acaba sendo uma grande injustiça para as pessoas”, que na guerra gera fome e sofrimento. Isso o fez mostrar a necessidade de “nós cuidar para que este mundo seja cada vez mais sadio, com menos sofrimentos”, chamado a ser testemunhas da caridade, da compaixão, da misericórdia de Deus.

No final da oração do terço, Dom Miguel Cabrejos fez uma leitura de uma mensagem onde ele descreveu os 15 anos desde Aparecida como um tempo de impulso missionário. O presidente do CELAM disse ver o Documento de Aparecida, citando as palavras do Papa Francisco, como algo que “nasceu precisamente desta tecelagem entre o trabalho dos Pastores e a simples fé dos peregrinos, sob a proteção materna de Maria”.

Um tempo da graça na vida da Igreja

Aparecida foi “um autêntico Kairós que gerou um profundo impulso missionário”, segundo o presidente do episcopado peruano, que destacou a dimensão missionária como um dos eixos norteadores de Aparecida, a partir do método de ver-julgar-atuar, e a opção preferencial pelos pobres e pelo cuidado da Criação. A partir daí ele afirmou que “a Igreja precisa de um choque forte que a impeça de se acomodar no conforto, estagnação e tibieza, às margens do sofrimento dos pobres do continente”.

Em suas palavras, ele se referiu à conversão pastoral e outros aspectos da V Conferência Geral do CELAM, tais como ser discípulos missionários e assumir a Missão Permanente como uma tarefa impagável. Juntamente com isto, ele o relacionou com o atual processo sinodal e a Assembleia Eclesial da América Latina e do Caribe, chamando a “reafirmar nossa identidade de discípulos missionários, a ser uma Igreja em saída, sinodal e misericordiosa”, algo que leva a “fortalecer a missão, a comunhão eclesial, a colegialidade e a sinodalidade”.

Hoje, Aparecida produz “uma grande esperança, um espírito de profecia, de grande compromisso, porque ainda há desafios a serem enfrentados e outros que se abrem”, algo motivado pelo contexto histórico, segundo Dom Miguel Cabrejos. O prelado destacou que Aparecida promove o conceito do povo de Deus, que somos todos Igreja, assim como a interculturalidade, o cuidado com a casa comum e a ecologia integral. Neste sentido, ele disse não ter dúvidas de que Aparecida inspirou os quatro sonhos da Querida Amazônia: social, cultural, ecológico e eclesial.

Uma riqueza reunida em Aparecida, que, segundo Dom Miguel Cabrejos, nos abre para entender que “toda evangelização deve ser um processo, as obras pastorais devem ser um processo, não eventos que são organizados, terminados e pronto”. Tudo isso olhando para o futuro, para o evento de Guadalupano de 2031 e para o ano da Redenção em 2033, caminhando sinodalmente, algo já presente na vida das primeiras comunidades cristãs.

Sentir-se em casa, na casa da mãe

Aparecida se entende a partir da decisão pessoal do Papa Bento XVI na escolha do lugar, segundo Dom Jaime Spengler, que vê no Santuário Nacional “um lugar todo especial na história também do nosso povo. Aparecida é a referência para muitos de nosso povo, a casa da mãe”. Segundo o vice-presidente primeiro da CNBB, “na casa da mãe, a gente fala livremente, na casa da mãe, nós verdadeiramente nos sentimos em casa”, algo experimentado pelos bispos participantes da V Conferência do CELAM.

O arcebispo de Porto Alegre insistiu em que “foi esse sentir-se em casa, na casa da mãe, com os irmãos e irmãs que frequentam o santuário que, por assim dizer forjou a beleza, a grandeza desse documento que marca, não só a história da Igreja latino-americana, mas que também de alguma forma delineou o próprio pontificado do Papa Francisco”.

Aparecida mantem a sua atualidade, segundo o cardeal Odilo Scherer, “embora depois de Aparecida até nossos dias já tem surgido muitas outras questões que não estão contempladas suficientemente no Documento de Aparecida e necessitam de novas declarações, novas posturas, enfim nova reflexão da Igreja”.

Ele destaca que “as questões essenciais do Documento de Aparecida conservam toda sua validade”. O vice-presidente primeiro do CELAM vê como questão de fundo, “o renovado encontro com Jesus Cristo para uma fé viva, profunda e verdadeira”. Junto com isso, “a necessidade de renovar a Igreja a partir de uma renovação missionária, a Igreja precisa se renovar na missão”, algo sempre atual, com toda sua validade, assim como “aquela atenção que Aparecida pediu aos pobres, pediu para a juventude, se mostra totalmente atual”.

O purpurado destacou também a atualidade da “presença da Igreja no meio dos nossos povos, que é histórica”, uma presença que “precisa ser aprofundada, precisa ser renovada e cultivada, de maneira que através sobretudo de uma renovada presença laical no meio da sociedade, a Igreja, o evangelho, possa chegar a todos os âmbitos da vida social, da vida cultural, da vida pública, da vida política, econômica e assim por diante”, para que esses povos possam ter “vida abundante em Jesus Cristo”.

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pe. Luis Miguel Modino
Natural da Espanha, é missionário Fidei Donum na Diocese de São Miguel da Cachoeira, Amazonas. É parceiro do Observatório da Evangelização e articulista em diversos periódicos e revistas virtuais católicas.

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15 anos de Aparecida: um documento determinante para entender a Igreja do século XXI https://observatoriodaevangelizacao.com/15-anos-de-aparecida-um-documento-determinante-para-entender-a-igreja-do-seculo-xxi/ Fri, 13 May 2022 12:00:00 +0000 https://atomic-temporary-74025290.wpcomstaging.com/?p=44968 [Leia mais...]]]> As Conferências Gerais do Episcopado Latino-americano, especialmente depois de Medellín, têm marcado a vida da Igreja católica no continente, mas poderíamos dizer que elas têm sido também uma referência para a Igreja universal. Acompanhe o relato feito por Luis Miguel Modino sobre a memória e as atividades para a comemoração desta data significativa.

Igreja em saída, discípulos missionários

Esse caminho é algo que continua ainda hoje, tendo dado um passo a mais com aquela que deveria ter sido a VI Conferencia Geral do Episcopado da América Latina e do Caribe, mas que por orientação do Papa Francisco, o relator geral do Documento de Aparecida, quando era arcebispo de Buenos Aires, se concretizou na 1ª Assembleia Eclesial da América Latina e do Caribe, considerada uma prévia da fase continental do Sínodo sobre a Sinodalidade.

A Conferência de Aparecida e o Documento que recolhe os debates que lá aconteceram, pode ser considerado um momento determinante para entender a Igreja do século XXI, a Igreja do Papa Francisco. Conversão pastoral, Igreja em saída, discípulos missionários, elementos que hoje fazem parte do dia a dia da Igreja, cobraram força após a V Conferência Geral do Episcopado da América Latina e do Caribe.

Uma Conferência que teve sua abertura no dia 13 de maio de 2007 e contou com a presença do Papa Bento XVI. 15 anos depois a Igreja da América Latina e do Caribe comemora essa data com algumas atividades ao longo desta semana, que serão realizadas no entorno do Santuário de Aparecida, a casa da Padroeira do Brasil.

Várias atividades fazem parte da comemoração

Está confirmada a presença do Presidente do Conselho Episcopal Latino-americano e Caribenho (CELAM), Dom Miguel Cabrejos e do Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Dom Walmor Oliveira de Azevedo, junto com outros membros da presidência da CNBB.

No dia 12 de maio, às 16 horas no horário local, está prevista a inauguração do “Espaço Memória”, que quer lembrar os 15 anos do Documento de Aparecida e da realização da V Conferência. No mesmo dia, às 19 horas, será recitado o Terço, lembrando assim a recitação do Terço conduzida pelo Papa Bento XVI no altar central da Basílica da Padroeira do Brasil.

Fazendo memória da abertura da V Conferência Geral do Episcopado da América Latina e do Caribe, hoje (13 de maio), às 9 horas, será celebrada uma Eucaristia, presidida por Dom Walmor Oliveira de Azevedo, Presidente da CNBB. No final da Missa está prevista uma coletiva de imprensa com a presença da Presidência da CNBB.

A comemoração dos 15 anos de Aparecida contará com a realização de um seminário com reflexões de especialistas e assessores que contribuíram na conferência, conduzido pelo Instituto Nacional de Pastoral Padre Alberto Antoniazzi (INAPAZ), com o apoio de diferentes Institutos de Teologia.   

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pe. Luis Miguel Modino
Natural da Espanha, é missionário Fidei Donum na Diocese de São Miguel da Cachoeira, Amazonas. É parceiro do Observatório da Evangelização e articulista em diversos periódicos e revistas virtuais católicas.

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Documento de Aparecida: o texto original, o texto oficial e o papa Francisco – Quarta e última parte, com a palavra o teólogo Pe. Agenor Brighenti https://observatoriodaevangelizacao.com/documento-de-aparecida-o-texto-original-o-texto-oficial-e-o-papa-francisco-quarta-e-ultima-parte-com-a-palavra-o-teologo-pe-agenor-brighenti/ Thu, 22 Jul 2021 21:40:00 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=40010 [Leia mais...]]]> O texto original do Documento de Aparecida — que teve à frente da Comissão de Redação o então cardeal Bergoglio — antes de ser publicado como texto oficial, sofreu ao redor de 250 mudanças. Diante da negativa da Presidência da V Conferência pela autoria das mudanças e oficiosamente do próprio papa Bento XVI, que se limitou a “autorizar” a publicação do texto, os autores das censuras no texto original do Documento de Aparecida (DAp), nunca foram revelados. Frente a isso, o curioso é constatar que o Papa Francisco, desde a primeira-hora de seu pontificado, em seus pronunciamentos e documentos, tem resgatado praticamente tudo aquilo que os censores do texto original de Aparecida tinham suprimido. É o “Papa do fim do mundo”, fazendo soprar desde a periferia os “ventos do Sul” no coração da Igreja como um todo. Trata-se da afirmação da tradição eclesial libertadora da Igreja na América Latina, antes sob suspeição e, agora, reconhecida e enriquecendo a Igreja inteira. Dentre as mais de duas centenas de mudanças, há umas 40 maiores e de fundo, das quais este estudo aborda 10 delas, apresentando seu teor no texto original de Aparecida, seguido das censuras presentes no texto oficial e o resgate do que foi suprimido pelos censores em pronunciamentos e documentos do papa Francisco.

Palavras-chave: Documento de Aparecida. Vaticano II. Papa Francisco. Igreja na América Latina. Magistério Pontifício.

(Obs.: Esta é a QUARTA PARTE do texto do teólogo pastoralista Agenor Brighenti publicado na Revista Pistis e Práxis. Teologia e Pastoral. Adaptação para o Observatório da Evangelização é de Edward Guimarães. Os grifos são nossos.)

7. A família

A família, tal como os censores do Documento de Aparecida confirmam, é um dos temas controversos e sensíveis na Igreja, sobretudo, em relação aos “casais em segunda união” e às uniões homo-afetivas, sem falar nos contraceptivos e no aborto.


Aparecida: acolher os casais em segunda-união

Independente de entrar em juízo de valor e na defesa dos princípios cristãos, o Documento de Aparecida recomenda, antes de tudo, uma atitude de acolhida e um acompanhamento com cuidado, prudência e amor compreensivo. O “texto original” falava em “matrimônios que vivem em situação irregular”; os censores substituíram “matrimônio” por “casais” (DAp 437) e acrescentaram: “tendo presente que os divorciados que tornaram a se casar não lhes é permitido comungar” (DAp 248).

No início do Documento, ao introduzir o capítulo dedicado a abordar “o olhar dos discípulos missionários sobre a realidade”, enumera-se entre os pressupostos que enfraquecem a vida familiar, a “ideologia de gênero”, segundo a qual cada um pode escolher sua orientação sexual, sem levar em conta as diferenças dadas pela natureza humana. Frisa-se que isso fere a dignidade do matrimônio, o respeito ao direito à vida e a identidade da família (DAp 40).


Papa Francisco: quem sou eu para julgar

Questões como o acesso dos casais em segunda-união à Eucaristia ou a acolhida dos homossexuais, que são tabus para os censores, para o papa Francisco, como atesta seu empenho na preparação e realização do Sínodo sobre a família, precisam ser estudadas e debatidas na Igreja. Diante da crise da família, setores mais conservadores da Igreja, em lugar em desenvolver uma maior capacidade de acolhida àqueles que não conseguem viver conforme os ideais da fé cristã, tem se destacado em frisar o imperativo do cumprimento dos princípios. Os censores do Documento de Aparecida tiveram a preocupação de deixar isso registrado no “texto oficial”. É uma atitude na contramão de uma “Igreja samaritana”, expressão de Paulo VI para caracterizar a nova eclesiologia do Vaticano II, categoria muito presente em Aparecida, à qual o papa Francisco contrapõe uma “Igreja alfândega” (EG 47).

A postura do novo Papa começa pelo nome, emprestado de Francisco de Assis. Na realidade, Francisco é mais do que um nome. É um programa de vida, referência evangélica para todo o Povo de Deus. Entre outros, de Francisco de Assis, Francisco de Roma assume explicitamente, já demonstrado com gestos emocionantes, a “revolução da ternura”. Frisa ele: “precisamos todos aprender a abraçar, como fez São Francisco”. Em entrevista à Revista La Civiltà Cattolica, advoga por uma “Igreja samaritana”: “vejo com clareza que aquilo de que a Igreja mais precisa hoje é a capacidade de curar as feridas e de aquecer o coração dos fiéis, a proximidade” (apud IRMÃS PAULINAS, 2013, p. 105)1. Vejo a Igreja como um hospital de campanha depois de uma batalha. É inútil perguntar a um ferido grave se tem o colesterol ou o nível de açúcar altos. Primeiro, deve-se curar as suas feridas. Depois podemos nos ocupar do restante. Curar as feridas, curar as feridas… E é necessário começar de baixo” (cf. EG 67).

No pronunciamento aos Bispos do CELAM, por ocasião da Jornada Mundial da Juventude no Brasil, na perspectiva de João XXIII, o papa Francisco fala da necessidade de uma Igreja-mãe, condição para uma Igreja-mestra, que só se legitima quando respaldada pelo testemunho. A vocação e missão da Igreja começam, segundo o Papa, “pelo exercício da maternidade”, “que se dá pelo exercício da misericórdia”. Só a misericórdia

gera, amamenta, faz crescer, corrige, alimenta, conduz pela mão… Por isso, faz falta uma Igreja capaz de redescobrir as entranhas maternas da misericórdia. Sem a misericórdia, temos hoje poucas possibilidades de nos inserir em um mundo de ‘feridos’, que têm necessidade de compreensão, de perdão, de amor (IRMÃS PAULINAS, São Paulo, p. 105)2.

Papa Francisco, no pronunciamento aos Bispos do CELAM, em 2013, durante a Jornada Mundial da Juventude.

Isso implica a Igreja descentrar-se de si mesma, o que não significa, simplesmente, sair para fora. Em Evangelii gaudium, o papa Francisco afirma que sair de si mesma, antes de tudo, significa

uma Igreja com as portas abertas. Sair em direção dos outros para chegar às periferias humanas não significa correr para o mundo, sem rumo e sem sentido. Muitas vezes, implica antes deter os passos, deixar de lado a ansiedade para olhar nos olhos e escutar, ou renunciar as urgências para acompanhar quem ficou à beira da estrada. Às vezes, é como o pai do filho pródigo, que fica com as portas abertas para que, quando regresse, possa entrar sem dificuldade.

Papa Francisco, Evangelii gaudium, n. 46


8. A mulher na Igreja

Uma oitava questão sensível, colocada em relevo pelos censores do Documento de Aparecida, é com relação à mulher na Igreja. A mulher na sociedade, sua dignidade e seus direitos, é uma questão pacífica. Entretanto, seu papel na Igreja, é uma questão controversa, especialmente para os setores mais conservadores da Igreja.


Aparecida: a mulher é discriminada na Igreja

No seio da sociedade, a Igreja advoga pela igual dignidade da mulher em relação ao homem. O próprio papa Bento XV reafirmou isso no Discurso Inaugural de Aparecida: “em algumas famílias da América Latina, persiste ainda, infelizmente, uma mentalidade machista, ignorando a novidade do cristianismo que reconhece e proclama a igual dignidade e responsabilidade da mulher com relação ao homem” (DAp DI). Entretanto, não é o mesmo o discurso quando se trata da mulher no seio da Igreja, tanto que há uma séria defasagem entre a participação da mulher na sociedade em relação à Igreja.

O “texto original” do Documento de Aparecida, de maneira corajosa, reconhecia esta defasagem, mas foi suprimida pelos censores: a mulher, frisava o texto, é “descriminada na Igreja e com frequência ausente nos organismos pastorais” (DAp 99b). E acrescentaram que as mulheres, na Igreja, terão acesso aos ministérios, mas só “àqueles que a Igreja confia aos leigos”.


O Papa Francisco e as mulheres

Ao contrário dos censores do Documento de Aparecida, para o papa Francisco, a mulher é discriminada na Igreja e precisa ter acesso aos ministérios. Falando aos Bispos do CELAM no Rio de Janeiro, adverte: “não reduzamos o empenho das mulheres na Igreja; antes, pelo contrário, promovamos o seu papel ativo na comunidade eclesial. Se a Igreja perde as mulheres, na sua dimensão global e real, ela corre o risco da esterilidade” (IRMÃS PAULINAS, São Paulo, p. 105)3. Na Evangelii gaudium, quando o papa Francisco fala da dignidade e dos ministérios não-ordenados, fala sem constrangimento de “homens e mulheres” (EG 52, 86, 104, 171, 252, 271, 283): “Vejo, com muito prazer, como muitas mulheres partilham responsabilidades pastorais juntamente com os presbíteros, contribuem para o acompanhamento de pessoas, famílias ou grupos e prestam novas contribuições para a reflexão teológica” (EG 103).

Um dos fortes argumentos dos setores mais conservadores para cercear a participação da mulher nos ministérios é a tradição, a ausência de ministérios para elas no itinerário da Igreja. Em contrapartida, o Papa fala que o papel herdado pela tradição pode ser aprofundado e deve ser ampliado, “para uma presença feminina mais incisiva na Igreja” (EG 103). O Vaticano II lembrou que a tradição é viva, progride, está aberta, porquanto “é a história do Espírito Santo, na história do Povo de Deus” (Bruno Forte). Para a Evangelii gaudium, trata-se de uma questão séria, que não se pode dar por resolvida sem um tratamento sério e profundo: “As reivindicações dos legítimos direitos das mulheres, a partir da firme convicção de que os homens e mulheres tem a mesma dignidade, colocam à Igreja questões profundas que a desafiam e não se podem iludir superficialmente” (EG 104). É uma tarefa que envolve a todos, especialmente, o magistério e os teólogos: “Aqui está um grande desafio para os Pastores e para os teólogos, que poderiam ajudar a reconhecer melhor o que isto implica no que se refere ao possível lugar das mulheres onde se tomam decisões importantes, nos diferentes âmbitos da Igreja” (EG 104).

Tema ainda mais espinhoso é o da ordenação de mulheres. Já, desde sua primeira viagem ao exterior, precisamente ao Rio de Janeiro por ocasião da Jornada Mundial da Juventude em 2013, o papa Francisco se mostrou partidário de que as mulheres tenham um papel de maior relevância na Igreja católica —“não nos podemos limitar às mulheres coroinhas, à presidenta da Caritas, à catequizadora; é preciso fazer uma profunda teologia da mulher. Quanto à ordenação das mulheres, a Igreja falou e disse não. Assim disse João Paulo II, mas com uma formulação definitiva. Essa porta está fechada. Mas, sobre isso, quero dizer-lhes algo: a Virgem Maria era mais importante que os apóstolos, do que os bispos, do que os diáconos e os sacerdotes. A mulher na Igreja é mais importante que os bispos e os padres. Como? Isto é o que devemos tratar de explicar melhor. Creio que falta uma explicação teológica sobre isto”. Mas, foi recentemente, no dia 12 de maio, durante o encontro com União Internacional de Superioras Gerais (UISG) de institutos religiosos na Sala Paulo VI, que o papa Francisco, interpelado sobre a possibilidade do acesso das mulheres ao Diaconato, decidiu constituir uma comissão de estudo a respeito. Algo totalmente impensável nos últimos pontificados.


9. Ministério ordenado e clericalismo

É com relação ao exercício do ministério ordenado que os censores também deixaram registrada sua dificuldade em assumir a renovação do Concílio Vaticano II. O “texto original” do Documento de Aparecida dizia: “Lamentamos certo clericalismo, algumas tentativas de voltar a uma eclesiologia e espiritualidade anteriores ao Concílio Vaticano II”. No “texto oficial”, suprimiu-se o clericalismo e, em lugar de uma eclesiologia e espiritualidade “anteriores” ao Vaticano II, aparece “contrárias” (DAp 100b). Também foi supresso, neste número, “lamentamos a ausência de senso de autocrítica” e “moralismo que debilitam a centralidade de Jesus Cristo”.


Aparecida: lamentamos a volta do clericalismo

Uma das profundas mudanças do Vaticano II foi a superação do binômio clero-leigos pelo binômio comunidade-ministérios: não existe, segundo a Lumen gentium, duas categorias de cristãos, mas um único gênero — os batizados — no seio de uma Igreja toda ela ministerial. E há uma radical igualdade em dignidade de todos os ministérios. O “texto original” do Documento de Aparecida procurava ressaltar esta passagem, mas os censores matizaram a mudança. Por exemplo, os presbíteros, no Documento original, eram designados, mais “irmãos” do que “padres, pai”, pois estão ao serviço do sacerdócio comum dos fiéis”. Os censores suprimiram isso e acrescentaram que os “presbíteros são qualitativamente diferentes” dos leigos. Deste número, suprimiu-se: “[…] Esta dimensão fraterna deve transparecer no exercício pastoral e superar a tentação do autoritarismo que o isola da comunidade e da colaboração com os demais membros da Igreja”. E acrescentou-se: “Todo Sumo Sacerdote é tomado dentre os homens e colocado para intervir a favor dos homens em tudo aquilo que se refere ao serviço de Deus” (Hb 5,1). Finalmente, substituiu-se: […] o presbítero “não pode cair na tentação de considerar-se um delegado ou representante da comunidade”, por “não pode cair na tentação de considerar-se um ‘mero’ delegado ou ‘só um’ representante da comunidade” (DAp 193).

Ainda com relação ao ministério ordenado, mais especificamente relativo ao diaconato permanente, suprimiu-se, do “texto original”: “A presença numérica dos diáconos permanentes cresceu significativamente em nossas Igrejas, ainda que com desigual desenvolvimento e valoração. A V Conferência anima os Bispos da América Latina e o Caribe impulsar o diaconato permanente nas distintas dioceses e para grupos humanos específicos e pastorais ambientais”. Acrescentou-se: “Não se pode criar nos candidatos ao diaconato expectativas permanentes que superem a natureza própria que corresponde ao grau do diaconato” (DAp 208).

Como se pode constatar, o “texto original” do Documento de Aparecida, coerente com a renovação do Vaticano II, tratava de situar os ministros ordenados dentro do Povo de Deus e de colocá-lo ao serviço dos leigos. Já os censores, ao contrário, mostram-se preocupados em salvaguardar a distância e as categorias das ordens clericais superiores sobre as ordens inferiores, sobretudo, do clero sobre os fiéis leigos.


Papa Francisco: clericalismo não tem nada a ver com cristianismo

Se para os censores do Documento de Aparecida deve-se zelar pela diferença entre clérigos e leigos, para o papa Francisco, em sintonia com o Vaticano II, existe uma radical igualdade em dignidade de todos os ministérios da Igreja. Por isso, nem clericalismo e nem leigo clericalizado. O clericalismo na Igreja é um dos temas recorrentes nos pronunciamentos do Papa Francisco, desde a primeira hora, em coerência com sua posição ainda como bispo em Buenos Aires. Em entrevista a um jornalista italiano, afirma que “o clericalismo não tem nada a ver com cristianismo. Quando tenho na minha frente um clericalista, instintivamente me transformo num anticlerical”. Adverte que “na maioria dos casos, o clericalismo é uma tentação muito atual; trata-se de uma cumplicidade viciosa: o padre clericaliza o leigo e, o leigo, lhe pede o favor de o clericalizar, porque, no fundo, lhe é mais cômodo”. Para o Papa, “o fenômeno se explica, em grande parte, pela falta de maturidade e de liberdade cristã em parte do laicato” (IRMÃS PAULINAS, São Paulo, p. 141-142)4. Para o Papa, “a proposta dos grupos bíblicos, das comunidades eclesiais de base e dos Conselhos pastorais está na linha da superação do clericalismo e de um crescimento da responsabilidade laical” (ibid. p. 142).

Em sua visita ao Brasil, falando aos Bispos do CELAM, o papa Francisco pergunta:

nós, Pastores, Bispos e Presbíteros, temos consciência e convicção da missão dos fiéis leigos e lhes damos a liberdade para irem discernindo, de acordo com o seu caminho de discípulos, a missão que o Senhor lhes confia? Apoiamo-los e acompanhamos, superando qualquer tentação de manipulação ou indevida submissão? Estamos sempre abertos para nos deixarmos interpelar pela busca do bem da Igreja e pela sua missão no mundo?”.

Papa Francisco, em 2013, no Encontro com os Bispos do CELAM

Como real espaço do exercício da corresponsabilidade de todos os batizados na Igreja, o Papa recorda aos Bispos a importância dos conselhos: “os Conselhos Paroquiais de Pastoral e de Assuntos Econômicos são espaços reais para a participação laical na consulta, organização e planejamento pastoral? O bom funcionamento dos Conselhos é determinante. Acho que estamos muito atrasados nisso” (apud IRMÃS PAULINAS, 2013, p. 136)5.

Relacionado ao clericalismo está o estilo de exercício do ministério episcopal na Igreja, em sua grande maioria na Igreja hoje, distante do estilo de episcopado do “pacto das catacumbas”, selado por um grupo de Bispos no encerramento do Concílio Vaticano II. O clericalismo dos presbíteros parece agravado no modelo de bispo que predominou nas últimas décadas, seja no distanciamento do povo por um estilo de vida sem despojamento, seja de autoritarismo em relação ao seu presbitério. Ao ordenar novos Bispos em Roma, o papa Francisco lhes faz três recomendações. Primeiro,

que sejam pastores com cheiro de ovelhas, presentes no meio de sua gente como Jesus, o Bom Pastor. A presença de vocês não é secundária, é indispensável. As próprias pessoas pedem isso, desejam ver o seu bispo caminhar com elas, para estarem próximas dele. Não se fechem! Vão para o meio de seus fiéis, inclusive nas periferias de suas dioceses e em todas as ‘periferias existenciais’ onde há sofrimento, solidão, degradação humana. Presença pastoral significa caminhar com o povo de Deus: na frente, assinalando o caminho; no meio, para fortalecer a unidade; atrás, para que ninguém se desgarre, mas, sobretudo, para acompanhar o olfato que o povo de Deus possui para encontrar novos caminhos (BRIGHENTI, 2014, p. 25).

Papa Francisco, no Encontro com os novos Bispos em Roma

Segundo,

os Bispos devem ser pastores, próximos das pessoas, pais e irmãos, com grande mansidão, pacientes e misericordiosos, capazes de escutar, compreender, ajudar e orientar. Homens que amem a pobreza, quer a pobreza interior como liberdade diante do Senhor, quer a pobreza exterior como simplicidade e austeridade de vida. Homens que não tenham psicologia de príncipe (BRIGHENTI, 2014, p. 25).

Papa Francisco, no Encontro com os novos Bispos em Roma

Terceiro,

o Bispo precisa ficar com o rebanho. Refiro-me à estabilidade, que tem dois aspectos específicos: “permanecer” na Diocese, e permanecer “nesta” Diocese, sem buscar transferências ou promoções. Os Bispos precisam ser homens que não sejam ambiciosos e que sejam esposos de uma Igreja, sem viver na expectativa de outra, melhor ou mais rica. Tenham o cuidado de não cair no espírito do carreirismo, que é um câncer na Igreja. Como pastores, não é possível realmente conhecer o próprio rebanho, caminhar na frente, no meio e atrás dele, cuidá-lo com o ensinamento, a administração dos sacramentos e o testemunho de vida, caso não permaneçamos na Diocese. Permaneçam junto ao rebanho; evitai o escândalo de ser bispo de aeroporto (BRIGHENTI, 2014, p. 25).

Papa Francisco, no Encontro com os novos Bispos em Roma

Finalmente, em contraposição aos censores do Documento de Aparecida, o papa Francisco resgata uma recomendação na formação dos futuros presbíteros. Falando da necessidade de “um projeto formativo do Seminário que ofereça aos seminaristas um verdadeiro processo integral: humano, espiritual, intelectual e pastoral, centrado em Jesus Cristo Bom Pastor, o “texto original” propunha o que os censores suprimiram: “Para isso, seria uma ajuda que os seminaristas se agrupassem em pequenas comunidades de oração e de vida, mas sempre mantendo a unidade formativa do Seminário e seu projeto” (DAp 319). Curiosamente, o papa Francisco, falando aos Superiores Gerais de Institutos Religiosos afirma: “se o seminário for muito grande, precisa-se separá-lo em comunidades menores com formadores que estejam capacitados a acompanhar, verdadeiramente, aqueles de sua responsabilidade. O diálogo deve ser sério, sem medo, sincero. É importante lembrar que a linguagem dos jovens em formação, hoje, é diferente daquela do passado: estamos vivendo uma mudança epocal. A formação é uma obra de arte, não uma ação policialesca. Devemos formar o coração dos jovens. Do contrário, formaremos pequenos monstros. E então estes pequenos monstros formarão o Povo de Deus. Isso me dá arrepios”.


10. A vida consagrada

Uma décima questão sensível, colocada em relevo pelos censores do Documento de Aparecida, é com relação à vida consagrada na Igreja e na sociedade. Na América Latina, um dos atores mais ativos e propositivos na recepção da renovação do Vaticano II, sem dúvida, foi a vida consagrada, com belas iniciativas de inserção no meio dos pobres.


O profetismo da vida religiosa inserida

A concepção conciliar da vida consagrada como sequela Christi levou amplos segmentos dos religiosos e religiosas a se inserirem no meio dos pobres, em perspectiva libertadora. Grande parte da produção da teologia da libertação foi gestada por religiosos, vivendo em estreita ligação com lugares sociais de exclusão. Evidente que também foram estes segmentos que sofreram os maiores embates com os setores mais conservadores da Igreja, reticentes à renovação do Vaticano II. É neste contexto que se deu, no final da década de 1980 a intervenção na CLAR pela Congregação dos Religiosos e a proibição de iniciativas da vida consagrada como o Projeto “Palavra Vida”. Em muitos pronunciamentos de setores antagônicos à perspectiva libertadora, a vida consagrada era taxada de “magistério paralelo”, exigindo “comunhão” dos religiosos com seus pastores e exercício de sua missão, “sob” as orientações do bispo local.

Esta postura desqualificadora da vida religiosa inserida nos meios populares, os censores também deixaram registada no “texto oficial” do Documento de Aparecida. O “texto original” dizia que os religiosos realizem sua missão, “[…] em mútua relação com os pastores”. Os censores substituíram “mútua relação” por “autêntica comunhão” e acrescentaram: “sob sua orientação” (DAp 223). Mostram também seu distanciamento com o testemunho das comunidades religiosas inseridas no meio dos pobres, acrescentando que, nesta inserção, “comunidades inteiras se secularizaram”.


O papa Francisco: respondam ao clamor dos pobres

Se para os censores, os institutos de vida consagrada precisam estar submissos aos bispos e distantes do mundo secular, para o papa Francisco, eles precisam estar inseridos entre os mais pobres e serem reconhecidos pelos bispos em sua autonomia. Em sua Carta Apostólica às pessoas consagradas: para a proclamação do ano da Vida Consagrada (publicada em 2014), o papa Francisco reafirma o que foi supresso do “texto original” do Documento de Aparecida, relativo à vida consagrada inserida nos meios dos pobres e a relação com os Bispos. Com relação ao lugar da vida consagrada, o Papa reafirma o que lhe é recorrente em seus pronunciamentos: “Espero ainda de vós o mesmo que peço a todos os membros da Igreja: sair de si mesmo para ir às periferias existenciais”. E continua:

A humanidade inteira aguarda: pessoas que perderam toda a esperança, famílias em dificuldade, crianças abandonadas, jovens a quem está vedado qualquer futuro, doentes e idosos abandonados, ricos saciados de bens, mas, com o vazio no coração, homens e mulheres à procura do sentido da vida, sedentos do divino… Não vos fecheis em vós mesmos, não vos deixeis asfixiar por pequenas brigas de casa, não fiqueis prisioneiros dos vossos problemas. Estes resolver-se-ão se sairdes para ajudar os outros a resolverem os seus problemas, anunciando-lhes a Boa Nova. Encontrareis a vida dando a vida, a esperança dando esperança, o amor amando.

Papa Francisco, em 2014, na sua Carta Apostólica às pessoas consagradas, n. 4

A insistência do papa Francisco sobre a presença dos religiosos nas periferias, também aparece de forma incisiva em sua fala no encontro com os Superiores Gerais de Congregações e Institutos Religiosos, dia 29 de novembro de 2013. O diálogo do Papa foi reproduzido por Antonio Spadaro e publicado pela revista La Civiltà Cattolica, na edição de janeiro de 2014: “Estou convencido de uma coisa: as grandes mudanças na história ocorreram quando a realidade não era vista a partir do centro, mas sim da periferia. Trata-se de uma questão hermenêutica: entende-se a realidade apenas se ela for olhada da periferia, e não quando nosso ponto de vista está equidistante de tudo. Para verdadeiramente entendermos a realidade, precisamos nos distanciar da posição central de calmaria e de paz, e nos dirigirmos às áreas periféricas. Estar aí ajuda-nos a ver e a entender melhor; ajuda-nos a analisar a realidade de forma mais correta, evitando o centralismo e abordagens ideológicas”. Para o Papa, é preciso conhecer a realidade via experiência:

Frequentemente faço referência a uma carta do Padre Pedro Arrupe, que foi o Superior Geral da Companhia de Jesus. Trata-se de uma carta enviada aos Centros de Investigación y Acción Social (CIAS). Nela o Padre Arrupe falava da pobreza e dizia que algumas horas semanais de contato com os pobres são necessárias. E isto é muito importante para mim: é necessário conhecer a realidade via experiência, passar certo tempo caminhando pela periferia buscando se familiarizar com ela e com as experiências de vida das pessoas.

Papa Francisco, em 29/11/2013, no Encontro com os Superiores Gerais de Congregações e Institutos Religiosos

Trata-se de diretrizes para a vida consagrada, que exigem mudanças na ação e nas estruturas. Em sua Carta Apostólica às pessoas consagradas, aqui já mencionada: para a proclamação do ano da Vida Consagrada, afirma:

De vós espero gestos concretos de acolhimento dos refugiados, de solidariedade com os pobres, de criatividade na catequese, no anúncio do Evangelho, na iniciação à vida de oração. Consequentemente almejo a racionalização das estruturas, a reutilização das grandes casas em favor de obras mais cônsonas às exigências atuais da evangelização e da caridade, a adaptação das obras às novas necessidades .

Papa Francisco, em 2014, na sua Carta Apostólica às pessoas consagradas, n. 4

E conclui:

A inventiva do Espírito gerou modos de vida e obras tão diferentes que não podemos facilmente catalogá-los ou inseri-los em esquemas pré-fabricados. Por isso, não consigo referir cada uma das inúmeras formas carismáticas. Mas, neste Ano, ninguém deveria subtrair-se a um sério controle sobre a sua presença na vida da Igreja e sobre o seu modo de responder às incessantes e novas solicitações que se levantam ao nosso redor, ao clamor dos pobres .

Papa Francisco, em 2014, na sua Carta Apostólica às pessoas consagradas, n. 5

A respeito da relação dos religiosos com a Igreja Local, particularmente os Bispos, o papa Francisco marca também um distanciamento da prática vigente, inclusive dos critérios das diretrizes que foram promulgadas, em 1978, pela Congregação para os Religiosos e pela Congregação para os Bispos, com o documento intitulado Mutuae relationes, que o Papa pede à mesma Congregação para revê-los. No mesmo encontro com os Superiores Gerais de Congregações e Institutos Religiosos, dia 29 de novembro de 2013, afirma: “aquele documento foi útil naquele período, mas agora está desatualizado. Os carismas dos vários institutos precisam ser respeitados e fomentados porque são necessários nas dioceses. Conheço por experiência os problemas que podem haver entre um bispo e as comunidades religiosas”. E continuou:

O fato é que conheço os problemas, mas também sei que os bispos nem sempre estão por dentro dos carismas e das obras dos religiosos. Nós, bispos, precisamos entender que as pessoas consagradas não são funcionárias, e sim presentes que enriquecem as dioceses. O envolvimento das comunidades religiosas nas dioceses é importante. O diálogo entre o bispo e os religiosos tem que ser resgatado, de modo que, devido à falta de entendimento de seus carismas, os bispos não vejam os religiosos simplesmente como instrumentos úteis.

Papa Francisco, em 29/11/2013, no Encontro com os Superiores Gerais de Congregações e Institutos Religiosos


Considerações finais

As dez questões selecionadas para ilustrar o posicionamento de determinados segmentos da Igreja em relação ao papa Francisco, concretamente, a intervenção dos censores do “texto original” do Documento de Aparecida, mostram a grata surpresa do resgate pelo magistério pontifício do profetismo da Igreja na América Latina. O que era periférico e aparentemente heterodoxo, repentinamente se faz centro e torna-se provocação para a Igreja inteira. Os “ventos do Sul” que sopravam há cinco décadas e sempre foram recebidos com suspeição, agora, sopram no coração da Igreja como um todo, graças ao “papa que vem do fim do mundo”, porta-voz das jovens Igrejas do Sul, particularmente da América Latina.

As razões mais profundas do cerceamento das proposições da Igreja na América Latina radicam na dificuldade em assimilar a renovação do Vaticano II, da qual a Igreja em nosso Continente fez uma recepção criativa em torno da Conferência de Medellín. De fato, em grande medida, as dez questões abordadas, entre as 40 maiores sinalizadas pelos censores do Documento de Aparecida, se constituem em tarefas pendentes no processo de implementação das reformas do Concílio, estancadas ou até mesmo desqualificadas nas últimas décadas, com a volta de uma Igreja alinhada ao perfil da neo-Cristandade. Tudo fazia crer que a renovação do Vaticano II era uma batalha perdida. Entretanto, a ascensão de um papa “do fim do mundo” significa esperança renovada.

Haverá futuro para as propostas da Igreja na América Latina, em grande medida assumidas pelo papa Francisco? Talvez até mais em outros continentes que no nosso. Se depender de muitos de nossos bispos e, sobretudo, de grande parte da nova geração de presbíteros, muitos deles fazendo as contas de quantos anos restam para este pontificado, dificilmente teremos uma nova primavera na Igreja. Nossa periferia, que agora se tornou centro, quase já não se reconhece naquele rosto de Igreja que ela mesma se plasmou em torno às CEBs, a Teologia da Libertação, a pastoral social, a leitura popular da Bíblia e o testemunho dos mártires das causas sociais. A esperança é que “os ventos do Sul”, que agora sopram no Norte que descobriu o teor e o valor da tradição eclesial libertadora, como o “vento impetuoso” de Pentecostes (cf. At 2,2), volte a “abrasar o coração” da periferia latino-americana, que ainda não assimilou o significado e o alcance de se ter um papa do “fim do mundo”, acolhendo e abençoando aquilo que até então era visto pelo centro como barbárie eclesial.

Notas

  1. Alocução no Encontro com a Comissão de Coordenação do CELAM, por ocasião de sua visita ao Brasil, no Centro de Estudos do Sumaré, Rio de Janeiro, dia 28 de julho.
  2. Alocução no Encontro com o Episcopado Brasileiro, por ocasião de sua visita ao Brasil, no Arcebispado do Rio de Janeiro, dia 27 de junho de 2013.
  3. Alocução no Encontro com o Episcopado Brasileiro, por ocasião de sua visita ao Brasil, no Arcebispado do Rio de Janeiro, dia 27 de junho de 2013.
  4. Alocução no Encontro com a Comissão de Coordenação do CELAM, por ocasião de sua visita ao Brasil, no Centro de Estudos do Sumaré, Rio de Janeiro, dia 28 de julho.
  5. Alocução no Encontro com a Comissão de Coordenação do CELAM, por ocasião de sua visita ao Brasil, no Centro de Estudos do Sumaré, Rio de Janeiro, dia 28 de julho.

Referências

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Fonte:

Revista Pistis & Praxis, Teologia e Pastoral, Curitiba, v. 8, n. 3, 673-713, set./dez. 2016.

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40010
Documento de Aparecida: o texto original, o texto oficial e o papa Francisco – terceira parte, com a palavra o teólogo pe. Agenor Brighenti https://observatoriodaevangelizacao.com/documento-de-aparecida-o-texto-original-o-texto-oficial-e-o-papa-francisco-terceira-parte-com-a-palavra-o-teologo-pe-agenor-brighenti/ Thu, 22 Jul 2021 13:45:44 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=39997 [Leia mais...]]]> O texto original do Documento de Aparecida — que teve à frente da Comissão de Redação o então cardeal Bergoglio — antes de ser publicado como texto oficial, sofreu ao redor de 250 mudanças. Diante da negativa da Presidência da V Conferência pela autoria das mudanças e oficiosamente do próprio papa Bento XVI, que se limitou a “autorizar” a publicação do texto, os autores das censuras no texto original do Documento de Aparecida (DAp), nunca foram revelados. Frente a isso, o curioso é constatar que o Papa Francisco, desde a primeira-hora de seu pontificado, em seus pronunciamentos e documentos, tem resgatado praticamente tudo aquilo que os censores do texto original de Aparecida tinham suprimido. É o “Papa do fim do mundo”, fazendo soprar desde a periferia os “ventos do Sul” no coração da Igreja como um todo. Trata-se da afirmação da tradição eclesial libertadora da Igreja na América Latina, antes sob suspeição e, agora, reconhecida e enriquecendo a Igreja inteira. Dentre as mais de duas centenas de mudanças, há umas 40 maiores e de fundo, das quais este estudo aborda 10 delas, apresentando seu teor no texto original de Aparecida, seguido das censuras presentes no texto oficial e o resgate do que foi suprimido pelos censores em pronunciamentos e documentos do papa Francisco.

Palavras-chave: Documento de Aparecida. Vaticano II. Papa Francisco. Igreja na América Latina. Magistério Pontifício.

(Obs.: Esta é a TERCEIRA PARTE do texto do teólogo pastoralista Agenor Brighenti publicado na Revista Pistis e Práxis. Teologia e Pastoral. Adaptação para o Observatório da Evangelização é de Edward Guimarães. Os grifos são nossos.)

4. O método ver-julgar-agir

Uma quarta questão sensível colocada em relevo pelos censores do Documento de Aparecida é com relação à racionalidade moderna, indutiva e histórica, em contraposição a uma racionalidade dedutiva e essencialista, pré-moderna. O método ver-julgar-agir, idealizado por J. Cardijn, fundador da Ação Católica especializada, marca a recepção nos meios eclesiais da racionalidade moderna, primeiro na pastoral e, depois, na reflexão teológica. A pedagogia cardjiniana toma distância de uma racionalidade dedutiva, a-histórica, metafísica, escolástica, que a modernidade, desde o século XVI, havia superado. A racionalidade moderna é histórica, indutiva, articulada a partir da práxis ou da experiência. Como observa K. Rahner, na modernidade a teologia se faz antropologia, no sentido que a experiência da transcendência só pode ser apreendida a partir da imanência.

O método ver-julgar-agir, idealizado por J. Cardin em 1925, entrou no magistério pontifício através do papa João XXII, na encíclica Mater et magistra, em 1961, como metodologia de ação. O Concílio Vaticano II, alicerçado na relevância de uma leitura dos “sinais dos tempos”, na Gaudium et spes, fará dele um método teológico (leitura dos sinais dos tempos, iluminação da Palavra, compromisso pastoral), que irá influenciar diretamente a Igreja na América Latina, dando origem à Teologia da Libertação e seu método — mediação sócio-analítica, mediação hermenêutica, mediação da práxis.

Na Igreja, setores antagônicos à racionalidade e aos ideais da modernidade, bem como atrelados à teologia escolástica, sempre mostraram resistências ao método ver-julgar-agir, já com relação à Ação Católica, acusando-a de sociologização ou marxização da fé. Na América Latina, sobretudo com o advento da Teologia da Libertação, estes segmentos eclesiais trataram de suplantar o método por pedagogias dedutivas e a-históricas. Na Conferência de Santo Domingo, a metodologia de trabalho e a estrutura do documento, planejadas de modo indutivo, foi suplantada por estes segmentos por uma metodologia dedutiva, para estranhamento da maioria dos membros da Assembleia.

Aparecida e o método ver-julgar-agir

A Conferência de Aparecida resgatou o método ver-julgar-agir, ainda que não sem dificuldades. O método se fazia presente, não só no conteúdo, como na própria estrutura do Documento. Entretanto, na redação final apresentada à Assembleia para a votação conclusiva, o atual capítulo primeiro com o título Os discípulos missionários estava originalmente no início da segunda parte, intitulada A vida de Jesus Cristo nos discípulos missionários , e não na primeira parte A vida de nossos povos hoje como se encontra. Apesar das moções da Assembleia para reverter a ordem dos capítulos, a Presidência não voltou atrás.

Expressão da resistência a uma racionalidade indutiva e histórica e do apego ao procedimento metodológico da teologia escolástica, são as supressões e interpolações dos censores na caracterização do método ver-julgar-agir no “texto original”, que dizia: “Este documento continua a prática do método ver, julgar, agir”. Substituiu-se “continua a prática” por “faz uso” do método. E acrescentou-se:

Este método implica em contemplar a Deus com os olhos da fé através de sua Palavra revelada e o contato vivificador dos Sacramentos, a fim de que, na vida cotidiana, vejamos a realidade que nos circunda à luz de sua providência e a julguemos segundo Jesus Cristo, Caminho, Verdade e Vida, e atuemos a partir da Igreja, Corpo Místico de Cristo e Sacramento universal de salvação, na propagação do Reino de Deus, que se semeia nesta terra e que frutifica plenamente no Céu.

Documento de Aparecida, n. 19


Em resumo, ver à luz da Providência, julgar segundo Jesus Cristo e agir a partir da Igreja, ou seja, uma teologia que não se articula a partir da experiência, da história, dos acontecimentos, dos sinais dos tempos e, portanto, a-histórica, dedutiva, é irrelevante para seu contexto. Aqui aparece a dificuldade dos censores em reconhecer a densidade teologal da história, da experiência humana, da vida cotidiana, dos fatos. É aquela mentalidade que o “profano” não tem nada a dizer para a Igreja e que a secularização, enquanto reconhecimento da autonomia do temporal, atenta contra o espiritual.

Papa Francisco: a realidade é mais importante do que a ideia

Se para os censores do Documento de Aparecida, os pressupostos são mais importantes que o contexto histórico, para o papa Francisco, a realidade é mais importante do que a ideia. O Papa pensa e fala na perspectiva do ver-julgar-agir. Tomando distância de uma racionalidade essencialista e dedutiva, o papa Francisco afirma em Evangelii gaudium que a realidade é complexa, plural, conflitiva e opaca, que precisa ser descoberta, através de um discernimento (EG 194). Daí a necessidade de um olhar integral sobre a realidade, sem a pretensão de um olhar neutro e asséptico (EG 50): “a tentação se encontraria em optar por um ver totalmente asséptico, um ver neutro, o que não é viável. O ver está sempre condicionado pelo olhar. Não há uma hermenêutica asséptica” (apud IRMÃS PAULINAS, 2013, p. 139)1. Por isso, a realidade não pode ser decifrada, de cima para baixo, e para o mundo inteiro — “nem o Papa nem a Igreja possuem o monopólio da interpretação da realidade” (EG 184).

E acusando recepção da razão histórica entende que a realidade é mais importante do que a ideia, pois esta não passa de uma interpretação daquela (EG 231). Nem o olhar da fé consegue eliminar toda a ambiguidade da realidade concreta (EG 233) que, por ser histórica, está “em permanente desenvolvimento, cujo protagonista é o Espírito Santo” (EG 122). Trata-se de “uma realidade nunca acabada” (EG 126).

O papa Francisco assume também, na racionalidade, as contingências dos sujeitos que veem. Frisa que a realidade é apreendida na vida social onde recebemos os referenciais culturais (EG 115), vida social esta que influencia inclusive o modo de interpretar a realidade à luz da fé. A própria doutrina não é uma realidade “monolítica, a ser defendida sem nuances” (EG 40). Por isso, a hermenêutica da realidade é sempre comunitária, imperativo para um discernimento comum, o que vai ao encontro das exigências da razão comunicativa, colocada em relevo no atual contexto de crise da modernidade.


5. As Comunidades Eclesiais de Base

Uma das partes mais censuradas do “texto original” do Documento de Aparecida é a referente às Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Os censores têm consciência de sua importância e significado para a Igreja na América Latina, antes mero reflexo da Igreja europeia, agora uma Igreja com rosto próprio e uma palavra própria. Na verdade, as CEBs enquanto eclesiogênese2, não são uma criação da Igreja na América Latina. Ela se alicerça sobre a experiência paradigmática da Igreja primitiva, organizada em domus ecclesiae, toda ela ministerial, inserida no seio da sociedade secular, em perspectiva profética. O martírio é a mais contundente prova de sua presença transformadora.

Na América Latina, sobretudo a partir de países como Brasil, Panamá, Chile e outros, as CEBs foram assumidas e recomendadas pelos Bispos na Conferência de Medellín e logo tiveram grande impulso em todo o Continente. A exemplo da Igreja primitiva, o centro está na Palavra de Deus e nas CEBs, em forma de “leitura popular da Bíblia”3, como também a inserção profética numa sociedade marcada pela injustiça institucionalizada, gerando tensões tanto no seio da Igreja como dos Estados sob as ditaduras militares. Na Conferência de Puebla, os setores mais conservadores da Igreja já se contrapuseram a este “novo modo de ser Igreja”, acusando as CEBs de constituírem-se em uma “Igreja popular”, contraposta à hierarquia, bem como de politizar a fé. Na Conferência de Santo Domingo, propala-se “os movimentos” de apostolado de classe média como a “nova primavera da Igreja”, respaldados por uma determinada “nova evangelização”, em perspectiva de neo-Cristandade.

Aparecida: é preciso dar novo impulso às CEBs

Uma das gratas surpresas de Aparecida foi o resgate das CEBs, reconhecendo seu valor e recomendando seu reimpulso em todo o Continente. Entretanto, os censores fizeram mudanças substanciais no “texto original” a respeito. No número 178, substitui-se: “Constata-se, em muitos lugares, um florescimento de comunidades eclesiais de base”; por “… em alguns lugares”. E acrescentou-se: “segundo o critério das Conferências Gerais anteriores”. E suprimiu-se, no final deste número: “Arraigadas no coração do mundo, são espaços privilegiados para a vivência comunitária da fé, mananciais de fraternidade e de solidariedade, alternativa à sociedade atual, fundada no egoísmo e na competição desmedida”. E, acrescentou-se: “Puebla constatou que as pequenas comunidades, sobretudo as comunidades eclesiais de base, permitiram ao povo chegar a um conhecimento maior da Palavra de Deus, ao compromisso social em nome do Evangelho, ao surgimento de novos serviços leigos e à educação da fé dos adultos, no entanto, também constatou que não tem faltado membros de comunidade ou comunidades inteiras que, atraídas por instituições puramente leigas ou radicalizadas ideologicamente, foram perdendo o sentido eclesial”.

No número 179, suprimiu-se: “Queremos decididamente reafirmar e dar novo impulso à vida e missão profética e santificadora das CEBs”; “elas têm sido uma das grandes manifestações do Espírito na Igreja da América Latina e o Caribe, após o Vaticano II”,

depois do caminho percorrido até o momento, com conquistas e dificuldades, é o momento de uma profunda renovação desta rica experiência eclesial em nosso Continente, para que não percam sua eficácia missionária, antes que a aperfeiçoem e a enriqueçam, de acordo com as sempre novas exigências dos tempos.

Documento original

Neste mesmo número, suprimiu-se, também: “As CEBS em comunhão com seu bispo e o projeto de pastoral diocesana, são um sinal de vitalidade na Igreja, instrumento de formação e de evangelização, e um ponto de partida válido para a Missão Continental permanente”; e acrescentou-se:

Mantendo-se em comunhão com seu bispo e inserindo-se no projeto de pastoral diocesana, as CEBs se convertem em um sinal de vitalidade na Igreja particular. Atuando, dessa forma, juntamente com os grupos paroquiais, associações e movimentos eclesiais, podem contribuir para revitalizar as paróquias fazendo das mesmas uma comunidade de comunidades.

Documento oficial de Aparecida, n. 179

No mesmo número, suprimiu-se: “Elas poderão revitalizar a paróquia, desde seu interior, fazendo das mesmas uma comunidade de comunidades”, substituindo-se por: “Atuando, assim, juntamente com os grupos paroquiais, associações e movimentos eclesiais, podem contribuir para revitalizar as paróquias, fazendo delas, uma comunidade de comunidades”. Finalmente, acrescentou-se, ao final do número: “Em seu esforço de corresponder aos desafios dos tempos atuais, as comunidades eclesiais de base terão cuidado para não alterar o tesouro precioso da Tradição e do Magistério da Igreja”.

No número 180, ao falar da validade de outras formas de pequenas comunidades, os censores acrescentaram, além destas, também os “movimentos”. E substitui-se: “Junto com as CEBs, há outras ‘variadas’ formas de pequenas comunidades”, por “outras ‘válidas’ formas”; substituiu-se, também: “A experiência positiva destas comunidades torna necessária uma especial atenção para que tenham a Eucaristia como centro de sua vida e cresçam em solidariedade e integração eclesial e social”, por: “todas as comunidades e grupos eclesiais darão fruto na medida em que a
Eucaristia seja o centro de sua vida e a Palavra de Deus seja o farol de seu caminho e sua atuação na única Igreja de Cristo”.

Como se pode perceber, a mudança no “texto original” com relação às CEBs foi profunda, com supressões, acréscimos e reformulações de redação. Permanecem elementos importantes, mas privados da contundência e profetismo do “texto original”, contrapostos com a obsessiva insistência de inserção das CEBs na paróquia, sem o devido reconhecimento que elas redundam num novo tipo de paróquia, comunidade de pequenas comunidades. Deliberadamente, se desqualifica a “decidida reafirmação” das CEBs feita pelos Bispos, bem como o convite de dar-lhes “novo impulso”. No fundo, está em jogo a eclesiologia do Vaticano II e, sobretudo, o novo rosto de Igreja que as CEBs deram à Igreja na América Latina.

Papa Francisco: as CEBs, riqueza que o Espírito suscita

Se para os censores do Documento de Aparecida as CEBs pervertem o magistério, não estão em comunhão com a paróquia e os movimentos devem ter mais destaque, para o papa Francisco, elas combatem o clericalismo e renovam a paróquia e são riqueza que o Espírito suscita. Pela primeira vez já na longa história dos Intereclesiais das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) no Brasil, o evento tem recebido a palavra de apoio de um papa. O papa Francisco, em sua mensagem, retoma o Documento de Aparecida, que se refere às CEBs como um instrumento que permite ao povo “chegar a um conhecimento maior da Palavra de Deus, ao compromisso social em nome do Evangelho, ao surgimento de novos serviços leigos e à educação da fé dos adultos” (DAp 178).

Na Evangelii gaudium, ele frisa ser necessário “reconhecer que, se uma parte de nosso povo batizado não sente a sua pertença à Igreja, isso deve-se também à existência de estruturas com clima pouco acolhedor em algumas de nossas paróquias e comunidades, ou à atitude burocrática com que se dá resposta aos problemas, simples ou complexos, da vida de nossos povos. Em muitas partes, predomina o aspecto administrativo sobre o pastoral, bem como uma sacramentalização sem outras formas de evangelização (EG 63).

Ao abordar a questão de uma “pastoral em conversão”, fala que as Comunidades de Base como “uma riqueza da Igreja que o Espírito suscita para evangelizar todos os setores e ambientes”. Elas trazem um novo ardor evangelizador e uma capacidade de diálogo com o mundo, que renovam a Igreja”. Mas, conhecedor das tensões ainda existentes em torno a elas, frisa a necessidade de que elas “não percam o contato com esta realidade muito rica da paróquia local e que se integrem de bom grado na pastoral orgânica da Igreja particular” (EG 29).

6. A inculturação

Uma sexta questão sensível, colocada em relevo pelos censores do Documento de Aparecida, é com relação à inculturação da fé, à legitimidade de Igrejas autóctones, com rosto próprio. A Igreja na América Latina, com a “recepção criativa” do Vaticano II feita pela Conferência de Medellín, desencadeou um processo gradativo de construção de uma Igreja autóctone, com rosto próprio.

Tarefa pendente: a inculturação no mundo indígena e afro-americano

Sobretudo os indígenas e os afro-americanos, como reconhece o Documento de Aparecida, são povos que reivindicam serem tomados em conta na catolicidade (DAp 91). As teologias índia e afro-americana são expressões desta legítima aspiração, que tem contribuído para processos de uma evangelização inculturada no Continente. Entretanto, também neste campo, não faltaram mal-entendidos, tensões e conflitos com segmentos mais conservadores da Igreja. Eles argumentam o perigo da perda da catolicidade ou da unidade na mesma fé, nem sempre distinguindo unidade e diversidade, como frisou o Vaticano II. E têm obstaculizado muitos processos de inculturação da fé, seja na liturgia, na criação de ministérios ou na teologia.

Esta preocupação está registrada nas mudanças que os censores fizeram no “texto original” do Documento de Aparecida. Por exemplo, diziam os Bispos: “Permanece ainda nos imaginários coletivos uma mentalidade e uma visão colonial com relação aos povos originários e afro-americanos”. A redação foi substituída por: “Permanece, em alguns casos, uma mentalidade e um certo olhar de menor respeito em relação aos indígenas e afro-americanos” (DAp 96). Mais adiante, ao falar da formação dos agentes de pastoral, o “texto original” dizia e foi supresso pelos censores: “Faz falta uma sólida estrutura de formação permanente dos fiéis, em outros agentes de pastoral e uma evangelização mais inculturada em todos os níveis, particularmente nas culturas indígenas e afro-americanas” (DAp 100).

Papa Francisco: ir para as periferias, sem domesticar as fronteiras

Unidade confundida com uniformidade, medo do diferente, distância das culturas indígenas e afro-americanas são posturas que os censores deixam entrever em seus posicionamentos, ao contrário do papa Francisco, que desafia a Igreja ir para as periferias, sem domesticar as fronteiras. Em mais de uma oportunidade, também em sua visita ao Brasil, o papa Francisco desafia a Igreja sair de si mesma, do centro, e ir para as ruas, às fronteiras. Seu pensamento recorrente e insistente frisa que “uma Igreja que não sai de si mesma adoece, cedo ou tarde, em meio à atmosfera pesada do seu próprio fechamento. A doença típica da Igreja fechada é ser autorreferencial; olhar para si mesma, ficar encurvada sobre si mesma, como aquela mulher do Evangelho. É uma espécie de narcisismo que nos leva ao mundanismo espiritual (EG 93) e ao clericalismo sofisticado, e, depois, nos impede de experimentar a doce e reconfortante alegria de evangelizar” (BRIGHENTI, 2014, p. 21).

Para uma Igreja missionária capaz de chegar a todos, sobretudo, aos pobres e esquecidos, é preciso que haja uma reforma de suas estruturas. Na Evangelii gaudium, afirma o papa Francisco que se trata de “fazer com que todas as estruturas da Igreja se tornem mais missionárias; que a pastoral ordinária, em todas suas instâncias, seja mais expansiva e aberta; que coloque os agentes de pastoral em constante atitude de saída”. O critério específico para a reforma das estruturas da Igreja é a missão e não a sofisticação administrativa. Para o Papa, a “mudança das estruturas” (das caducas para as novas) não é “fruto de um estudo de organização do sistema funcional eclesiástico” (EG 25). O que derruba as estruturas caducas, o que leva a mudar os corações dos cristãos é justamente a missionariedade (EG 28).

Na perspectiva do dinamismo de uma evangelização inculturada, o papa Francisco, em entrevista à Revista La Civiltà Cattolica, exorta que ao sair para as ruas, é preciso ficar atentos, para não cair na “tentação de domesticar as fronteiras: deve ir-se em direção às fronteiras, e não trazer as fronteiras para casa a fim de envernizá-las um pouco e domesticá-las”. É o respeito à alteridade, a acolhida dos diferentes, estar disposto a deixar-se surpreender e aprender com as diferenças, dado que na evangelização não temos destinatários, mas interlocutores (EG 234). Em lugar de uma missão proselitista e domesticadora, um processo de evangelização pautado pelo testemunho e o diálogo é condição para o anúncio do querigma.

Na Evangelii gaudium, o papa Francisco afirma que a inculturação é a analogia pastoral da encarnação do Verbo. Na verdade, esta é a base teológica do imperativo de uma evangelização como inculturação do Evangelho. O dom de Deus se encarna na cultura de quem o recebe, diz ele. Lembra que a Igreja, como Povo de Deus, se encarna nos povos da Terra e cada um deles tem sua própria cultura” (EG 115). Consequentemente, o Evangelho inserido e inculturado “num povo, no seu processo de transmissão cultural, também transmite a fé de maneira sempre nova. Daí a importância da evangelização entendida como inculturação” (EG 122).

Falando do processo de uma evangelização inculturada, o papa Francisco frisa na Evangelii gaudium que “pela inculturação, a Igreja introduz os povos com as suas culturas na sua própria comunidade, porque cada cultura oferece formas e valores que podem enriquecer o modo como o Evangelho é compreendido e vivido” (EG 116). Por isso, está “na lógica da Encarnação pensar num cristianismo pluricultural” (EG 117). O conteúdo do Evangelho é transcultural, mas se encarna em cada cultura. Assim, conclui o Papa, não é correto pensar que “o anúncio evangélico tenha de ser transmitido sempre com determinadas fórmulas preestabelecidas, que exprimam um conteúdo absolutamente invariável” (EG 129).

Notas:

  1. Alocução no Encontro com a Comissão de Coordenação do CELAM, por ocasião de sua visita ao Brasil, no Centro de Estudos do Sumaré, Rio de Janeiro, dia 28 de julho.
  2. A Conferência de Medellín, em sintonia como o modelo de Igreja na era primitiva, refere-se às CEBs como “célula inicial da estruturação eclesial” (Med 6,1).
  3. Este tipo de leitura bíblica, feita no interior das Comunidades Eclesiais de Base, foi popularizada e amplamente divulgado pelos roteiros dos “Círculos Bíblicos”, elaborados por Frei Carlos Mesters.

Fonte:

Revista Pistis & Praxis, Teologia e Pastoral, Curitiba, v. 8, n. 3, 673-713, set./dez. 2016.

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Documento de Aparecida: O texto original, o texto oficial e o papa Francisco – Segunda PARTE, COM A PALAVRA O TEÓLOGO PE. AGENOR BRIGHENTI https://observatoriodaevangelizacao.com/documento-de-aparecida-o-texto-original-o-texto-oficial-e-o-papa-francisco-segunda-parte-com-a-palavra-o-teologo-pe-agenor-brighenti/ Wed, 21 Jul 2021 18:27:32 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=39974 [Leia mais...]]]> O texto original do Documento de Aparecida — que teve à frente da Comissão de Redação o então cardeal Bergoglio — antes de ser publicado como texto oficial, sofreu ao redor de 250 mudanças. Diante da negativa da Presidência da V Conferência pela autoria das mudanças e oficiosamente do próprio papa Bento XVI, que se limitou a “autorizar” a publicação do texto, os autores das censuras no texto original do Documento de Aparecida (DAp), nunca foram revelados. Frente a isso, o curioso é constatar que o Papa Francisco, desde a primeira-hora de seu pontificado, em seus pronunciamentos e documentos, tem resgatado praticamente tudo aquilo que os censores do texto original de Aparecida tinham suprimido. É o “Papa do fim do mundo”, fazendo soprar desde a periferia os “ventos do Sul” no coração da Igreja como um todo. Trata-se da afirmação da tradição eclesial libertadora da Igreja na América Latina, antes sob suspeição e, agora, reconhecida e enriquecendo a Igreja inteira. Dentre as mais de duas centenas de mudanças, há umas 40 maiores e de fundo, das quais este estudo aborda 10 delas, apresentando seu teor no texto original de Aparecida, seguido das censuras presentes no texto oficial e o resgate do que foi suprimido pelos censores em pronunciamentos e documentos do papa Francisco.

Palavras-chave: Documento de Aparecida. Vaticano II. Papa Francisco. Igreja na América Latina. Magistério Pontifício.

(Obs.: Esta é a SEGUNDA PARTE do texto do teólogo pastoralista Agenor Brighenti publicado na Revista Pistis e Práxis. Teologia e Pastoral. Adaptação para o Observatório da Evangelização é de Edward Guimarães. Os grifos são nossos.)

2. A opção pelos pobres

Outra questão sensível colocada em relevo pelos censores do Documento de Aparecida, é em relação aos pobres. A opção pelos pobres, tal como afirmou o papa Bento XVI em Aparecida, “radica na fé cristológica”, embora nem sempre tenha sido preferencial na Igreja. O papa João XXIII, consciente da “irrupção do Terceiro Mundo”, tal como acusam as Encíclicas Mater et magistra (1961) e Pacem in terris (1963), ao convocar o Vaticano II, sonhou com “uma Igreja pobre e para os pobres, para que seja a Igreja de todos”. Durante o Concílio, o “Grupo Igreja dos Pobres” que se reunia junto ao cardeal Lercaro e o “Pacto das Catacumbas” em torno a dom Hélder Câmara, trouxeram esta sensibilidade para dentro da aula conciliar. Terminado o Concílio, o papa Paulo VI, assumindo a perspectiva dos pobres do “Terceiro Mundo”, publicou a Populorum progressio (1967), que iria ter influência decisiva sobre a Conferência de Medellín (1968) e a explicitação e tematização da opção preferencial pelos pobres na vida cristã.

Na América Latina, em pleno período de ditaduras militares, que se impuseram sob o patrocínio dos Estados Unidos em quase todos os países do Continente, a Igreja, consequente com a opção pelos pobres, adquire um rosto profético e libertador, em torno das comunidades eclesiais de base, da leitura popular da Bíblia, da pastoral social, da teologia da libertação e aos mártires das causas sociais. A repressão não tardou a se impor fora da Igreja pelos regimes de exceção e, dentro dela, mal-entendidos e difamações proliferaram por meio de segmentos reticentes à renovação do Vaticano II.


A opção pelos pobres adjetivada pelos censores

As tensões em torno à opção pelos pobres se fizeram presentes também na Conferência de Aparecida. Por um lado, a afirmação do papa Bento XVI no Discurso Inaugural de que é uma opção que se “radica na fé cristológica” (apud DAp 393), livrou a Assembleia de debates em torno à questão, prestando um grande serviço aos bispos. Mas, por outro lado, os censores se encarregaram de adjetivá-la no “texto oficial”, corrigindo o “texto original”. Sempre que o texto se referia à “opção pelos pobres”, acrescentou-se: “Ela, não obstante, não é nem exclusiva, nem excludente” (DAp 392).

Ora, a opção pelos pobres, desde que foi tematizada pela Igreja na América Latina em torno à Conferência de Medellín, se sabe que não é uma opção contra os ricos, mas contra a pobreza e a exclusão, à qual os ricos precisam também estar engajados. A desconfiança de que a opção pelos pobres é classista é ainda ranço do temor do marxismo, que tanto as ditaduras militares como os setores conservadores da Igreja mantiveram por décadas. Este temor aparece também na cristologia. O “texto original” refere-se a Jesus, “feito pobre” e os censores mudaram no “texto oficial” por “feito homem” (DAp 176). Na realidade, se não compreendem a opção pelos pobres feita por Jesus, muito menos vão compreender o sentido e o alcance da mesma opção, feita por cristãos engajados na construção de uma sociedade onde caibam todos.


Papa Francisco: os pobres são a carne de Cristo

Um Jesus Cristo pobre, que fez opção pelos pobres e assumiu a defesa deles como causa mesma de Deus, é matizado pelos censores do Documento de Aparecida, mas não pelo papa Francisco. Em seu modo de ser e em seus pronunciamentos, a opção pelos pobres é uma questão central. Na inauguração de seu pontificado, inspirado em João XXIII e alicerçado no testemunho dos mártires das causas socais da Igreja na América Latina, o papa Francisco expressou seu desejo incômodo: “como eu gostaria de uma Igreja pobre, para os pobres!” (EG 198). E começou por ele mesmo: pagando suas contas no dia seguinte à sua eleição, simplificando seus trajes, trocando o “trono” por uma cadeira, conservando sua cruz peitoral e seus sapatos pretos, utilizando carro modesto… É a expressão da acolhida da famosa admoestação de São Bernardo ao seu confrade cisterciense, eleito papa Eugênio III: “não te esqueça que és o sucessor de um pescador e não do imperador Constantino”. Em entrevista a um jornalista italiano, o papa Francisco disse que “os chefes da Igreja, geralmente, têm sido narcisistas, adulados e exaltados pelos seus cortesãos. A corte é a lepra do papado” (BRIGHENTI, 2014, p. 17).

Em sua visita ao Brasil o papa Francisco repetiu em diversas ocasiões: “a Igreja deve sempre lembrar, que não pode afastar-se da simplicidade” (apud IRMÃS PAULINAS, 2013, p. 91)1. Prestígio e poder são classificados por ele de “mundanismo”, pois afasta a Igreja da proposta evangélica do Reino de Deus, inaugurado e mostrado em Jesus de Nazaré (EG 93). Em Evangelii gaudium afirma que

este escuro mundanismo se manifesta em muitas atitudes aparentemente opostas, mas com a mesma pretensão de ‘dominar o espaço da Igreja’. Em alguns, há um cuidado ostentoso da liturgia, da doutrina e do prestígio da Igreja, mas sem preocupá-los que o Evangelho tenha uma real inserção no Povo de Deus e nas necessidades concretas da história. Assim, a vida da Igreja se converte em peça de museu ou em uma posse de poucos.

Papa Francisco, Evangelii Gaudium, n. 95

Coerente com o espírito da “opção pelos pobres”, tão bem explicitada e tematizada pela teologia latino-americana, o papa Francisco faz dos pobres uma questão primeira e central na vida da Igreja e de seu pontificado. A preocupação primeira do papa Francisco não é sua autoridade ou imagem pública, nem a doutrina da Igreja ou discursos bem arquitetados, mas o sofrimento e causa dos pobres no mundo, que são a causa de Deus. Como Jesus veio “para que todos tenham vida e vida em abundância” (Jo 10,10), a prioridade não é a religião, mas a vida minguada e ameaçada de dois terços da humanidade. Nisto está a essência do Evangelho, pois recolhe o modo de relação de Jesus com o sofrimento dos doentes, dos pobres, dos desprezados, sejam eles pecadores ou publicanos, crianças silenciadas ou mulheres desprezadas.

Para o papa Francisco, urge “uma Igreja pobre e para os pobres” (EG 198) reais, não virtuais, numa opção pelos pobres espiritualista. Como disse numa obra social em Roma e repetiu no Brasil: “vocês, os pobres, são a carne de Cristo”2 (apud IRMÃS PAULINAS, 2013, p. 30). Os pobres prolongam a paixão de Cristo, na paixão do mundo (Leonardo Boff). Por isso, para o Papa, “é nas favelas, nas vilas miséria, onde se deve ir buscar e servir a Cristo” (ibid., p. 71)7. No Centro Astalli, respondendo algumas perguntas sobre “periferias existenciais”, o Papa encoraja os institutos religiosos com poucas vocações a não venderem os seus edifícios, mas abri-los aos necessitados. E acrescentou: “a realidade é melhor entendida a partir da periferia do que do centro, que corre o risco da atrofia” (BRIGHENTI: 2014, p. 18).

Em Evangelii gaudium, diante de tantas espiritualidades alienantes, o papa Francisco clama por um cristianismo encarnado: “mais do que o ateísmo, hoje se coloca o desafio de responder adequadamente à sede de Deus de muita gente, para que não busquem apagá-la com propostas alienantes ou em um Jesus Cristo sem carne e sem compromisso com o outro. Se não encontram na Igreja uma espiritualidade que os sane, liberte, os encha de vida e de paz, ao mesmo tempo em que os convoque à comunhão solidária e à fecundidade missionária, acabarão enganados por propostas que não humanizam, nem dão glória a Deus” (EG 89).

3. Sistema econômico-político e ecologia

Uma terceira questão sensível, colocada em relevo pelos censores do Documento de Aparecida, é com relação ao sistema liberal capitalista. Diz Y. Calvez que na Doutrina Social do magistério pontifício, com relação ao sistema coletivista marxista, a posição da Igreja foi sempre de uma intrínseca incompatibilidade com os princípios cristãos. Entretanto, diz ele, com o sistema liberal capitalista, sempre permaneceu um posicionamento ingênuo, no sentido de que ele é humanizável ou reformável, quando na realidade é tão contraditório com a mensagem cristã quanto o coletivismo marxista.

Na Conferência de Puebla, os Bispos da América Latina e Caribe, diferente do posicionamento ingênuo do magistério social pontifício, tomaram uma posição clara: nem coletivismo marxista e nem capitalismo, pois se o marxismo professa um ateísmo teórico e prático, o sistema capitalista, embora não seja teoricamente ateu, na medida em que coloca no centro o “ter” ou o lucro, é também ateu, pois professa um ateísmo prático.

O profetismo silenciado

Em Aparecida, em diversos momentos do processo de redação do Documento, se quis introduzir no texto uma análise mais contundente do sistema liberal capitalista, mas sempre esbarrou na oposição de determinados segmentos da assembleia. Entretanto, tanto no econômico como no campo político e no ecológico, o “texto original” tinha posicionamentos proféticos, mas que depois os censores matizaram ou suprimiram.

Com relação ao econômico, o “texto original” dizia: “Entretanto, segundo a Doutrina Social da Igreja, a Economia Social de Mercado continua sendo uma forma idônea de organizar o trabalho, o conhecimento e o capital, para satisfazer as autênticas necessidades humanas”. No “texto oficial” aparece: “Entretanto, segundo a Doutrina Social da Igreja, o objeto da economia é a formação da riqueza e seu incremento progressivo, em termos não só quantitativos, mas qualitativos: tudo é moralmente correto se está orientado para o desenvolvimento global e solidário do homem e da sociedade na qual vive e trabalha. O desenvolvimento, na verdade, não pode se reduzir a um mero processo de acumulação de bens e de serviços. Ao contrário, a pura acumulação, ainda que para o bem comum, não é uma condição suficiente para a realização de uma autêntica felicidade humana” (DAp 69). Com relação ao tráfico de droga, o “texto original” apontava para a raiz do problema — o sistema socioeconômico e cultural dos grupos dominantes, do qual são vítimas também os pequenos traficantes das favelas. Diziam os bispos: “É muito dolorosa a situação de tantas pessoas e, em sua maioria jovens, que são vítimas da voracidade insaciável de interesses econômicos de que comercializam a droga”. Os censores suprimiram o texto e abordam o problema na perspectiva da repressão ao tráfico por parte do Estado, da educação da juventude e da assistência aos drogados (DAp 422).

No campo político, os censores se mostram permeáveis à preocupação dos setores tradicionalmente dominantes, frente ao poder que os pobres vão gradativamente conquistando de modo democrático, sobretudo os indígenas. O “texto original” do Documento de Aparecida dizia: “Constatamos como fato positivo o fortalecimento dos regimes democráticos em muitos países da América Latina e Caribe, segundo demonstram os últimos processos eleitorais”. O “texto oficial” matiza: “Constatamos um certo processo democrático que se demonstra em diversos processos eleitorais” (DAp 74)

No campo da ecologia, não se explica porque os censores suprimiram do texto a referência às águas e aos recursos naturais. Dizia o “texto original”: “[…] não um planeta com ar contaminado, com águas envenenadas e com recursos naturais esgotados”. E, acrescentou-se: “Felizmente, em algumas escolas católicas, começou-se a introduzir entre as disciplinas uma educação em relação à responsabilidade ecológica” (DAp 471).


Papa Francisco: esta economia mata

Um mercado que tome em conta o social e o bem comum, as contradições do atual sistema econômico com os ideais evangélicos, assim como Estados, na história recente da América Latina, promotores de políticas públicas de inclusão social, são desqualificados pelos censores do Documento de Aparecida, mas não pelo papa Francisco. Na melhor tradição franciscana, o papa Francisco frisa que “o cristianismo combina transcendência e encarnação” (apud IRMÃS PAULINAS, 2013, p. 79)3. Por isso, diz aos jovens, no Rio de Janeiro: “ninguém pode permanecer insensível às desigualdades que ainda existem no mundo” (ibid., p. 39)4. É preciso tomar posição, ir à ação: “quero que a Igreja saia às ruas, defendendo-se de tudo o que seja mundanismo, instalação, comodidade, clericalismo, estar fechada em si mesma” (ibid., p. 44). Nem é preciso perguntar-se muito sobre o que fazer: “com as Bem-aventuranças e Mateus 25, 31-46 (parábola do juízo final), se têm um programa de ação” (ibid. p. 46). Para o Papa, o grande desafio para os cristãos, consequentes com o Evangelho da vida, é “não deixar entrar em nosso coração a cultura do descartável. Ninguém é descartável!” (ibid., p. 40). Por isso, “tenham a coragem de ir contra a corrente dessa cultura eficientista, dessa cultura do descarte” (ibid., p. 74). Em nossa sociedade, hoje, “a exclusão dos jovens e dos idosos é uma eutanásia oculta” (ibid. p. 44).

Isso não se resolve simplesmente apelando para milagres, curas, ações paternalistas ou saídas providencialistas. Em Evangelii gaudium, o papa Francisco frisa que “ninguém pode nos exigir que releguemos a religião à intimidade secreta das pessoas, sem influência alguma na vida social e nacional, sem nos preocuparmos com a saúde das instituições da sociedade civil, sem opinar sobre os acontecimentos que afetam os cidadãos”. E continua: assim como o mandamento de ‘não matar’ põe limite claro para assegurar o valor da vida humana, hoje temos que dizer ‘não a uma economia da exclusão e da falta de equidade’. Esta economia mata. É inadmissível que não seja notícia que morra de frio um idoso morador de rua e que seja notícia a queda de dois pontos na bolsa. E continua:

hoje, clama-se por segurança, porém, enquanto não se elimine a exclusão e a falta de equidade no seio de uma sociedade e entre os povos, será impossível erradicar a violência. Acusa-se da violência os pobres e os povos pobres, mas, sem igualdade de oportunidades, as diversas formas de agressão e de guerra encontrarão terreno fértil, que cedo ou tarde, provocará sua explosão. Quando a sociedade — local, nacional, mundial — abandona na periferia uma parte de si mesma, não haverá programas políticos nem aparato policial ou de inteligência que possam assegurar indefinidamente a tranquilidade.

Papa Francisco, Evangelii gaudium, n. 53

Chama atenção o papa Francisco nesta Exortação Apostólica que “isto ocorre não somente porque a falta de equidade provoca a reação violenta dos excluídos do sistema, mas porque o sistema social e econômico é injusto em sua raiz”. Parafraseando João Paulo II que afirmou a vigência de uma sociedade que gera “ricos cada vez mais ricos, à custa de pobres cada vez mais pobres”, o Papa diz que

enquanto os ganhos de uns poucos crescem desmesuradamente, os ganhos da maioria ficam cada vez mais distantes do bem-estar desta minoria feliz. Este desequilíbrio provém de ideologias que defendem a autonomia absoluta dos mercados e a especulação financeira. Por isso, negam o direito de controle por parte dos Estados, encarregados de velar pelo bem comum. Instala-se uma nova tirania invisível, às vezes virtual, que impõe de forma unilateral e implacável suas leis e suas regras.

Papa Francisco, Evangelii gaudium, n. 56

Aqui está um complexo campo de ação dos cristãos, mas que é tarefa de todos os cidadãos. Não outra saída, “o futuro exige hoje a tarefa de reabilitar a política, que é uma das formas mais altas da caridade”, disse o Papa no Rio de Janeiro (apud IRMÃS PAULINAS, 2013, p. 80)10.

Com relação à ecologia, o papa Francisco também surpreende com a dedicação de uma encíclica sobre a questão — a Laudato si’ (LS) — introduzindo no magistério social pontifício a noção de “ecologia integral”, somando à compreensão do conceito em encíclicas anteriores, também os conceitos de “ecologia econômica”, “ecologia social”, “ecologia cultural” e “ecologia da vida cotidiana”. E de forma profética, inclui prioritariamente os pobres, que testemunham também sua forma de ecologia humana e social, vivendo laços de pertença e de solidariedade de uns para com os outros (LS 149). Para Francisco, faz-se necessária uma noção de ecologia “que integre o lugar específico que o ser humano ocupa neste mundo e as suas relações com a realidade que o circunda” (LS 15). Aspecto importante porque, “isto nos impede de considerar a natureza como algo separado de nós ou como uma mera moldura da nossa vida” (LS 139).

Na Encíclica Laudato si’, embora a palavra “capitalismo” não apareça, fica muito claro que para o papa Francisco os dramáticos problemas ecológicos de nossa época resultam das “engrenagens da atual economia globalizada”, engrenagens que constituem um sistema global, “um sistema de relações comerciais e de propriedade estruturalmente perverso”. Esta perversidade se deve a um sistema no qual predominam “os interesses ilimitados das empresas” e “uma discutível racionalidade econômica”, uma racionalidade instrumental que tem por único objetivo aumentar o lucro. Para o Papa, esta perversidade não é própria de um país ou outro, mas de “um sistema mundial, onde predominam a especulação e o princípio de maximização do lucro, e uma busca de rentabilidade financeira que tende a ignorar todo o contexto e os efeitos sobre a dignidade humana e o meio ambiente. Assim, se manifesta a íntima relação entre degradação ambiental e degradação humana e ética”. A obsessão do crescimento ilimitado, o consumismo, a tecnocracia, o domínio absoluto da finança e a divinização do mercado são outras características perversas do sistema. Em sua lógica destrutiva, tudo se reduz ao mercado e ao “cálculo financeiro de custos e benefícios”. Mas sabemos que “o meio ambiente é um desses bens que os mecanismos de mercado não são capazes de defender ou de promover adequadamente”. O poder “absoluto” do capital financeiro especulativo é um aspecto essencial do sistema, como revelou a recente crise bancária. O comentário da Encíclica é contundente: “a salvação dos bancos a todo custo, fazendo a população pagar o preço, confirma o domínio absoluto das finanças que não têm futuro e só pode gerar novas crises, depois de uma longa, custosa e aparente cura”.

Notas:

  1. Alocução no Encontro com o Episcopado Brasileiro, por ocasião de sua visita ao Brasil, no Arcebispado do Rio de Janeiro, dia 27 de junho de 2013.
  2. Expressão do Papa Francisco em pronunciamento feito por ocasião de sua visita ao Brasil, concretamente ao Hospital São Francisco de Assis na Providência de Deus, Rio de Janeiro, dia 24 de julho de 2013.
  3. Expressão recorrente nos pronunciamentos do Papa Francisco, que se remete à alocução feita por ocasião da visita à Comunidade de Varginha (Manguinhos), Rio de Janeiro, no dia 25 de julho, durante sua visita ao Brasil, em 2013.
  4. Alocução à “Classe dirigente do Brasil”, por ocasião de sua visita ao Brasil, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, dia 27 de junho de 2013.

Fonte:

Revista Pistis & Praxis, Teologia e Pastoral, Curitiba, v. 8, n. 3, 673-713, set./dez. 2016.

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Documento de Aparecida: O texto original, o texto oficial e o Papa Francisco – Primeira parte, com a palavra o teólogo Pe. Agenor Brighenti https://observatoriodaevangelizacao.com/documento-de-aparecida-o-texto-original-o-texto-oficial-e-o-papa-francisco-primeira-parte-com-a-palavra-o-teologo-pe-agenor-brighenti/ Mon, 19 Jul 2021 15:08:03 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=39957 [Leia mais...]]]> O texto original do Documento de Aparecida — que teve à frente da Comissão de Redação o então cardeal Bergoglio — antes de ser publicado como texto oficial, sofreu ao redor de 250 mudanças. Diante da negativa da Presidência da V Conferência pela autoria das mudanças e oficiosamente do próprio papa Bento XVI, que se limitou a “autorizar” a publicação do texto, os autores das censuras no texto original do Documento de Aparecida (DAp), nunca foram revelados. Frente a isso, o curioso é constatar que o Papa Francisco, desde a primeira-hora de seu pontificado, em seus pronunciamentos e documentos, tem resgatado praticamente tudo aquilo que os censores do texto original de Aparecida tinham suprimido. É o “Papa do fim do mundo”, fazendo soprar desde a periferia os “ventos do Sul” no coração da Igreja como um todo. Trata-se da afirmação da tradição eclesial libertadora da Igreja na América Latina, antes sob suspeição e, agora, reconhecida e enriquecendo a Igreja inteira. Dentre as mais de duas centenas de mudanças, há umas 40 maiores e de fundo, das quais este estudo aborda 10 delas, apresentando seu teor no texto original de Aparecida, seguido das censuras presentes no texto oficial e o resgate do que foi suprimido pelos censores em pronunciamentos e documentos do papa Francisco.

Palavras-chave: Documento de Aparecida. Vaticano II. Papa Francisco. Igreja na América Latina. Magistério Pontifício.

(Obs.: Esta é a PRIMEIRA PARTE do texto do teólogo pastoralista Agenor Brighenti publicado na Revista Pistis e Práxis. Teologia e Pastoral. Adaptação para o Observatório da Evangelização é de Edward Guimarães. Os grifos são nossos.)

Introdução

Terminados os trabalhos da V Conferência Geral dos Bispos da América Latina e Caribe em Aparecida no ano de 2007, seus participantes e assessores tinham em mãos o “texto original” do Documento de Aparecida, que teve na presidência da Comissão de Redação o então cardeal Bergoglio, hoje papa Francisco. Semanas depois, mais precisamente no dia 29 de junho, quando o papa Bento XVI “autorizou” (sic) a publicação do Documento Conclusivo, houve a desagradável surpresa de constatar que o “texto oficial” não coincidia com o “texto original”. Entre o término da Assembleia e a data da “autorização” de publicação do Documento, haviam sido feitas ao redor de 250 mudanças no “texto original”, muitas delas de menor importância, mudanças de forma ou de redação, mas outras tantas maiores, de conteúdo, pelo menos umas 40, importantes, de fundo.

O fato provocou a mobilização de setores significativos da Igreja, na busca de uma explicação sobre as mudanças efetuadas no “texto original”, tanto junto à Presidência da Assembleia como à Presidência do Conselho Episcopal Latino-americana (CELAM). A resposta, em um primeiro momento, foi de que o “texto original” e o “texto oficial” eram exatamente os mesmos. Entretanto, quando se demonstrou por meio de um minucioso trabalho analítico em quadros sinóticos1, as supressões, correções e os acréscimos ao “texto original”, a primeira explicação ficou desqualificada. Afirmava-se que, terminada a Assembleia, tudo o que a Presidência da Assembleia havia feito, foi levar o texto a Roma, para a “aprovação” do Papa. O desconcerto foi ainda maior, quando um membro da própria Presidência contou que o Papa, ao receber o texto, teria dito que por se tratar de um documento dos Bispos da Igreja na América Latina e Caribe, não caberia a ele “aprovar”, mas simplesmente “autorizar” sua publicação, exatamente como está expresso na carta que abre o Documento2.

Então, afinal, quem foram os autores das mudanças no “texto original” do Documento de Aparecida, entregue pela Comissão de Redação, presidida pelo então cardeal Bergoglio, à Presidência da Assembleia para levá-lo ao Papa? Nunca houve uma explicação oficial. Entretanto, conhecendo-se o teor do debate na Assembleia e as propostas das emendas apresentadas e não aprovadas e que agora apareciam no “texto oficial”, praticamente os autores das mudanças efetuadas deixaram nelas sua própria assinatura. Por outro lado, ninguém poderia imaginar, muito menos os censores que, poucos anos depois, o então presidente da Comissão de Redação do “texto original” do Documento viria a ser Papa. E mais que isso, que praticamente todas aquelas mudanças ou supressões que os censores haviam feito no “texto original”, o então cardeal Bergoglio — agora papa Francisco — traria novamente à tona e as proporia à Igreja como um todo, tanto através de seus reiterados pronunciamentos, como de seus documentos.

Neste estudo, no intuito de explicitar os “ventos do Sul na nova conjuntura eclesial” com a ascensão ao pontificado do cardeal Bergoglio, selecionamos dez das maiores mudanças efetuadas pelos censores no “texto original” do Documento de Aparecida. Sobre cada uma delas, apresentaremos sua redação no “texto original” em comparação com o “texto oficial”, seguida do resgate que o papa Francisco está fazendo daquilo que os censores haviam pontuado ou suprimido.

Quando se vê, na atualidade, o empenho do papa Francisco na reforma da Cúria romana e as dificuldades e até hostilidades que está encontrando em levar a cabo sua arrojada proposta evangelizadora, se entende melhor de onde vieram as mudanças no “texto original” de Aparecida e as razões que moveram seus censores.

Felizmente se, por um lado, tal ingerência minimizou o profetismo da Conferência de Aparecida, por outro, mostra o papa Francisco fazendo-se porta-voz da rica trajetória da Igreja na América Latina à Igreja inteira, ainda que isso incomode ou pareça inoportuno para determinados segmentos da Igreja, alguns deles muito perto do Papa ou até em sua casa, como provavelmente alguns dos censores do Documento de Aparecida.

1. A renovação do Vaticano II

Uma das questões sensíveis colocadas em relevo pelos censores do Documento de Aparecida é a renovação do Concílio Vaticano II, em grande medida, um processo pendente, sobretudo com a “involução eclesial” das últimas décadas. A batalha em torno da hermenêutica dos documentos do Concílio é a expressão de um mal-estar criado por setores mais conservadores da Igreja, arraigados a uma postura apologética frente ao mundo moderno, nostálgicos de um passado sem retorno. Com posturas ainda mais fechadas, segmentos tradicionalistas têm fundamentado sua eclesiologia numa cristologia docetista3, divinizando a Igreja, quando o Vaticano II resgatou também seu caráter histórico e humano, estabelecendo uma distinção ou permanente tensão entre carisma e instituição. Como diz Mircea Eliade (1980), a religião é uma instituição hierofânica, na medida em que seu objetivo é transparecer o divino através do humano, sem que jamais o humano pretenda tomar o lugar do divino, sob pena de eclipsá-lo. Além do divino, o humano é constitutivo da Igreja e, portanto, como afirma a Lumen gentium, além de santa, a Igreja é também pecadora. H. de Lubac (cf. 1988, p. 99-102), resgatando os Santos Padres, fala da Igreja como uma casta meretrix. Por isso, o lema de Calvino — ecclesia semper reformanda, que o Vaticano II assume em Unitatis redintegratio (UR 6).

Nesta perspectiva, a Conferência de Santo Domingo irá falar de “conversão pastoral” da Igreja e, Aparecida, além desta, também de “conversão eclesial” ou de reforma das estruturas da Igreja, que segundo os Bispos, muitas delas caducas. Por ocasião do Jubileu do ano 2000, o papa João Paulo II, tal como expressou em Ut unum sint (2005), Tertio millennio adveniente (1994) e Novo millennio ineunte (2001), quis fazer um solene pedido de perdão pelos pecados da Igreja, cometidos no decorrer dos séculos. Entretanto, o Papa encontrou a oposição de seus mais próximos, restringido o pedido de perdão pelos pecados cometidos “por filhos da Igreja”.

A autocrítica de Aparecida: sair da Igreja para encontrar Deus

O “texto original” do Documento de Aparecida, em várias passagens, registrava uma autocrítica da Igreja em relação a vários assuntos relativos à sua trajetória histórica. Com relação ao êxodo de católicos, especialmente para movimentos religiosos autônomos de caráter neopentecostal, o “texto original” reconhecia: “Na verdade, muita gente que passa para outros grupos religiosos não está buscando sair de nossa Igreja, mas está buscando sinceramente a Deus”. Sem dúvida, é uma frase forte, uma profunda autocrítica com relação às causas do crescimento das Igrejas pentecostais. Os censores, entretanto, matizaram a crueza da análise, dando à frase a seguinte redação: “… esperam encontrar respostas a suas inquietações. Procuram, não sem sérios perigos, responder a algumas aspirações que, quem sabe, não têm encontrado, como deveria ser, na Igreja” (DAp 225). Na mesma perspectiva, rompendo com uma postura apologética e proselitista em relação aos pentecostais, foi supresso do “texto original”: “Um passo nesta direção é o encontro com interlocutores pentecostais responsáveis e fraternos que partilham a estima, a oração e o estudo” (DAp 233).

Outro aspecto pelo qual os censores revelam dificuldade em assimilar a renovação do Vaticano II, também em relação à instituição eclesial, é a questão de pecados “da Igreja” ou de “filhos da Igreja”. Dizia o “texto original”: “A Igreja Católica na América Latina e no Caribe, apesar de suas deficiências e ambiguidades…”. Diz o “texto oficial”: “A Igreja Católica na América Latina e Caribe, apesar das deficiências e ambiguidades de alguns de seus membros…” (DAp 98). Mais adiante, aparecia: “Reconhecemos que, muitas vezes, nós os católicos temos nos afastado do Evangelho…”. Agora, aparece: “Reconhecemos que, em ocasiões, alguns católicos têm se afastado do Evangelho…” (DAp 100). O próprio papa Bento XVI, no Discurso Inaugural de Aparecida, expressou um posicionamento que provocou pronta reação, sobretudo nos meios indígenas e afro-americanos. Falando do processo de evangelização na América Latina, disse: “Com efeito, o anúncio de Jesus e de seu Evangelho não supôs, em nenhum momento, uma alienação das culturas pré-colombianas, nem foi uma imposição de uma cultura estranha” (DAp Discurso Inaugural).

A autocrítica papa Francisco: uma Igreja auto-referencial

Ter que sair da Igreja para encontrar a Deus, dialogar com os pentecostais e uma Igreja que se reconhece pecadora e pede perdão pelos seus pecados acometidos em seu itinerário histórico, é inconcebível para os censores do Documento de Aparecida, mas não para o papa Francisco. Tal como fazia menção o “texto original” do Documento de Aparecida, também para o Papa, na Igreja não há apenas pecados pessoais, de alguns de seus membros. Há também pecados estruturais, que requerem permanente conversão da instituição, mudanças em suas estruturas, muitas delas caducas ou ultrapassadas. Desde a primeira-hora de seu pontificado, o Papa tem se referido aos limites de uma Igreja auto-referencial (cf. EG 95), centrada em si mesma, aprisionando o próprio Cristo entre seus muros. Uma Igreja pautada pelo eclesiocentrismo de uma instituição que crê em um único meio de salvação, regida por princípios ideais e integrada por fiéis que se enquadrariam nos inúmeros requisitos pré-estabelecidos pelas leis canônicas. Na realidade, sobram e se toma distância: dos irregulares, em situações que ferem códigos legais; dos que estão nas “periferias do pecado”, considerados perdidos porque impedidos de acesso aos sacramentos; dos que estão “nas periferias da ignorância e da prescindência religiosa”, excluídos como interlocutores dignos de serem levados a sério; dos que estão “nas periferias do pensamento”, desafio aos sistemas teológicos de contornos nítidos e certezas incontestáveis; enfim, dos que estão “nas periferias da injustiça, da dor e de toda miséria”, clamando não pelo julgamento de um juiz, mas pelo regaço de uma mãe (BRIGHENTI, 2014, p. 15). Para o papa Francisco, “a posição do discípulo missionário não é uma posição de centro, mas de periferia” (apud IRMÃS PAULINAS, 2013, p. 143)4. Ainda como Bispo em Buenos Aires, ele criticava “as pastorais distantes”, pastorais disciplinares que privilegiam os princípios, as condutas, os procedimentos organizacionais, sem proximidade, sem ternura, nem carinho. Ignora-se, dizia ele, a “revolução da ternura”, que provocou a encarnação do Verbo (EG 88).

Na Evangelii gaudium, o papa Francisco, ao comparar a “imagem ideal da Igreja” com seu “rosto real”, advoga por uma renovação profunda por meio de uma “conversão eclesial como a abertura a uma reforma permanente de si mesma por fidelidade a Jesus Cristo” (EG 26). Certas cristalizações de estruturas eclesiais estorvam o dinamismo da evangelização. Para o Papa, este processo de conversão e transformação deve acontecer em todos os níveis eclesiais, principalmente nas dioceses (EG 31) e na Cúria Romana (EG 32).

Um compromisso pendente em relação à trajetória da Igreja na América Latina, era um pedido de perdão pelos seus pecados, cometidos durante a época colonial. Entretanto, durante a Conferência de Aparecida, por mais que os Bispos insistissem, não se permitiu que este ato de contrição fosse registrado no texto conclusivo. Agradável surpresa é ver o papa Francisco, em sua recente visita à Bolívia, dizer com todas as letras: “Alguns podem dizer que quando o Papa fala de colonialismo, ele se esquece de algumas ações da Igreja. Mas eu digo isso a vocês com lamento: muitos pecados foram cometidos contra os povos latinos em nome de Deus. Eu humildemente peço perdão, não apenas pelas ofensas da Igreja em si, mas também pelos crimes cometidos contra povos nativos durante a chamada conquista da América”5. Ainda na Bolívia, no discurso pronunciado durante um encontro de líderes indígenas e com a presença do primeiro presidente indígena do país, Evo Morales, Francisco destacou que, no passado, líderes latino-americanos da Igreja Católica já reconheceram que “graves pecados foram cometidos contra os povos nativos da América em nome de Deus”. E continuou: “Também quero que nos lembremos dos milhares de padres que, com o poder da cruz, se opuseram fortemente à lógica da espada. Houve pecado, e muitos. Mas nunca pedimos desculpas, então, agora peço perdão”, disse, fugindo do roteiro preparado para o discurso.

Com relação às Igrejas pentecostais, que os censores do “texto original” do Documento de Aparecida tenderam a menosprezar, desclassificando-as como interlocutoras e depositárias de valores que questionam a Igreja Católica, o papa Francisco também fez um gesto desconcertante. Por ocasião de sua visita ao Brasil e da Jornada Mundial da Juventude, caminhando pela comunidade de Varginha (Complexo de Manguinhos, zona norte da capital do Rio de Janeiro), o papa Francisco entrou em uma igreja evangélica da Assembleia de Deus, falou com o pastor e demais pessoas ali presentes, os convidando a rezar juntos um Pai Nosso. Na Itália tem feito visita “oficial” a Igrejas pentecostais.

Notas:

  1. Trata-se do trabalho esmeradamente elaborado pelo biblista argentino Eduardo de la Serna e amplamente divulgado nos meios eclesiais, mobilizados em torno às mudanças no “texto original” do Documento de Aparecida.
  2. Neste particular, diz expressamente a carta do papa Bento XVI: “Ao mesmo tempo que expresso meu reconhecimento pelo amor a Cristo e à Igreja, e pelo espírito de comunhão que caracterizou a Conferência Geral, autorizo a publicação do Documento Conclusivo, pedindo ao Senhor que, em comunhão com a Santa Sé e com o devido respeito pela responsabilidade de cada Bispo em sua própria Igreja local, ele seja luz e alento para um rico trabalho pastoral e evangelizador nos anos vindouros”.
  3. Sobre o docetismo. O termo vem do grego “dokéo”, que significa parecer. Daí o verbo grego “dokein”, que significa “parecer”. O docetismo é o termo que designa uma mentalidade religiosa que deturpa a fé cristão. Para afirmar a divindade de Jesus, os docetistas negava a sua humanidade e, portanto, a seriedade do mistério da encarnação. Ou seja, o Verbo não se fez humano, mas apenas parecia um ser humano; o corpo de Jesus, então, não era, de fato, um corpo humano, mas apenas “parecia” humano aos nossos olhos. Uma “eclesiologia docetista” é aquela que nega a dimensão humana da Igreja. Sendo toda divina, a Igreja é perfeita e, portanto, sem qualquer caráter histórico situado ou com necessidade de conversão.
  4. Alocução no Encontro com a Comissão de Coordenação do CELAM, por ocasião de sua visita ao Brasil, no Centro de Estudos do Sumaré, Rio de Janeiro, dia 28 de julho de 2013.
  5. Pronunciamento feito no dia 09 de julho de 2015, em Santa Cruz de La Sierra, recebendo aplausos dos presentes.

Fonte:

Revista Pistis & Praxis, Teologia e Pastoral, Curitiba, v. 8, n. 3, 673-713, set./dez. 2016.

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